A resposta de deus

No segundo ano da faculdade, mais ou menos oito anos antes, ou três depois, Naiana já pressentia um esquisito quê no movimento conhecido como pós-feminismo. Era incapaz de fugir à desconfiança de que havia algo errado com algumas de suas colegas. Deixara o emprego no hospital da Vila, doara todos os CDs do Nirvana e do Taiguara, dera um pé em V., uma mineira que vinha namorando havia seis meses, demasiado subssexualizada para seu gosto, e passara a se dedicar integralmente ao novo trabalho como garçonete do KingBurger na Vila Nova Cachoeirinha.
Irineu era um sujeito entre a casa dos vinte e o sobrado dos trinta – desses camaradas mais ou menos singulares que não se pode chamar de rapaz por já estar demasiadamente maduro, nem de homem, por ainda guardar uns traços gaiatos. Daí que todos os que não o conheciam pelo nome pensavam nele simplesmente como sujeito. E nas raras vezes em que se achavam no direito ou na obrigação de se dirigir a ele, o chamavam de chefe, capitão, amigo, companheiro, mestre e/ou mermão.
Jorge Manuel acaba de chegar das férias. Saiu em meado de abril e está voltando, voltando em plena sexta-feira. Queria ter ido pro Rio, claro, mas Isileine preferiu Campos do Jordão. E fim de papo. Para Jorge Manuel não é tão importante fazer valer a palavra do homem no relacionamento a dois. Por ser um sujeito sensato, sempre deixa que Isileine tome as decisões. Se para ela faz diferença, tudo bem. E para Jorge Manuel, apático em tudo que diz respeito à sua vida pessoal, Rio e Campos do Jordão são a mesma porcaria.
Ainda no dia anterior Naiana tivera a surpreendente ideia de ver na Wikipedia o que diziam da Vila Nova Cachoeirinha, o lugar onde morava fazia apenas dois anos, e se esbaldara de rir. O texto da W. começava assim: No bairro é possível encontrar um grande centro comercial, terminal de Ônibus (em maiúscula, zig), hospital geral, maternidade, cemitério, centro cultural, clínicas particulares e escolas públicas e privadas”. Naiana, sempre perfeccionista – razão mesma pela qual fora escolhida a auxiliar de enfermagem modelo do seu andar por quatro vezes seguidas, antes de pedir a conta, obviamente – e não se conformava com esse tipo de displicência e piada involuntária. Escolas públicas e privadas, Deus do Céu.
Irineu era um sujeito 1) comum, 2) normal e 3) representativo da maioria, que se orgulhava de ir levando sua vidinha no 1) sossego, na 2) maciota e na 3) boa, sempre sob, como já deve estar claro a esta baixa altura, a égide triádica: 1) inteligente o bastante para levar a cabo as tarefas comezinhas do dia-a-dia mas longe de poder considerar-se um crânio, desses que os parentes correm a glorificar de “precoce”, que igualmente cedo já mostram irresistível vocação para 1) médico, 2) engenheiro ou 3) advogado, as três profissões que nove entre dez guris de QI agudo juram querer ser quando crescerem, 2) embora suficientemente sensato para ter sacado logo na adolescência que só os bravos vencem, porém 3) intelectualmente mais lerdo e confuso do que seria bom pra sua própria tosse.
Sabe, algo vagamente, que um é praia, outro, montanha. Não gosta nem de um, nem de outro. Nem do campo. Nem da cidade. Nem de merda nenhuma. Por si, passava as férias enfiado em casa vendo tevê. Quer coisa melhor? A liberdade absoluta – e, melhor na coisa toda – exequível – do controle remoto. A maior bugiganga já inventada na história da humanidade. Tu muda pro canal que quiser à hora que quiser. E não tem consequências. O mundo não acaba. A montanha não desmorona. O mar não inunda a praia. Os búfalos não te perseguem pelo campo a fim de enfiar um chifre no teu rabo. O único problema é deixar no canal que a Isileine quer. Mas em geral os gostos de ambos combinam. Como sempre, novela. Que é a mesma desde que se conhece por gente. Os atores e as atrizes, os mesmos. As estórias, as mesmas. No mesmo canal. Ai que delícia de mundinho previsível.
Embora Naiana se achasse plenamente feliz na Vila, não fora à toa que escolhera a Casa Verde para frequentar sua academia de ginástica. E fizera tal escolha por duas razões: a) a Casa Verde é a subprefeitura à qual a Vila pertence e b) quando sua sessão de Smart Fit acabava às 9 e 20 da noite, Naiana curtia sair à calçada e brincar de moradora de rua, hesitando fingidamente se tomava o rumo de Santana, Lausane Paulista, Tucuruvi ou mesmo o terminal Princesa Isabel, pois, a partir daquele ponto, quem quer que se encontrasse na Casa Verde dispunha de fácil acesso a toda a Zona Norte e ao próprio centro da Capital paulista! (Pois é.)
Nesse sentido, ou seja, em termos de inteligência, Irineu era tão ordinário – na acepção mais ampla da palavra, não no sentido pejorativo de 1) canalha, 2) cafajeste ou 3) pulha – e medíocre – em sentido  igualmente lato, querendo dizer mediano –, mas tão ordinário, que desde o jardim da infância ocupava sempre uma das carteiras intermediárias da sala.
O falatório, o mesmo. Futebol, detesta. Aqueles sujeitinhos rechonchudos falando merda no que chamam de mesa-redonda, Deus Pai Todo Poderoso, cada um daqueles carinhas podia ter um câncer letal no reto, desses que o nego desanda a pingar sangue pelo rabo até morrer. Às vezes até curte um desenho. Do Pica-Pau. Desse, gosta desde criança. O pica-pau sacaneando o urubu. Nascido pra ferrar (os outros). Eis o cerne da questão. E quando ele e a Isileine não combinam os gostos, tanto faz. Tevê é só merda mesmo.
Não que Naiana tivesse vocação para o esporte. Nem mesmo podia se considerar fã ardorosa da malhação. Só resolvera frequentar a academia, onde se matriculara duas semanas e meia antes, por não suportar mais que os caminhoneiros que transportavam materiais de construção civil para São Bernardo ou traziam adubo de Santo André, ao avistarem-na na calçada do comecinho da av. Pompéia, reduziam a velocidade, enfiavam a cabeça fora da janela e estrebuchavam: ô baleia obesa! como se baleias pudessem ser esguias!
