Auga ed edes

Olha, tenho esta mina que nunca se esgota
Da qual diariamente bebo das mãos enconchadas
E levadas à boca só resta o vapor por entre os dedos


É assim desde quando não sei precisar
Nunca tinha me dado conta
De que padeço todo esse tempo
Duma sede atroz por minha água seca

A palavra que não achei este 28 de setembro


Palavras mancas mancas mancas!



Ontem eu estava aqui no meu quarto olhando a parede da frente acima do computador e segurando meu copo de balla12 meio descompromissadamente como impávido de que o bicho de repente pudesse criar asas e voar como venho fazendo há uns 40 anos quando sinto uma cociguinha nos pêlos da canela direita e desvio o olhar com essa preguiça abissal que me é tão peculiar e vejo que uma barata cascuda tenta escalar minha perna.
Lembro que pensei, "essa barata é fake", apondo um pontão de exclamação bem grandão na oração como sinal de desilusão.
E logo emendei, "Se Michelangelo fosse uma barata, até hoje a Capela Sistina não teria sido decorada".
Que fantasmagoricamente colossal boçalidade cai sobre esta época do diabo feito um rochedo de mármore Carrara, nos sufocando a todos qual um colchão embolorado.
Até minhas baratas são fakes.
Todo mundo é fake.
Aquele marciano que me visitou ontem pouco antes da hora do almoço querendo filar um prato feito era fake.
Certo, provavelmente são os novos ares trazidos por esses chineses sem senso de limpeza nem pessoalidade.
Forjados em outra linha de montagem.
A partir do mesmo molde.
PLAFT, MY VERTICAL SYLVIA !
Assim, seco, irreverberado, imbuído da missão de seguir em frente até a próxima esquina.


Eu estou feliz


Eu estou imbecilmente, morbidamente feliz.
Como o mais cafona dos vermes numa lata de atum putrefato, eu estou cafonerrimamente feliz.

É um estado de felicidade que, apesar de todo meu talento descritivo, de toda minha inspiração poética, apesar desta minha febre delirante, mal consigo exprimir.

Eu estou tão feliz, que quero que se foda, quero que o mundo acabe, quero um trilhão de querências não queridas ao mesmo tempo.

Só não quero, de tão feliz, virar pó e ser espalhado aleatoriamente pelas calçadas encardidas das redondezas.
Sei lá, não quero, não posso dizer mais nada. Estou feliz. E não tenho culpa.

Sociólogos, astrólogos, psicanalistas, desistam! Minha felicidade não tem porquês.

Tão, mas tão feliz, que caio na gargalhada com as pontadas agudas dentro da minha cabeça. Tão feliz, que o peso nas minhas pernas me abre um sorrisinho meigo nos lábios.

Mein Dieu, Dio mon, diabos, estou feliz qual um insensato. Não há mais o que dizer. Não tenho culpa. Não tenho nada.

Driblando Sylvia I


Uma das maiores desvantagens de não acreditar em deus é não poder dizer "Deus me livre!".
Pelo início fenomenal, pensei que o texto fosse tomar rumo bem diferente.
Mas já vai virando a xaropada de sempre.
Eu desenvolveria diferente.
Focaria no poder "mágico" que as pessoas atribuem ao "Deus me livre!". E especularia até que ponto a autossugestão positiva é capaz de ajudar a nos proteger de males que podemos causar a nós próprios.
Porque, porra, se você desembestar a repetir "O diabo me foda!" dia e noite, duvido que não acabe se estrepando de repente involuntariamente inconscientemente.
O pior nesse tipo de situação é não ter em quem botar a culpa.
Somos mestres em transferir culpa.
Tem coisa mais gostosa?

Um dia elas existiram, eu sei

Toc.

Toc-toc.

Hm?

Prriiiiim.

(Ronronear do motor dum disco voador.)

((Me diga, você dobra a esquina e, pumba! lá está, o disco, o disco cuja ideia você sempre desprezou, de que debochou desde seus dois anos de idade. Lá está ele, porta basculante aberta, bocarra abissal anunciando total disposição para te engolir, a repentinidade, a sedução firmando no branco da tua mente que não têm a mais remota importância as implicações de tal viagem.))

