Ciclo

Não adianta, não adianta, devo bater a cabeça na parede?

Não adianta, sou o que sou, meu pai, o sujeito mais poderoso que conheci, tentou me mudar, não adiantou, mesmo não querendo eu o venci.

Tenho essa força que não é minha e por isso é minha força.

Posso estender o olhar por sobre as pequenezas humanas até meu olhar atingir o horizonte dos horizontes.

Veio então o diretor e meu olhar mudo tentou lhe mostrar...

NÃO ADIANTA

não adianta

Pedra fui parido
Mole me cresci
Hoje gosma dura

não adianta
tenho febre
já falei

um dia 
confessei
ser meu
maior inimigo

era mentira

Testamento

Cheia
Maré de sussurros
Boca de beijos
Olhar de luzes
Passado de esperanças
Grande Praia de rotas de fuga
Dia sem arrependimentos

Uma sílaba a mais seria a gota?

Suculento cuspe

Minha palavra é a vida que passou

Minha palavra é o êxtase que não gozei
A ideia que não tive
A boca que não beijei

Na tarde de ecos e silêncios
Minha palavra é aquela que
Calei

Guaraná com pãozinho francês

Meado da década de 60. Casarão dos pais de Inácio de Loyola Brandão em Araraquara, eu e C e o irmão de I. O casarão era daqueles que não existem mais: muros baixos, apenas para delimitar o perímetro da propriedade, sem as grades presidiárias que destroem a arquitetura de hoje. Quintal vasto em que você podia se perder, varanda na entrada, cadeiras para as visitas. Se bem me lembro,  numa travessa da rua 4, já perto da borda da cidade, que ainda não chamávamos de periferia. Anos depois tentei rever a casa, não a localizei. (Tentei voltar a vários lugares da minha infância. A revisita era sempre decepcionante e amarga.)
Passamos a tarde brincando com afinco entre as árvores. À noitinha a mãe de I nos chamou, nos lembrando que estávamos esfomeados. Recebemos um guaraná (pequeno, pré-idade dos refrigerantes tamanho-família) e um pãozinho francês sem nada dentro cada um. Como é gostoso matar a fome cum guaraná gelado e um pãozinho.

Comemos e nos despedimos e voltamos para a casa de C na rua 4. Se me lembro bem, foi uma das poucas noites em que dormi em paz.

Meu escritor particular

Tenho um escritor particular. Que me escreve todos os dias. E quando está sem sono — o que parece ocorrer com frequência —, me escreve todas as noites.
Às vezes, mais raramente, me faz poesia. Outras, bilhetinhos simplesmente.
Mas, seja em prosa, seja em verso, nem sempre entendo o que me diz.
Não, não. Ele não é complicado. Nem seus versos, obscuros. Nem suas digressões, metafísicas. Ou eruditas. Ou cripticamente filosóficas qual às dum Wittgenstein.
É que meu escritor particular não me faz rir. Nem chorar. Nem me deixa indiferente.
(Pensando bem, depois que começou a me escrever, rio menos. (Minto — nem rio mais. Agora me limito a abrir um meio sorriso, um sorrisinho pacificado, um sorrisinho de efeito duradouro.))
(Chorar, acho também que nunca mais chorei depois que ele passou a me escrever. Agora apenas lembro, divago e emudeço. Mesmo quando me vem essa dorzinha em algum lugar de mim de agora ou de mim de algum ponto no passado que me angustia quando me deito no escuro e fico de olhos abertos sei lá quanto tempo. (Dia desses a luz do sol começou a iluminar meu quarto e levei um susto me dando conta de que passara a noite inteira simplesmente olhando o escuro.))
Mesmo assim as palavras do meu escritor particular em geral mantêm meu sono através da noite. E sustentam minha ansiosa vigília ao longo do dia.
(À noite mal aguento esperar o dia; de dia mal suporto a demora da noite.)
Ele escreve palavras de significados que nem me importo muito em apreender. Algumas, juro, nunca vi. Mas, depois que as leio, não parece fazer diferença. Consultar um dicionário dificilmente me ajudaria. Quando as leio tudo que me interessa é essa impressão de que foram escritas só para mim. Acho que é por isso que fazem sentido mesmo soando estranhas. Mais que tudo, aprendi a perceber que as palavras dele têm um ritmo. É correr o olhar pelas linhas e sentir que meus olhos podiam sair dançando por uma avenida inusitada, em cujo destino mal vejo a hora de chegar numa viagem que espero nunca acabar. A princípio tudo parece desconhecido, só para no segundo parágrafo as palavras que jamais li soarem familiares como minha língua materna. No terceiro eis que deparo com a história da minha vida, a descrição dos meus sentimentos, a explicação das minhas aflições.
Suas palavras, mesmo incapazes de acrescentar um átimo de beleza verdadeira à esterilidade do meu mundo, ao menos transfiguram a feiura que me cerca e disfarçam minha desesperança, e a cada nova manhã por alguns minutos posso sonhar que sou capaz de renovar a vida (a minha própria, a dos outros, a do mundo) e por esses minutos fugazes poder acreditar que cada momento vale a pena ser vivido e cada mentira deve ser desmascarada e cada falso enigma, desvendado do avesso.
As palavras dele são, sobretudo, capazes de quebrar este desencantado encanto que me emudece.
Elas vicejam num jardim, esperando que ele comece a colheita. Não me iludo que as colha só para mim, mas elas mesmas vêm me ensinando que meu velho sentimento de posse já não tem razão de ser. Sei que ele é o escritor particular de todos que souberam permitir que fosse. E a cada manhã aprendi a aguardar um buquê formado de verbos, substantivos, adjetivos que, ao revelarem o perfume que ocultaram de mim até hoje, me deixam enfim avistar o mar encapelado que se revolta dentro de mim ao invés de se diluírem na atmosfera ao redor do meu planeta como ocorreu nos longos anos em que me deixei trancafiar em um porão qual a donzela austríaca por décadas feita amante prisioneira do próprio pai.
Depois que meu escritor particular passou a me escrever, decidi que não preciso mais ter cuidado. Aprendi que já não preciso duvidar do que vivi no passado, do que testemunhei contra minha vontade, das garrafas de champanha e dos frascos de remédio que sempre se quebram para virar navalhas.
Mas por que razão meu escritor particular me escreve tanto afinal? você talvez queira saber.
A primeira vez também me encafifei. E mal pude pregar os olhos aquela noite, me atormentando com a pergunta.
Por que, afinal?
Não tenho nada de especial. Não tenho nem sequer uma beleza, um charme digno de nota. Nem uma inteligência notável. Nem uma sensibilidade que chame a atenção dos outros.
E a angústia que não me deixou dormir aquela noite foi em vão.
Na manhã seguinte meu escritor particular respondeu a minha — e, imagino, a sua — pergunta assim sem mais nem menos, como se uma voz divina lha tivesse sussurrado no ouvido.
E a resposta dele foi assim:
Há muitos, muitos anos venho coletando palavras úteis e inúteis. Palavras que ato e desato, estilhaço e torno a juntar com saliva, nostalgia e descaso, palavras que encontro e perco. Busco-as nos dicionários e nas gramáticas e as amontoo dum jeito que é só meu e não sei se é por isso que raramente façam sentido. Apenas formam um retrato incompleto do que sou, do que vejo, do que espero, refletindo desordenadas o caos vespertino em que me afogo.
Quase todas as manhãs me pergunto, escrever para quê?
Se ninguém tenho a quem escrever?
Se escrever é uma das mais supérfluas atividades humanas?
Se escrever para ninguém é o que me cabe?
E mesmo assim vou escrever para você enquanto meus dedos tiverem vida.



