O reizinho da palmatória

Spiccato

(Especialmente para minha cara amiga Rose Colaneri)



Vejo em anúncio no estadão que J. Jota de Moraes está dando um curso de oito aulas sobre o meu Ludwig que todas as tardes freqüentava a estalagem em Bonn em que o estalajadeiro atrás do balcão era a cara do demo, deus na portaria de leão-de-chácara só deixava cabra macho adentrar o recinto onde Ludwig entornava rios de vinho tinto envenenados do chumbo desprendido do cristal das taças que lhe causou a surdez sob a qual compôs a Nona e os quartetos inefáveis no fim da vida. O big boss do paraíso, com sua infinita e divina dor-de-cotovelo, de certo nunca perdoou Ludwig por ser um dos cobras da música ao lado de Bach e Amadeus, trio esperança que ocupa boa parte duma novelinha que pretendo trazer a público se este meu coração cansado de sofrer não entupir de sebo antes. Quem já ouviu sons e fúria do mundo sabe do que estou falando. Quac, a dor de ensurdecer com toda aquela música minando por dentro aos borbotões, não deve ter sido batatinha. J-J saberia se fosse artista ao invés de se obrigar apenas a sonhar com que passa na alma de um.

J-J batizou seu curso de Beethoven, o mais universal dos compositores da música clássica, titulozinho dejavu mais previsível que pulo de pipoca típico do encimadomurismo acadêmico. Professor não pode dar deixa de que tem visão pessoal de quem/que quer que seja e quando decide escorregar do muro vai de fininho na ponta dos pés que é para não pisar nos calos da comunidade acadêmica coaxando galharda na sala do corpo docente, síndrome do nivelo por baixo que é para a bugrada fingir que entende.

Nos meus idos de colegial na esquina da Paulista com a Angélica, Jota-Jota, então professor sei lá do que, um dia numa prova me botou na primeira carteira porque na semana anterior eu tinha feito um paper tão estupidamente genial sobre Rosa, que J-J julgou que eu tivesse chupado de alguém, embora eu só houvesse me limitado, jovencito quase púbere que era, a imitar o estilo banana-com-purpurina do fero Alfredo Bosi, avis-rara que gorjeia bonito na gaiola acadêmica. De marra, esculhambei a prova e J-J me deu um bezinho chinfrim digno dos vagaos que viviam puxando fumo pelos becos do Pacaembu, gente que acha que Rosa é nome de livro de Gertrude Stein. J-J, dobrando a esquina a mancar arrastando sua bengalinha sob pretexto de gota mas que obviamente era só para botar banca de intelectual enquanto na classe rezingava olímpico sobre Mallarmé e quejandos, passou tão compenetrado no resultado da loteria do coup de dés, que conseguiu não me notar no meio da manada. A intelligentsia de olhos grudados no céu não enxerga o poste pela frente.

A disciplinada Beth Brait, brava mestra de literatura que um dia teve a pretensão de me ensinar a escrever, me levava a pão de ló vendo que eu era o aluno certo no lugar errado. Brait se deixou tomar por certo desencanto quando viu que eu não suportava a aula dela senão sob efeito de meia garrafa de cavalinho, que então eu curtia engolir branca, quente, saneadora, purificante. Quero dizer à professora que, quando comecei jornalismo na Usp, a coisa degringolou de vez, fui obrigado a dobrar as doses cada dia mais aperreado sob a chatice das técnicas pedagógicas.

Brait e Moraes eram membros graduados do fã-clube de los hermanos Campos. Ninguém maior de idade pode levar los hermanos a sério. Ma che so io, a indústria acadêmica é das mais rentáveis do sistema solar, afinal tem professor que proclama ler e entender o campeão do obscurantismo Derrida pra depois dar palestra a trocentas pilas a cabeça, outros vivem a escarafunchar universidades francesas e italianas à procura de novos picaretas que possam "descobrir" e trazer para o circuito de palestras e seminários no berção e de quebra traduzir a obra do gajo para uma dessas editoras semifalidas que só publicam autores de papos-cabeça. Hélas, quão pesada é a cruz que nós poetas frustrados temos de carregar até perceber que a safada é feita do mais volátil vento que sopra ainda não descobri de onde.

J-J cobra 180 paus por seu curso para o público em geral, em que, deduzo, me incluo, pois que sou um dos mais públicos e gerais mamíferos ludwigueanos que sempre terminam sem nenhuma teta pra mamar, seja estatal ou privada. Até pagaria se J-J tivesse algo a me dizer sobre o meu olímpico Lud van que, je sais, me escuta de algures no inferno, que eu não soubesse. 

Belo, brioso Byron

Chega de liberalidade
Estão suspensos todos
os benefícios
Nada será fácil, prático
como antes

A partir de agora
20:48 de 28/11/2011
o passaporte para entrar
em meu mundo será
a poesia

NOTA:
poesia no duro
a poesia minha
a única que sei
a única que me sabe
a única que me entende
a que entendo única

A partir de agora
perdem a validade
quaisquer senhas
de clarices,
pessoas,
bandeiras,
carlos

(Por prazo indeterminado
aceitarei Emily e Sylvia
minhas inversas musas
a quem me entrego
em
meus pecaminosos
e inefáveis ménages à
trois.)

