Não adianta, não adianta, devo bater a cabeça na parede?
Não adianta, sou o que sou, meu pai, o sujeito mais poderoso que conheci, tentou me mudar, não adiantou, mesmo não querendo eu o venci.
Tenho essa força que não é minha e por isso é minha força.
Posso estender o olhar por sobre as pequenezas humanas até meu olhar atingir o horizonte dos horizontes.
Veio então o diretor e meu olhar mudo tentou lhe mostrar...
NÃO ADIANTA
não adianta
Pedra fui parido
Mole me cresci
Hoje gosma dura
não adianta
tenho febre
já falei
um dia
confessei
ser meu
maior inimigo
era mentira
Testamento
Cheia
Maré de sussurros
Boca de beijos
Olhar de luzes
Passado de esperanças
Grande Praia de rotas de fuga
Dia sem arrependimentos
Uma sílaba a mais seria a gota?
Maré de sussurros
Boca de beijos
Olhar de luzes
Passado de esperanças
Grande Praia de rotas de fuga
Dia sem arrependimentos
Uma sílaba a mais seria a gota?
Suculento cuspe
Minha palavra é a vida que passou
Minha palavra é o êxtase que não gozei
A ideia que não tive
A boca que não beijei
Na tarde de ecos e silêncios
Minha palavra é aquela que
Calei
Minha palavra é o êxtase que não gozei
A ideia que não tive
A boca que não beijei
Na tarde de ecos e silêncios
Minha palavra é aquela que
Calei
Guaraná com pãozinho francês
Meado da década de 60.
Casarão dos pais de Inácio de Loyola Brandão em Araraquara, eu e C e o irmão de
I. O casarão era daqueles que não existem mais: muros baixos, apenas para delimitar
o perímetro da propriedade, sem as grades presidiárias que destroem a
arquitetura de hoje. Quintal vasto em que você podia se perder, varanda na
entrada, cadeiras para as visitas. Se bem me lembro, numa travessa da rua 4, já perto da borda da
cidade, que ainda não chamávamos de periferia. Anos depois tentei rever a casa,
não a localizei. (Tentei voltar a vários lugares da minha infância. A revisita
era sempre decepcionante e amarga.)
Passamos a tarde brincando
com afinco entre as árvores. À noitinha a mãe de I nos chamou, nos lembrando
que estávamos esfomeados. Recebemos um guaraná (pequeno, pré-idade dos
refrigerantes tamanho-família) e um pãozinho francês sem nada dentro cada um.
Como é gostoso matar a fome cum guaraná gelado e um pãozinho.
Comemos e nos despedimos
e voltamos para a casa de C na rua 4. Se me lembro bem, foi uma das poucas
noites em que dormi em paz.
Meu escritor particular
Tenho um escritor particular. Que me
escreve todos os dias. E quando está sem sono — o que parece ocorrer com
frequência —, me escreve todas as noites.
Às vezes, mais raramente, me faz
poesia. Outras, bilhetinhos simplesmente.
Mas, seja em prosa, seja em verso, nem
sempre entendo o que me diz.
Não, não. Ele não é complicado. Nem
seus versos, obscuros. Nem suas digressões, metafísicas. Ou eruditas. Ou
cripticamente filosóficas qual às dum Wittgenstein.
É que meu escritor particular não me
faz rir. Nem chorar. Nem me deixa indiferente.
(Pensando bem, depois que começou a me
escrever, rio menos. (Minto — nem rio mais. Agora me limito a abrir um meio
sorriso, um sorrisinho pacificado, um sorrisinho de efeito duradouro.))
(Chorar, acho também que nunca mais
chorei depois que ele passou a me escrever. Agora apenas lembro, divago e
emudeço. Mesmo quando me vem essa dorzinha em algum lugar de mim de agora ou de
mim de algum ponto no passado que me angustia quando me deito no escuro e fico
de olhos abertos sei lá quanto tempo. (Dia desses a luz do sol começou a
iluminar meu quarto e levei um susto me dando conta de que passara a noite
inteira simplesmente olhando o escuro.))
Mesmo assim as palavras do meu escritor
particular em geral mantêm meu sono através da noite. E sustentam minha ansiosa
vigília ao longo do dia.
(À noite mal aguento esperar o dia; de
dia mal suporto a demora da noite.)
Ele escreve palavras de significados
que nem me importo muito em apreender. Algumas, juro, nunca vi. Mas, depois que
as leio, não parece fazer diferença. Consultar um dicionário dificilmente me
ajudaria. Quando as leio tudo que me interessa é essa impressão de que
foram escritas só para mim. Acho que é por isso que fazem sentido mesmo soando
estranhas. Mais que tudo, aprendi a perceber que as palavras dele têm um ritmo.
É correr o olhar pelas linhas e sentir que meus olhos podiam sair dançando por
uma avenida inusitada, em cujo destino mal vejo a hora de chegar numa viagem
que espero nunca acabar. A princípio tudo parece desconhecido, só para no
segundo parágrafo as palavras que jamais li soarem familiares como minha língua
materna. No terceiro eis que deparo com a história da minha vida, a descrição
dos meus sentimentos, a explicação das minhas aflições.
Suas palavras, mesmo incapazes de
acrescentar um átimo de beleza verdadeira à esterilidade do meu mundo, ao menos
transfiguram a feiura que me cerca e disfarçam minha desesperança, e a cada
nova manhã por alguns minutos posso sonhar que sou capaz de renovar a vida (a
minha própria, a dos outros, a do mundo) e por esses minutos fugazes poder
acreditar que cada momento vale a pena ser vivido e cada mentira deve ser
desmascarada e cada falso enigma, desvendado do avesso.
As palavras dele são, sobretudo, capazes de quebrar este desencantado encanto que me emudece.
Elas vicejam num jardim, esperando que
ele comece a colheita. Não me iludo que as colha só para mim, mas elas mesmas
vêm me ensinando que meu velho sentimento de posse já não tem razão de ser. Sei
que ele é o escritor particular de todos que souberam permitir que fosse. E a
cada manhã aprendi a aguardar um buquê formado de verbos, substantivos,
adjetivos que, ao revelarem o perfume que ocultaram de mim até hoje, me deixam
enfim avistar o mar encapelado que se revolta dentro de mim ao invés de se
diluírem na atmosfera ao redor do meu planeta como ocorreu nos longos anos em
que me deixei trancafiar em um porão qual a donzela austríaca por décadas feita
amante prisioneira do próprio pai.
Depois que meu escritor particular
passou a me escrever, decidi que não preciso mais ter cuidado. Aprendi que já
não preciso duvidar do que vivi no passado, do que testemunhei contra minha
vontade, das garrafas de champanha e dos frascos de remédio que sempre se
quebram para virar navalhas.