Qual é o inverso de celebridade?

Ciranda cirandinha vamos todos cirandar vamos dar a meia volta volta e meia vamos dar.

Não posso conceber que Shakespeare cantasse essa toada.

Montaigne. Camões. Racine. Musil. Os dadaístas, mon dieu!

Nenhum deles cantou, nenhum deles jamais canta?

Pra que fim Shakespeare escrevia afinal?

Seus estudiosos dizem que era pra faturar. Os comunistas fanáticos de hoje não acreditariam (se comunistas fanáticos ou moderados lessem Shakespeare).

Na época do bardo o papo era ganhar grana, ser bem-quisto do rei, manter uns canais influentes na trupe da realeza. Mais ou menos o que fazem hoje os espertos que descolam uma boquinha numa empresa pública qualquer.

Se tivesse os cem mil grandes escritores que já existiram até hoje na ponta do meu teclado, descarregaria a lista agora mesmo só pra dilatar as pupilas dos meus quase dois leitores (tá diminuindo a olhos vistos, hehehe).

Mas Montaigne, Camões, Racine e Musil servem muito bem de ilustração. Jesus, que é que fazia um gênio do século 15 ou 16 ou 17 escrever? De certo a publicação de 30 exemplares, típica da época, é que não era. Será que ao desenhar cada palavra com suas penas de ganso os rostos de seus possíveis leitores lhes passavam pela imaginação?

Será que, desinteressados do que e dos que lhes eram alheios, exóticos, escreviam simplesmente movidos pelo que guardavam dentro de si?




Não sou o primeiro a pensar que só a irracionalidade pode nos salvar do pragmatismo racional que nos reduz a robôs sibaritas

Discordo plenamente.

Perdoa eles, vai



Esta notícia saiu hoje na, onde mais? Folha de SP.
Que nos meus tempos de moço bem-intencionado se autodenominava e era tida por muitos por jornal para hoje se tornar um imenso pastiche de bobagens às vezes entremeadas de notícias anódinas e irrelevantes.
Pobres pósteros da espécie. Não queria estar em sua pele deles. (Já estou, PQP.)
A foto mostra um, imagino, chiuaua (ou será um rotweiler caído dum anel de Saturno?). Parece que no instantâneo o bichinho tentava se esgueirar num angustiante e cataclísmico estado intermediário entre o terror puro mas nada mero e uma nefasta abulia estóica. Deve ser assim que se sentem os torturados das masmorras das nossas delegacias.
A entusiástica dona a segurar a geringoncinha está participando dum concurso de fantasias caninas promovido pela, pasme-se! Sociedade Protetora dos Animais das Filipinas.
Sociedade Protetora dos Animais das Filipinas pontão de exclamação. Ainda bem que não sou (?) animal nem nasci por aquelas bandas. No lugar desse coisinho canino ia preferir uma estadia no Instituto Royal. Quem sabe dava a sorte de ser salvo em pessoa (ou em cão) pela Luísa Mel e à noite ela me botava pra dormir na cama junto com ela? Até prometia conter minha linguona atrevida.
Pauvres dogs. A raça humana vai passando por um bruta dum processo de transformação cultural sob os acachapantes efeitos da interconectividade a subverter a forma como nos relacionamos uns com os outros, a nos abrir acesso total deste universo sinistro de estímulos sensoriais que está nos empobrecendo intelectualmente, a nos empurrar ardilosamente para um teatro macabro de narcisistas mórbidos que não se dão conta de que vão se convertendo em patetas a marchar para a morte do espírito. Sem falar dos sei lá quantos outros efeitos que só os nossos descendentes poderão lamentar devidamente e amaldiçoar a bela herança que estamos lhes deixando. 
Quero aproveitar este "espaço" e dizer ao meu tataraneto que bem que tentei, cara. Só que ninguém me deu ouvidos. É que hoje em dia escutar os outros meio que saiu de moda, sacumé? Ando achando que até os outros saíram de moda. Agora só existe o "eu". Um euzão descomunal, do tamanho da internet, impossível de medir e aquilatar, um euzão constituído de 7 bilhões de infinitesimais euzinhos estilhaçados, cada qual se tapeando que é um eu normal e inteiro, poor little guys. (Quer dizer, espero que meu tataraneto saiba ao menos ler. The way things are going.)
Nossa tão frágil psique vai deslizando solerte rumo a um desconhecido tenebroso, cercado de mistérios e prováveis más surpresas, ao invés de evoluir para um estado simples de bem-estar físico e mental e não um mundo atravancado até o teto de todos os confortos tecnológicos (in)imagináveis. A tecnologia vai dando mostras seguras de não ter limites. Cada dia mais tudo é frívolo e supérfluo e no processo nos força a um abandono extremado e trágico de nossas raízes. Os gregos acreditavam que seus destinos eram ditados pelos deuses e sua tragédia nascia da impossibilidade de escapar deles e por isso os personagens de Eurípedes, Sófocles e Ésquilo cometem atrocidades que são atrocidades apenas aos olhos dos homens, não de seus deuses. Seria exagero fazer uma símile comparando que nossas estripulias neste espantoso mundo novo da técnica podem nos levar a situações insuportáveis?
Chegará a hora em que daremos mais importância a um cachorro que a um homem, uma mulher, uma criança?
If your dad is rich take her out for a meal, if your dad is poor you just do what you feel.