O mundo só terá passagem
bem como os cerebrados
espantalhos que o habitam

se o homem que sou
for reconhecido
se o coração que tenho
for escutado
se as palavras que digo
forem inscritas no meu
céu pela esquadrilha da
fumaça nesta
cruel noite de fim de
novembro

Quero ser carrasco

Se abrisse vaga pra carrasco neste país, eu seria o primeiro da fila.

Depois de empregado, chegava pro meu chefe e dizia: "Chefe, não precisa me pagar salário. Guarda pra ajudar a Europa financiar seu déficit."

Se um dia abrisse uma vaguinha dessas, eu seria o carrasco-mor. 

Como todos sabem, funcionário público gosta é de moleza. Carrasco, eu seria diferente. Levantava às 4 da matina, pegava no batente às 4:30, suava a camisa até o anoitecer, só meia horinha pros requisitos fisiológicos.

Carrasco, eu teria uma quota. Executava uns 50 vagabundos por dia. Seria o funcionário público mais esforçado do mundo – uns dos poucos. Um dos únicos. Um dos raros.

Eu daria um verdugo bem criativo, podes crer. Inventava uma cacetada de métodos. Dependendo do caso, até deixava o freguês escolher a forma de partir para a outra vida.

Teria desde morte sumária (quem sabe um tirinho na nuca ou uma foiçada da garganta) até uns rituaizinhos mais sofistiquês, pra cabra tipo masô.

Porém, nem todos os condenados, todavia, receberiam a solução final, entretanto. Por exemplo, pra esses abjetos que recebem altos cargos públicos e se dedicam a meter as mãozonas na grana dos nossos impostos, pra esses caras a morte nunca teria fim. Ou então duraria uns dois anos. Eu inventava o método mais vagaroso de execução de todo este nosso xangrilá em vias de extinção sob nuvens de dióxido de carbono.

E todo político ladrão também receberia tratamento igual. Ou pior. Ainda não me decidi.

Até agora só me decidi que quero, preciso ser carrasco.

Os esquerdinhas gostam de debochar de arroubos deste tipo. Dizem que o defensores da pena de morte só a defendem porque não são eles que puxam o gatilho, ligam a tomada, abrem o cadafalso, desferem a machadada.

Eu puxo! Eu ligo! Eu abro! Eu desfiro! Com o maior prazer. Eu boto a mão na massa! Boto a mão, o pé e o que tiver ao meu alcance. 

Na tevê o “ministro” se esbalda de rir. Está em seu habitat. Ri das acusações. Faz pilhéria. Tira uma da cara dos cidadãos que trabalham seis meses todo ano para sustentar a ele e a sua família de ladrões e a seus jagunços ladrões e a seus pares ladrões e a sua mãe ladrona. É um folgazão. O rei na barrigona de cerveja e banha de porco. Não se avexa em exibir o carão consternado para as câmaras. Quase às lágrimas, se diz injustiçado. Evoca a justiça divina. Acena, crispa os punhos, morde os beiços, forja todos os ésgares da vitimização esperados duma alta autoridade.

O Grande Safado não perde a chance de faturar em cima do evento. Sem dó nem piedade, abusa dos chavões, se mostra traumatizado, choraminga, zune, zumbe, urra, baba. De lambuja, aproveita o teatro macabro para encher a própria bola. Como tantos outros canalhas que vieram antes e que ainda virão.

O plenário está em polvorosa. Deputados e senadores lançam os punhos fechados para o ar, ganindo suas toscas bravatas, arregaçando as mangas de seus ternos Gucci de três mil dólares e sapatos Prada de dois. O grande mediador que preside a sessão resolve pedir calma. Destoando da comoção histérica que se alastra pela “Casa”, chama os outros à razão. Não podemos nos precipitar.

Sim, do sr. "presidente" do Grande Ato de Desagravo se espera que demonstre equilíbrio e sensatez. É perfeitamente compreensível. No berção impávido tudo é compreensível. Não vamos botar o Grande Safado em cana só por causa do ocorrido. Afinal, é apenas mais um saque desarmado ao Tesouro. Que assistiremos no jornacional enquanto comemos pizza de muzzarela.


Mas, porém, contudo, senhores congressistas, se um dia quiserem parar de falar e de fazer merda e resolverem instituir o Ministério das Execuções Sumárias, podem me chamar.


Serei o Carrascão-chefe, a seu dispor. A seu inteiro dispor.

Escrever

Tem coisas que escrevi que penso, pronto, posso enfim descansar, era isto que eu queria dizer, fim de papo.

Tem coisas que me dão efêmera sensação de saciedade, me vejo apto, com direito adquirido, a pleitear minha aposentadoria metafísica, da qual nasci depositário.

Tem outras, a, essas outras, que me dão vontade de morrer, provas documentais da minha vocação malsã para a vagabundice brasílica, vermezinho abortado entre o trópico de capricórnio e o equador.

Não mereço porra nenhuma nesta vida. Mereço, sim, mereço as humilhações que tive de engolir, os queixumes exalados das profundezas primitivas dum bêbado em fim de noite no balcão dum botequim imundo numa quebrada do cais, tão perto do porto, tão perdido no inferno, ao apenas poeticamente alcance da solução que nasceu e vingou dentro de mim.

Tem coisas que escrevi que não devia ter escrito ─ apenas emudecido.