(((Fôdasse o mundo e com o mundo os pudores que você cultivou até este dia qual ervas daninhas redentoras da tua esquisitisse no mundo. Touché! Este ser diante do disco voador sou eu e, creia, não vou bater em retirada! Não outra vez! Não desta vez!)))

Cuidado.

Este fôdasse pode ser o fôdasse dum menino que finalmente renuncia ao amor dos pais e se entrega à pinga e à maconha e à cocaína e ao crack.

Oh no!

Perigo nenhum.

Estou seguindo de perto um mapa que tracei para mim quando tinha 17 anos e por isso mesmo tenho certeza de que não pode haver erros ou surpresas.

(Sabia que depois de todos esses anos o círculo se fecharia.)

E eis que se fecha.

Eis que se fecha.

Só me restava dispará-lo.

Só me resta observar enquanto ele se fecha.

(Silenciosamente como sempre esperei e as orações e novenas das mulheres no quarto dos fundos de casa suplicaram a quem quer que fosse que assim fosse.)

Bucólico cometa


E se o mundo de repente ficasse a meu cargo?
Pois então.
Em primeiro lugar faria que me chamassem de grande poeta.
E, para não decepcionar o mundo, escreveria à altura e esnobaria e não faria por menos.
E faria mostrar a todos que não, grandes poetas não têm cabeça para mundanices.
Grandes poetas ficam lá embaixo, lá no fundo, lá longe às voltas com aquelas coisas de grandes poetas e que seres normais não têm alcance para atinar.
E, já poeta grande, me ocorreria: ai que saudade dum caminho de terra batida transitada pelos caboclos rumando pra roça às 5 da matina.
E me lembraria que a família tinha uma fazenda em Américo Brasiliense, perto de Araraquara, que virou mingau quando meu avô morreu. Os herdeiros diretos se pegaram de pau e a geração dos netos, eu e meus irmãos e primos, dançamos.
Era um pomar edênico, com todos os frutos do paraíso, cercado de currais por todos os lados, onde eu e minha irmã acorríamos na alvorada cum copão carregado de açúcar cristal até a metade e tomávamos leite esguichado diretamente do bicão preto da túmida úbere da vaca gorda, mon dieu, que deslumbre de sonho mnemônico.
(Cá pra nós, o leite era horrivelmente espesso e gorduroso e peculiarmente odorífero e eu, ainda aos parcos quatro aninhos, sentia engulhos ante a enormidade dos nutrientes graxos. Mas o que valia e ainda vale a pena era e é a rapidez com que o leite ocupava o copo de fundo grosso e o refrescante calor do maná vindo diretamente de dentro do bicho na palma da mão.)
Papai tinha um cavalo cego dum olho. Que, fiquei sabendo anos depois, me deixando acachapado de tristeza, morreu de picada de cobra.
Papai era um dos donos mas capinava junto com os caboclos. Acordava às 4, almoçava às 10, retornava às 4, caía na cama às 7.
(Ai que vontade de acordar às 4, almoçar às 10, retornar às 4 e cair na cama às 7.)
Papai começou a fumar aos 9.
Retinha os palitos de fósforo com outro palito dentro da caixa, para o pai dele não perceber que andava com uma caixa e nunca fumou na frente do pai.
Comecei a fumar aos 13, na frente dele desde o primeiro dia.
Tem coisa que nunca vou me perdoar.

Quem é esse cara?


Um verso não é um cacho de banana que você bota na fruteira pra quando tiver fome.

Um verso não é um lema que você exibe no pára-choques do teu caminhão, uma bandeira que você hasteia pra anunciar tua ideologia, um crucifixo que você prega na parede do teu quarto pra te proteger de maus-olhados.

Um verso não é uma ave-maria que você recita mecanicamente pra fazer de conta que tem fé.

Poetas não versejam pra ser usados como troco no balcão do mercado.

Tirando os quintanas nascidos pra abafar, a poesia é sagrada — só hereges e pagãos não compreendem.

Resposta:

Sou aquele cara que você pergunta "quem é esse cara?"