Todos os anjos são terríveis

Saí pelas ruas à tarde, deparei cum anjo, peguei o anjo pelo braço, encostei o anjo contra um muro e interpelei Escuta, você é homem ou mulher, afinal? Diga. Preciso saber.
Não me pergunte quantos escritores me passaram pela cabeça assim que fiz a pergunta.
Duvido que o próprio Barthes decifrasse esta.
Não tenho sexo, ele/ela respondeu.
Não queira saber quantas possibilidades de réplicas me passaram pela cabeça. Estamos na era em que José Simão é um dos mais lidos na Folha de São Paulo, era em que alguém que atende pelo nome de Fábio Porchat é a nova coqueluche nesta terra de neandertais.
Coqueluche?
É a voz de meu pai. De repente me toco que me excedi. Lá vou eu de castigo de novo. Tomara que não me presenteie cum cascudo no meio da orelha.
Sei que mereço, though. Coqueluche em plena era internética? Perdi meus sais literários. Depois desta vou acabar desenvolvendo uma tese acadêmica sobre National Kiddo, se é que ninguém já fez.
Volto ao presente, meu punho está comprimindo a garganta do anjo.
Cadê suas asas?
Não tenho. Em compensação não faço cocô. E nasci na década de sessenta.
Sinto o coração desacelerar um tico. Provavelmente não vou morrer nos próximos dez minutos. Nenhum grande alívio, pesando tudo. (Por que não escrevemos tudo em inglês duma vez?)
Porque vocês não são anjos, ora! – mata ele, mesmo sem ser perguntado diretamente.
Fito seus olhos cuma intensidade de que não me julgava capaz. (Por que não nos entregamos às telenovelas todos duma vez por todas?)
Já conhece a Igreja Universal do Reino de Deus? – quem me pega pela garganta agora é ela/e.

Ato contínuo, me arrasta para atrás do muro e me estupra. Puta merda, esses anjos são o diabo.

Aquele sou eu?

Se for me amar, me ame sem ponto de exclamação. Me ame sem reticências. Sem ponto de interrogação.

Era (mais ou menos) assim o bilhete que um dia deixei para Sílvia na mesa da cozinha, do lado da fruteira vazia.
Se num dia ensandecido qualquer decidisse fazer um letreiro em neon, seria esta a epígrafe.
Tinha no momento Trains and boats and planes dos Box Tops na cabeça que viajava em todas as direções e estava alucinada de dor e autocomiseração e me fazia me sentir o sujeito mais sozinho desta parte debaixo da Via Láctea.
Mas não a ponto do choro.
Não choro.
Não sei chorar.
Nunca chorei em minha vida.
Um dia fui num médico crente de que estava enfartando, doutor, esse baita peso no peito, só pode ser veia entupida, quantos dias me restam de vida? ele me olhou me achando um pateta e riu, é choro represado, meu amigo. Bota a boca no mundo, que passa.
O insight foi poderoso.
Desatei em lágrimas (fiozinhos abundantes como se um dique tivesse rebentado dentro de mim).
Não liguei a mínima por fazer papel tão ridículo na frente dum estranho.
Saí ensimesmado do consultório, só pode, nunca chorei, nunca chorei na infância, nunca chorei na adolescência, sou um cara estóico, quem me lê neste blog de certo me acha um choramingão de marca maior.
Mas, posso assegurar, é charme, é dramatização, o que enceno não está no gibi, preciso atualizar minhas expressões idiomáticas, o pendor pelo drama é mal de família, mamãe era a drama queen do bairro, meus tios representavam canastrões da vida real, é por que isso que cresci dizendo que sou um mau ator no meu próprio papel.
Ninguém despontou para o teatro na família.

Talvez aí mesmo esteja o motivo, será o ator, não importa se bom ou ruim, um sujeito que vive a vida real com os pés no chão, reservando seus dotes para extravasá-los em toda sua potencialidade no palco, perito na arte de separar a realidade e o palco? No mesmo raciocínio, será que um sujeito que carrega de negras tintas as situações vividas no dia a dia um inapto para o mundo da simulação artística? (E olha que ainda nem toquei na tragicomédia.)

Minha era das minhas grandes navegações

(que
bode
ser
obri
gado
a usar
as mes
mas pal
avras
que 
você)

Estou feliz como há tantos séculos não me sentia
E por isso
Acabo de fazer uma descoberta

Um dia
(Sei que era um dia
dos dias que me 
couberam, aqueles
a que nunca 
presto atenção)
Meus diamantes  se
expuseram ante
meus olhos, 
ilustração
do Reader's
Digest, cercado
da trupe de pi-
ratas do Barba
Azul

Lá estavam, como
sempre estiveram,
a jazer sob meu 
tesouro

Imenso baú vazio

Quase noite
De repente
Me lembro
Que à tarde
Saí a navegar
Da única forma que sei navegar
Munido de melancolia e ânsia de utopia e
Náusea de horizontes.

Estive na Europa, visitei alguns pensadores e poetas alemães com quem há tempos mantenho certa familiaridade e, já que estava por aqueles lados, aproveitei para deixar lembranças a Nerval, Rimbaud, Verlaine, Lorca, Bécquer, Carducci e Pavese.