Dorido Primo e neandertais mil

Forte


A única liberdade atingível é acordar de manhã e ficar na cama. Quis dizer "tangível", acho. Liberdade porque nos vemos livres do jugo dos instintos sob o sono. Se durante a virgília, digo, vigília tivéssemos o mesmo grau de autoconsciência que temos quando dormimos, a civilização não duraria 2 dias. Bem que os presidentes podiam promover o Dia Mundial do LSD. Cada um de nós pobres viventes tomaria uma overdose de ácido e sairia por aí desprovido das travas civilizadas, botando pra fora tudo que nos desse na telha. Seria um fim à altura para essa nossa infausta epopéia pelo cosmos. 

Para Primo Levi em Ist das ein Mensch? o pior momento do dia era a hora de acordar, quando ele sacava, assombrado e mortificado, que Auschwitz NÃO era um pesadelo. Gulp, me arrepia pensar. Confrontado com padecimentos insuportáveis que tais me pergunto por que fui salvo, habituado que estou à minha sina católica de padecer no paraíso, embora às vezes me caia sobre a cabeça o relâmpago da certeza de que ninguém sofre/sofreu tanto quanto papai aqui. Tudo fica imensamente mais tenebroso quando você fecha o livro, a cada linha se perguntando o que levou aqueles milhares de italianos a fazer fila na estação ainda em Roma e, sem dar um pio, entrar no trem da morte convictos de que rumavam para o abatedouro e viajar quatro dias em pé atochados em vagões de gado, em cada solavanco das rodas nos trilhos um sinal ominoso da proximidade cada vez maior do fim e como aquelas atrocidades foram possíveis e como aqueles diabos sobreviveram a 20 horas de trabalho-escravo/dia sob 10 graus abaixo de zero, comendo uma batata de manhã e outra à tarde, quando você fecha o livro e o mundo sujo em que vivemos fica tão cristalinamente claro, nada mudou, nada vai mudar nunca, você é ou algoz ou vítima, não há inocentes, não adianta entrar no chóping e fingir que não está vendo, às vezes um indigente escapa da reserva dos selvagens e apaga um de nós só pra nos lembrar de que não, nossa vidinha besta não é um filme.

Quando acordo de manhã entregando minha consciência à negociação entre as trevas da morte e as garras unhudas da luz do sol me espicaçando os olhos, quando acordo de manhã entendo primitivos qual Lula, finalmente entendo. Poderosos desvairados como esse e tantos outros vivem no mundo da lua porque podem se dar o luxo de falar toda e qualquer besteira com que seu fígado podre lhes envenena o cérebro de pardal. Ah, dádiva da oralidade sem peias. Só os muitos poderosos e poetas podem botar pra quebrar. A poetas não se dá/nunca se deu/nunca se dará a mínima, poetas são entes quiméricos patéticos assimétricos, desde que Homero desenhou o primeiro alfa em papiro para encetar o sítio de Tróia e a odisséia de Ulisses sofrendo no lombo chicotadas líricas para deleite de meia dúzia de doutos diletantes que se ufanam de armazenar na estantes da sala algumas verdades sobre o mundo que, por verdades, não nos ensinam como passar ao largo do redemoinho Caribdes.

Adolf veio para provar que civilização não é antídoto para os bárbaros que nos espreitam dia e noite, comendo com olhos assanhados nossas mulheres e nossas filhas, aguardando a noitinha pra botar as patas em nossos carrões de trocentas pilas. Pra quem tá a fim de enxegar alguma coisa que não esteja nos livros, Lula veio mais uma vez provar que a boçalidade sem fim é tudo que nos resta. Talvez tudo que nos caiba. A cada meio século surge no pedaço algum teórico pontificando sobre o "papel" do homem no mundo. Reich, depois de décadas estudando a alma humana, aparentemente desencantado de teorias e cientificismos e já beirando o desvario, obrou Escuta Zé Ninguém, livrinho de autoajuda meio constrangedor em que ele afunda em racionalizações e conselhos vazios sobre como o homem médio poderia se libertar de seus medos bobos, se quisesse. Em sua cegueira libertária, Reich não enxergou a possibilidade dos zés-ninguém no poder. Tivemos um e temos outra bem agora no Planalto. Afinal, cada um de nós é o homem que se sente bem em ser massa de que falou Ortega y Gasset. 