Mas por que razão meu escritor
particular me escreve tanto afinal? você talvez queira saber.
A primeira vez também me encafifei. E
mal pude pregar os olhos aquela noite, me atormentando com a pergunta.
Por que, afinal?
Não tenho nada de especial. Não tenho
nem sequer uma beleza, um charme digno de nota. Nem uma inteligência notável.
Nem uma sensibilidade que chame a atenção dos outros.
E a angústia que não me deixou dormir
aquela noite foi em vão.
Na manhã seguinte meu escritor
particular respondeu a minha — e, imagino, a sua — pergunta assim sem mais nem
menos, como se uma voz divina lha tivesse sussurrado no ouvido.
E a resposta dele foi assim:
Há muitos, muitos anos venho coletando
palavras úteis e inúteis. Palavras que ato e desato, estilhaço e torno a juntar
com saliva, nostalgia e descaso, palavras que encontro e perco. Busco-as nos
dicionários e nas gramáticas e as amontoo dum jeito que é só meu e não sei se é
por isso que raramente façam sentido. Apenas formam um retrato incompleto do
que sou, do que vejo, do que espero, refletindo desordenadas o caos vespertino
em que me afogo.
Quase todas as manhãs me pergunto,
escrever para quê?
Se ninguém tenho a quem escrever?
Se escrever é uma das mais supérfluas
atividades humanas?
Se escrever para ninguém é o que me
cabe?
E mesmo assim vou escrever para você
enquanto meus dedos tiverem vida.
Qual é o inverso de celebridade?
Ciranda cirandinha vamos todos cirandar vamos dar a meia volta volta e meia vamos dar.
Não posso conceber que Shakespeare cantasse essa toada.
Montaigne. Camões. Racine. Musil. Os dadaístas, mon dieu!
Nenhum deles cantou, nenhum deles jamais canta?
Pra que fim Shakespeare escrevia afinal?
Seus estudiosos dizem que era pra faturar. Os comunistas fanáticos de hoje não acreditariam (se comunistas fanáticos ou moderados lessem Shakespeare).
Na época do bardo o papo era ganhar grana, ser bem-quisto do rei, manter uns canais influentes na trupe da realeza. Mais ou menos o que fazem hoje os espertos que descolam uma boquinha numa empresa pública qualquer.
Se tivesse os cem mil grandes escritores que já existiram até hoje na ponta do meu teclado, descarregaria a lista agora mesmo só pra dilatar as pupilas dos meus quase dois leitores (tá diminuindo a olhos vistos, hehehe).
Mas Montaigne, Camões, Racine e Musil servem muito bem de ilustração. Jesus, que é que fazia um gênio do século 15 ou 16 ou 17 escrever? De certo a publicação de 30 exemplares, típica da época, é que não era. Será que ao desenhar cada palavra com suas penas de ganso os rostos de seus possíveis leitores lhes passavam pela imaginação?
Será que, desinteressados do que e dos que lhes eram alheios, exóticos, escreviam simplesmente movidos pelo que guardavam dentro de si?
Não posso conceber que Shakespeare cantasse essa toada.
Montaigne. Camões. Racine. Musil. Os dadaístas, mon dieu!
Nenhum deles cantou, nenhum deles jamais canta?
Pra que fim Shakespeare escrevia afinal?
Seus estudiosos dizem que era pra faturar. Os comunistas fanáticos de hoje não acreditariam (se comunistas fanáticos ou moderados lessem Shakespeare).
Na época do bardo o papo era ganhar grana, ser bem-quisto do rei, manter uns canais influentes na trupe da realeza. Mais ou menos o que fazem hoje os espertos que descolam uma boquinha numa empresa pública qualquer.
Se tivesse os cem mil grandes escritores que já existiram até hoje na ponta do meu teclado, descarregaria a lista agora mesmo só pra dilatar as pupilas dos meus quase dois leitores (tá diminuindo a olhos vistos, hehehe).
Mas Montaigne, Camões, Racine e Musil servem muito bem de ilustração. Jesus, que é que fazia um gênio do século 15 ou 16 ou 17 escrever? De certo a publicação de 30 exemplares, típica da época, é que não era. Será que ao desenhar cada palavra com suas penas de ganso os rostos de seus possíveis leitores lhes passavam pela imaginação?
Será que, desinteressados do que e dos que lhes eram alheios, exóticos, escreviam simplesmente movidos pelo que guardavam dentro de si?
Perdoa eles, vai
Esta notícia saiu hoje na, onde
mais? Folha de SP.
Que nos meus tempos de moço
bem-intencionado se autodenominava e era tida por muitos por jornal para hoje
se tornar um imenso pastiche de bobagens às vezes entremeadas de notícias
anódinas e irrelevantes.
Pobres pósteros da espécie. Não
queria estar em sua pele deles. (Já estou, PQP.)
A foto mostra um, imagino, chiuaua
(ou será um rotweiler caído dum anel de Saturno?). Parece que no instantâneo o
bichinho tentava se esgueirar num angustiante e cataclísmico estado
intermediário entre o terror puro mas nada mero e uma nefasta abulia estóica.
Deve ser assim que se sentem os torturados das masmorras das nossas delegacias.
A entusiástica dona a segurar a
geringoncinha está participando dum concurso de fantasias caninas promovido
pela, pasme-se! Sociedade Protetora dos Animais das Filipinas.
Sociedade Protetora dos Animais das
Filipinas pontão de exclamação. Ainda bem que não sou (?) animal nem nasci por aquelas bandas.
No lugar desse coisinho canino ia preferir uma estadia no Instituto Royal. Quem
sabe dava a sorte de ser salvo em pessoa (ou em cão) pela Luísa Mel e à noite ela
me botava pra dormir na cama junto com ela? Até prometia conter minha linguona
atrevida.
Pauvres dogs. A raça humana vai passando
por um bruta dum processo de transformação cultural sob os acachapantes efeitos
da interconectividade a subverter a forma como nos relacionamos uns com os
outros, a nos abrir acesso total deste universo sinistro de estímulos
sensoriais que está nos empobrecendo intelectualmente, a nos empurrar
ardilosamente para um teatro macabro de narcisistas mórbidos que não se dão
conta de que vão se convertendo em patetas a marchar para a morte do espírito. Sem
falar dos sei lá quantos outros efeitos que só os nossos descendentes poderão
lamentar devidamente e amaldiçoar a bela herança que estamos lhes
deixando.