No silêncio
Da tardezinha
Que morre
Sua morte
Feliz de
Precoce
Se fazem
Escutar rumores
Num idioma
Conhecido
Sei que falam a meu respeito e não me entristeço. Usam o mesmo mecanismo dos mil clones do planeta Terra a orbitar para além da galáxia de Andrômeda. Se em cada um deles houver neste exato instante um sujeito pensando que penso nele neste exato instante, torço para que em seu planeta as tardes não morram tão tristemente quanto morrem as minhas tardes.

Passo os dias a navegar
sem querer partir
nem querer chegar
sem querer ir
nem querer voltar.

Que destino me resta
que o fundo do Mar?

Fui mau. Foi mal

Fiquei chateado.
Pessoas se sentiram atingidas pela virulência com que tratei as redes sociais em algumas postagens recentes. Será que algumas pensaram que estava me dirigindo a elas?
Não é verdade.
Se alguém feri peço desculpas com toda a sinceridade de que sou capaz. (E sou, como poucos que vi ou conheci. Nunca me desculpo hipocritamente.)
Não tive a intenção, mesmo sendo ferino, quase sempre. (Podem ser resquícios das fugas dos jabutis na selva do antigo Congo, onde seis milhões de conguenses se trucidaram nos últimos anos sob o olhar de paisagem de facebookistas e outras tribos e os honoráveis líderes políticos mundiais da nossa avançada civilização.)
Não foi por querer. Foi a lição que me ensinaram. Que fiz o que pude para não aprender. Nunca briguei pelo que julgava ser meu de direito, nunca tentei defender meu próprio nome. Há tantos anos depus minha lança. Embaralhei minhas noções dos pontos cardeais. Faz diferença? No tribunal das paixões em que existo do primeiro segundo do dia ao último segundo da noite e cujas sentenças nunca são frívolas e cujas penas jamais vencem...
...não.
Não quis ser pessoal. Sempre tento evitar ser, se envolvendo terceiros. Não me atrevo a outra pessoalidade que a de tratar das minhas coisas e do meu mundo o mais pessoalmente que puder — falando do que aparentemente está distante do único assunto que me interessa: eu e minhas encucações abarrotadas das docemente terríveis circularidades que herdei de meus pais e dos meus concidadãos e dos homens e das mulheres que vieram antes de mim. Sou um cara barroco. Quando me rendo a Bach, rococó.
Posso ter errado em certas generalizações mas não meti o pé na jaca ao descer a borduna no face e na orkut. Não meti. Olha que fui comedido. Você sabe que fui. Sempre que dou por terminada a escrita de cada postagem, estou ainda insatisfeito, como estou a cada segundo da jornada, insatisfeito como quando vim a este mundo eternamente inóspito para os meus tentáculos de luz flambada em manteiga de fada. Vivo sob a égide do osso entalado na garganta. Uma das minhas incontáveis circularidades. Não há nada que possa fazer, creia.
Meu escrever não desata, minhas palavras me põem em suspenso aguardando a sangria que se um dia de fato vier me levará junto. (Ah como espero!) Teclo o ponto final e aperto as pálpebras e mordo os lábios torcendo que teclar o ponto final seja meu último ato neste milênio. O que restou não dito vai circular dias — se afortunado como o Afortunato de Poe, mas não; quase sempre é tormenta de semanas, meses, anos — a ricochetear nas interparedes úmidas e frias recobertas de limo pobremente metafísico exigindo que ao menos tente vencer esta pantagruélica preguiça que ganhei na rifa da existência e que me obriga à escrita estertórica do permanente desaluno que me resignei a ser na desescola que me obrigaram a desfrequentar para ver se desaprendo as lições de que tenho asco. Quando finalmente decidirem se debruçar sobre esta medonha era em que vamos nos deixando apanhar tolamente na rede, os historiadores literários do século trinta e cinco receberão dos grupos de células quânticas de seus ultraIpads o veredito escalar de que fomos blogueiros dum tema só e que noventa e nove por cento de todos nós geniais ou espasmódicos, medíocres ou argutos, humanistas ou comunistas, nada mais fazemos que nos debater no ponto mais remoto da superfície lisa deste oceano impenetrável, indecisos se podemos criar asas e tentar voar rumo às nuvens poluídas e destituídas de substância ou deixar crescer sob os braços barbatanas que nos levem inelutavelmente para esse patético fundo destituído de profundidade.
Esta literatura confessional que vou exudando neste blog me é dolorosamente desalentadora, óbvio. Dia após dia leio o que escrevo e digo a mim mesmo que preciso achar uma saída. Um dos meus poucos consolos é pensar que Proust dedicou trinta anos de sua vida à fabulosa Recherche para falar de sua mãe da primeira à última linha e, portanto, acho que tenho o direito de confessar sobre meus queridos fantasmas, quando mais não seja para lhes atribuir toda a culpa de ser o que sou, o único porém permanecendo serem tão escorregadios quanto os réus do Mensalão, com nenhum STF poderoso o bastante para conduzir as garras da justiça às gargantas dos miseráveis. 
Manter este blog é uma das retrorreferidas encucações, que resistem circularmente irresolvidas. Manter este blog é uma penitência. Antes de começar não fazia ideia de como podia ser complicado. Antigamente levava minhas maltraçadas sem maiores pretensões e nenhuma preocupação com público e opinião de quem quer que fosse. Não mudou muito, posso garantir. Ainda escrevo exclusivamente para mim mesmo, embora tenha de confessar que não seja mais independente como nos meus tempos áureos da máquina elétrica precariamente equilibrada numa mesinha rastaquera nos fundos da garagem da minha antiga casa. Contra a vontade, acabei contaminado pela síndrome do ibope — não resisto a conferir diariamente meu índice de audiência no Google Analytics. Nada que, repito, interfira decisivamente no que escrevo e na forma como escrevo. Pelo que leio por aí às vezes, esta é uma diferença substancial com relação à maioria dos blogueiros. Sei que vai soar chato mais uma vez, mas poucos deles são escritores ou poetas. Em geral se limitam a duplicar o comportamento que têm nas redes sociais, escrevendo não para fazer literatura ou poesia e sim para incrementar as estatísticas de seus blogs e arrancar comentários esperançosamente elogiosos da patota. É o que são  — patotas. Se disseminaram e se disseminam viralmente pela internet incontáveis panelinhas em que os chegados praticam religiosamente o princípio do uma-mão-lava-a-outra. Você lê o meu, eu leio o seu. Se comentar uma postagem minha, comento uma sua. Se me visitar, te visito. Senão, você é um antipático.