Irineu tinha vários motivos para não sentar-se nem no fundo nem na frente da classe, todos eles absolutamente inconscientes, soterrados bem lá embaixo na gruta enevoada e úmida sob pensamentos a) desconexos, b) perturbados e c) labirínticos – e d) pesados como se fossem leitões prontos para o abate – que não raro lhe atropelavam a atenção, fazendo dele um rapazola de i) olhar perdido e ii) espírito disperso, iii) alheio aos próprios motivos e, portanto, sofrendo dolorosamente como sofrem todos os inconscientes do próprio sofrimento.
Jorge Manuel passa pela porta da agência e respira fundo. Putz, que bom estar de volta. Espera alguns segundos enquanto uma névoa de evocaçõeszinhas estranhas se dissipa da frente dos olhos. Quando acha que está confortável, atina com o presente e reconecta a vista. Igualzinho um controle remoto. Lá está sua velha mesinha de todos os dias, encardida, uma mancha desbotada de suor no centro onde seus braços ficam repousados, atulhada de papéis de tudo que é tamanho, de tudo que é cor, esperando. A papelada espera desde que se conhece por gente. Ri no íntimo. Parece até que a mesa veio assim de fábrica. Eis a sua herança.
Porém, antes de abordar a vida atual de Naiana, seria conveniente explicar, mesmo que brevemente, algumas das razões que tinham levado a moça à situação aquela. Como se insinuou lá no comecinho, Naiana nutria, desde pequena, um sonho igualmente pequeno – que, com o passar dos anos, foi se agigantando como... Bem, deixemos no ar, por enquanto, a forma como o sonho da bichinha crescera até ficar balofo como a própria.
Na classe, Irineu não se sentava no fundo porque ali ficava a turma dos atlasados, como os próprios curtiam se autodepreciar, numa atitude assaz característica de gente que só come sopa pra não ter de mastigar. Para Irineu, não passavam de párias que não queriam saber de estudar nem levar nada na vida a sério.
Antes dele a mesa pertencia a um matuto chamado Ricardo. Não, está enganado. Era Sebastião. Ou Nelson. Bah, que se estrepe o nome do babaca. O Sebastião, Nelson ou Ricardo também herdou sua mesa com papelada de fábrica. Dum sujeito de quem o N, o R ou o S igualmente não lembrava o nome. Jorge Manuel sente uma fisgadinha na boca do estômago. Um dia também chegará sua vez de deixar herança. Tomara que o herdeiro pelo menos lembre de seu nome. Uma ideia maluca lhe cruza a cabeça. E se riscasse na parte frontal da primeira gaveta JORGE MANUEL ESTEVE AQUI?
Cabe explicar, antes de tudo, qual era o objeto de tal sonho: aquela brasileira que fora batizada com o nome de Naiana, que se achava ainda na flor da idade, de estatura média e bastante alentada em peso mas calçando sapatos e sandálias tamanho quarenta e dois, desde criança fantasiava tornar-se feminista. Vê-se, portanto, que a “mediocridade” de Naiana incluía até mesmo a dimensão do, por assim dizer, espírito. Afinal, praticamente todas suas conterrâneas pelo menos uma vez em suas vidas tinham desejado acabar com a hegemonia masculina no mundo.
Eram uns moleques, embora precoces – uma precocidade de que Irineu queria distância. Uns revoltados. Aos nove ou dez anos já puxavam fumo e – para a suprema perturbação do nosso garoto nem remotamente prodígio –, proferiam palavrões de boca cheia mesmo quando estavam na rua ou na frente dos professores ou do diretor. Quando tal acontecia, Irineu corava feito um tomate verde maturado subitamente.
Dum lado de sua mesa trabalha a Marilda, subcontadora comissionada transferida temporariamente da matriz. Lá está ela. Marilda. Feiosa, magricela, sem-graça como sempre. Uma vez, voltando do almoço, encontrou um papelzinho dobrado debaixo da papelada. Desdobrou, leu, franziu o cenho enquanto perscrutava a grande sala apinhada de bancários e escrivaninhas e gabinetes. Quem poderia ter sido? Já tinha comido todas as gostosas do departamento. Seria homem? Nããão, nenhum se atreveria.
A esta altura seria conveniente mencionar que esta singela narrativa se passa nos anos mil, novecentos e sessenta, o que obviamente nos remete ao auge do citado feminismo, liderado pela nata e morta virgem Betty Friedan, autora de vários livros, o mais famoso sendo A mística feminina. Sem que a esforçada Naiana nos ouça e como as mulheres brasileiras desconfiaram desde o começo e alguns anos depois vieram a ter certeza, o feminismo acabou se virando contra as próprias bruxas que o criaram e muitas delas morreram solitárias e esquecidas em asilos gerenciados por homens galhardamente ciosos e cientes da superioridade do macho.
Os atlasados incluíam marmanjões que aos catorze anos ainda marcavam passo no segundo ano, néscios indolentes, debiloides que se autoalimentavam do próprio ridículo, risivelmente agigantados perto dos garotos normais. E havia também duas ou nove meninas de que os pensamentos de Irineu teimavam em fugir feito o diabo daquela coisa de que os diabos costumam fugir.
Todos sabiam que Jorge Manuel era muito macho. E podia perder facilmente as estribeiras ante uma bicha atrevidinha que não soubesse seu lugar. Ao abaixar a cabeça para reler o bilhete e tentar identificar a caligrafia, seus olhos resvalaram acidentalmente para o lado da Marilda. Ela estava de olhar grudado nele, sobrancelhas arregaladas, uma careta de expectativa riscada na carinha feiosa. Jorge Manuel engoliu em seco. Sentiu os lábios se crisparem.
Se esta história não se destinasse a ser sucinta, se poderia até mesmo discorrer um pouco mais sobre a igualmente desastrosa ministração do ensino superior aos seres do sexo frágil. Como hoje é do conhecimento público, a maioria das mulheres desempenharia muito melhor seu papel de procriadoras se tivéssemos limitado sua literalidade aos fundamentos da leitura e da escrita, apenas o suficiente para poderem se virar no supermercado, na cozinha e na hora de ligar a tevê.
Não pudera refletir com mais tranquilidade sobre as ditas antes de chegar à idade adulta, quando descobrira-se capaz de rememorar espontaneamente o passado e determinar – ou tentar, ao menos – o que a vida fizera dele afinal. Para seu assombro, concluíra que lhe provocavam não apenas a perturbação mais ou menos esperada, mas também um horror confusamente maléfico.
Pensou uns dois ou três segundos, amassou o papel na palma da mão, fez uma bolota e a arremessou na cara da moça. As feições de Marilda de repente pareceram prestes a derreter, escorrendo sob a lei da humilhação. Duas lágrimas rolaram pelas bochechas chupadas. Era só o que me faltava, Jorge Manuel escarneceu mentalmente. Quem gosta de canhão é a artilharia do Exército.
