Blogando 0037

Dou horas de cada um dos meus dias a Beethoven e Bach e Wagner, pouco menos a Schubert, Schumann, Chopin, Mozart e tantos outros mortos há séculos.

E aos Beatles, ao Mammas & Pappas, Jimi Hendriks, Ten Years After, todos já devidamente inumados nos cemitérios do passado.

Será que isso quer dizer que a partir dum ponto no tempo estamos avançando para trás e não temos como sair dessa enrascada?

Blogando 0036

Blogar minhas sombras
Blogar minhas fissuras
Blogar meus recuos, minhas cismas, minhas neuroses, meus pecados, meus fracassos, minhas taras

É minha liturgia pessoal secreta pública
Pela qual a Corte Celestial que sei que não existe
Decreta minha possibilidade de
Ser
Finalmente
O que
Sou

E é assim blogando que me torno
Meu ladrão e
Me roubo
E estou conversado

Blogando 0034

re ver be ran dor ev erb era nd or eve rbe r a nd o

ecos, venham meus amiguinhos!
décio pinhatari está morto
tanto quanto vocês
pobres crianças ecólatras

é tanto
tanta é
meus braços ganham vida própria e se erguem acima da minha cabeça

escutem, tudo está contido nestas bochechas estufadas das palavras que represei
meu terno amor, me diga, como é que os mudos suportam?
a imensurável lagoa piscosa
de peixes podres

não tenho mais sonhos e deles não tenho falta

as marteladas do juiz ecoam pelas paredes do pavilhão
de volta



Blogando 7381

Quase onze da noite da véspera de Natal e estou no meu buraco a salvo de mais uma dessas ocasiões artificiais que a humanidade inventa a cada mil anos. Me sinto absoluto. Sou absoluto. Não, nada a ver com essa porcaria de comercialismo que os herdeiros da geração de sessenta usam para forjar uma marginalidade que eles de fato não têm nem nunca quiseram ter. Tudo a que aspiravam era cheirar todas, comer todas e enriquecer como qualquer capitalista burguês sartreano que nunca admitiu a própria humanidade imunda.

Mas esta é a noite feliz e não quero falar desses meus temas mórbidos. Não, não sou o mais duro e cruel dos antiburgueses celineanos. 

Fico cá no meu covil à espera dos indícios de que papai noel está presente. Desde meus três anos aguardo que ele bata na minha porta, nunca engoli aquela porcariada nortista de chaminé, meias e o cacete. Boto Du holde Kunst no computador, com Arleen Auger. Soprano. Americana. Ninguém destroça o alemão com mais eficácia que os americanos. O mínimo que são capazes de cometer é soletrar Bitoven, como os Beatles há cinquenta anos. Não estão nem aí para essa bobajada de falar direito. Os cantores líricos brasileiros, mais ciosos de sua inferioridade cultural, têm melhor pronúncia. Quando vão fazer turismo na Alemanha, os brasileiros são elogiados pelos nativos pela perfeição daqueles montes de encontros consonantais. Puta merda, as consoantes também se encontram?

Knock, knock, knock.

(Sorry, só sei imitar batidas na porta em inglês.)

Salto da cadeira e vou lá ter.

Atrás da vidraça da porta vislumbro a figura.

É ele.

O morto.

De novo.

Abro.

Ele já está de mão estendida.

Pego e aperto. Gelada. De novo. Até quando serei obrigado a acolher o enregelamento cadavérico desse filho da puta?

Feliz Natal! ele exclama.

Tenta mostrar entusiasmo no bordão mas quebra a cara. Não há morto que deseje Feliz Natal com um mínimo de naturalidade e capacidade de convencimento.

Obrigado. Pra você também — retribuo o tom desenxabido. 

Por um segundo pensei em estender meu voto à família dele mas me contive a tempo.