Posso estar pegando pesado mas em minha humilde opinião não deviam se declarar escritores ou poetas e sim relações públicas. É o que são. Os inventores das redes sociais criam o que chamam velhacamente de “recursos” ou, pior, “ferramentas”, e os usuários os engolem e adotam sem se perguntar se estão servindo a si mesmos ou servindo escravocratamente aos novos nababos do universo digital. (Que dois, três bilhões de seres humanos possam estar neste exato instante entregues aos caprichos do facebook me faz tremer de angústia e náusea. É um poder inconcebível nas mãos de meia dúzia de “celebridades” ou sei lá que nome dar a esses novos super-homens senhores de todos os destinos. Me deixa boquiaberto ver que nenhum grande pensador ou grande escritor erga a voz para denunciar condignamente a última distopia.)
Sempre que meus tormentos de escritor atingem este beco sem saída assoberbante costumo recorrer a Rilke. Duvido que fosse capaz de escapar sem essa ajuda. Entre os vários comentários que faz ao seu missivista Kappus em Cartas a um jovem poeta, Rilke diz que “Obras de arte são de infinita solidão”. É um dos meus livros de cabeceira, com perdão da cafonice surrada. Que todos os que se pretendem artistas também deviam ter à mão mesmo enquanto navegam as indomáveis ondas do face.
E em nenhum momento chega Rilke a dar um conselho direto e concreto a Kappus, que é na verdade o que ele, jovem poeta, deseja e espera. E quando insiste, praticamente implorando que o mestre dirima por ele as atrozes dúvidas quanto a como ser poeta, Rilke lhe apresenta uma resposta que, imagino, lhe deve ter causado profunda decepção: “Investigue o motivo que o manda escrever;(...) confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’”
Eu faria a mesma pergunta aos milhões de blogueiros que tão pressurosa e pretensiosamente vão entulhando seus cantinhos literários duma infinidade de escritos e poemas: você é mesmo forçado a escrever?
E penso que eu mesmo posso engatar a resposta pela maioria dos blogueiros com veleidades literárias: não, vocês não são forçados a escrever. Não morreriam se deixassem de escrever.
E como posso correr tamanho risco de fazer papel frívolo? É assistir dia a dia o terrível morticínio de blogs rede afora. Eram blogueiros que, se imaginando poetas, de repente sacaram que ninguém se dava o trabalho de ler sua “obra” e foram cuidar da vida. Trataram de arrumar brincadeira mais “gratificante”, com perdão de mais um termo cafona. Provavelmente retornaram ao consultório do conselheiro pedagógico para retomar a busca por sua “verdadeira” vocação. Provavelmente se abandonaram aos doces prazeres do face. Pra que sofrer se podemos curtir e ser curtidos sem maiores implicações metafísicas?
Finalizando a interferência de Rilke, esta é a enésima vez que escrevo uma postagem mencionando esse livro e repetindo essas citações. É claro que sei que nunca ninguém vai notar. É uma das vantagens dum blog. Você pode engendrar o maior poema de toda a história humana e amanhã seus belos versos terão virado lixo cibernético.
Quanto a este blog particularmente, tão cedo não fará companhia aos bilhões de outros abortos poéticos depositados na lixeira da internet. Não sei se morreria se não pudesse mais escrever. Mas posso garantir que escrevo porque preciso, não para ver subir os números do registro de visitantes das minhas páginas.
Tenho por exercício diário desenvolver uma casca que me deixe mais ou menos infenso ao fato de ser ou não ser lido. Me permito no máximo aproveitar e fazer uma pausa no eco torrencial que meus fantasmas emanam diuturnamente contra meu frágil cérebro e puxar a ponta da meada tentando confeccionar mais uma das minhas intrigantes pérolas blogais. (O Google está denunciando "blogais" como erro. Estão vendo a que me refiro?)
Há algo doentiamente errado na interconectividade obsessiva das redes sociais. Não vou chover no molhado, repetir tudo que já disse a respeito, mas nos últimos tempos simplesmente não conseguia sufocar em minha imaginação a parábola dum rebanho de gado quando entrava no face, a interxeretagem com que todos vasculham as vidas de todos, a vil mendicância por um Curtir, a necessidade palpável, que crescia a olhos vistos a cada nova visita, de todos em participar aos demais atos e fatos insignificantes de seu cotidiano, a forma como esse participismo infernal vai deturpando o senso de todo mundo sobre o que é de fato importante, a forma como todos de repente viraram junkies digitais e, como todo viciado, não querem ouvir falar em “reabilitação”, conectados a suas telinhas na noite, no banheiro, no metrô, na escola e no bingo.
Quem me abandonou nos últimos dias exatamente? Não sei. Mas pude perceber, pelo timing das minhas postagens, que foram pessoas que me liam há tempos. Sinceramente de novo, sinto. Apesar de soar tão estranho lamentar pelo que desconheço feito por quem não conheço. Alguém se afastou de fato? Ou é minha irredutível paranoia mais uma vez dando o ar de sua graça? Eis o que me importa: ter, mais uma vez, perambulado por tantos meandros deste meu labirinto só para chegar aonde sabia que chegaria desde o começo: eu mesmo. Virei expert em me perder para me encontrar. Soa tão refrescantemente teen, não soa? Tenho mesmo essa capacidade de brincar com minhas idades. A você que não a tem posso assegurar que é uma gostosura.
Você sempre pode sacar do bolso direito das calças a desculpa de que tudo se desculpa à literatura confessional. Vamos nos tornando mais e mais órfãos a cada nova rede social que os marks z. inventam por aí.
Pode ser que seja um erro ser como sou. Podia simplesmente ter feito um blog de poesia como até os grandes poetas têm hoje em dia. Mas, eles, fantasmas meus, são irresistíveis. Enquanto me distraírem, vou obedecendo. Você diria que sou culpado? Diria. E eu responderia que não tenho culpa? Não, responderia.
Sou minha única curtição. Dispenso botõezinhos manjados cujos desígnios desconheço. Chegou a hora de mais uma pausa de refill, acompanhada dum movimento qualquer duma sonata qualquer de Ludwig; não percam na próxima postagem por que acho que Ibsen devia ser obrigatório em nossas escolas.
E lá se vai mais uma postagem para o olvido eterno. Já pararam pra pensar no mundo de textos que a humanidade terá gerado daqui a cinquenta anos? Uau! Eu não, porque é impensável. Evito pensar no que não pode ser pensado. Pra que perder tempo com besteiras?