Se, todavia, quisermos ser minimamente francos, devemos admitir que assim é que é bom. Naturalmente não vamos negar que parte da jovial provocação acima tem o propósito de sacudir um pouco de poeira, i.e., todos sabemos que o fardo é pesado tanto para as mulheres quanto para os homens (e, já que entramos no assunto, sobretudo se um desses homens for branco, baixinho, barrigudo e confuso e se pelar de paúra de mulheres feito o nosso amigo Irineu).
Agora, protegido, pelo menos supostamente, tanto pela longa distância do tempo que o separava dos anos de escola primária quanto pela ilusória segurança que sentem os adultos que acreditam comandar o próprio destino – segurança da qual provavelmente não há como safar-se e daí tantos adultos cometerem tantas asneiras quase o tempo todo – , Irineu dava-se conta de que aquelas meninas tinham o sexo à flor da pele e por isso mesmo haviam se tornado traiçoeiras e endemoniadas ninfas prontas para arrastar homens que se deixam entregar como presas fáceis da sedução feminina para a lascívia e daí para a escravidão, primeiro, sexual, depois, afetiva, então, financeira, por fim, total.
Do outro lado fica o Caio Roberto. Jorge Manuel estranha não ver o Caio Roberto em seu posto. O Caio Roberto jamais faltou um dia sequer. Só pode ser doença ou morte na família. O Caio Roberto é técnico em contas corporativas. O Caio Roberto praticamente nunca se levanta pra nada, nem cafezinho. Só sai para ir ao banheiro no meio da manhã e no meio da tarde e retorna correndo. O mijo mais rápido do andar térreo. O Caio Roberto é só um boboca, como tantos outros bobocas da seção. Deve trabalhar no banco desde a fundação, umas quinze décadas atrás.
Enquanto isso o tempo passava, hehehe, já indo longe o assassinato dos Kennedys, a invenção da minissaia, o top hit de I want to hold your hand e as calças boca-de-sino, e certas coisas e determinados acontecimentos têm menos resistência à passagem do senhor da razão, ou seja, hoje em dia as mulheres enfrentam dois grandes problemas, a saber: um, dispõem duma infinidade de opções profissionais no mercado de trabalho (tudo bem, reconhecemos que isso soa mais como vantagem que como problema, mas peraí que já explicamos) e dois, a maioria das mulheres (e, falando francamente, um número não lá muito pequeno de homens) ainda não estão devidamente preparadas para tomar uma decisão que se revele a melhor para elas mesmas.
Nas nebulosas, recorrentes fantasias que, qual sonâmbulo, dedicava às adolescentes, Irineu via-se vestido de anjinho, túnica branca e asinhas penduradas feito leques às costas, torturado por uma besta cujo rosto assumia ora as feições duma, ora as de outra das garotas, e em cuja testa, ladeada por dois formidáveis chifres verde-prateados, estava escrito, com a esmerada letra da professora de português, “VOLÚPIA DA CARNE!!!”, assim mesmo, com quinze dúzias de condenatórios pontos de exclamação.
Uma vez veio chegando de mansinho como quem não queria nada, puxando um assunto sem pé nem cabeça, olhando de esguelha, dissimulando. No começo Jorge Manuel estranhou, então começou a se divertir com o embaraço do outro. Quis ver até onde ia o joguinho. O Caio Roberto comentou o jogo de ontem do Coringão com o Quinze, perguntou se tinha assistido. Jorge Manuel fez que não, sem se dar o trabalho de explicar ou se estender. O Caio Roberto não se fez de rogado. Gente como o Caio Roberto nunca se manca, né? O Caio Roberto lembra um camundongo. a) Assustadiço, b) apressado, c) esquivo. Foi desfiando uns assuntos sem nexo, querendo mostrar que não se perturbara com a frieza de Jorge Manuel mas indisfaçavelmente nervoso.
Além disso, muitas sequer desconfiam que o maior número de opções que têm hoje deveria ser encarado como privilégio, não desvantagem. Infelizmente, a maior parte das “feministas” autocentradas tendem a ignorar esse fato e, ousamos dizer, pela mais cínica conveniência. E vamos ainda mais longe dois pontos, muitas nem sabem que foram criadas, biológica e financeiramente, para ser dependentes e não felizes e confiantes proprietárias de seus próprios mundos.
Certo dia, não muito tempo atrás, estava nosso Irineu sentado diante da televisão quando numa propaganda qualquer apareceu uma caçarola com pedaços de frango e molho de tomate e de repente ciscou-lhe fugazmente a imaginação uma cena em que o pobre anti-herói jazia nos braços da Volúpia da Carne, a testa hirta de nojo mas os lábios entreabertos num esgar frouxo, enquanto a Besta, soltando da boca uma língua 1) carnuda, 2) melequenta e ao mesmo tempo 3) esguia e 4) serpentiforme, lambia-lhe do corpo uma gosma avermelhada do que parecia ser sangue menstrual misturado a líquido amniótico.
Se Jorge Manuel batesse o pé, tinha certeza de que o Caio Roberto fugiria em retirada feito um coelhinho. Riu internamente imaginando a cena. Chegou a erguer uma perna mas resolveu poupar o bobalhão. Era capaz de ter um infarte. Estender a zoada com o sujeito era mais divertido. Então o semblante do Caio Roberto fechou e seu tom de voz caiu quase a um cochicho. As palavras saíam atropeladas de seus lábios finos. Jorge Manuel notou que a língua do cara mais atrapalhava que ajudava. Foi preciso erguer as duas mãos no ar, pedindo calma. O Caio Roberto respirou fundo, procurando se recompor. Jorge Manuel fez o mesmo gesto repetidamente até o Caio Roberto dar sinais de que estava mais tranquilo.
Eram esses alguns dos pensamentos que batiam cabeça pelos neurônios elétricos de Naiana enquanto ela, por recomendação do professor de musculação Renatinho, ia carcando fumo no Leg Press. Antes, porém, cabe esclarecer que, depois de anos sendo apupada de baleia obesa pelos caminhoneiros que passavam pelas avenidas da Vila, nossa amiga resolvera entrar naquela operação que hoje em dia os gordos fazem e os médicos removeram mais da metade do estômago da coitada. E num abrir e fechar de olhos Naiana se transformara no que se costuma tachar por aí de “mulherão”. Com a redução da adiposidade, seu rosto ficou razoavelmente atraente e com o tempo Naiana até aprendeu a desenvolver um quê de sensualidade, logrando moldar um corpinho aliado a um belo bundão e encimado por seios generosos. Mas tinha um porém – um porenzinho chato que a atazanava desde a adolescência: as pernas. Eram finas. Quase tíbias, com perdão do trocadilho.