A vida é um sintoma

Caminho cabisbaixo pela calçada.
Paro diante duma boca-de-lobo.
Ela se abre, negra, sem fundo,
Pronta a me devorar.
Pra minha sorte,
Na entrada deste beco
Tem um buteco sem saída.
Sorry pela epígrafe.

Anonimanto

O tempo é uma arena que roda e nos erege estátuas.
Inocuamente.
Sem entradas, sem saídas.
Interminável para quem está dentro.
Inprincipiável para quem está fora.
Esta tarde me preparei mais uma vez para minha circular novena de cochichos. A maior, a mais entediante, a mais emocionante reza do meu mundo.
Minhas línguas coçam, acionam meus dedos que não sabem ficar quietos, disparando no mundo minhas sondas de sonífera investigação.
Os falastrões estão no comando.
Eles, os falastrões, não requerem apresentação.
Ninguém lhes pede que se expliquem.
São as autoridades que são simplesmente por falarem mais que a boca.
Os escuto mudo e elétrico de não saber com quem estou falando e da impropriedade de perguntar quem realmente são.
Falam tanto, tanto esses falastrões, que sequer lhes atento para a cara, o que, queiram admitir ou não, é um absurdo.
Obviamente não estão eles preocupados com o absurdo.
Pois, absurdamente, detêm o saber mais importante do mundo: a maioria de nós amordaçados vendados não arranca a mordaça e a venda porque sofremos desse indistinto medo sem identidade nem origem, sem cheiro nem textura.
Apenas com o propósito biológico de nos manter em nosso lugar.
Por óbvia razão: os personagens ocultos sob o anonimanto podem vestir suas fantasias e brincar de grandes literatos.
Que outro resultado esperavam?
Não poderia ser outro.
Se dizem diferentes para que o horizonte me salte aos olhos todos os dias da mesma cor.
Se forjam discordâncias para que, pasme-se, nada mude.
As divergências são anódinas, as diferenças se mesclam para desandar num angu insosso. E o sabor de superficialidade nunca passa.
Erros não são reconhecidos.
Fanfarronices são ignoradas.
O valor do outro jamais é adicionado na conta fajuta que nunca fecha.
Fora desafios!
Façam de mim o revolucionário cadavérico!
Me transporte para o segundo além dos meus fatos.
Volto depois.
Me reservo o direito de voltar depois.
Quando a ação estiver não morta.
Talvez moribunda.
Sem ensejar perdedores ou vencedores.
Que, fajutos, não reproduzam a legítima falácia de que há entre nós uns que são melhores que outros.
A internet deu uma voz a cada aluno que se acha no direito de ensinar o mestre, a noção de mérito se perde, ninguém se avexa de palpitar, nas escolas "lá fora" alunos espancam professores.
Teria algo a ver?
A arena é de fachada, ninguém corre riscos, os tiros são de festim, o debate é um simulacro, o fórum, um congresso nacional em miniatura em que as grandes questões são deixadas de lado enquanto os impostores se chamam de Va. Exa.
Arena do tempo.
Arena em que a cacofonia de cada voz se perde em ensurdecedora harmonia.
Arena feita de peças e personagens Lego em que os participantes simulam uma guerra de mentira onde o sangue é feito de suco de tomate.
Sangue? Serei um sanguinário?
Morro de medo de sangue como qualquer ser normal.
Mas o sangue de que falo é aquele a esguichar nas ruas do Rio, aquele que se derrama em cada esquina deste Brasil varonil em que os amestrados do Mais Imenso dos Déspotas só pensam em comprar o próximo modelo de TV de CL.
Sangue, eu disse? Pronto, lá se vai mais uma dúzia de leitorezinhos embora, enojados que um estraga-prazeres insista em cagar na mesa repleta de cristais cheios até a metade de Don Perignon da sala de jantar de mogno extraído da Amazônia.
Se o que o Google busca é um picadeiro cada vez maior (sabe-se lá pra que; vai ver o dono do Google se orgulhe de manter milhões de blogueiros em eterno mutismo), então faz um péssimo negócio permitindo que este chato viva melando as relações cordiais entre os vivos. Afinal tudo que todos querem é se manter nesse estado hipnótico em que fazem uma mediazinha mútua, puxando sacos mutuamente, trocando figurinhas enquanto teclam sonâmbulos.
Mas preclaros senhores e senhoras, não se preocupem. Para alegria que é minha, minha, minha, em breve voltarei a hibernar. Por tempo indeterminado. Eis que meu prazo de validade está em vias de expiração.
E o sono online poderá restabelecer-se.
Sim, você está lendo o assunto errado no blog errado.
Bem aí diante do seu olhar estão as palavras dum sujeito averso a diplomas.
Enojado de backgrounds.
Que tem engulhos com o princípio tão estimado pela gente brasileira do “com quem estou falando?”
Não tenho apreço nenhum por diplomados.
Detesto acadêmicos e seu ambiente resguardado em clorofórmio e seu simulacro onde os professores só pensam na aposentadoria.
Estou ciente de que, sim, o bloguismo veio contribuir para o extermínio da literatura.
Que é que posso fazer, porra?
Não sou Paulo Coelho, Philip Roth, herdeiro de Primo Levi.
Desde cedo procurei seguir Faulkner, dropout da faculdade e talvez por isso mesmo dono de suas próprias palavras.
E Stela do Patrocínio, semianafabeta morta em hospício, das minhas poetas preferidas, testeira da minha infindável lista.
Neste mundinho nojento de arquitetos do cientificismo, professos da herdade da ciência, devo buscar os amadores que, só eles, ainda sabem o caminho da minha verdade mais profunda que poderá ou não poderá disparar a colossal necessidade de mudança que trago em mim desde sempre.
Nasci, e sei que nasci, com um alarme hipersensível contra o costume mineiro do chove-mas-num-molha.
Desde meu primeiro dia neste mundo me obrigam a engolir o óleo de rícino macerado para aquele que não fui nem sou eu.
Problema seu, pareciam debochar.
Todo artista tem -- e tem de ter -- algo de dom-quixote.
(Talvez me achem soberbo por me autoproclamar artista. Com a devida vênia, achem. Sou artista, e com talento.)
Não à toa, Dom Quixote é a obra que inaugura o romance moderno.
E com um heroi que faz o quê? Bidu. Luta contra moinhos de vento.
Minha luta contra a mediocridade é meu moinho.
Mas não sou apenas mais um aluno da classe.
Sou, sim, por minha natureza, o marmanjo arruaceiro que senta no fundo tirando uma dos cus-de-ferro, babando pelas pernas da fessora que escreve desdenhosa, alienada no quadro, olhando e sendo olhado com perplexidade pelos futuros médicos e engenheiros.
Estou cercado de moinhos.
Não, não é uma basófia.
Apenas um reconhecimento particular.
Sempre que você me ler, ficará, ou deverá ficar, cum travo de indisciplina no fundo da garganta.