Uma só mulher


Como é do conhecimento de todos, sou homem duma mulher só.
E como sabem todos vocês, minha mulher é minha companheira. (Ouso afirmar até mesmo no sentido leninista do termo.)
E o mundo também está a par de que, ao longo de nossa vida juntos, ensinei à minha companheira e mulher exclusiva uma quase infinidade de coisas. Entre elas, a desprezar as mentiras sedutoras do misticismo e as bobagens pueris da astrologia.
Lhe mostrei ainda como comprar peixe na feira sem trazer para casa um namorado à beira da putrefação. E como preparar um baiacu com pupunha e legumes verdes de dar água na boca até na estátua de dom Pedro no Museu do Ipiranga.
Além disso, lhe dei dicas – inclusive na prática – sobre como tolerar os intensos, os descomedidos ataques de cócegas que lhe aplico em suas fragrantes e glabras axilas sem fazer xixi na calcinha de renda vermelha e bege.
(Certa feita, depois de passar o dia todo fora só voltando para casa na minha hora de trabalho, ela tirou um embrulhinho da bolsa e mo estendeu. (Vou fechar aspas precocemente aqui para não me perder em algum período mais elucubrado abaixo.))
“É um presente.”
Abri fazendo cara inquiridora ante uma caixinha mimosa e esquisita fechada apenas por uma aba.
“Pra deixar meu amorzinho perfumado!”,  explicou.
Simulei um sorrisinho simpático enquanto abria a caixinha, procurando não rasgar a embalagem para aproveitá-la em ocasiões futuras que requeressem a troca de lembrancinhas.
“É um A Scent Florale EDP”, ela não conteve a ansiedade.
E emendou:
“Quando a vendedora me disse que o preço tinha baixado de quatrocentos e quarenta e seis para apenas cento e setenta e sete, ai, não resisti! E ainda me deixou pagar em seis prestações de trinta paus no cartão! É feminino, mas sei que você não liga pressas coisas”.
Assim dizendo, arrancou o frasquinho da minha mão e aspergiu um ligeiro borrifo em meu braço. Fechei os olhos, cheirei e fiz “hmmmmmm, que delícia!”.
“Sem graça!”, ela riu.
(Ah como amo quando ela diz “sem graça!” Me sinto o mais endiabrado homem deste planeta.)
“Você não usa nem desodorante. Podia pelo menos tomar banho mais frequentemente”.
Fiz de conta que não escutei. Não gosto quando ela critica meus hábitos pessoais – ou a falta deles. Não sei se vocês concordam, mas brasileiros em geral raiam a obsessão pelo asseio e a higiene pessoal. Um banho por semana para mim é mais que suficiente. Não receio meus odores, não temo meus fedores nem acho que minhas secreções mais softs sejam caso de esfregação e creolina diária. Me sinto até mesmo reconfortado e mais senhor de mim sabendo que estou impregnado das bactérias odoríferas do meu próprio suor.
Voltando ao frasco de perfume que ganhei, naquela mesma tarde, por um desses golpes de sorte que soem ocorrer uma vez na vida etc., fora passear na rodoviária* no centro da cidade e tivera a ideia de roubar uma rosa duma das floreiras ao redor da praça onde os ônibus estacionam.
*Não sei se já contei, mas tenho uma queda por rodoviárias e ferroviárias, a ponto de ser bem capaz de me abandonar um dia inteirinho zanzando entre os viajantes indo e vindo e vindo e indo como se quem fora e viera fosse eu e não outro. Mas esta é uma outríssima história que não tenho tempo de elaborar agora e que deixarei para outro dia. (Tudo bem, sei que esse outro dia nunca virá, como tantos outros nunca vieram nem jamais virão, pois míngua cada vez mais minha paciência para escrever sobre minhas próprias manias (e, já que estou no assunto, sobre qualquer outra coisa)).
(Quando nos conhecemos, costumava invadir os jardins que encontrasse pelo caminho e roubava uma flor para ela. Se não houvesse jardim algum pelo caminho sempre dava um jeito de arrumar uma pequena surpresa para não chegar à sua casa de mãos abanando. Como sempre fui mais duro que etc., essa pequena surpresa em geral se resumia a um poemeto garatujado no verso da embalagem do meu maço de Capri em pé numa esquina. Na época fumava Capri (ou Hilton long size quando dispunha de algum sobrando). Mas com o tempo acabei deixando de lado o costume de me preocupar em lhe fazer agrados, provavelmente porque fui perdendo a capacidade de sonhar e recusar, minimamente que fosse, o ônus da sobrevivência, até um dia acordar este ser seco, tosco e desinteressantíssimo que sou hoje.)