Love me

Você vai morrer aos
Cento e quinze
Numa UTI

Eu vou morrer
Aos sessenta
Empunhando um
Copo de vodka

Desaforadamente
Gelada

Enquanto não me interrompem

Vivi até outro dia na mesma casa em que nasci.
Nasci na mesma casa em que vivi até outro dia.
Tudo pode permanecer em harmonia, basta querer.
Sabe o que mais gosto na minha vida?
De fazer massa.
Massa de torta de frango. Massa de pão. Massa do que quer que seja de que é feito o núcleo da Terra e o italiano âmago de mim.
Se é que tenho um. No mais das vezes duvido. Olho os outros, ninguém tem. Por que eu teria?
Ninguém? Tem certeza? E se pelo menos esta noite você fizesse um esforço para conter esse irracionalismo exacerbado e tentasse enxergar o que REALMENTE acontece aí dentro?
Posso fazer. Mas antes me diga: cadê as pessoas com âmago? Não as vejo. Nunca as vi. Quer dizer, fora do livros. Mas até hoje não me adiantou muito identificar o âmago de Kafka, o âmago de Joyce Carol ou o de Aristóteles. Décadas, tantas décadas os lendo só pra dar de ombros e estremecer com a ideia de que em nada me ajudariam quando eu mergulhasse até o fundo do lago.
MEU lago.
Preciso de alívio.
São toneladas de água sobre minha cabeça.
Bilhões de homens em meu passado que é tão breve que sequer posso dizer que é meu.
Por que os trilhões de estrelas na abóbada do universo me fazem sombra se não sabem quem sou?
Ontem fui na minha dentista que se chama Elizabete e na recepção peguei uma Caras.
Abri.
Então me dei conta de que tinha me sentado num trono. E os dedos da minha mão direita empunhavam um cetro. E reinei, reinei, reinei.
Por intermináveis quinze segundos.
E tudo relampejou numa cegante obviedade. Nós fanáticos dos tijolinhos empilhados em equilíbrio, da UTI higienizada a zero bactérias por milímetro cúbico somos racionais fingidos.
Por uma eternidade minha imagem no espelho se veste de negro, a nuvem no céu com o formato do meu rosto se borra de ruge, traduções interplanetárias eletrificam minha língua, posso compreender aquele judeu megalomaníaco que há tanto tempo tem debochado de mim em meus pesadelos, me olho no espelho com vestido de domingo de minha mãe, o terno de casamento e enterro de meu pai, estico o braço para a amoreira envergada sob o peso das amoras maduras que tingem meus dedos da cor do sangue dum moleque imberbe que apenas uma vez sonhou ser poeta e nunca mais esqueceu.
Há quatro décadas minha irmã tinha uma gata chamada Frederica que deu cria debaixo da minha cama durante a madrugada. Acordei com o calor da prenha ao meu lado na cama e a enxotei cum safanão. Voltei a dormir instaneamente, só de manhã me dei conta. Hoje estou pasmo com minha “insensibilidade”. Mas que insensibilidade é essa? A dum adolescente que apenas pensava ter direito ao sono dos justos? Tantas vezes naquela época os velhos me obrigaram a escutar seus sermões sobre como o mundo é pequeno, sobre como tudo que sobe, desce, sobre este mundo que dá voltas. Agora estou do outro lado e posso asseverar: o mundo vai ficando cada vez maior e assustador e incompreensível e a prudência e a cautela que ao longo de toda minha vida pude detectar nos velhos hoje se revela apenas a covardia dos eternos covardes.

Há covardes velhos, covardes novos, covardes bebês, covardes adolescentes, covardes que tentam esconder sua covardia num BMW de mil cavalos, covardes que procriam para não se sentir covardes, covardes que se prostituem contando que amanhã cedo quem se confesse prostituído seja o outro.