Manchete em pedrinhas de neon pink e roxo na minha cabeça

Adagio
Ampla faixa da praia está interditada.
Névoa espessa, quase sólida, abarca de Miramar quase até o Caiçara. (Sólida no duro, quem chega com o intuito de tomar sol ou um banho de mar bate a cara na névoa e ricocheteia.) 
Ali dentro nada se move. Ninguém se mexe. Não há vento. As pisadas na areia são as mesmas desde há 38 anos. As próprias ondas, imaginem, as próprias ondas parecem congeladas na mesma posição, sempre prestes a desabar umas sobre as outras, mas só isso – prestes, prestes, prestes.
Dentro da faixa não se mexe, não se fala, não se pensa, não se vive.
Embora nada aconteça de perto, de longe, de longe é possível enxergar duas figuras indistintas, de costas de quem olha de fora para dentro. As duas figurinhas estão entrando no mar. Estão de mãos dadas. Estão de roupa. Quer dizer, não vestem trajes de banho, e sim jeans e camisetas e tênis. Vai ver, é por isso que tudo parou. Onde já se viu? Uma entrada no mar de roupas, uma tão prosaica entrada no mar de roupas teria força para imobilizar tudo e todos desde o Caiçara até Miramar? A maioria das testemunhas tende a achar que não.
Só que não há testemunhas. Nunca houve. Testemunhas não existem. Mas, se existissem, nada seria diferente. Há no mundo e na vida não se sabe quantos bilhões de coisas que, mesmo se não existissem, o mundo e a vida e as bilhões de outras coisas restantes seriam exatamente iguais.
Não há nem houve testemunhas. Mas há envolvidos. Desses não se pode escapar. Tudo e todos estão envolvidos uns com os outros, entrelaçados numa trama inclemente de bifurcações e, ufa! irrespirável de colossal. 
(Se alguém aí souber como se livrar dos envolvidos, please, mande um email, carta, bata palmas, qualquer coisa.)
Um deles, dos envolvidos, chama a polícia. Todos têm vontade de cantar, mesmo assim alguém chama a polícia. (Paira sobre esta faixa da praia e sobre esta terra e sobre todas as outras a sina de que, quando se não se sabe que fazer a respeito de algo, chama-se a polícia e pronto. Talvez essa sina derive do mito segundo o qual tudo se resolve quando se pede socorro. 
Naquele tempo era assim, hoje em dia ainda é assim. Pede-se socorro por qualquer coisa, por mais trivial que seja. Embora uma ampla faixa de névoa quase sólida na praia nada tenha de trivial. Embora não atrapalhe a vida de ninguém, pois nunca ninguém jamais retornou pr'aquela faixa de praia nesses 38 anos. Sendo assim, ninguém notou a diferença. Se notasse, talvez ficasse encafifado com a Clara Alteração no Comportamento Mundial dos Mares. Mas hoje em dia ninguém se encafifa com coisa alguma, dado que de repente parecem estar todos anestesiados. Sempre estiveram? Sempre estiveram sem que outro alguém que não precisasse vir dum planeta longínquo tivesse sequer notado?)
Depois dum tempão, que pareceu durar séculos, o pedido de socorro é atendido. Uma viatura da peême finalmente chega. O policial ao volante é obrigado a frear bruscamente quando percebe que seria impossível adentrar a névoa quase sólida. Ao seu lado, o sargento fecha os olhos, certo de que não vai dar tempo. Ele rosna um palavrão entredentes.
Antes que os policiais tenham tempo de sair da viatura, um rapazola emerge de dentro da névoa quase sólida. Tem entre 12 e 15 anos, mas é um rapazola mesmo assim. 
Não sabia que ainda existissem rapazolas, pensa surpreso e surpreendentemente o sargento. É um pensamento vago mas que não deixa de ser pensamento. Surpreso porque jamais lhe passaria pela cabeça que de dentro daquela névoa estranha pudesse sair algo ou alguém. E surpreendentemente porque nem todo peême é dotado de fina argúcia perceptiva ou de capacidade de formular um subjuntivo em tão sutil harmonia com as normas do vernáculo quanto este sargento em vias de resolver o enigma da praia imóvel nesta insossa manhã de setembro.
O rapazola se aproxima da viatura. Tem numa das mãos um cesto de arame. O sargento nota que o cesto está cheio de siris. Refeito da surpresa inicial, agora ele não tem nada a estranhar, pois naquele tempo a praia abundava de siris e de outros bichos do mar.
– Você sabe o que está acontecendo aí dentro? – o sargento pergunta ao rapazola.
– Está acontecendo um montão de coisas. – O rapazola tem a língua presa, fala meio enrolada, como se a fala fosse um sentido do qual prescindiria facilmente se realmente pudesse. Ainda mais, é meio gago.
– Quem são aqueles dois que entraram no mar de roupa e tudo? – insiste a autoridade.
– Ainda não sei, sargento. – O rapazola tenta explicar com sua língua presa e gagueira e vontade quase invencível de falar só consigo mesmo.
O rapazola tem o olhar fixo em algum lugar no céu. O sargento se pergunta se haverá nas pupilas dele um brilho sonhador. O rapazola prossegue:
– Mas vou saber. Daqui a umas duas ou três semanas, vou saber. Pode ficar tranquilo. A única certeza por enquanto é que depois eles saíram da água. Não olharam pra ninguém em volta. Todo mundo ficou olhando pra eles. Aí entraram naquele prédio de três andares ali. – O rapazola indica uma direção com o dedo. – Subiram e quando a noite veio ele pôs the fool on the hill na vitrola e os dois dançaram a noite inteira, no meio do corredor.
– E ninguém ouviu? – O sargento se surpreende de novo. – Como é possível?
– Não me pergunte. – O rapazola dá de ombros.
O sargento fica desconfiado. O menino não quer falar. A gagueira, a língua presa, a gana de estar só consigo mesmo e muitas outras coisas mais de que o desconfiado sargento sequer desconfia.
No pequeno aglomerado de curiosos que se juntou em torno da viatura para assuntar, alguém tenta ligar o fatos. Sim, imaginam os curiosos, é possível ligar os fatos. Basta ter um pouco de vontade, porra. Um tiquinho de vontade! Será pedir muito? 
Day after day alone on a hill, the man with the foolish grin is keeping perfectly still, naquele tempo, com essa névoa miraculosa, esse gosto de sal do mar na pele, nos cabelos, nos olhos, a seda do teu babydoll no meu peito de rapazola, shampoo transcendental no teu cabelo liso, eu vivo pra este momento, god, eu espero este momento. Eu nasci pra este momento sem nenhuma outra finalidade, sem nenhuma outra função biológica, sem nenhuma outra pretensão filosófica, sem nenhuma outra vontade. Não tenho outra coisa, não sou outra coisa. Enquanto o disco girava na vitrola, fui me tornando um fóssil. The fool on the hill sees the sun going down. Fico girando em volta dele feito uma daquelas gaivotas sem pernas que naquela noite quente pairavam impensadas por sobre o telhado do prédio, sem pernas, impousáveis como nós dois naquela noite. 