Quero aproveitar este
"espaço" e dizer ao meu tataraneto que bem que tentei, cara. Só que ninguém
me deu ouvidos. É que hoje em dia escutar os outros meio que saiu de moda,
sacumé? Ando achando que até os outros saíram de moda. Agora só existe o
"eu". Um euzão descomunal, do tamanho da internet, impossível de
medir e aquilatar, um euzão constituído de 7 bilhões de infinitesimais euzinhos
estilhaçados, cada qual se tapeando que é um eu normal e inteiro, poor little
guys. (Quer dizer, espero que meu tataraneto saiba ao menos ler. The way things
are going.)
Nossa tão frágil psique vai
deslizando solerte rumo a um desconhecido tenebroso, cercado de mistérios e
prováveis más surpresas, ao invés de evoluir para um estado simples de
bem-estar físico e mental e não um mundo atravancado até o teto de todos os
confortos tecnológicos (in)imagináveis. A tecnologia vai dando mostras seguras de
não ter limites. Cada dia mais tudo é frívolo e supérfluo e no processo nos força
a um abandono extremado e trágico de nossas raízes. Os gregos acreditavam que
seus destinos eram ditados pelos deuses e sua tragédia nascia da impossibilidade
de escapar deles e por isso os personagens de Eurípedes, Sófocles e Ésquilo
cometem atrocidades que são atrocidades apenas aos olhos dos homens, não de seus
deuses. Seria exagero fazer uma símile comparando que nossas estripulias neste
espantoso mundo novo da técnica podem nos levar a situações insuportáveis?
Chegará a hora em que daremos mais
importância a um cachorro que a um homem, uma mulher, uma criança?
If
your dad is rich take her out for a meal, if your dad is poor you just do what
you feel.
Todos os anjos são terríveis
Saí pelas ruas à tarde, deparei cum
anjo, peguei o anjo pelo braço, encostei o anjo contra um muro e interpelei Escuta, você é homem ou mulher, afinal?
Diga. Preciso saber.
Não me pergunte quantos escritores
me passaram pela cabeça assim que fiz a pergunta.
Duvido que o próprio Barthes
decifrasse esta.
Não
tenho sexo, ele/ela respondeu.
Não queira saber quantas
possibilidades de réplicas me passaram pela cabeça. Estamos na era em que José
Simão é um dos mais lidos na Folha de São Paulo, era em que alguém que atende
pelo nome de Fábio Porchat é a nova coqueluche nesta terra de neandertais.
Coqueluche?
É a voz de meu pai. De repente me
toco que me excedi. Lá vou eu de castigo de novo. Tomara que não me presenteie
cum cascudo no meio da orelha.
Sei que mereço, though. Coqueluche
em plena era internética? Perdi meus sais literários. Depois desta vou acabar
desenvolvendo uma tese acadêmica sobre National Kiddo, se é que ninguém já fez.
Volto ao presente, meu punho está
comprimindo a garganta do anjo.
Cadê
suas asas?
Não
tenho. Em compensação não faço cocô. E nasci na década de sessenta.
Sinto o coração desacelerar um tico.
Provavelmente não vou morrer nos próximos dez minutos. Nenhum grande alívio,
pesando tudo. (Por que não escrevemos tudo em inglês duma vez?)
Porque
vocês não são anjos, ora! – mata ele, mesmo sem ser perguntado
diretamente.
Fito seus olhos cuma intensidade de
que não me julgava capaz. (Por que não nos entregamos às telenovelas todos duma
vez por todas?)
Já
conhece a Igreja Universal do Reino de Deus? – quem me pega pela garganta
agora é ela/e.
Ato contínuo, me arrasta para atrás
do muro e me estupra. Puta merda, esses anjos são o diabo.
Aquele sou eu?
Se for me
amar, me ame sem ponto de exclamação. Me ame sem reticências. Sem ponto de
interrogação.
Era (mais ou menos) assim o bilhete que um dia
deixei para Sílvia na mesa da cozinha, do lado da fruteira vazia.
Se num dia ensandecido qualquer decidisse fazer
um letreiro em neon, seria esta a epígrafe.
Tinha no momento Trains and boats and planes dos Box Tops na cabeça que viajava em
todas as direções e estava alucinada de dor e autocomiseração e me fazia me sentir
o sujeito mais sozinho desta parte debaixo da Via Láctea.
Mas não a ponto do choro.
Não choro.
Não sei chorar.
Nunca chorei em minha vida.
Um dia fui num médico crente de que estava
enfartando, doutor, esse baita peso no peito, só pode ser veia entupida,
quantos dias me restam de vida? ele me olhou me achando um pateta e riu, é
choro represado, meu amigo. Bota a boca no mundo, que passa.
O insight foi poderoso.
Desatei em lágrimas (fiozinhos abundantes como
se um dique tivesse rebentado dentro de mim).
Não liguei a mínima por fazer papel tão ridículo
na frente dum estranho.
Saí ensimesmado do consultório, só pode, nunca
chorei, nunca chorei na infância, nunca chorei na adolescência, sou um cara estóico,
quem me lê neste blog de certo me acha um choramingão de marca maior.
Mas, posso assegurar, é charme, é dramatização,
o que enceno não está no gibi, preciso atualizar minhas expressões idiomáticas,
o pendor pelo drama é mal de família, mamãe era a drama queen do bairro, meus
tios representavam canastrões da vida real, é por que isso que cresci dizendo
que sou um mau ator no meu próprio papel.
Ninguém despontou para o teatro na família.
Talvez aí mesmo esteja o motivo, será o ator,
não importa se bom ou ruim, um sujeito que vive a vida real com os pés no chão,
reservando seus dotes para extravasá-los em toda sua potencialidade no palco,
perito na arte de separar a realidade e o palco? No mesmo raciocínio, será que
um sujeito que carrega de negras tintas as situações vividas no dia a dia um
inapto para o mundo da simulação artística? (E olha que ainda nem toquei na
tragicomédia.)
Minha era das minhas grandes navegações
(que
bode
ser
obri
gado
a usar
as mes
mas pal
avras
que
você)
Estou feliz como há tantos séculos não me sentia
E por isso
Acabo de fazer uma descoberta
Um dia
(Sei que era um dia
dos dias que me
couberam, aqueles
a que nunca
presto atenção)
Meus diamantes se
expuseram ante
meus olhos,
ilustração
do Reader's
Digest, cercado
da trupe de pi-
ratas do Barba
Azul
Lá estavam, como
sempre estiveram,
a jazer sob meu
tesouro
bode
ser
obri
gado
a usar
as mes
mas pal
avras
que
você)
Estou feliz como há tantos séculos não me sentia
E por isso
Acabo de fazer uma descoberta
Um dia
(Sei que era um dia
dos dias que me
couberam, aqueles
a que nunca
presto atenção)
Meus diamantes se
expuseram ante
meus olhos,
ilustração
do Reader's
Digest, cercado
da trupe de pi-
ratas do Barba
Azul
Lá estavam, como
sempre estiveram,
a jazer sob meu
tesouro
Imenso baú vazio
Quase noite
De repente
Me lembro
Que à tarde
Saí a navegar
Da única forma que sei navegar
Munido de melancolia e ânsia de utopia e
Náusea de horizontes.