 “Também me lembrei de você”.
“Cadê?”
“Na geladeira”.
Ela abriu a porta do refrigerador e lá estava a rosa, num meio copo d’água bem no meio da prateleira do meio.
“Tem um pouco de lasanha no forno e uma caixa de suco de pêssego na geladeira. Ah, o maço de Camel tá na segunda gaveta do armário”, acrescentei.
Ela sorriu, alisou minha barba com os dedos e reclamou que eu prometera aparar a cuja para seu aniversário e aproximou a rosa do narizinho arrebitado e aspirou o perfume da flor com a doçura que a natureza cometera a suprema justiça de depositar num único ser e sorriu um daqueles seus sorrisos igualmente suaves, só para me mostrar como é que se aspiram os perfumes da vida.
 “O presente de verdade é este aqui, seu bobinho”. Rindo, ela me estendeu outro embrulho.
“Poe!”, adivinhei, esticando as pontas dos bigodes, ansioso.
Não me canso de espiar (e expiar também) a desfortuna do Afortunato.
“Para com isso, que tá virando ferida!”
“Não abre a torneira que ainda não arrumei o sifão!”, alertei.
O sorriso se transubstanciou e por um segundo vi diante de mim uma serpente com as presas prestes a abocanhar o mais frágil camundonguinho do mundo. Ela aspirou novamente o perfume da rosa, agora com mais entusiasmo, e disse que estava morrendo de vontade de comer carne.
Eu também, pensei.
Mas não disse.
E não disse tantas outras coisas.
Nem naquela ocasião, nem naquele dia, nem nunca.
Não disse que por “homem duma mulher só” não quero dizer simplesmente que sou fiel à minha mulher. Ou que temos uma relação monogâmica. Não, não é só isso que quero dizer.
Por “homem duma mulher só” quero também dizer que tive apenas uma mulher ao longo de minha vida.
(Fora mamãe, que não conta nesta conta).
Por “tive apenas uma mulher ao longo de minha vida” quero dizer que nunca tive outra mulher em minha vida.
Que nunca me apaixonei por outra mulher.
Que nunca fiz sexo com outra mulher.
Se o Polo Norte ou o Polo Sul não fosse tão desumanamente gelado e inóspito, eu a carregaria para dentro duma caverna entre as geleiras e romperíamos com o mundo e nos devotaríamos um ao outro longe dos tenebrosos perigos a que estamos sujeitos nas cidades e nas comunidades sociais e exclamaria “que se foda todo o resto!” com entonação de macho protetor e ela, minha única, minha exclusiva mulher, selaria nosso pacto cum beijinho úmido e estalado.
Enquanto eu sonhava com as distantes, cavernosas geleiras, ela já voltava do barracão no fundo do quintal trazendo uma chave de grifo e uma bisnaga que a princípio não pude reconhecer.
“Arruma logo esse sifão, que não dá pra ficar lavando louça no tanque”. E enfiou a ferramenta e a bisnaga entre minhas mãozinhas delicadas de inteleca sedentário.
“Que coisa é essa?”, perguntei, lendo o nome do produto.
“Vedador de rosca, ora. Não foi você quem pediu?”
“Anaeróbico? Pra que serve?”
 “Bom, quando vi o anaeróbico, pensei, deve ser melhor que o aeróbico. Senão, não fabricariam um anaeróbico.”
Me sapecou um selinho e foi cuidar da vida, me deixando de grifo na mão tentando ler as infinitesimalmente minúsculas letrinhas da vasta descrição na embalagem da bisnaga.
Bem, certamente não vai explodir quando eu aplicar no sifão, pensei animado,  me ajoelhando diante da pia da cozinha.
Vendo que finalmente me agachava para fazer o serviço, ela ligou o rádio (que nunca tiramos da Cultura FM). Em geral tenho a sorte de não deparar cuma extravagância qualquer de Paganini, o mais chato dos compositores já nascidos neste planeta de chitõezinhos. E minha estrela me acudiu mais uma vez: começava a tenebrosa, a fantasmagórica, a apocalíptica introdução de Lohengrin, com Jonas Kaufmann.