Nuvens mudas

Eu te procuro
lá fora
no frio
mãos nos bolsos
ombros encolhidos
olhar fixo à frente
seguindo teu caminho
indiferente aos buracos
os montinhos de cocô dos cachorros na calçada
a história que te espreita de cada interstício, eco e
lampejo da cidade
as inundações e desmoronamentos e colapsos e
trombadas dentro da tua cabeça

Eu te procuro
parado aí onde estás
olhos fechados
punhos crispados
pensando o que pensas
temendo o que temes
lamentando o que lamentas
aí parado onde estás
esperando que te encontre
quando deixar de te procurar

More frightened than hurt

Estou (parado) (cabisbaixo) (inerme) diante duma ladeira.
Nem curta, nem. Comprida.
(Mas que perdulários foram os irmãos Campos.)

Na cabeça, uma casa nova.
Sem dormitórios.
Quero morar sem dormir.
Ficar sem temer.
Morrer sem viver.

Primeiro passo.
Na cabeça, versos contendo história dos.
Versos contendo tempo dos.
Versos contendo mágoas.

Chego ao topo da ladeira.
(Que instantânea chegada. Tão diferente da partida.)
(Não, não há finalmentes.
Se nunca houve, por que haveria de haver agora?)
Me volto, preparado para descer.
Ó mãe, como espero que seja esta a última vez.

Na cabeça não há versos.
(Mentira. Há, sim. Versos contendo a totalidade.)
Vou olhando as pedras da calçada.
Antecipando o poema que preciso escrever.

Nas voltas do meu coração

O tempo é a nossa única dimensão interessante e que conta. Não tem presente ou passado. Quem tem é a história. Futuro não existe, é uma abstração. O mundo ainda não acabou, fato, não significa que não acabará daqui a 3 segundos ou 10 minutos. Taí algo que a ciência não tem como "comprovar".

Einstein disse, entre outras definições, que tempo é o que o relógio mede. As descobertas do rapaz levaram à teoria quântica em que fenômenos que regem nossas vidinhas ocorrem não se sabe em que grau sob a lei do indeterminismo em que tudo é uma questão de probabilidades, i.e., acidental, i.e., se a melindrosa leitora não captou a implicação medonha, somos serezinhos brotados do lodo mais ou menos ao acaso, nossas vidinhas não são governadas por desígnios divinos, vamos padecendo aos trancos nos barrancos deste vale de lágrimas velho de guerra sem a mínima idéia de onde saímos, onde estamos e aonde iremos, quem somos e outras duvidazinhas que fazem dos nossos coraçõezinhos bombinhas-relógio decoradas com lacinhos vermelhos de chumbo e fel.

Os estudiosos quânticos puseram/põem na mesa enigmas como os pósitrons, elétrons que se movem para trás no tempo, e os táquions, demonstrados matematicamente, partículas mais rápidas que a luz que talvez possam subverter a ordem temporal que conhecemos, nossa noção de sucessividade, o modo como vemos as coisas ocorrendo no tempo, e outras belezinhas mais ou menos básicas para a nossa frágil mentezinha amanteigada. O pessoal, parece, descobriu que a seta do tempo pode ser invertida, qual naquela bela novelinha de Martin Amis, Time's Arrow. A máquina do tempo provavelmente será questão de, ã, tempo. Tem até um físico americano, John Wheeler, que disse haver fenômenos em que eventos ocorridos agora podem afetar o curso de eventos já ocorridos, quac.

Tudo isso é deveras intrigante, larirá-lirari. Desde Aristóteles a rapaziada vem peleando para espetar uma etiqueta no peito do bicho e partir para outras questões secundárias aguardando na fila das verdades científicas que viram de ponta-cabeça a cada seis meses. Não importa o que se descubra daqui em diante, não vai dar tempo de salvar nosso lindo ex-bucólico planetinha. A menos que defacto inventem a máquina que nos levará rumo ao futuro passado, quem sabe. Até lá, Marx, el gran sacador, reduzido a chefe de torcida organizada por direitistas/esquerdistas boçais engalfinhados na imorredoura bobageira ideológica, por culpa do "pragmático" Engels, me parece ainda insuperável em que o que conta é a história, o resto é detalhe, como definiriam certos confusos jornalistas. O cara teve a sorte de viver a efervescência da Revolução Industrial, que, contrariando meus princípios linguísticos, não posso deixar de pôr em caps. Kant, oquêi, é a rosa inebriantemente perfumada da Revolução, arauto que oficializou a maratona definitiva da humanidade, sob o tiro de largada de Newton, na corrida do conhecimento e do progresso e da autodestruição. O jogo-da-amarelinha quântico é cativante, urdido e tramado pelo mesmo tipo de cientistas que fizeram da Terra o lixão da Via Láctea. O patético disso tudo é que os cabras agora têm pela frente a missão de desinventar a porcariada que nos trouxe a este cul-de-sac. Mas parece que deus não aceita devoluções. Nada vai nos tirar desse encrenca. A fantasia da alienação está à venda em milhões de tamanhos e cores. Um deles/delas serve direitinho na ciência. Entre religiosos assumidamente irracionalistas e cientistas sonambulamente irracionalistas, fico co's primeiros. São menos perigosos.