Hoje, em alguns raros momentos em que a vontade de viver abria caminho à força entre as sombras pétreas que borravam os outros sólidos riscos que lhe separavam a consciência da fantasia, Irineu, relutantemente, aceitava no íntimo que, sim, caíra de loucos amores por cada uma daquelas púberes deusas e, mais, viveria apaixonado por todas elas até o último dia de sua vida.
Jorge Manuel perguntou que é que aconteceu, procurando demonstrar interesse genuíno. O Caio Roberto estufou o peito, exalou o ar e explicou que tinha se metido numa encrenca. Que encrenca? Jorge Manuel quis saber. Trocando em miúdos, o Caio Roberto vinha subtraindo uma grana preta num esquema que envolvia uma transação regular de compensação de cheques entre a agência e a matriz. Tem mais alguém no lance? Jorge Manuel pergunta. O Caio Roberto fez que sim, mencionando uns nomes da própria agência e de outras.
Naiana nunca se olhava por inteiro no espelho do banheiro quando saía do banho. Tinha vergonha dos gambitos. Mais que vergonha, sentia algo perturbador, indefinível, bem lá no fundinho da alma. Que nada! sacudia a cabeça, procurando extinguir os pensamentos turvos. Nascera pra ser feliz! E não seria com esse espírito derrotista que chegaria lá. Lá onde, exatamente? Na meta que as naianas da vida costumam estabelecer para si mesmas. Embora sejam poucas as que sobrevivem depois de atingir a praia.
Ainda se lembrava duma vez em que uma delas, a Nancy com ipsilone, durante uma aula de geografia, fizera um suave “psiu” que lhe tomara os ouvidos e lhe gelara a alma, e ele, atordoado, começara a olhar para os lados, procurando a origem do chamado. Então, quando Irineu se voltou para trás, Nancy ergueu um pouco a saia de tergal preto e abriu as pernas, revelando lá no fundo abissal e negro uma pequena mancha diamantino que Irineu não pôde distinguir se se tratava da calcinha ou da... da... daquilo!
Parecia óbvio que estava ali para fazer uma sondagem, pedir uma opinião ou mesmo um conselho ao colega. Era também óbvio que estava angustiado, para não dizer desesperado. Decididamente, se metera numa gelada. Quando Jorge Manuel o exortou a dar mais detalhes, o Caio Roberto voltou correndo para sua mesa. Por coincidência aquele fora o último dia no trabalho de Jorge Manuel antes das férias e não tornara a conversar com o Caio Roberto.
Como todos sabem (pois todos frequentam academia hoje em dia, não frequentam?), o Leg Press requer enorme esforço e força de vontade do praticante, exatamente por mexer com a parte anterior das pernas e as panturrilhas. Segundo Renatinho, Naiana precisaria esmerilar no Leg Press pelo menos duas horas por dia se de fato quisesse desenvolver pernões à la Sabrina Sato (seu maior sonho secreto, diga-se; todo mundo e o Sílvio Santos querem ter os pernões da Sabrina Sato).
Engraçado, pensava hoje Irineu, como essa lembrança – que parecia pertencer a outra pessoa a primeira vez que emergira das águas secas do esquecimento – se cristalizava em seu cérebro sem que suspeitasse. Sonhador, lamentava não ter maior controle sobre os próprios pensamentos, como se fizesse grande diferença. Mesmo sem jamais ter ouvido falar em Proust, seu maior sonho, igualmente secreto, quiçá até mesmo inconsciente, era poder comandar a memória assim como controlamos nosso sistema nervoso simpático. Pois foi exatamente essa a façanha perpetrada por Marcel, entre algumas outras igualmente notáveis. Será, ousaria arriscar Irineu, não fosse tão atrozmente ignorante, será que no fundo somos todos iguais?
Jorge Manuel estica os braços para os lados e se espreguiça. É bom estar de volta. Dá um oizinho para a Marilda, que mal ergue a cabeça para saudá-lo. E o Caio Roberto? pergunta enquanto joga a valise sobre a mesa. Preso, responde a Marilda, ainda às voltas com sua papelada. Jorge Manuel abana a cabeça no gesto típico de paciência. Dá de ombros. Mexe e remexe na pilha de folhas em sua mesa. Apanha e passa os olhos sobre uma ou duas e torna a largar as mesmas.
Sempre que Naiana, montada no aparelho, dava sinais de esmorecer, Renatinho apelava para seu truquezinho infalível, exclamando, Santa, lembre-se de que você ainda vai usar uma calça legging preta um dia! Tiro e, com perdão da mira, queda. Malha! Malha! Malha! Incentivava o professor de musculação, batendo palmas. Naiana obedecia, focando os pensamentos nos pernões da Sabrina Sato, se vendo a desfilar pela Vila Nova Cachoeirinha de legging preta, ai que chiquetita! Estica, dobra, flexiona, puxa, empurra, dá-lhe mulher! Faz de conta que a plataforma é o machismo da sociedade brasileira e seus pés, o feminismo. Não! a Plataforma do Feminismo! Boa! Olha só como as coisas acontecem quando a gente se inspira...
Embora nutrisse algum desprezo pelos atlasados que optavam por se amontar no fundo da classe para fugir às responsabilidades como se tentassem driblar a própria vida, Irineu também evitava sentar-se na frente, pois era ali o habitat natural dos... cus de ferro. Cultivava sentimentos conflitantes em relação aos CDFs. Embora não soubesse. Pois sentimentos conflitantes em geral são de difícil reconhecimento. E outra coisa, igualmente importante, que Irineu desconhecia era que a natureza nos dotou a nós pobres seres humanos com parquíssimos recursos de identificação de sentimentos.
Gosta de se referir às coisas desse jeito. “O mesmo”, “a mesma”, facilita a vida. Outra palavra predileta sua é etc. Resume uma porrada de coisas em três letrinhas sem graça. Às vezes queria que tudo pudesse ser sintetizado assim. Viraria pra Isileine e diria etc e ela responderia o mesmo e estariam conversados. Bem que podia, não podia? Quando quisesse dormir ou cagar ou sumir etc, pronto. Pena que é apenas mais uma das suas inefáveis fantasias. Joga a valise sobre a mesma e o Bruno vira a respectiva – outra palavrinha em que se amarra – cabeça.
– Bom dia – o Bruno diz, tentando sorrir. – Como é que foram as férias? – Nem bem pergunta, volta a fuçar em sua papelada.