Jovem pula cerca para pegar abóbora e morre eletrocutada


Na edição online da Folha de SP de hoje vi esta notícia:
Jovem pula cerca para pegar abóbora e morre eletrocutada
Em Tremembé, SP, moça desgraçada (na acepção original da palavra) tentou pular cerca para apanhar uma abóbora e fim de papo pra ela.
Até aí, "normal". Há formas de morte inqualificavelmente mais cruéis por aí.
Mas o que estarrece mesmo são as dezenas de comentários de leitores sobre a tragédia.
A maioria, mais cruel do que a própria morte.
"Bem feito", "quem mandou?", "teve o fim que merecia" RETICÊNCIAS.
Sei lá, deve ser "válido" sair pela vida lampeiro e ufanista certo de que vale a pena existir.
Dentre as milhares de dúvidas que me martelam segundo a segundo a cabeçorra atarantada ainda não formei juízo sobre a legitimidade da mesquinhez humana autorreconhecida e autoaceita.
Sei que a maioria opta (involuntariamente, mas opta) pelo "se não posso fazer nada, pra que sofrer à toa?"
Nas 24 horas do dia e da noite, me sinto eleito durante 23, mesmo sonâmbulo.
Mas não mangue. É eleição indesejável.
Fui eleito para resistir até o último dia de pálpebras estateladas.
Não recebi o bálsamo da humildade frente à pequenez humana.
Sei quão doce deve ser fechar os olhos.