Estive na Europa, visitei alguns pensadores e poetas alemães com quem há tempos mantenho certa familiaridade e, já que estava por aqueles lados, aproveitei para deixar lembranças a Nerval, Rimbaud, Verlaine, Lorca, Bécquer, Carducci e Pavese.
No silêncio
Da tardezinha
Que morre
Sua morte
Feliz de
Precoce
Se fazem
Escutar rumores
Num idioma
Conhecido
Sei que falam a meu respeito e não me entristeço. Usam o mesmo mecanismo dos mil clones do planeta Terra a orbitar para além da galáxia de Andrômeda. Se em cada um deles houver neste exato instante um sujeito pensando que penso nele neste exato instante, torço para que em seu planeta as tardes não morram tão tristemente quanto morrem as minhas tardes.
Passo os dias a navegar
sem querer partir
nem querer chegar
sem querer ir
nem querer voltar.
Que destino me resta
que o fundo do Mar?
De repente
Me lembro
Que à tarde
Saí a navegar
Da única forma que sei navegar
Munido de melancolia e ânsia de utopia e
Náusea de horizontes.
Estive na Europa, visitei alguns pensadores e poetas alemães com quem há tempos mantenho certa familiaridade e, já que estava por aqueles lados, aproveitei para deixar lembranças a Nerval, Rimbaud, Verlaine, Lorca, Bécquer, Carducci e Pavese.
No silêncio
Da tardezinha
Que morre
Sua morte
Feliz de
Precoce
Se fazem
Escutar rumores
Num idioma
Conhecido
Sei que falam a meu respeito e não me entristeço. Usam o mesmo mecanismo dos mil clones do planeta Terra a orbitar para além da galáxia de Andrômeda. Se em cada um deles houver neste exato instante um sujeito pensando que penso nele neste exato instante, torço para que em seu planeta as tardes não morram tão tristemente quanto morrem as minhas tardes.
Passo os dias a navegar
sem querer partir
nem querer chegar
sem querer ir
nem querer voltar.
Que destino me resta
que o fundo do Mar?
Fui mau. Foi mal
Fiquei chateado.
Pessoas se sentiram atingidas pela
virulência com que tratei as redes sociais em algumas postagens recentes. Será que
algumas pensaram que estava me dirigindo a elas?
Não é verdade.
Se alguém feri peço desculpas com
toda a sinceridade de que sou capaz. (E sou, como poucos que vi ou conheci.
Nunca me desculpo hipocritamente.)
Não tive a intenção, mesmo sendo ferino, quase
sempre. (Podem ser resquícios das fugas dos jabutis na selva do antigo Congo, onde
seis milhões de conguenses se trucidaram nos últimos anos sob o olhar de
paisagem de facebookistas e outras tribos e os honoráveis líderes políticos mundiais
da nossa avançada civilização.)
Não foi por querer. Foi a lição que
me ensinaram. Que fiz o que pude para não aprender. Nunca briguei pelo que
julgava ser meu de direito, nunca tentei defender meu próprio nome. Há tantos
anos depus minha lança. Embaralhei minhas noções dos pontos cardeais. Faz
diferença? No tribunal das paixões em que existo do primeiro segundo do dia ao
último segundo da noite e cujas sentenças nunca são frívolas e cujas penas jamais
vencem...
...não.
Não quis ser pessoal. Sempre tento
evitar ser, se envolvendo terceiros. Não me atrevo a outra pessoalidade que a
de tratar das minhas coisas e do meu mundo o mais pessoalmente que puder — falando
do que aparentemente está distante do único assunto que me interessa: eu e
minhas encucações abarrotadas das docemente terríveis circularidades que herdei
de meus pais e dos meus concidadãos e dos homens e das mulheres que vieram
antes de mim. Sou um cara barroco. Quando me rendo a Bach, rococó.
Posso ter errado em certas
generalizações mas não meti o pé na jaca ao descer a borduna no face e na
orkut. Não meti. Olha que fui comedido. Você sabe que fui. Sempre que dou por
terminada a escrita de cada postagem, estou ainda insatisfeito, como estou a
cada segundo da jornada, insatisfeito como quando vim a este mundo eternamente
inóspito para os meus tentáculos de luz flambada em manteiga de fada. Vivo sob
a égide do osso entalado na garganta. Uma das minhas incontáveis
circularidades. Não há nada que possa fazer, creia.
Meu escrever não desata, minhas
palavras me põem em suspenso aguardando a sangria que se um dia de fato vier me
levará junto. (Ah como espero!) Teclo o ponto final e aperto as pálpebras e
mordo os lábios torcendo que teclar o ponto final seja meu último ato neste
milênio. O que restou não dito vai circular dias — se afortunado como o
Afortunato de Poe, mas não; quase sempre é tormenta de semanas, meses, anos — a
ricochetear nas interparedes úmidas e frias recobertas de limo pobremente metafísico
exigindo que ao menos tente vencer esta pantagruélica preguiça que ganhei na
rifa da existência e que me obriga à escrita estertórica do permanente desaluno
que me resignei a ser na desescola que me obrigaram a desfrequentar para ver se
desaprendo as lições de que tenho asco. Quando finalmente decidirem se debruçar
sobre esta medonha era em que vamos nos deixando apanhar tolamente na rede, os
historiadores literários do século trinta e cinco receberão dos grupos de
células quânticas de seus ultraIpads o veredito escalar de que fomos blogueiros
dum tema só e que noventa e nove por cento de todos nós geniais ou
espasmódicos, medíocres ou argutos, humanistas ou comunistas, nada mais fazemos
que nos debater no ponto mais remoto da superfície lisa deste oceano
impenetrável, indecisos se podemos criar asas e tentar voar rumo às nuvens
poluídas e destituídas de substância ou deixar crescer sob os braços barbatanas
que nos levem inelutavelmente para esse patético fundo destituído de
profundidade.