In fernem Land, unnahbar euren Schritten,
liegt eine Burg, die Montsalvat genannt;
ein lichter Tempel stehet dort inmitten,
so kostbar, als auf Erden nichts bekannt

Em meu computador tenho duas versões do Lohengrin: essa com Kaufmann, outra com Franz Völker. Raramente escuto apenas uma – gosto de ficar comparando – no que, tem dia, sou capaz de gastar várias horas. Pois nunca consigo me decidir qual é a melhor. São interpretações bem diferentes. Um barítono, outro, tenor. Um, doçura do começo ao fim. Outro, alternâncias repentinas, tons surpreendentes em cada frase. Depois que conheci Kaufmann nunca mais escutei Plácido. E ninguém pronuncia o alemão como um alemão, como diria Heidegger, secundado por Kant, Hegel e Blonda, a cadela pastor-alemão do Adolf.
Como temia, manejar a chave de grifo acumulando estes 120 quilos que a preguiça me deu sobre meus pobres joelhos que nasceram para apoiar não mais que sessenta e tentando enfiar a cabeça por sob a pia logo me deixou absolutamente exausto. Detesto ter de mexer os músculos. E minha barriga há décadas deixou de ser encolhível, um centímetro nem por um minuto. E se não posso retraí-la, não sou capaz de avançar o tórax outro centímetro que seja.
O suor começou a me escorrer pela testa, as têmporas, atrás das orelhas, se infiltrando na barba, escorrendo pelo queixo até gotejar nos espessos pêlos que tenho no peito e que também já estavam encharcados.
Foi nesse instante que me lembrei de que estava morrendo de fome antes desta desastrada aventura de encanador.
Quando decido que estou  morrendo de fome não há o que me dissuada (epa) da vontade de enganar a pança. Então lembrei que tinha visto, ao lado do meio copo d’água bem no meio da prateleira do meio da geladeira quando ela abrira a porta do refrigerador (opa), uma cartela de isopor ainda fechada contendo umas rodelas de mortadela.
Pessoal, se existe algo neste mundo repleto de carcamanos sem rumo que faz com que o que me restou de lógica nos meus pensamentos deturpados se dissipe num instante é a visão de rodelas de mortadela.
E se tem algo neste planeta de seres nascidos para a sedução pelo estômago enquanto almejam à confraternização com os anjos que me sequestra do meu estado de homem minimamente racional para me jogar numa cela obscenamente repleta de guloseimas, quitutes e elixires divinos é a ideia de traçar um belo sanduba de mortadela em pão italiano (epa) na companhia duma geladérrima garrafa (detesto as famigeradas latinhas) de brama.
Incontinenti, larguei a chave de grifo e a bisnaga de cimento plástico num canto debaixo da pia, me pus em pé sob uma traviata de gemidos e palavrões, lavei as mãos e tomei as providências cabíveis.
E, equipado com os apetrechos do meu piquenique noturno, rumei para o alpendre e assentei base.
Sanduba numa mão, copo de cerva n’outra, me entreguei aos meus devaneios.
(Okay, pessoal, vou poupá-los dos ditos. Vocês, ou pelo menos a maioria, já me conhecem e sabem que esse papo ameno que estou levando aqui pode degringolar de repente. Sim, sem mais, nem menos. Vocês também sabem, é uma das minhas fraquezas, essa coisa de degringolar, de vira-e-mexe. Se não me controlar, logo parto pra virar a mesa. Dizem que sou louco por pensar assim. Mas não se preocupem. Enquanto tiver meu sanduíche nesta mão e meu copo de cerva nesta outra, estamos todos a salvo.)
Mas – e acho que, depois de tudo, tenho pleno direito a levantar a questão – que outro momento me seria mais apropriado a devanear senão naquele em que estou mais apto e desimpedido para me entregar aos meus devaneios?
E, mesmo nunca ter tido sexo com outra mulher, me sinto capaz de afirmar que até hoje houve apenas uma fêmea com a qual fiz sexo verdadeiramente ensopado de erotismo, paixão, volúpia, sofreguidão, fantasia, egoísmo, animalidade, ternura, cumplicidade.
(Um dia (ou melhor, uma noite) me vi sem saída ante uma virago que não pestanejou (não! não pestanejou, o monstro!) ao dar cum homem tão suscetível em sua simplicidade mental e sua unicidade espiritual e tão frágil em sua inépcia de se autodefender e fui obrigado a brochar para impedir que o estupro se consumasse.
Pois é. (Ixe!)
As feministas de araque não imaginam – ou não são suficientemente humildes para admitir – que muitas dentre o rebanho feminino seriam plenamente capazes de executar aquelas tenebrosas ondas de estupro e impulso eugênico que até hoje os historiadores afirmam ser prerrogativa masculina. É mentira que uma mulher seja incapaz de perpetrar uma violação sexual, como atestou Germaine Greer em A mulher-eunuco. A mulher não estupra simplesmente porque não pode deixar em sua vítima a semente duma nova vida mas sua vítima pode deixar uma semente na estupradora. Como costumava dizer Humphrey Bogart, a humanidade está sempre uns pensamentos atrás da natureza.