Nauseabunda apelação


Vou pedir desculpas pelo que escrevo pela primeira vez em minhas 21.492 noites de celebração pagã.
Nem unzinho pedi em nenhuma delas?
Pedi.
Sou escritor mas sincero. E, se pedi, foi sob a tortura do olhar inquisidor com que alguém com quem deparei na rua fuzilou o meu por uns instantes – tortura tolerável por ainda não haver naqueles tempos as malditas, as inescapáveis testemunhas que nos infernizam dia e noite hoje em dia.
Eis que mais uma noitinha vem recobrindo meu horizonte invisível com seu véu encardido quando me ocorre, vou escrever sobre escrever. (Gostava tanto que alguém me sugerisse um sinônimo para "escrever" como substantivo que não "escritura", que sempre que uso me obriga a pensar que não sou coveiro. (Meu primeiro professor de redação, José Carlos, professava que quem repete muitos "quês" escreve mal.))
Então lembrei que já escrevi tudo que queria — e, principalmente, não queria —, sobre escrever. E tive a hílare ideia de vir aqui fora brincar na internet enquanto pensamentos mais consubstanciados não davam o ar da graça em meu cérebro.
A primeira vez que cometi a insanidade de usar “consubstanciados” foi numa prova para o professor jota jota de moraes no colegial nos idos dos setenta e alguma coisa. Amei. Ele nem tanto. Um dia escrevi a respeito. Como mencionei na ocasião, o professor sofria de gota e gota é inequívoco indício de somatização de raiva contida.
(Pena que o google ainda não sabe botar um hiperlink automaticamente em nosso texto quando a memória se derrama sobre a consciência.)
Na época jay-jay fazia parte da turma de idólatras dos concreteiros Fields bros in the loose. Hoje a fraude literária do concretismo me parece devidamente putrefata, embora ainda não suficientemente inumada. (Um dia fiz uma apresentação concretista para a esforçada Beth Brait idem ibidem. Sou franco quando afirmo que temi que ela sofresse um orgasmo literário diante da classe.) Lamento pacas não ter paciência para obrar um epitáfio da obra dos brothers comme il fault, detonando desde o pedantismo bacharelesco, passando pela puerilidade pretensiosa do concretismo, até o narcisismo com que ambos sempre davam um jeito de se colocar na ribalta enquanto fingiam discorrer sobre terceiros. Seja como for, Ferreira Gullar, ainda vivo e sempre um dos grandes, já colocou os devidos pingos. Embusteiros como Umberto Eco, erudito, sim, mas não criador, e pen pal de Haroldo de Campos quando vivia (?), também parecem estar retornando ao seu buraco no limbo. A praga é que as fraudes levam tantas décadas para acabar desmascaradas. Pena que no momento não me ocorra um dito definitivo sobre a cura que o remédio tempo opera nas hesitações humanas.
Estava pensando em escrever sobre escrever, já disse. Todos os escritores que têm vergonha na cara escrevem e escreveram sobre o que é escrever. Me parece ser uma das poucas profissões em que você pode abusar da metalinguística sem quebrar a cara além do recuperável. Um carpinteiro de Luis XV podia modelar um birô que versasse mais sobre si mesmo que sobre o rei ou o reinado do rei. Aonde esse coitado, o birô, poderia chegar? Não além duma daquelas inúmeras salas atulhadas de velharias no Louvre.
(Lembrete para mim mesmo: qualquer dia quero retomar um dos meus temas prediletos, a obsolescência dos museus e seu insuportável fedor de mofo que tem atravancado o avanço da arte e da história e mesmo da existência da arte. A raça dos bambas das bolsas de valores não sofrerá sequer um arranhão enquanto não botarmos fogo nesses depósitos de relíquias inúteis. Mas por que me limitar aos museus? Um museu é apenas um dos casos mais mórbidos da infâmia perpetrada sem parar pelos mandachuvas da espécie, elite social e financeira formada de alguns poucos milhares de eleitos que domina à perfeição a ciência da dominação do populacho. Then again, a bagaceira cultural se sente bem assim e se encarrega de brecar qualquer mudança pra valer. Falar deste assunto me deixa instantaneamente exausto. Como dói chover no molhado. Que mais poderia acrescentar sobre uma gente que se presta a adorar uma tela de Picasso pendurada numa parede?)
Zanzando pela rede enquanto pensava sobre o que escrever sobre escrever, dei cuma citação de Marguerite Duras: “Escrever vem igual ao vento. Pelada, feita de tinta, a coisa escrita passa como nenhuma outra coisa passa na vida, nada mais, fora a vida em si” (aproveitei e dei uma arrumada no original. La petite Margarida não bufaria, bien sûr).
Na hora fiquei quase surpreso mas, óbvio, a surpresa se desfez num segundo. Trivialidades bastam as minhas. E nos últimos tempos venho me esforçando para evitar usar “vida”, não com grande êxito, admito. Não preciso explicar por que, espero. E “igual ao vento” não tem jeito, fiquei sem opção depois de passar a infância inteira sendo acusado de “viver de brisa” por minha própria mãe. Cresci e decidi apelar ao álcool, tão volátil quanto mas passível de se armazenar num frasco de vidro.
Precisava de mais.
Continuei procurando, até que encontrei uma definição de Hemingway. Aqui não posso me permitir à ligeireza. Hemingway é não só um dos melhores escritores da história como ainda fez da própria biografia um romance e vice-versa. É um dos raríssimos incontroversos, apesar de alguns eternos espíritos-de-porco que tentam aparecer às custas dele. Estou há semanas lendo Ensaios reunidos, de Otto Maria Carpeaux, de quem precisarei de pelo menos um ano para formar uma opinião que me satisfaça. Alguns vereditos de Carpeaux me deixam com o pé atrás. A bordoada que desferiu em Huxley, por exemplo, achei merecida (e passei a adotar para uso próprio). E não se cansa de enaltecer Hemingway. Mas, e franzi o cenho ao ler, decreta que Fitzgerald é “falsamente sofisticado”. Bem, estou apenas no começo. Em breve saberei onde Otto canta.  E sempre fico meio confuso quando chamam um grande escritor de sofisticado – ou não.
“Escrever, quando muito, é uma vida solitária. Clubes de escritores amenizam a solidão do escritor, mas duvido que melhoram sua escrita. Ele cresce em estatura pública à medida que atenua sua solidão, mas sua obra em geral se deteriora. Pois faz seu trabalho sozinho e, se for um escritor relativamente bom, precisará confrontar a eternidade ou a falta dela, dia após dia”. Eis a definição de Ernest Hemingway.
Surpreendentemente prolixo em se tratando dele. Revelador, todavia. Um baita escritor preocupado em demonstrar seu real valor a seus pares (é patente em Paris é uma festa que ele media forças com Fitzgerald, que então não tomaria conhecimento de Carpeaux) e a todos os homens e mulheres capazes de reconhecê-lo. “Confrontar a eternidade ou a falta dela” expõe um dos grandes motivos que levavam Hemingway a escrever. Sem querer me equiparar mas peço vênia para registrar que para mim a eternidade é literalmente impensável. Aspiração própria de gênios e talentos extraordinários. Minha única veleidade, se tanto, é aspirar ao instante presente. O que em geral paira muito acima da minha habilidade para a autoabstração. Nunca fui muito afim com o tempo. Duvido mesmo que percebesse se ele um dia parasse.
Que inominável vergonha colher pérolas de páginas de citações na internet. O pior é que são milhares de pretensos poetas se autoimitando na esperança dum laivo de originalidade e, a partir daí, quem sabe, um poro de luz que possa distinguir suas pequenas existências infelizes das bilhões de outras tão medíocres quanto.
“Preciso da solidão para escrever. Não qual um ermitão, não seria suficiente, mas como um homem morto”.
Essa citação não bastará, estou ciente, para minha pequena existência infeliz levitar um pouco que seja acima da infeliz existência pequena do meu vizinho ou dos tantos com quem fui obrigado a competir na infância por um poro de luz que, sabia então, era minha única esperança.
Você não precisa sair. Fique sentado à mesa e escute. Sequer escute, meramente espere, em silêncio, imóvel, solitário. O mundo se oferecerá livremente a você, desmascarado, ele, mundo, não tem opção, rolará, extático, aos seus pés”.
Todos os homens e mulheres do mundo têm o direito de ser os frívolos que são. E, Jesus amado, esta é a era da falsa noção da liberdade irrestrita. Os pirralhos já não nascem crentes de que a internet e a conectividade permanente existe desde sempre? Não obstante os preceitos do cristianismo, ninguém chega culpado de antemão.
Que esperar de quem vai ao cinema ver um festival de filmes “de arte” voltando para casa com o rei na barriga, se achando em dia com sua necessidade de “arte”, proclamando pelos cotovelos sua distinção nobiliárquica perante a manada que não sabe apreciar Godard, desconhecendo que apenas cumpriu seu papelzinho de consumidor da indústria cultural?
Nada.
Estou decepcionado?
Um pouco.
Minto.
Insuportavelmente.
Minha solução (ao menos até amanhã cedo):
“O significado da vida é que ela para”.