Pra variar, a última palavra é dos poetas, pessoalzinho que não entende a vida nem tem a pretensão de:

Carrol:

Alice sighed wearily. 'I think you might do something better with the time,' she said, 'than waste it in asking riddles that have no answers.'

'If you knew Time as well as I do,' said the Hatter, 'you wouldn't talk about wasting it. It's him.'

'I don't know what you mean,' said Alice.

'Of course you don't!' the Hatter said, tossing his head contemptuously. 'I dare say you never even spoke to Time!'


Eliot, em Burnt Norton:

Time past and time future
Allow but a little consciousness.
To be conscious is not to be in time.
 

Clareza da água sanitária

Não gosto nem nunca gostei de visitas. Só gosta quem acha que perdeu algo por aí no mundo. Já sei: quem não gosta de visitas não quer deixar rastros, não é? Será esta conclusão válida? Mesmo que não, ou pensem que não, peço que entendam.

Preciso confessar, tenho saudade daqueles tempos em que aceitava a existência alheia e brincava no pátio da escola e na vilinha do Roberto. O Roberto era gordo qual anta e tinha cara de delibóide, digo, debilóide. Nunca mais tive news dele. Nunca mais vi mais gordo. O baleia me detestava. Por que será?

Quem não gosta de visitas passa aos outros uma impressão de ser inconfiável. Isso sempre me deixou triste. Pois sou. E não quero que confiem em mim. E querer isso é para mim um avanço espetacular. Quero ter amigos. Amigos que me deem uma opinião sobre um livro que estou escrevendo. Amigos que me respondam. Sou sincero. Cansei de brigar. Com tudo e todos.

Hoje não consegui dormir. Fiquei lá deitado, esperando. Esperando o quê? Um convite. Aquele que enjeitei a primeira vez. Me perguntava se ainda estaria de pé.

Agora que fiz esta confissão tô me sentindo leve. Saiu um chumbo do meu peito. Ufa, como foi que pude respirar até hoje? Sabendo que há tantos visitantes potenciais no mundo aí fora, gente ávida por me conhecer de perto, presenciar meus movimentos, saber o que me leva a fazer o que faço.

Sei quão dura é a vida sem plateia. Todo esse tempo vivendo pra ninguém em solidão abissal.

Temos de viver por algo. Ou alguém que se disponha a testemunhar a infernal inventividade dos que existem para criar.

O fim está começando



Devemos lamber a urina, mijar o mel
Não, não é isso que devemos dizer
Pois, loucos, não devemos agir como tal

Devemos lamber o mel, mijar a urina
Enlevar nossos corações com o canto da chuva
Para que nosso sono seja livre de sobressaltos,
pesadelos e, se quisermos ser felizes, sonhos

Devemos observar a suprema lei de Darwin
E nos conformar com nosso papel de espiões

Devemos nos precaver, armando nossos olhos com perspicácia felina
Calçando nossas mãos e nossos pés com garras de vampiro
Ocultando nossas caretas com a máscara do chimpanzé
Disfarçando nossa voz com o falsete do ventríloco
(que, operador de milagres, fala, veja só, fala pela mais insondável das cavernas: o ventre)

Devemos olhar o céu e, fingindo afundar neste mar de mistério que nos rodeia que de mistério não tem nada, perguntar às paredes o que fazem os astros parados lá em cima, que é que os pássaros tanto alardeiam, aonde vão as nuvens, de onde vem o vento e outras perguntas inúteis
Mas, não sendo loucos, evitamos inquirir por que não nos foi dada a graça de ter asas
(a resposta seria tão decepcionantemente simples: porque, a despeito da vocação para as alturas que as professoras tentam nos impingir desde a primeira aula, não queremos voar)

Assim, devemos desempenhar as funções que nos cabem
(de preferência, sem duvidar muito dos verdadeiros propósitos das funções que nos cabem; pois devemos ter pena dos condenados à metafísica)

Mais que tudo, devemos nos sentar na sala e, sem o suplício da procura, fingir que estamos insuportavelmente acompanhados da nossa doce dama chamada solidão


O que me separa do mundo

Espera.
O tempo.
O dia começa.
O dia acaba.
Um só momento.
Há tempo.
Duradouro.
Entre
O dia
Entre
O dia
Um só momento.
Acaba o dia.
Começa o dia.
O tempo.
Espera.

Vale morrer, cabe viver

Quer dizer então que ela era carente?


Sim, senhor.

"Sim senhor" e mais nada? Podia elaborar um pouco mais?

Elaborar? Como assim, senhor?

Se estender, dar detalhes, dizer o que realmente acha que houve. Aliás, que é que acha realmente que houve?

Bom... Eu... Ãhn...

Pode falar. Tudo ficará entre nós. Além de ser carente, que outros problemas a moça tinha, em sua opinião?

Bom... Ãhn... Bem, além de carente, acho que ela era muito insegura.