Blogando 0032

Não adianta, assistir a um clip de rock é olhar para a luz cegante do sol e ver que talvez nunca consigamos escapar da barbárie.

Cara, não, cara, sinto muito, mas você não pode se entregar com tamanha facilidade a essa catarse animalesca.

Tenha um mínimo de compostura.

Okay, compostura não se usa em sua tribo.

Mas sim aqui entre nós que ainda fazemos um esforço fudido para subir da selvageria para uma situação de mínima cortesia, consideração pelo outro e pelo que o outro pensa e pelas opções e alternativas do outro, sei, certo, esses detalhezinhos burgueses que você e seu bando lutaram tanto para enterrar.

Hoje cedo fui andar numa praça aqui perto com minha suave Zezeí e, batata, lá estavam dois vagabundos ocupando o banco central puxando um chazinho. Em vez de desviar, fiz questão de avançar na direção deles. Os vagabundos não deram a mínima, claro. A praça era deles. Nenhum dos pais e mães nas proximidades ousava se acercar. Os transeuntes apertavam o passo para fugir mais rapidamente dos donos do pedaço.

Cuja aparência autorizava que eu fizesse todas as suposições que já fizera antes ao avistá-los. Eram dois moleques na casa dos vinte, de roupas imundas e mãos e rostos sujos e braços manchados de imundices inclassificáveis. 

Tossindo e trocando sabe-se lá que tipo de impressões com suas línguas enroladas e sua exasperante indiferença à concepção de que outros tipos de usuários também tinham direito a usar a praça.

E você vê esses indigentes por todo canto na cidade e me é inescapável associar esses doentes aos rock-stars e ao público que os frequenta.

Que grande merda essa a que chegamos através dos anos 1960. Instituímos a vagabundice como objetivo de vida e agora parece que não temos como fazer para que a história retroceda pelo caminho errado que tomou.

Às vezes me pego delirando que a única solução para vencer a incapacidade cada vez mais aguda de as crianças se abrirem aos ensinamentos civilizatórios seria proclamar Bach como o modelo não mais digno mas único a seguir.

Mas como você lograria isso tendo de vencer e convencer bilhões de animais que foram levados pelos meios de entretenimento como a Globo, a Folha de São Paulo, a Veja e o Estadão a crer que Madonna merece um segundo da sua atenção?

Blogando que número mesmo?