Esta literatura confessional que vou
exudando neste blog me é dolorosamente desalentadora, óbvio. Dia após dia leio
o que escrevo e digo a mim mesmo que preciso achar uma saída. Um dos meus poucos
consolos é pensar que Proust dedicou trinta anos de sua vida à fabulosa Recherche para falar de sua mãe da primeira à
última linha e, portanto, acho que tenho o direito de confessar sobre meus
queridos fantasmas, quando mais não seja para lhes atribuir toda a culpa de ser
o que sou, o único porém permanecendo serem tão escorregadios quanto os réus do
Mensalão, com nenhum STF poderoso o bastante para conduzir as garras da justiça
às gargantas dos miseráveis.
Manter este blog é uma das retrorreferidas
encucações, que resistem circularmente irresolvidas. Manter este blog é uma penitência.
Antes de começar não fazia ideia de como podia ser complicado. Antigamente levava
minhas maltraçadas sem maiores pretensões e nenhuma preocupação com público e
opinião de quem quer que fosse. Não mudou muito, posso garantir. Ainda escrevo
exclusivamente para mim mesmo, embora tenha de confessar que não seja mais independente
como nos meus tempos áureos da máquina elétrica precariamente equilibrada numa
mesinha rastaquera nos fundos da garagem da minha antiga casa. Contra a
vontade, acabei contaminado pela síndrome do ibope — não resisto a conferir
diariamente meu índice de audiência no Google Analytics. Nada que, repito,
interfira decisivamente no que escrevo e na forma como escrevo. Pelo que leio
por aí às vezes, esta é uma diferença substancial com relação à maioria dos
blogueiros. Sei que vai soar chato mais uma vez, mas poucos deles são
escritores ou poetas. Em geral se limitam a duplicar o comportamento que têm
nas redes sociais, escrevendo não para fazer literatura ou poesia e sim para incrementar
as estatísticas de seus blogs e arrancar comentários esperançosamente elogiosos
da patota. É o que são — patotas. Se
disseminaram e se disseminam viralmente pela internet incontáveis panelinhas em
que os chegados praticam religiosamente o princípio do uma-mão-lava-a-outra. Você
lê o meu, eu leio o seu. Se comentar uma postagem minha, comento uma sua. Se me
visitar, te visito. Senão, você é um antipático.
Posso estar pegando pesado mas em
minha humilde opinião não deviam se declarar escritores ou poetas e sim
relações públicas. É o que são. Os inventores das redes sociais criam o que
chamam velhacamente de “recursos” ou, pior, “ferramentas”, e os usuários os engolem
e adotam sem se perguntar se estão servindo a si mesmos ou servindo escravocratamente
aos novos nababos do universo digital. (Que dois, três bilhões de seres humanos
possam estar neste exato instante entregues aos caprichos do facebook me faz
tremer de angústia e náusea. É um poder inconcebível nas mãos de meia dúzia de “celebridades”
ou sei lá que nome dar a esses novos super-homens senhores de todos os destinos.
Me deixa boquiaberto ver que nenhum grande pensador ou grande escritor erga a
voz para denunciar condignamente a última distopia.)
Sempre que meus tormentos de
escritor atingem este beco sem saída assoberbante costumo recorrer a Rilke.
Duvido que fosse capaz de escapar sem essa ajuda. Entre os vários comentários que
faz ao seu missivista Kappus em Cartas a
um jovem poeta, Rilke diz que “Obras
de arte são de infinita solidão”. É um dos meus livros de cabeceira, com
perdão da cafonice surrada. Que todos os que se pretendem artistas também
deviam ter à mão mesmo enquanto navegam as indomáveis ondas do face.
E em nenhum momento chega Rilke a dar
um conselho direto e concreto a Kappus, que é na verdade o que ele, jovem
poeta, deseja e espera. E quando insiste, praticamente implorando que o mestre dirima
por ele as atrozes dúvidas quanto a
como ser poeta, Rilke lhe apresenta uma resposta que, imagino, lhe deve ter
causado profunda decepção: “Investigue o
motivo que o manda escrever;(...) confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse
vedado escrever? Acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de
sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’”
Eu faria a mesma pergunta aos
milhões de blogueiros que tão pressurosa e pretensiosamente vão entulhando seus
cantinhos literários duma infinidade de escritos e poemas: você é mesmo forçado
a escrever?
E penso que eu mesmo posso engatar a
resposta pela maioria dos blogueiros com veleidades literárias: não, vocês não
são forçados a escrever. Não morreriam se deixassem de escrever.
E como posso correr tamanho risco de
fazer papel frívolo? É assistir dia a dia o terrível morticínio de blogs rede
afora. Eram blogueiros que, se imaginando poetas, de repente sacaram que
ninguém se dava o trabalho de ler sua “obra” e foram cuidar da vida. Trataram
de arrumar brincadeira mais “gratificante”, com perdão de mais um termo cafona.
Provavelmente retornaram ao consultório do conselheiro pedagógico para retomar
a busca por sua “verdadeira” vocação. Provavelmente se abandonaram aos doces prazeres
do face. Pra que sofrer se podemos curtir e ser curtidos sem maiores
implicações metafísicas?
Finalizando a interferência de Rilke,
esta é a enésima vez que escrevo uma postagem mencionando esse livro e
repetindo essas citações. É claro que sei que nunca ninguém vai notar. É uma
das vantagens dum blog. Você pode engendrar o maior poema de toda a história
humana e amanhã seus belos versos terão virado lixo cibernético.
Quanto a este blog particularmente, tão
cedo não fará companhia aos bilhões de outros abortos poéticos depositados na
lixeira da internet. Não sei se morreria se não pudesse mais escrever. Mas
posso garantir que escrevo porque preciso, não para ver subir os números do
registro de visitantes das minhas páginas.
Tenho por exercício diário
desenvolver uma casca que me deixe mais ou menos infenso ao fato de ser ou não
ser lido. Me permito no máximo aproveitar e fazer uma pausa no eco torrencial
que meus fantasmas emanam diuturnamente contra meu frágil cérebro e puxar a
ponta da meada tentando confeccionar mais uma das minhas intrigantes pérolas
blogais. (O Google está denunciando "blogais" como erro. Estão vendo
a que me refiro?)
Há algo doentiamente errado na
interconectividade obsessiva das redes sociais. Não vou chover no molhado, repetir
tudo que já disse a respeito, mas nos últimos tempos simplesmente não
conseguia sufocar em minha imaginação a parábola dum rebanho de gado quando
entrava no face, a interxeretagem com que todos vasculham as vidas de todos, a
vil mendicância por um Curtir, a necessidade palpável, que crescia a olhos
vistos a cada nova visita, de todos em participar aos demais atos e fatos insignificantes
de seu cotidiano, a forma como esse participismo infernal vai deturpando o
senso de todo mundo sobre o que é de fato importante, a forma como todos de
repente viraram junkies digitais e, como todo viciado, não querem ouvir falar
em “reabilitação”, conectados a suas telinhas na noite, no banheiro, no metrô,
na escola e no bingo.