O verdadeiro subtítulo


Preciso da sinceridade
do berço
da infância
da adolescência

do balconista de bar
que confessa que
a cachaça do mundo
acabou

do oncologista
que te olha bem nos
olhos e você
sente o suor  
frio
a te ensinar
a verdade de viver

Minicelebração dum semiporre sobre um plágio amoroso

Veludo de areia


Lembra quando te disse aquilo naquele lugar aquela hora aquele dia sob aquele céu?
Quer dizer, acho que disse.
Estava lembrando hoje cedo as enxurradas que te disse naqueles tempos em que parecia ter esperança e, surprise!, vi que naqueles tempos eu já não tinha esperança alguma.
Acho que me lembro do que sentia quando te disse.
Não sei se é mais ou menos o que sinto agora.
É. E não é.
Me dá vontade de chorar e de rir.
Pascácio, eu acreditava que bastava entuchar uma mulher dum rio derramado de confidências viscerais.
É que para mim as palavras são mágicas e acabo pensando que a mágica surte o mesmo efeito para os outros.
Que ingenuidade, né?
Não só te perdi como te afugentei como se fora um leproso.
Espera, só mais uns segundos, já vou terminar.
Não, apaguei.
Desconfio que estou começando a repetir os mesmos (maus) passos que dei naquela época.
Falando, falando, falando e você muda, muda, muda.
Acho que é muito dejavu demais nesta fria canina noite de sábado em que chafurdo no meu ladoçal sulsancaetanense.
Me rendo. 
Esta parece ser a mesma vez daquela.
Já fui, ainda sou.

Hear my train a comin' in fernem Land

Esta inscrição a escorrer pela parede viva com que me rodeia a Grande Dor deve ser lida e imaginada ao simultâneo som de Hear my train a comin'  com Jimi Hendrix e In fernem Land com Jonas Kaufmann e/ou Franz Völker.

Escolham à vontade.

No palco, duma estátua que nada tem de fantasmagórica, desumana, assustada, sobranceira (mas igualmente humilhada) de Wagner brotam por uma cavidade na parte inferior do rosto pétreo as vozes de mil demônios surpreendentemente angelicais e familiares que simulam os acordes metálicos cândidos duma guitarra elétrica em xifópaga harmonia com os cânticos antissentimentalóides de Lohengrin.

E assim começa o show:

Bem, na terra distante que é minha, só minha e de mais ninguém
Escuto, vindo do interior do castelo que conheço por não ter um nome
O óleo que não minou dos meus olhos qual regato de lágrimas incandescentes
A ferver dentro da mais bela frigideira da Terra

E os mil angelicais demônios fazem um germânico

Schhhhh

Schhhhh
Schhhhh

Enquanto escuto meu óleo a ferver dentro da mais bela frigideira da Terra


Schhhhh
Schhhhh
Schhhhh


Sob a batida ritmada do coração que pulsa no peito da estátua de Wagner


Tum tum tum

Schhhhh
Tum tum tum
Schhhhh
Tum tum tum
Schhhhh


Bem, escuto as mil vozes de anjos demoníacos fazendo coro
Ao fundo
Enquanto meu óleo ferve dentro da mais bela frigideira da Terra
E num momento que ninguém sabe quando estarei frito.

E a cada infalível segundo
Um corvo desce feito um raio lá do céu
Para me bicar o fígado fatiado em postas 
Na tábua de carne deixada por minha mãe
Sobre a pia da cozinha.

Bem, escuto o coro que é meu, só meu e de mais ninguém
A entoar

Nunca mais!
Nunca mais!
Nunca mais!


E a sombra da morte teima em tremular titubeante
Na parede que erigi ao meu redor.

Hehey


Pai, ouvi dizer que não existem pais,
Então vou fazer que existam,
Vou te fazer nascer
Te fazer crescer
Até um tamanho tal
Que te possa ver.

Vou abrir as portas da casa
Para que entre a luz do sol
E me permita acreditar

Que você finalmente aprendeu
Que tudo se tornou tão
Desumano outra vez.

Pai, estou inseguro, parece
Não haver mesmo um pai
Que eu possa chamar de pai
Ou mesmo, me perdoe, hipócrita.