Não foi a primeira vez que vi o morto ou que cruzei com ele.
Nos últimos meses o avistava dobrando a esquina (estaria se esgueirando?) ou apertando os passos na calçada do outro lado da rua como se tivesse um compromisso urgente (estaria se afastando apressado de algum conhecido inconveniente?)
Nessas poucas vezes, sempre nas redondezas (nunca o vi a mais de três ou quatro quarteirões daqui de casa), ele desvanecia da minha mente tão logo o tirava do meu campo de visão. 
Pensando nisso agora, fico quase surpreso comigo mesmo (como se isso por sua vez também fosse surprendente). Pois cada indivíduo com quem cruzo na calçada em minhas caminhadas regulares ao lado da minha indefectível Zezeí me deixa virtualmente — sim, virtualmente, posso garantir — uma impressão tão forte, que pode monopolizar meus pensamentos por horas a fio. Dependendo do caso, dias.
E, não sei se para minha felicidade ou infortúnio, tal indivíduo nem carece ser lá intrigante ou sequer interessante. 
Certo, como escritor, não vou cometer a bobagem de dizer que pessoas há neste mundo que não valem meio pensamento furado. Não há. Isso também posso garantir. Se não for preguiçoso ao extremo nem tiver tido sua curiosidade definitivamente anestesiada por toneladas de lixo televisivo ou por essa nova doença chamada portais de relacionamento, você sempre poderá encontrar algo que valha a pena explorar durante um passeio pelas ruas, seja no gari que varre a calçada como a fuça dele com a desculpa de que a merreca que ganha por mês não o motiva o suficiente para uma caprichada extra nas vassouradas, seja na senhora de passos largos e vagarosos cuja nobreza fica patente pela elegância do andar e a distinção da roupa, seja o "executivo" saindo da garagem do prédio com seu megacarrão de trocentos zilhões de dólares cujo rosto está invisível por trás do vidro fumê, suscitando no observador mil fantasias, seja na deliciazinha recém-banhada, recém-enxugada e recém-vestida que acabou de descer para o mundo apenas para que este pare enquanto ela passa.
Não, não há, nem pode haver, dúvidas. Todo ser vivo neste planeta merece ao menos cinco minutos de reflexão. E de prosa. (Não, não me entenda mal — prosa sobre ele, não com ele. Nunca converso com estranhos na rua. Não, não é por medo de sequestro, não. É que nunca converso com ninguém, seja estranho ou conhecido.) E se o observador tiver uma quedinha que seja pela arte das letras, make it cinco dias. Ou a vida inteira, se você for um Proust.
Foi por isso que, como disse acima, fiquei surpreso com minha indiferença em relação ao morto. 
Não, não sou daqueles que de repente se fascinam por alguém assim que recebem a notícia de que esse alguém esticou as botas. Em geral a mudança de estado duma pessoa de aceso para apagado ou ativo para inativo ou on para off não provoca em mim reações particularmente perturbadoras. Não será a viagem de tal pessoa daqui para o além que me fará perder meu tempo mais do que já perdi quando ela estava viva. Morreu, vai para o arquivo morto. Já bastam os vivos pra me torrar a paciência.
Não, não pensem que apelo de propósito a esse tom ligeiramente jocoso, quase tendendo ao blasfemo,  para causar frisson. Sei que meus leitores têm vivência respeitável na lida com os livros e de certo já estão sobejamente calejados com situações em que um escritor precise recorrer a um bocadinho de frivolidade para não morrer — nem matar os coitados que o leem — de tédio. 
Mas, como dizia, pensando no morto agora, eis que me vejo meio que encafifado.
(Me desculpem, sei que soou como expediente mambembe de escrevinhador ordinário.)
E fico aqui sozinho, olhar perdido na tela, na mão o copo de Balla suado das pedras de gelo, me perguntando repetidamente, por que foi que ele sem mais nem menos atravessou a rua e parou à minha frente e, vendo minhas pupilas bailarem confusas ante a abordagem súbita, abriu um sorriso acolhedor, me estendeu a mão e perguntou "Como vai?" com a mais meiga das vozes que já escutei?
Atarantado de comoção, respondi "Vou bem! E o senhor?"
E ele: "Muito bem, obrigado!"
E, como dizem os tradutores de Balzac, emendou: "Aceita tomar uma geladinha comigo na padaria ali na esquina?"
Foi então que atinei que a minha mão ainda estava segurando a dele. E percebi também que o morto era daquelas pessoas que, quando nos cumprimentam, se recusam a flexionar a mão e os dedos e você fica com a impressão de estar apertando um pedaço de toicinho.
E, Christ! foi aí que de repente me dei conta de que a mão do morto, indolentemente a repousar entre a palma da minha mão e meus dedos, estava gelada como... como só a mão dum morto pode estar.
Lívido qual um personagem de Balzac, reuni forças para erguer minhas dançarinas pupilas até os olhos dele e, sem atentar se eram os olhos dum morto, agradeci, declinei o convite e voltei para casa, ambos cabisbaixos, eu e minha infalível Zezeí.