Quem me abandonou nos últimos dias exatamente?
Não sei. Mas pude perceber, pelo timing
das minhas postagens, que foram pessoas que me liam há tempos. Sinceramente de
novo, sinto. Apesar de soar tão estranho lamentar pelo que desconheço feito por
quem não conheço. Alguém se afastou de fato? Ou é minha irredutível paranoia
mais uma vez dando o ar de sua graça? Eis o que me importa: ter, mais uma vez, perambulado
por tantos meandros deste meu labirinto só para chegar aonde sabia que chegaria
desde o começo: eu mesmo. Virei expert em me perder para me encontrar. Soa tão
refrescantemente teen, não soa? Tenho
mesmo essa capacidade de brincar com minhas idades. A você que não a tem posso
assegurar que é uma gostosura.
Você sempre pode sacar do bolso
direito das calças a desculpa de que tudo se desculpa à literatura
confessional. Vamos nos tornando mais e mais órfãos a cada nova rede social que
os marks z. inventam por aí.
Pode ser que seja um erro ser como
sou. Podia simplesmente ter feito um blog de poesia como até os grandes poetas
têm hoje em dia. Mas, eles, fantasmas meus, são irresistíveis. Enquanto me
distraírem, vou obedecendo. Você diria que sou culpado? Diria. E eu responderia
que não tenho culpa? Não, responderia.
Sou minha única curtição. Dispenso
botõezinhos manjados cujos desígnios desconheço. Chegou a hora de mais uma pausa
de refill, acompanhada dum movimento qualquer duma sonata qualquer de Ludwig;
não percam na próxima postagem por que acho que Ibsen devia ser obrigatório em
nossas escolas.
E lá se vai mais uma postagem para o
olvido eterno. Já pararam pra pensar no mundo de textos que a humanidade terá
gerado daqui a cinquenta anos? Uau! Eu não, porque é impensável. Evito pensar
no que não pode ser pensado. Pra que perder tempo com besteiras?
Love me
Você vai morrer aos
Cento e quinze
Numa UTI
Eu vou morrer
Aos sessenta
Empunhando um
Copo de vodka
Desaforadamente
Gelada
Cento e quinze
Numa UTI
Eu vou morrer
Aos sessenta
Empunhando um
Copo de vodka
Desaforadamente
Gelada
Enquanto não me interrompem
Vivi até outro dia na
mesma casa em que nasci.
Nasci na mesma casa em
que vivi até outro dia.
Tudo pode permanecer em harmonia, basta querer.
Sabe o que mais gosto
na minha vida?
De fazer massa.
Massa de torta de
frango. Massa de pão. Massa do que quer que seja de que é feito o núcleo da
Terra e o italiano âmago de mim.
Se é que tenho um. No
mais das vezes duvido. Olho os outros, ninguém tem. Por que eu teria?
Ninguém? Tem certeza?
E se pelo menos esta noite você fizesse um esforço para conter esse irracionalismo
exacerbado e tentasse enxergar o que REALMENTE acontece aí dentro?
Posso fazer. Mas antes
me diga: cadê as pessoas com âmago? Não as vejo. Nunca as vi. Quer dizer, fora do
livros. Mas até hoje não me adiantou muito identificar o âmago de Kafka, o
âmago de Joyce Carol ou o de Aristóteles. Décadas, tantas décadas os lendo só
pra dar de ombros e estremecer com a ideia de que em nada me ajudariam quando
eu mergulhasse até o fundo do lago.
MEU lago.
Preciso de alívio.
São toneladas de água
sobre minha cabeça.
Bilhões de homens em
meu passado que é tão breve que sequer posso dizer que é meu.
Por que os trilhões de
estrelas na abóbada do universo me fazem sombra se não sabem quem sou?
Ontem fui na minha
dentista que se chama Elizabete e na recepção peguei uma Caras.
Abri.
Então me dei conta de
que tinha me sentado num trono. E os dedos da minha mão direita empunhavam um
cetro. E reinei, reinei, reinei.
Por intermináveis
quinze segundos.
E tudo relampejou numa
cegante obviedade. Nós fanáticos dos tijolinhos empilhados em equilíbrio, da
UTI higienizada a zero bactérias por milímetro cúbico somos racionais fingidos.
Por uma eternidade
minha imagem no espelho se veste de negro, a nuvem no céu com o formato do meu
rosto se borra de ruge, traduções interplanetárias eletrificam minha língua, posso
compreender aquele judeu megalomaníaco que há tanto tempo tem debochado de mim
em meus pesadelos, me olho no espelho com vestido de domingo de minha mãe, o
terno de casamento e enterro de meu pai, estico o braço para a amoreira
envergada sob o peso das amoras maduras que tingem meus dedos da cor do sangue
dum moleque imberbe que apenas uma vez sonhou ser poeta e nunca mais esqueceu.
Há quatro décadas minha
irmã tinha uma gata chamada Frederica que deu cria debaixo da minha cama
durante a madrugada. Acordei com o calor da prenha ao meu lado na cama e a
enxotei cum safanão. Voltei a dormir instaneamente, só de manhã me dei conta. Hoje
estou pasmo com minha “insensibilidade”. Mas que insensibilidade é essa? A dum
adolescente que apenas pensava ter direito ao sono dos justos? Tantas vezes naquela
época os velhos me obrigaram a escutar seus sermões sobre como o mundo é
pequeno, sobre como tudo que sobe, desce, sobre este mundo que dá voltas. Agora
estou do outro lado e posso asseverar: o mundo vai ficando cada vez maior e
assustador e incompreensível e a prudência e a cautela que ao longo de toda
minha vida pude detectar nos velhos hoje se revela apenas a covardia dos
eternos covardes.
Há covardes velhos,
covardes novos, covardes bebês, covardes adolescentes, covardes que tentam
esconder sua covardia num BMW de mil cavalos, covardes que procriam para não se
sentir covardes, covardes que se prostituem contando que amanhã cedo quem se confesse
prostituído seja o outro.
Nauseabunda apelação
Vou pedir desculpas pelo que escrevo
pela primeira vez em minhas 21.492 noites de celebração pagã.
Nem unzinho pedi em nenhuma delas?
Pedi.
Sou escritor mas sincero. E, se
pedi, foi sob a tortura do olhar inquisidor com que alguém com quem deparei na rua fuzilou o meu por uns instantes – tortura tolerável por ainda não haver naqueles
tempos as malditas, as inescapáveis testemunhas que nos infernizam dia e noite
hoje em dia.