Naqueles tempos em que decidira que um dia haveria de ostentar pernas bem torneadas pelas ruas do bairro, dois ou três anos antes, Naiana ainda não sabia direito como resolver a parada. Fazer a redução de estômago e perder as arrobas de lipídios até que fora relativamente rápido, embora extremamente traumático. E padecera uma agonia danada nas semanas anteriores à cirurgia, suando frio e sentindo a boca seca quando um conhecido lhe contava que fulana tinha morrido na mesa de operação ou beltrana esticara as botas de camurça nos dias subsequentes ao procedimento.
E de tal fato derivava uma terceira verdade que nosso herói também ignorava: era exatamente desse nosso defeito da natureza que provinha o alto número de psicólogas que atualmente atacam as metrópoles brasileiras aos enxames, alugando salas de consulta em clínicas nos chamados bairros “nobres” só para se acharem no olho da rua seis meses depois, visto que quase ninguém está interessado no autoconhecimento (o que provavelmente será ainda outro defeito deixado em nosso projeto pela mãe natureza).
Jorge Manuel não liga. É melhor assim. Se levasse a pergunta a sério teria de arrumar uma resposta convincente. E não tem imaginação bastante para isso. Sequer sabe inventar uma boa desculpa para dar a Isileine quando se atrasa nas esporádicas tardes em que deixa a Ivete lhe executar uma chupeta no banheiro dos homens. Tem dia que a Isileine quer saber por que o atraso e ele se enrola todo e balbucia e fica vermelho e a Isileine perde a paciência e vai fazer outra coisa sem nem notar o constrangimento. Jorge Manuel então suspira de alívio e agradece a deus por ter uma esposa que não dá a mínima pra nada e que também gostaria que o mesmo e a mesma virassem um imenso etc.
No princípio, Naiana pensara que bastaria acompanhar as aulas de ginástica matinais da tevê Cultura. Tentou segui-las por uma, duas, três semanas. Até se dar conta de que suas tíbias estavam afinando ao invés de engrossar. Então um dia, por coincidência, fora até a agência central do Bradesco na Casa Verde e na volta para casa, no ônibus da linha 6326, aquele todo amarelo com listras verdes, sentou-se ao lado duma senhora que logo puxou conversa e em dois minutos ambas já eram amigas de infância, pra cunhar uma frase original. Naiana perguntou o nome da mulher, que respondeu Piedade. E você, como se chama? Quando Naiana pronunciou seu nome, a companheira de banco ergueu ligeiramente a narina esquerda, num gesto de decepção que se apressou a disfarçar.
No dia seguinte, na melhor parte da aula de Bioquímica, foi dado o sinal de encerramento do período escolar e nosso dileto Irineu conteve uma exclamação de desalento, pois era sua matéria favorita. Ainda mais que a professora Cesária começara a discorrer sobre um dos tópicos mais empolgantes para a cabecinha aventureira do nosso pequeno campeão, i.e., o câncer, o câncer metastático. Irineu apanhou seu material e já se aproximava da porta da sala quando escutou um psiu! atrás de si. Embasbacado, fingiu não dar bola, se lembrando do último – e único em sua vida – psiu que alguém lhe endereçara. Então, outro, desta feita insistente. O matuto se limitou a seguir adiante, apavorado ante a perspectiva de enfrentar a endiabrada Nancy.
Jorge Manuel dá a volta na mesma, puxa a mesma, senta e estica as mesmas, tentando relaxar, permanecendo tenso mesmo assim. Ser bancário é foda. Puta responsabilidade. Requer concentração permanente. O grande perigo é deixar a cabeça desembestar numa viagem sem volta. Esse é o principal problema dos que tentam a carreira e se frustram: a distração. Mal digitam dois algarismos no computador e o miolinho mole deles já está nem sabem onde. Com números não se brinca. É pra isso que os bancários existem. É pra isso que ganham o que ganham. Se qualquer um pudesse fazer o que fazem, seu emprego não existiria, pois qualquer um poderia fazer o que ele faz e o dono do banco não teria motivo algum para não contratar outro em seu lugar.
Naiana comentou então que as aulas de ginástica via tevê estavam produzindo um efeito oposto ao que desejava. Que não sabia mais o que fazer. Que morria de vergonha de suas perninhas de palito de fósforo. Que se sentiria realizada se um dia pudesse ir na C&A e finalmente comprar a tão almejada calça legging preta e sair a zanzar pela Casa Verde como esse bando de sirigaitas pernudas que tem por aí. Tão logo encerrou seu demorado lamento, viu que os olhinhos meio foscos de Piedade relampejavam. Naiana se afastou instintivamente da outra, temendo estar ao lado duma petista guarulhense hidrófoba. Não é nada disso, acalmou-a Piedade.
Então um agudíssimo berro de voz feminina se fez ouvir, abafando o alarido dos alunos que aos puxões e empurrões tentavam ganhar a porta e pegar o caminho de casa o mais cedo que pudessem: IRINEEEEUUUUU! Desta vez nosso guerreiro não teve como ignorar a intimação. Parou e fez meia-volta, dando de cara logo com ela, a Nancy com ipsilone! Que o fitava cum estranho olhar mesclado de divertimento, vigor, fastio, avidez, fermentação, impaciência, bestialidade, destempero e promessas de ardentes prelúdios e decepcionantes poslúdios. Irineu, por sua quadrúpede vez, se restringiu a arregalar os olhinhos de porquinho-da-índia. Numa segunda reação, tentou mexer a língua, mas estava colada ao chão da boca com araldite paturébica.
Eis por que está empregado, e bem: sabe usar a cachola. Ao contrário da Isileine, que só usa a buceta. E às vezes o reverso da medalha — mas essa contará em outra ocasião. Ele, não. Vê a Grande Lógica nas coisas. Os folgados não veem lógica nenhuma em porra nenhuma e por isso têm de levar no rabo mesmo. É o que acontece com a Isileine. E com muitos outros que conhece. Assim funciona a Grande Lógica. Quem não enxerga que se foda. Bota no cu legal. Não tem conversa.
E se pôs pacientemente a explicar o que pretendia dizer com aquele olharzinho cintilante. Segundo Piedade, as aulas de ginástica oferecidas gratuitamente pela tevê Cultura se destinavam tão-somente a iniciantes e a quem estava apenas a fim de fingir que malha. Ao ouvir tão assombroso pronunciamento, Naiana não pôde reprimir um Oh! assim com ligeiros toques de exclamação, interrogação, reticências e antegozo. Como? Fingir que malha? Nunca ouvira falar em tamanha aberração. A que ponto certos monstros antroprométricos são capazes de chegar, meu Deus! Piedade abanou afirmativamente a cabecinha de mico, concordando.