Ela, mais cabisbaixa que eu. Talvez seu sensibilíssimo instinto animal, que todos cantam e decantam, tenha captado algo além da minha anteninha atrofiada de observador já cansado de tanto observar?





Blogando quanto mesmo? Fôdasse, eu quero é blogar


Caras, tergiversei todos esses anos, todas essas décadas, fiz rodeios mil, tentei escapar daqui, dali, mas não dá mais pra segurar.
O grande barato da existência é a transitoriedade.
Sei, vocês estão todos viciados em exemplos e esperam que eu fundamente meu corolário.
Não precisa, porra. Simplesmente imaginem algo que seja transitório e lá estará a belezura.
É fácil.
Para quem não é preguiçoso.
Certo, vocês são.
Então sejam.
Que é que tenho com isso
?
?
?
Vou acrescentar apenas algo importante que merece ser acrescentado:
nada é tão transitório quanto 
um pensamento produzido por meus olhos
hipnotizados pelas ocorrencias da rua 
necessitado da urgente consumação do saboreio
duma kaipiroska divina seguida
duma diabólica feijoada.




Blogando 0021




O momento supremo na longa escalada dum alpinista rumo ao topo é a queda.
Como todo sedentário preguiçoso, autocentrado, cínico, também fico admirado com esses herois das alturas. A disciplina, a coragem, as ultradesenvolvidas habilidades psíquicas e físicas sem as quais eles não galgariam sequer três metros acima do nível do mar.
Mas o que me entusiasma mesmo quando penso nesses superatletas é como são imunes ao fascínio da morte.
Sempre quis tanto morrer.
Não só para encerrar de vez o suplício de me carregar, e ao meu corpanzil entuchado de banha, para cima e para baixo. Tal suplício é mais que suficiente, óbvio. Ainda mais porque não sou um alpinista da vida, ou escafandrista for that matter, não existem cumes aonde eu sonhe em chegar, a altitude me deixa zonzo, as profundidades, eletricamente claustrofóbico.
Sempre quis morrer para saber como é.
Será qual um indeglutível caroço entalado na garganta que você engole mesmo assim?
Será que nossa sensorialidade permanece intacta por uns instantes, ao menos para que nos seja perceptível a transição?
Haverá transição?
É claro que essas perguntas não se aplicam à maioria de nós que hoje esticamos as canelas terrivelmente sedados... exatamente para que elas, as perguntas, não nos ocorram.
Que grande raça de pixotes nos tornamos.
Mas não é isso que me interessa agora.
O que me interessa é, quero morrer para saber.
Saber. Finalmente.
O saber que as cartilhas escolares nunca ensinaram e cujos saberes nunca pretendi saber de qualquer modo.
Quero saber a única coisa que neste momento faria diferença saber.
Passar de mansinho para onde quer que passamos na morte não me interessa.
Se valer a pena sentir a grande dor, que a sinta.
Ser desligado incólume, inconscientemente feito um rádio de que se removem as pilhas, no, thanks.
Quero a passagem do alpinista que de repente afrouxa os dedos que o mantêm espetacularmente vivo no costado do rochedo e pensa "Minha sorte está em minhas mãos, concretamente" e se entrega à imensa força da gravidade da qual somos e fomos escravos desde nosso primeiro segundo neste planeta que flutua pelo espaço apenas pelo capricho da nossa imaginação.