Huhum. Que mais?

Calada. Sim! Muito calada. Quase não abria a boca.

Sei. Prossiga.

E solitária. Não tinha amigos. E estava sempre com a cabeça baixa. E nunca olhava a gente nos olhos. Quem puxasse conversa só recebia um hã, sim, não. O senhor sabe, essas pessoas monossilábicas. E sempre mirando o chão, como se procurasse uma moeda perdida. E parecia não ter vontade própria. Topava tudo que a gente inventava. E nunca tinha voz pra nada. Tudo sempre bom. E triste. Parecia desamparada. Nas vezes raras em que mostrava o olhar, víamos que estava assim meio aflita, sabe? Inquieta, como se não pudesse baixar a guarda.

E você acha que foi por isso?

Bom, sei que vai parecer estranho. O senhor pode até não acreditar. Mas não, não acho.

Então o que é que foi?

Foi o destino. Sei que o senhor vai rir. Mas foi o destino.

Escola de cínicos I

Era trabalhador.


Disciplinado. 


Metódico e diligente. 


Às vezes quase taciturno.

Um dia, concentrado no trabalho, de repente, sem saber por que,
SORRIU.

Depois, um risinho
gemido manso, frouxo
a princípio, logo virou
risada, depois
gargalhada
visceral, descontrolada, debochada
besta.

O sujeito que era
trabalhador
disciplinado,
metódico
e
diligente
às vezes quase taciturno
procurou se conter, mas a graça brotava
crua
brava
escrachada
mais brado
que alívio
trava
destrancada
cravo
esvaziante do
cofre sem chave
arrancada
de dentro com poder infernal.

E logo lhe
sacudia
o
peito
depois ele todo.

Dos olhinhos estreitos e risonhos nasciam lágrimas doloridas,
da boca escancarada, prestes a esgarçar, pendia a língua
inchada, escorria a baba mole.

O sujeito que era trabalha-
dor, discipli-
nado, metó-
dico e dilig-
ente,
às vezes quase taciturno,
morreu assim
vítima dum risinho bobo.





Casa cidade

Entre a cidade,
Cidade que é minha,
E a cidade vizinha
Há outra

Rua entre uma rua 
E a rua que é minha,
Há outra
Casa entre minha casa 
E a casa de outro
Há outra
casa vizinha.

Destinatário não encontrado

Para a poesia
cada momento é uma desculpa
toda musa, uma vítima
uma dor de dente, angústia metafísica

Se você caiu presa da sanha dum poeta,
se enxergou seu retrato desfigurado
num verso indigno dum pateta,
não se zangue, não se revolte

Ele de certo está mais
decepcionado e atônito
que você.

Nada de mútuas transgressões, Sô

Vou fingir que não vejo.
Vou fingir que não farejo.
Vou fingir que não sinto.

Não sou bom fingidor.
Ainda não aprendi a fingir.
Começo a acreditar que nunca aprenderei.
Há algo no fingimento que me escapa.
Vejo os fingidores, os reconheço, identifico suas manhas, seus olhares, esgares, trejeitos.
Mas imitá-los é tarefa além da minha capacidade.

Então vou concluindo que fingir é, como se diz, dom.
Dom nato.
Você sabe ou você não sabe.
Não tem meio termo.

Já os estudei.
Ainda os estudo.
Fingem com tanta naturalidade, mãe.
Que nem me parece fingimento.
E se digo que fingem, eles negam.
"Estou sendo sincero!" batem o pé.

Então compreendo.
(Mas esqueço.)
(Amanhã compreenderei de novo.)
É uma sinceridade fingida.
É um fingimento sincero.


E vou fingindo que não vejo.
E vou fingindo que não farejo.
E vou fingindo que não finjo.

Me ensimesmando de mim mesmo

Este nesta foto não sou eu.
Lembro de tudo.
Quando tirei.
A roupa que usava.
A atmosfera do dia.
(Desta nós seres que nos chamamos humanos sempre temos ciência.)
Até um ou outro pensamento que vagou aqui dentro.
(Como não lembraria? Meus pensamentos são sempre os mesmos.
Os seus também não são?)

Mas esta cara nesta foto não é minha.
Que brilho é este neste olhar?
Que riscos são estes nesta boca?
Que está insinuando este esboço de sorriso maroto?

Meu sorriso nunca é maroto.
Meu sorriso nunca é coisa alguma.
Sequer sorrio.
Sorriria de quê?
De mim mesmo?

Esquina da Caramuru com a Coronel Lisboa

Te amando
caminhei de olhos
fechados
sob o sol inclemente
que a farta alegria
atenuava.

Agora no frio escuro
do meu quarto
não mais
exploro os
veios de ouro.

Volto a ser o
apanhador de
brilhantes fugidios.

Vamos comer um pedaço de pizza na padaria?

Quando te conheci, habitava o vácuo da dúvida
Até que veio o dia com a naturalidade dos dias
estabelecendo nos arredores o reino da claridade.

E o escuro formou seu cerco e, espargindo o negro,
por alguns instantes travou-se a esperada peleja,
até que a noite, qual todas as noites, se apiedou
docemente, exilando a luz para longe dos meus olhos,
me ocupando a respiração, os ouvidos, as mãos.

Tonto de testemunhar a previsível luta,
cada vez mais longe andei
cada vez mais longe de mim
chegando quase perto de ti
antevendo nosso desmaio.