Iri, que é que vai fazer hoje à noite? Os zoinhos de Irineu se arregalaram ainda mais, se aproximando perigosamente do limite supremo da estatelação. Quem era o tal de Iri a que a Nancy com ipsilone se referia? Cai ficha, cai ficha, ai ficha que não cai. Tudo que Iri logrou perpetrar foi desprender a pontinha da língua do chão da boca, quantidade ainda insuficiente para produzir mesmo um monossílabo. Será que podia me dar umas aulinhas de Bioquímica? Preciso tirar dez na prova, senão vou levar BOMBA! Nancy disse assim BalBuciando os Bs com os láBios Bem aBrochados como se tivesse uma Batata na Bocona e mesmo assim o BaBaca do Iri continuou boiando qual pato na lagoa.
Não foi à toa que chegou aonde chegou. Entende direitinho o papel que tem a desempenhar. Entendeu desde o primeiro dia que pisou numa agência. Mal saído da adolescência já sentia a vocação bancário-creditícia pulsar dentro do peito feito uma missão. Sim, nasceu predestinado. Quando botou os pés no departamento do pessoal onde seria entrevistado para o cargo de officeboy, vislumbrou toda a carreira que faria entre aquelas belas paredes pintadas de bege (ou seria creme?).
Pois acredite, minha cara. Hoje em dia tá assim de gente por aí botando banca de atleta coisa e tal mas que na verdade tá é a fim de embromar, saca? Naiana, ainda pasma, embasbacada, aparvalhada, assombrada, atônita, boquiaberta e estupefata, fez mecanicamente que sim com a mandíbula e parte do queixo. Nisso, o ônibus parou num farol e Naiana, perdida em devaneios feministo-esportivos, deixou que seus olhos brincassem pelas vitrines das lojas do outro lado da rua, namorando uns conjuntos de moletom que estavam com 150% OFF e que causariam  estranhamento se o protagonista aqui fosse bancário em vez de enfermeiro.
Depois de aguardar vários segundos, Nancy finalmente deu um chacoalhão no ombro de Irineu e o pobre despertou do transe. Embaraçado, pediu desculpas, se dizendo atormentado por um maldito furúnculo numa certa região do corpo que não lhe dava paz havia semanas e pediu que ela repetisse o que lhe havia dito. Nancy, ainda com a batata na bocona massuda, fez de novo a pergunta. Irineu mandou um Hã??? acompanhado assim desse monte de anzoizinhos emperiquetados, duvidando dos próprios tímpanos. Nancy sorriu aquele sorrisão arrasa-coraçõezinhos de moleques imberbes, pondo à mostra duas fileiras de dentões mais brancos que o cérebro da Dilma em discurso de improviso.
Durante as férias, naquela praia cheia de criança berrando e a baianada jogando futebol e vendedor de milho verde e amendoim e cerveja e raspadinha de groselha e o caralho a quatro e a Isileine deitada na esteira a seu lado tentando pegar um bronze, teve uma experiência que classificaria de epifânica se soubesse o significado da palavra: delirou que o dono do banco adentrava sua seção, se dirigia à mesma e agarrando-o pela mão, puxava-o dizendo, vem, Jorge Manuel, vem que levar-te-ei para o reino dos bancários. Naquele instante sentiu que todas suas dúvidas, se é que ainda as havia, se dirimiam por encanto. Chegaria ao topo. Não tinha pra ninguém.
Vendo que sua nova amiga não respondia, Piedade comentou, assim como quem não quer nada, que lera A mística feminina. E mais de uma vez! completou, satisfeita com a própria esperteza intrépida. Naiana não pôde acreditar nos próprios ouvidos. Nunca conhecera alguém que tivesse lido a bíblia do feminismo. Pior: nunca ouvira falar de alguém que tivesse lido a bíblia do feminismo! E a Betty era tão linda! desafogou, mais para isolamento próprio que benefício da dialética interpessoal e quase teve um treco concludente quando Piedade aquiesceu fervorosamente, arrematando que seu sonho (secreto, claro!) era fazer uma plástica, ou várias, para se assemelhar à intimorata Tia do Feminismo Ocidental.
Assim, ficou combinado que Iri, com perdão do eco anafórico, iria à casa de Nancy aquela noite para dar início às supracitadas aulas de Bioquímica. Se despediram no portão da escola e cada um tomou seu rumo. Nosso Pequeno Futuro Mestre Dublê de Amante começou a caminhar pela calçada imerso num profundo estado de êxtase contemplativo unido a uma inquietação efervescente inédita em sua curta existência de sofredor presunçoso. Apenas remota, vagamente conseguia atinar com o verdadeiro significado daquele pacto lírico-educacional que acabara de firmar com a aluna mais desejável – e comível – da escola. Completamente absorto numa cornucópia de alentos maquinados pelo Id e contrademandas arremessadas ao léu pelo Superego, Irineu seguia aos tropeções, colidindo com postes e esbarrando com transeuntes que vinham em sentido contrário.
Nunca viu o dono do banco em pessoa mas sabe que gostou do sujeito pelas fotografias. E os pôsters espalhados em cada agência do banco em cada canto do país. E a atração, isto é, a boa vontade, isto é, a admiração foi mútua. O dono não lhe disse, repita-se. Mas pôde sacar pela foto. O homem o olhou daquele jeitão todo especial que sempre olha das fotos, como que dizendo, macacada, sai de baixo, abram alas pro Jorge Manuel, esse vai longe. Menino, é só ficar na tua. Tá pra ti, rapaz! É o que vem fazendo desde aquele dia todo especial.
Sentindo-se abrasada em sua volúpia por ver o efeito de seus medos e aspirações produzido na reação de terceiros, Naiana não titubeou em colocar para a nova amiga uma confidência que nunca ousaria confessar se não se sentisse abrasada em sua volúpia por ver o efeito de seus medos e aspirações refletido num semblante alheio. Ah Piedade querida, o que me angustia é conciliar minhas veleidades feministas com essa vontade imensa de ter os pernões daquela japa da tevê! e baixou os olhos, pendendo a cabeça, envergonhada de sentir o que sentia. Piedade, apiedando-se da pieguice da companheira, instalou no ombro da outra uma mão amiga, cochichando There, there, there, assim mesmo no idioma nativo da filha primogênita do casal Obama, visto ser ela, Piedade, teacher de Inglês e estar, naquele exato momento, se dirigindo a uma agência do Itaú para tentar descolar um empréstimo. Seu sonho (nada secreto, diga-se), era abrir uma escolhinha a que daria o nome de Mercy’s English School.