Meu museu na negridão da noite

É preciso ter ouvido.
É preciso arfar pausadamente.
Estava aqui pensando, e se fizesse um poema mesmo me sentindo tão mal quanto me sinto agora?
Tenho medo de versejar quando não estou bem. (Mas como quase nunca estou bem...)
Ou melhor, tenho medo de escrever o que quer que seja. Às vezes minha mão treme só de pegar uma caneta para anotar um recado ao telefone.
Tenho medo de anotar recados ao telefone. Medo de falar ao telefone. Medo do telefone. Olho essa negra caixinha de surpresas e cismo. Alguém pode me ligar. Tenho medo de que alguém possa me ligar. Só me ligam os enganos. Meu número está errado. 
Tenho medo de versejar quando me sinto errado. E como me sinto errado a maior parte do tempo...
Décadas atrás gostava de pensar que melhor seria minha poesia quanto pior me sentisse. Você tem razão — é uma concepção lamentavelmente romântica da poesia — e errada. 
Levei longo tempo para descobrir que funciona ao contrário. E como estou ao contrário quase todo instante...
Fiz outra grande descoberta: o pior momento de tentar fazer um poema é exatamente quando você tá a fim de falar de poesia, não de fazer. Você adivinhou: mais ou menos como o sexo. Descobri que gosto mais, muito mais de falar que de fazer. Mais: descobri que quase sempre fui assim, mesmo quando achava que fazer sexo era um grande barato.
Sim, você acertou outra vez — é o fenomenal poder da palavra. A falada é a mais poderosa. Mas como não tenho com quem falar... só me resta me contentar com a escrita.
Isso tudo é muito complicado. (Gosto desta palavra, complicação. É uma das poucas do vernáculo que sintetizam uma grande parte da vida sozinhas, sem necessitar de introduções, viagens, adjetivos, apêndices.)
Ao abrir este parágrafo precisamente, me ocorreu que uma continuação apropriada ao anterior seria aduzir "e simples ao mesmo tempo". E aqui você estaria mais uma vez com a razão — ficaria decepcionantemente mecânico.
Tenho medo do mecânico, tenho medo da mecânica. (Hmmm, que delícia de trocadilhos essa brincadeira daria. Por que afinal poetas e escritores tanto temem essas delícias? Acertou: morremos de medo dos críticos, mesmo quando os críticos não entendem lhufas nem poesia nem de literatura. Sim: a maioria dos casos.)
Sei que o que vou dizer é claro como luzinha de caneta de oftalmologista. Mas vou dizer mesmo assim. O assassino da palavra é exatamente ele: o mecânico. É ele quem chega solerte pelas nossas costas e, sem que nos demos conta, nos obriga a proclamar que o problema da rosa é o espinho. Debaixo desse defunto sempre jaz uma fonte incalculável de clichês.
Versejar ou escrever literariamente não requer estar mal ou bem. E ficar longe do mecânico pode ser desejável mas não é tão vital quanto pregam certos críticos que não resistem ao emprego de alguns clichês em suas arengas.
Houve uma época em que escrevi muito a respeito, me lembro bem agora. Vira e mexe anunciava ao mundo que versejar ou escrever literariamente exige antes de tudo honestidade.
Isso também é muito complicado. Assim como a necessidade de comunicação nos leva a apelar quase inconscientemente ao mecânico, as injunções da vida diária nos forçam a driblar a franqueza no duro embate com nossos inimigos. (Pois é, somos, quase todos, cercados de inimigos. Se reais ou imaginários, não vem ao caso. São inimigos all the same.)
É por isso que hoje digo, para ser poeta você precisa ter ouvido. Você precisa aprender a arfar pausadamente.
A escutar, acima do vozerio espalhafatoso, fogueteiro, dos eternos festeiros, as verdades que seu coração sopra em cochichos fantasticamente baixos. A saber como escutar o silêncio que, no dizer de Braque, é l'art d'exprimer l'invisible par le visible.
Não é tão complicado quanto parece. Basta sempre ter em mente que cada um de nós é especial e cada poeta, especialíssimo. Apesar do que advertem os psicanalistas.