Escuta, amor, teu coração bate no grande ciclo!
Viveremos de nos afastar para nos unir
Até perdemos os olhos, os ouvidos
e a lembrança

Rios em mim brotam
momentâneos
me carregam ao insondável mar
e secam instantâneos
(ah, como lamento ser também cíclico)

Quando te conheci, não imaginava que poderia
me aproximar
cada vez mais distante.

Enquanto morre a noite
Escuto o dia voltar,
teu coração bater,
mais um rio secar.

Mais uma lição da série "Previna-se antes que seja tarde"

Para ser um bom carrasco, traje roupa comum.
Use um disfarce que não pareça disfarce. (Sei que esta recomendação soa dolorosamente óbvia.)
Se comporte feito um paisano.
Acima de tudo, não chame atenção.
Mire-se no exemplo dos predadores que vivem na natureza: se mimetize com o ambiente.

Para ser um bom carrasco, cultive a paciência.
(É por isso que, em sua maioria, os carrascos não tiram o máximo de sua experiência exterminante – só pensam em executar a vítima; só querem saber de liquidar o assunto; só têm olhos para o fim, quando o que importa mesmo é o “processo”.  Pois, como parece evidente, o fim é o fim. E você não será ingênuo a ponto de ficar chupando o dedo deixando o processo acabar.)

O bom carrasco precisa ter vocação para o ofício.
(Pois o bom carrasco cedo ou tarde termina por se profissionalizar; e se for mesmo bom, provavelmente fará da execução um sacerdócio,  empregando todos os rituais e vestimentas e apetrechos que um sacerdócio requer; e o carrasco realmente bom de certo abandonará os laços que o conectam à realidade terrena para consagrar sua vida à ascese religiosa.)

Para ser um bom carrasco, dissimule.
E qual seria a fantasia mais indicada neste caso?
Bidu.
Assuma ares de anjo.
Faça olhares de anjo.
Penteie seu cabelo como os anjos.
Fale com a voz doce e melíflua e compassada que só os anjos sabem e podem.

(Mas não use asas. Daria muito na cara. E um bom carrasco não pode ser tão óbvio.)

Para ser um bom carrasco, o segredo é levar a vítima ao mais estarrecedor dos espantos.
E o mais estarrecedor dos espantos só é possível quando provocado por alguém de quem nunca se espera o mais estarrecedor dos espantos.
E provocado num momento em que nunca se espera o mais estarrecedor dos espantos.
Aí é que está o macete.
Percebe?

Para ser um bom algoz.

Para ser um bom carrasco, você deve convencer.
(Reflita: da forma que só um anjo exterminador pode convencer.)

Lembre-se: um bom carrasco não ruge, não arreganha os dentes, não faz careta.
(Lembre-se também: você quer ser um verdugo, não parecer um pateta.)
O bom carrasco sempre irradia sossego e afeição através dum sorrisinho meigo mas imperturbável.

Para ser um bom carrasco, você deve prometer prazer.
(Claro que sem nunca dar prazer.)
Você deve prometer amor.
Mais que tudo, prometer a salvação.

Sendo um bom carrasco, talvez nem precise chegar à solução final. Talvez baste semear o terror no “coração” da vítima.

Não se esqueça: para ser um bom carrasco, nunca fale na morte.

Para ser um bom carrasco talvez nem seja preciso ser um carrasco, afinal.

Desejo de desejo

Dia-diamante, vem,
vou te polir,
formar teu retrato,
tua luz esculpir, 
de novo buscar algo belo na tua solidão.


Foram décadas atrás da noite, 
espiando a vida que é minha, 
eis-me aqui de corpo e alma presente
por fim
atrevido a anunciar que hoje
sou um homem de atitude.


Em meu adolescente diário
salvado das cinzas
atualizarei nossos 
momentos de felicidade.


(Em meu diário te releio, diamante morto, vazio, 
sepultando desta velha vida a sólida beleza 
das minhas diabruras de menino sem sonhos nem vontades, 
alheio ao dia-diagrama que em cada uma das tuas páginas
estampa as instruções sobre a minha mecânica em 
dialeto que me maravilha incompreensivelmente.)


Ex-demolidor de tantos templos, hoje zelador 
dedicado a varrê-los de vítreos olhos, separo do 
lixo carbonizado meus ex-ícones sacros, alheio autor 
de incêndios de que restaram
senão a luz.


Que brasas frias são estas que apalpam minhas mãos?
E se as colhesse, uma a uma, guardando-as com a
esperança de que voltem a incandescer sob a inesperada, 
bendita força duma gélida ventania?


Ergo dos arredores os olhos, 
procuro no céu aconchego,
moradia ou contentamento,
me dá a dádiva de
esquecer este momento.


Percebo lá encima em forma de fumaça a vagar 
meu dia que preservei com tamanho
cuidado, carimbando-o com fileiras de palavras
que hoje se mostram tão estéreis
sob o descolorido da minha tranquilidade e
a contração das minhas acabrunhadas pálpebras.


Cálido, pálido dia
restaura minha ousadia
restitui meu apelido.


Se decidir estancar minha vida nas tuas alturas
roubar-me o sabor da manhã
despertar deste auto-idílio


(pois sei que um dia ele existiu
e neste dia o espero novamente
para enfim me ausentar)


meu ardil terá valido a lida.