É meu este dia.
É meu duma vez por todas.
Muito embora você não tenha tido um que fosse só seu.

Pai, quando te criar, prometo,
Não deixarei teu coração crescer além do razoável
Depois que você estiver morto.

Não ficarei do lado oposto ao teu
Nem desenvolverei pontos de vista
Que você não me tenha ensinado

Papai, não, você não foi altruista
E não vou crer na amargura das lembranças.

Me resigno a ser novamente pequeno
Eternamente um extra-terreno
De forma que nós dois possamos ir
Sem nunca mais nos lembrarmos
Um do outro

Diário de bordo

E por não ter aonde ir, lhe somem os  pés.

E não tendo o que o alcançar, fenecem suas mãos.

E não havendo o que olhar, se cicatrizam suas pálpebras.

E sem ar para respirar, se lhe entopem as narinas.

E não escutando mais ruídos e vozes, seus ouvidos se tampam.

E não tendo o que dizer, se lhe enferruja a língua.

E sem mais nada a esperar, seus cotovelos se esfarelam.

E não tendo flores para cheirar nem bucetas em que sonhar nem mais inspiração para escapar de poeminhas esquemáticos nem mais paciência para versejar, suas palavras evaporam e então com pouco mais de meia garrafa de vodka ele brinda à nova liberdade esperando retornar à sua prisão sometime soon.

E ainda assim depois de tudo?



Felizmente não consigo ser um super-homem como o eterno entusiasta da existência humana Quintana.
Sou incapaz de extrair lições positivas das minhas experiências. Não tenho os instrumentos necessários para enxergar as luzinhas que brilham sob o manto pesado do meu pessimismo. Não tenho o dom de Quintana de colher com esmero e paciência o grão bichado para transformá-lo em alimento.
Mário Quintana usava as palavras para edificar ideias. Foi um mestre que construía pensamentos e os entregava absolutos, acabados e ornados c'um delicado lacinho à fruição de seus leitores. Que com ele aprenderam a ir abrindo com os movimentos vagarosos de quem espera uma bela surpresa o papel de seda envolvendo o presente. E a bela surpresa, nada surpreendentemente, sempre está lá: um quase frágil quitute de aparência amorosa e cheiro suavíssimo, a ser degustado sem dentadas e sem violentar as glândulas do paladar. O leitor de Quintana é um consumidor de delicatessens, guloseimas de baixa caloria mas nutritivas que jamais ameaçam a esbelta silhueta do freguês.
Mário foi um hábil comandante das emoções e exímio executor das palavras.
Quanto a mim – sem a pretensão de me equiparar ao mestre – , são as palavras que me usam. Minhas emoções me comandam, minhas palavras me executam.
Estou à mercê delas qual um veleiro avariado em alto-mar flutuando ao sabor da tempestade.
Não sei quase nada. De mim, dos outros, do mundo. O pouco que sei é que não sou o comandante das minhas emoções contraditórias.
Acho que é essa minha diferença em relação aos “escritores” digitais que peroram confiantes e ridículos suas pífias bachareladas nos blogs por aí e em tantos outros antros (com perdão da poesia fora de lugar) em que grotescos se proclamam sábios.
Eles não sabem que são confusos. Eu sei que sou. É um bom handicap, pra começar.
Por isso, e por outras razões de que não me lembro agora – e que contarei mais tarde se lembrar e se achar que existe alguém disposto a saber –, não me leve muito a sério.
Além de conscientemente confuso, sou inconscientemente inconstante. Porque, como disse, estou ao sabor da ventania. Pretensiosos críticos literários já me chamaram de bipolar. Não! respondi, sou multipolar. Também nenhuma pretensão aqui de me exibir. É apenas uma tentativa de me explicar com razoável honestidade. Não que eu seja muito honesto. Para simplificar, me chamem de um desonesto sincero. Procuro ser sincero na medida que a ventania mo permite. Talvez seja esta a âncora que mal e mal ainda resiste ao furação.
Bem, talvez não lá tão sincero, admito. Acho que sou sincero na medida que alguém com a veleidade de ser sincero pode ser sincero.
Na verdade tem sempre esse grito entalado na minha garganta.