Blogando 0019

22:22, não é piada.

E eu aqui blogando?

Uns tempos atrás a esta hora estava me aprontado para mais uma razzia pelas ruas abandonadas da cidade. Saía de casa rumo ao centro, não haveria butecos abertos em nenhum bairro. Tinha aquele um na esquina da Goiás com a Manoel Coelho que nunca fechava e podia encostar a barriga no balcão e pedir um conhaque com peppermint sucedido dum rabo-de-galo para ir enganando o tédio que raramente vinha de fato pois até a luz da manhã começar a desvirginar o mistério das ruas a cidade seria minha e a vista da esquina à minha frente seria minha e meu seria o mundo.

Cara, não fazia ideia do quanto brincava com o perigo do abismo naqueles tempos, mesmo quando bebia infinitamente além da capacidade de o fígado metabolizar a cachoeira de álcool ingerido ou engolia um, às vezes dois, vidrinhos de Reativan com algumas cachaças para passar uma semana toda acordado na dimensão inexistente do meu quarto olhando as paredes azul-nenê que papai pintara meses antes contando me domesticar.

Me lembro com assustadoramente nítida clareza de que me achava já então num beco sem saída e retroceder só mais um passo seria o abismo e quantas noites iguaizinhas a esta desdenhei do perigo até um ponto de me sentir mais ou menos sobre-humano. Fazia sentido então, tinha chegado até ali contra todas as probabilidades e todo novo dia que visse se abrir em minha história viria como lucro.

Se nunca sentiu, se nunca pensou em sentir, se nunca se imaginou experimentando a suprema liberdade de zanzar de pileque pela cidade in the dead of night, você não verá, jamais verá sentido neste meu relato heroico e nem espero que, mas se há algo que menos me preocupe neste momento é o que outras pessoas possam pensar do que sou e do que falo.

Tal como então, entende?

Estou imerso em mim, desconectado das amarras e dos vínculos e dos elos e dos laços e dos liames e das relações que nos prendem todos a todos como se uma gosma de afeto fajuto pretendesse nos unir até o cemitério e estas ruas escuras e silenciosas e virgens há séculos vêm esperando que meus passos trôpegos violentem a sacralidade de sua imundice. Entende?

Você vai rindo. Sabe que não irá perdurar. 

De fato. Não perdurou. O perigo que corro agora neste meu quarto-catacumba é incalculavelmente mais medonho. Perambular pela cidade não é mais opção. 

Eis a IMENSA diferença.

A liberdade de enfiar as pernas nas calças e meter os pés nuns chinelos e fechar a porta às costas renunciando deliberadamente ao sossego e a segurança do seu cantinho neste mundo.

Você sabia que seres humanos há que se deixam atrair pelo encanto do mundo?

Sim. 

E não estão ao alcance do seu sarcasmo de expert na preservação da espécie que amanhã dobrará as pernas na sala diante da tevê fulminado por um enfarte ou um AVC.

Você não vai acreditar, tenho certeza.

Mas nem eu nem os que se permitem encantar por sereias haveremos de rir.

Hoje cedo chegou a hora de Décio Pignatari. 

Talvez de madrugada chegue a minha.

Bem que queria estar sob a égide das minhas ruas virgens, escoltado por meus fantasmas inexistentes, desobrigado de roteiros.

Não, não o/a culpo.

Não, não me culpe.

Nos distingue apenas uma diferença — estou preparado, você, não.

Uma diferença ligeiríssima que nem vale a pena anotar na caderneta.


Blogando 0018

Hoje estou animado e economizarei em tudo menos nos pontos de exclamação.

Tenho saudade!

Tenho falta!

Tenho dor!

Tenho sede!

Tenho fome!

Quero me virar do avesso, preciso devorar-me!

Buscar, e encontrar, em mim os assoberbantes sabores que me prometeram!

O bálsamo do palmito!

O novo do tomate!

O sossego da batata!

A perplexidade do caranguejo!

O alívio deste uisquinho bem gelado...