Cada vez mais ensimesmado, Irineu chegou à esquina e, alheio ao farol de pedestres, que estava fechado, avançou para atravessar a rua. E foi instantaneamente colhido por um veículo. Mais especificamente, um ônibus. Mais especificamente ainda, um ônibus da linha 3812, que faz o trajeto Centro-Casa Verde. O corpinho franzino do nosso distraído Werther Paulistano foi arremessado a algumas dezenas de metros. Os circundantes emitiram aquele Ooooh! que os circundantes tipicamente emitem em tais situações. Simbioticamente, um círculo se criou em torno da inocente vítima de paixonite aguda.
Mas, repita-se, não é à toa. Sorridente, inclemente, inadimplente não tem choro. Primeiro, enfia a faca até o talo na hora de aprovar o crédito. O otário tá morrendo de vontade de comprar a casinha em que vai morar com a esposasinha embucetadinha cuzudinha e coisa e tal. Ou então mal vê a hora de se exibir pro cunhado no carrão resplandecente piscando os faróis pra ele na concessionária. Se o cunhado facilitar, passa em cima do babaca. Dá ré. Passa em cima de novo. Dá ré. Então, quando tá ali na sua frente, mal se contendo de comichão pra sair com a grana no bolso, o cliente faz qualquer coisa, aceita qualquer condição, topa qualquer juro. Quando é mulher gostosa, o motel adquire foros de pré-requisito básico. Questão de honra: mulha tesuda não sai sem pelo menos pagar um boquete. Nem que seja rapidinho no estacionamento. O João, o manobrista, está no esquema e já arranjou um quartinho nos fundos do pátio pra ocasiões que tais.
O trânsito, que já se arrastava quase ao ponto da imobilidade, parou de vez. Um buzinaço tomou os ares encardidos da tarde primaveril. Motoristas botavam os pescoços pelas janelas de seus carros, pickups, peruas, vans, jipes e congêneres tentando averiguar as circunstâncias do acidente. Motos se precipitavam pelas calçadas para escapar ao caos. Os passageiros nos ônibus parados se voltaram todos para a direção do burburinho próximo à esquina. Entre os ônibus parados achava-se aquele, da linha 6326, trajeto Centro-Casa Verde. Ah querida, vou aproveitar e descer aqui, estou pertinho do meu banco. Piedade deu um beijinho de despedida em Naiana, e, esgueirando-se entre os passageiros em pé, se aproximou do motorista e lhe pediu para abrir a porta, ao que o homem, com a habitual cordialidade dos motoristas dos coletivos urbanos nacionais, prontamente obedeceu. Naiana, por sua vez, sempre concentrada em sua angustiante dúvida metafísica, sequer se dera conta do ocorrido na rua. Matutava o que o professor de musculação Renatinho lhe dissera no dia anterior, i.e., que o melhor exercício para trabalhar a panturrilha é ficar na ponta dos pés, retomando a posição inicial até cansar. Quando atingisse o nível avançado, ela poderia fazer o exercício no degrau duma escada com um pé de cada vez, concentrando todo o peso em apenas uma das pernas.
Transação fechada, Jorge Manuel se recosta na cadeira de rodinhas estofada e pensa rindo, não digo que número é tudo? O coió vem aqui e assume essa dívida com esse juro na lua, que é que há de fazer? Estou apenas desempenhando minha função. O cara é maior de idade. Por acaso botei um treisoitão na barriga dele pr’ele assinar? Tenho culpa se a gostosinha morre com os juros mais altos da praça e ainda engole toda a rola que couber entre suas dentaduras de biscate? Consequentemente, foda-se.
– Como é que foi de férias, mané?
Jorge Manuel acorda do devaneio e olha em volta. É o Bruno, sentado na beira da mesma, rindo pra ele e balançando uma perna cruzada sobre a outra.
Se tem uma coisa que Jorge Manuel não tolera é que o chamem de mané. Lhe dá gana de agarrar o cretino pelo colarinho e esfregar a cara dele no carpete verde-abacate da seção de crédito. Mas é gana passageira. Perder a linha é coisa de otário.
– Foi tudo bem – dissimula a raiva. – E por aqui? Tudo em paz?
– Tem uma senhora aí no balcão querendo informações sobre crédito. Posso mandar?
– Pode.
Jorge Manuel se apruma na cadeira e ajeita a gravata, esperando a futura cliente, que certamente será mais uma jacu a levar um salame bem merecido no rabo. Apanha a caneta e se debruça sobre um papel na mesma, fingindo estar entretido numa operação bancária.
– Bom dia – uma voz feminina diz.
Jorge Manuel ergue o rosto. Tem à frente uma senhora de uns quarenta e poucos anos, origem nordestina indefinida. Se põe em pé e abre seu melhor sorriso mecânico-profissional. Estende a mão.
– Como vai a senhora?
A mulher olha a mão dele e, antes de apertá-la, passa a própria mão na saia limpando uma sujeira inconveniente.
– Pode sentar, faz favor. – Jorge Manuel indica a cadeira para a mulher.
A mulher quer um empréstimo.
Durante a conversa vai notando algo estranho. Não sabe o que é exatamente. Mas é algo bem estranho. A partir dum certo momento, deixa de prestar atenção no que a dona vai tagarelando. Não consegue tirar os olhos dela. Sente que algo inusitado bem no fundo dele está sendo despertado. Não sabe o que é. Mas sente.
Enquanto isso, Piedade, coincidentemente, era atendida pelo gerente da agência do Santander, bem ali do lado.



Poesia matinal indigesta

Minhas havaianas num cantinho do quarto, um dos meus poucos consolos hoje em dia. Senão o único. (Certa feita, há longo tempo, pousei a cabeça no ombro dessa namorada e gemi que precisava dum consolo e ela me mandou comprar um dildo.)
São relativamente novas, as havaianas. Infelizmente nunca envelhecem, quebram a tira antes. É uma pena, me apego intimamente às minhas coisinhas pessoais, fico pesaroso quando tenho de jogar no lixo um par de sandálias precocemente aposentado.
Minha sapateira abriga uns seis pares de sapatos, o mais antigo com pelo menos três décadas de idade. Ou mais, não estou bem certo. Uau, idos de 1984, período negro da minha vida. Bah, tô pegando leve – minha vida inteira foi negra. E não será doravante que vai começar a melhorar.
Sempre que abro a porta do armário e dou com esses meus sapatinhos trintões, não consigo me furtar a refletir sobre o sentido da existência. E toda e qualquer cogitação de atirá-los fora se extingue de pronto em meu cérebro.
Me desculpem, mas também não posso me furtar a um rápido passeio pela Memory Lane, no dizer dos meus amigos anglo-saxões cujas pérolas nunca me canso de citar.