Eis que mais uma noitinha vem recobrindo
meu horizonte invisível com seu véu encardido quando me ocorre, vou escrever
sobre escrever. (Gostava tanto que alguém me sugerisse um sinônimo para
"escrever" como substantivo que não "escritura", que sempre
que uso me obriga a pensar que não sou coveiro. (Meu primeiro professor de redação, José Carlos, professava que quem repete muitos "quês" escreve mal.))
Então lembrei que já escrevi tudo
que queria — e, principalmente, não queria —, sobre escrever. E tive a hílare
ideia de vir aqui fora brincar na internet enquanto pensamentos mais
consubstanciados não davam o ar da graça em meu cérebro.
A primeira vez que cometi a
insanidade de usar “consubstanciados” foi numa prova para o professor jota jota
de moraes no colegial nos idos dos setenta e alguma coisa. Amei. Ele nem tanto.
Um dia escrevi a respeito. Como mencionei na ocasião, o professor sofria de
gota e gota é inequívoco indício de somatização de raiva contida.
(Pena que o google ainda não sabe
botar um hiperlink automaticamente em nosso texto quando a memória se derrama sobre
a consciência.)
Na época jay-jay fazia parte da
turma de idólatras dos concreteiros Fields bros in the loose. Hoje a fraude
literária do concretismo me parece devidamente putrefata, embora ainda não
suficientemente inumada. (Um dia fiz uma apresentação concretista para a
esforçada Beth Brait idem ibidem. Sou
franco quando afirmo que temi que ela sofresse um orgasmo literário diante da
classe.) Lamento pacas não ter paciência para obrar um epitáfio da obra dos
brothers comme il fault, detonando desde o pedantismo bacharelesco, passando
pela puerilidade pretensiosa do concretismo, até o narcisismo com que ambos
sempre davam um jeito de se colocar na ribalta enquanto fingiam discorrer sobre
terceiros. Seja como for, Ferreira Gullar, ainda vivo e sempre um dos grandes,
já colocou os devidos pingos. Embusteiros como Umberto Eco, erudito, sim, mas
não criador, e pen pal de Haroldo de Campos quando vivia (?), também parecem
estar retornando ao seu buraco no limbo. A praga é que as fraudes levam tantas
décadas para acabar desmascaradas. Pena que no momento não me ocorra um dito
definitivo sobre a cura que o remédio tempo opera nas hesitações humanas.
Estava pensando em escrever sobre
escrever, já disse. Todos os escritores que têm vergonha na cara escrevem e escreveram
sobre o que é escrever. Me parece ser uma das poucas profissões em que você
pode abusar da metalinguística sem quebrar a cara além do recuperável. Um carpinteiro
de Luis XV podia modelar um birô que versasse mais sobre si mesmo que sobre o
rei ou o reinado do rei. Aonde esse coitado, o birô, poderia chegar? Não além duma
daquelas inúmeras salas atulhadas de velharias no Louvre.
(Lembrete para mim mesmo: qualquer dia quero retomar um dos meus
temas prediletos, a obsolescência dos museus e seu insuportável fedor de mofo
que tem atravancado o avanço da arte e da história e mesmo da existência da
arte. A raça dos bambas das bolsas de valores não sofrerá sequer um arranhão enquanto
não botarmos fogo nesses depósitos de relíquias inúteis. Mas por que me limitar
aos museus? Um museu é apenas um dos casos mais mórbidos da infâmia perpetrada
sem parar pelos mandachuvas da espécie, elite social e financeira formada de
alguns poucos milhares de eleitos que domina à perfeição a ciência da dominação
do populacho. Then again, a bagaceira cultural se sente bem assim e se
encarrega de brecar qualquer mudança pra valer. Falar deste assunto me deixa
instantaneamente exausto. Como dói chover no molhado. Que mais poderia
acrescentar sobre uma gente que se presta a adorar uma tela de Picasso
pendurada numa parede?)
Zanzando pela rede enquanto pensava
sobre o que escrever sobre escrever, dei cuma citação de Marguerite Duras: “Escrever vem igual ao vento. Pelada, feita
de tinta, a coisa escrita passa como nenhuma outra coisa passa na vida, nada
mais, fora a vida em si” (aproveitei e dei uma arrumada no original. La
petite Margarida não bufaria, bien sûr).
Na hora fiquei quase surpreso mas,
óbvio, a surpresa se desfez num segundo. Trivialidades bastam as minhas. E nos
últimos tempos venho me esforçando para evitar usar “vida”, não com grande êxito, admito. Não preciso explicar por que,
espero. E “igual ao vento” não tem
jeito, fiquei sem opção depois de passar a infância inteira sendo acusado de “viver de brisa” por minha própria mãe.
Cresci e decidi apelar ao álcool, tão volátil quanto mas passível de se
armazenar num frasco de vidro.
Precisava de mais.
Continuei procurando, até que
encontrei uma definição de Hemingway. Aqui não posso me permitir à ligeireza. Hemingway
é não só um dos melhores escritores da história como ainda fez da própria biografia
um romance e vice-versa. É um dos raríssimos incontroversos, apesar de alguns eternos
espíritos-de-porco que tentam aparecer às custas dele. Estou há semanas lendo Ensaios reunidos, de Otto Maria
Carpeaux, de quem precisarei de pelo menos um ano para formar uma opinião que
me satisfaça. Alguns vereditos de Carpeaux me deixam com o pé atrás. A bordoada
que desferiu em Huxley, por exemplo, achei merecida (e passei a adotar para uso
próprio). E não se cansa de enaltecer Hemingway. Mas, e franzi o cenho ao ler,
decreta que Fitzgerald é “falsamente sofisticado”. Bem, estou apenas no começo.
Em breve saberei onde Otto canta. E sempre
fico meio confuso quando chamam um grande escritor de sofisticado – ou não.
“Escrever,
quando muito, é uma vida solitária. Clubes de escritores amenizam a solidão do
escritor, mas duvido que melhoram sua escrita. Ele cresce em estatura pública à
medida que atenua sua solidão, mas sua obra em geral se deteriora. Pois faz seu
trabalho sozinho e, se for um escritor relativamente bom, precisará confrontar
a eternidade ou a falta dela, dia após dia”. Eis a definição de Ernest
Hemingway.
Surpreendentemente prolixo em se
tratando dele. Revelador, todavia. Um baita escritor preocupado em demonstrar
seu real valor a seus pares (é patente em Paris
é uma festa que ele media forças com Fitzgerald, que então não tomaria
conhecimento de Carpeaux) e a todos os homens e mulheres capazes de
reconhecê-lo. “Confrontar a eternidade ou
a falta dela” expõe um dos grandes motivos que levavam Hemingway a
escrever. Sem querer me equiparar mas peço vênia para registrar que para mim a
eternidade é literalmente impensável. Aspiração própria de gênios e talentos
extraordinários. Minha única veleidade, se tanto, é aspirar ao instante
presente. O que em geral paira muito acima da minha habilidade para a
autoabstração. Nunca fui muito afim com o tempo. Duvido mesmo que percebesse se
ele um dia parasse.
Que inominável vergonha colher
pérolas de páginas de citações na internet. O pior é que são milhares de
pretensos poetas se autoimitando na esperança dum laivo de originalidade e, a
partir daí, quem sabe, um poro de luz que possa distinguir suas pequenas existências
infelizes das bilhões de outras tão medíocres quanto.
“Preciso
da solidão para escrever. Não qual um ermitão, não seria suficiente, mas como
um homem morto”.
Essa citação não bastará, estou
ciente, para minha pequena existência infeliz levitar um pouco que seja acima
da infeliz existência pequena do meu vizinho ou dos tantos com quem fui
obrigado a competir na infância por um poro de luz que, sabia então, era minha
única esperança.
“Você
não precisa sair. Fique sentado à mesa e escute. Sequer escute, meramente
espere, em silêncio, imóvel, solitário. O mundo se oferecerá livremente a você, desmascarado, ele, mundo, não tem opção, rolará, extático, aos seus pés”.
Todos os homens e mulheres do mundo
têm o direito de ser os frívolos que são. E, Jesus amado, esta é a era da falsa
noção da liberdade irrestrita. Os pirralhos já não nascem crentes de que a
internet e a conectividade permanente existe desde sempre? Não obstante os
preceitos do cristianismo, ninguém chega culpado de antemão.
Que esperar de quem vai ao cinema ver
um festival de filmes “de arte” voltando para casa com o rei na barriga, se
achando em dia com sua necessidade de “arte”, proclamando pelos cotovelos sua
distinção nobiliárquica perante a manada que não sabe apreciar Godard,
desconhecendo que apenas cumpriu seu papelzinho de consumidor da indústria
cultural?
Nada.
Estou decepcionado?
Um pouco.
Minto.
Insuportavelmente.
Minha solução (ao menos até amanhã
cedo):
“O
significado da vida é que ela para”.
Meu museu na negridão da noite
É preciso ter ouvido.
É preciso arfar pausadamente.
Estava aqui pensando, e se fizesse um poema mesmo
me sentindo tão mal quanto me sinto agora?
Tenho medo de versejar quando não estou bem. (Mas
como quase nunca estou bem...)
Ou melhor, tenho medo de escrever o que quer que
seja. Às vezes minha mão treme só de pegar uma caneta para anotar um recado ao
telefone.
Tenho medo de anotar recados ao telefone. Medo de
falar ao telefone. Medo do telefone. Olho essa negra caixinha de surpresas e
cismo. Alguém pode me ligar. Tenho medo de que alguém possa me ligar. Só me
ligam os enganos. Meu número está errado.
Tenho medo de versejar quando me sinto errado. E
como me sinto errado a maior parte do tempo...
Décadas atrás gostava de pensar que melhor seria
minha poesia quanto pior me sentisse. Você tem razão — é uma concepção
lamentavelmente romântica da poesia — e errada.
Levei longo tempo para descobrir que funciona ao
contrário. E como estou ao contrário quase todo instante...
Fiz outra grande descoberta: o pior momento de
tentar fazer um poema é exatamente quando você tá a fim de falar de poesia, não de fazer. Você adivinhou: mais ou menos como o sexo. Descobri que gosto mais,
muito mais de falar que de fazer. Mais: descobri que quase sempre fui assim,
mesmo quando achava que fazer sexo era um grande barato.
Sim, você acertou outra vez — é o fenomenal poder
da palavra. A falada é a mais poderosa. Mas como não tenho com quem falar...
só me resta me contentar com a escrita.
Isso tudo é muito complicado. (Gosto desta palavra,
complicação. É uma das poucas do vernáculo que sintetizam uma grande parte da
vida sozinhas, sem necessitar de introduções, viagens, adjetivos, apêndices.)
Ao abrir este parágrafo precisamente, me ocorreu
que uma continuação apropriada ao anterior seria aduzir "e simples ao
mesmo tempo". E aqui você estaria mais uma vez com a razão — ficaria
decepcionantemente mecânico.
Tenho medo do mecânico, tenho medo da mecânica.
(Hmmm, que delícia de trocadilhos essa brincadeira daria. Por que afinal poetas
e escritores tanto temem essas delícias? Acertou: morremos de medo dos
críticos, mesmo quando os críticos não entendem lhufas nem poesia nem de
literatura. Sim: a maioria dos casos.)
Sei que o que vou dizer é claro como luzinha de
caneta de oftalmologista. Mas vou dizer mesmo assim. O assassino da palavra é exatamente ele: o mecânico. É ele quem chega solerte pelas nossas costas e, sem que nos
demos conta, nos obriga a proclamar que o problema da rosa é o espinho. Debaixo
desse defunto sempre jaz uma fonte incalculável de clichês.
Versejar ou escrever literariamente não requer
estar mal ou bem. E ficar longe do mecânico pode ser desejável mas não é tão
vital quanto pregam certos críticos que não resistem ao emprego de alguns clichês
em suas arengas.
Houve uma época em que escrevi muito a respeito, me
lembro bem agora. Vira e mexe anunciava ao mundo que versejar ou escrever
literariamente exige antes de tudo honestidade.
Isso também é muito complicado. Assim como a
necessidade de comunicação nos leva a apelar quase inconscientemente ao
mecânico, as injunções da vida diária nos forçam a driblar a franqueza no duro
embate com nossos inimigos. (Pois é, somos, quase todos, cercados de inimigos.
Se reais ou imaginários, não vem ao caso. São inimigos all the same.)
É por isso que hoje digo, para ser poeta você
precisa ter ouvido. Você precisa aprender a arfar pausadamente.
A escutar, acima do vozerio espalhafatoso,
fogueteiro, dos eternos festeiros, as verdades que seu coração sopra em
cochichos fantasticamente baixos. A saber como escutar o silêncio que, no dizer
de Braque, é l'art d'exprimer l'invisible par le visible.
Não é tão complicado quanto parece. Basta sempre
ter em mente que cada um de nós é especial e cada poeta, especialíssimo. Apesar
do que advertem os psicanalistas.
Assinar:
Postagens (Atom)