Reabro a porta do armário e me ponho a olhar as fofurinhas, com perdão da palavra, meditabundo. Quantos passos terão dado os pobrezitos em sua altruística missão de proteger meus pezinhos delicados (sem brincadeira, tenho os pés mais bem-feitos do bairro; sou a versão contrária da fábula do pavão)? Que caminhos oblíquos obriguei os coitados a trilhar em tantas noites alucinadas em que me atirei a frustradas e frustrantes explorações físicas e metafísicas? Por quantos...?
Chega de memory lane.  Provavelmente já estou tocando as raias da nostalgia. E é tão fácil soar cafona quando a gente se entrega aos delírios do passado.
Ah, meus míseros sapatos marrons (lembra aquela musiquinha com que a Evita ganhou o Festival da Canção de 1969?) Devem ter visto uma graxa duas ou três vezes na vida, se tanto. Os cadarços, já troquei uma meia dúzia. Arranhados nas laterais, desbotados, os saltos comidos por desgaste irregular, resultado do andar claudicante, quase capenga, do dono.
Fiquem aí descansando. Na certa sobreviverão a mim. Serão meu legado a estes campos incultos, prova dos meus roteiros imprevisíveis.
Fecho a porta do armário e, retornando à minha mesa, ao computador, as havaianas voltam a atrair meu olhar. Estranhamente, já não me consolam mais. Meu estômago revira (tenho-o hipersensível, como tudo que há em mim). Não quero declarar, não quero admitir que estou perdido. Mas estou.

Perfeita dor

Eis o presente dado por deus ao diabo
Não em troca dos serviços prestados
E sim para demonstrar respeito à
Hierarquia deste reino em que se
Rende homenagem ao falso senhor.

Eis o presente dado por deus ao diabo
Em sinal de total capitulação (foi, de
Fato, oferecido antes da primeira batalha
Da guerra cujo sentido era ser perdida
E encharcar os campos de sangue).

Foi mesmo com afeto, foi mesmo com
Devoção, que ofertou deus este presente
Ao Inimigo. Assim, fertilizado o solo do
Adubo carmesim, pôde soprar ao vento
Sementes da dúvida chocha para sempre.

Ah, quão belo o presente dado por deus
Ao Mestre dos Suplícios, embrulhado sob
Este magnífico laço de seda nas cores
Do arco-íris, feito com brio por suaves
Mãos de mulher de olhos sonhadores.

Je suis fou de vous

Como você sabe quando está apaixonado?
Puta merda, que perguntinha escrota, mas não estou fazendo lero, não estou imitando alguém perdido no face, não estou de conversa fiada.
De minha parte, sei muito bem quando estou apaixonado. Sabe por quê? Porque já me apaixonei umas dezenas de vezes e em cada uma delas me senti fisgado qual um peixe idiota a zanzar pela água insalubre da lagoa abocanhando toda sombra suspeita que encontra esperando que seja um anzol, uau!
Tenho esse amigo, o Afonso. Já falei muito dele, há muito tempo.
O Afonso é um desses peixinhos suicidas a nadar no barro em busca dum belo anzol em que meter a bocarra assanhada.
O Afonso tem uns 1500 “amigos” no face. A maioria, entendidos, não sei se ainda se usa o termo, provavelmente não, a gíria homossexual é altamente volátil.
A vida do Afonso é xavecar online. Se deslumbra por cada bofe que lhe dê ouvidos no bate-papo (e absolutamente todos dão). Viram pombinhos apaixonados em três tempos. Trocam as velhas confidências. Identificam afinidades. Descobrem que eram amigos de infância e não sabiam. Trocam juras de amor, empenhando o resto das respectivas existências um ao outro.
E assim o Afonso vai mandando bala, mergulha numa paixão avassaladora a cada dois dias, quebrando rotundamente a cara a cada três. O que busca de verdade é superar o tédio do dia a dia, o mais mortal dos nossos males de robôs digitais. Outro dia até lhe disse que é incapaz de se apaixonar, pelos sintomas que posso ver aqui de fora. Ficou uma fera. Na cabecinha recheada de fantasias pueris, tem o coração mais aberto do mundo.
Foi aí que lhe fiz a pergunta com que abri este textículo. E ele respondeu o óbvio, que sabe porque está sempre.
(Vou-me abster dos meus comentários de praxe. Hoje estou com muita pena do Afonso e dos bilhões de candidatos facebookianos à felicidade à procura dum anzol enferrujado.)

A primeira vez em que soube, engoli logo três copos americanos de Tatuzinho.
Ela estava ali, não propriamente ao meu lado. Mas à minha vista.
E a cada gole, minha certeza só se solidificava.
Essa foi a primeira vez em que soube que coincidiu com a presença acessível da minha amada.
Repito.
Onde estávamos? Num apê no segundo andar dum prédio em frente ao Oceano Atlântico.
Havia mais gente? Observadores? Espectadores? Testemunhas? Claro. São eles que fazem a diferença. São eles os responsáveis pela minha algaravia.
Olhei a vitrola. Desligada. Desligada como a vitrola da minha vida sempre está. Aguardando. Poderia aguardar mais um pouco?
Só.
Nasci numa família musical que não compreende a música.
Rio. Engraçado como os pensamentos se multiplicam rápido. Papai dirigia o Fordinho de vovô que era acionado por uma manivela. Que é que foi que tanto esperei até hoje na minha vida?
Maravilhas. As esperei a cada segundo sem saber que neste instante encantado desabrochariam qual rosas multicores a exalar uma miríade de tons de perfume.
Dá-lhe, Tatuzinho. Escava os intestinos soterrados dos meus sonhos, bota pra fora o que nasci morto de medo de ser.

Descemos à praia e deus me passa a alforria de viver. Fico até cismado com a leveza da consciência, as corujas debandaram com os abutres que habitam o negrume do meu quarto, me espanto com essa minha mania de manter as cortinas sempre fechadas, por que cortinas pretas? Que maluco doente era eu até um segundo atrás.
A primeira vez em que soube e ela estava ali ao meu lado, só faltou pedir, me chame Super-Homem.
Super-Homem, posso percorrer a Praia Grande na base das cambalhotas. Movido por um Super-Tatuzinho.
Lá fomos nós rumo ao poente. Sem brincadeira.
E o poente mais se afastava quanto mais minhas cambalhotas se aceleravam.
E na minha cabecinha tomada pelo INSTANTE não havia que considerar TODAS AS OUTRAS POSSIBILIDADES.
Não tinha volta, ser era seguir adiante.
Enquanto ela estivesse ali ao meu lado.
Impressionante como quando estamos apaixonados, deveras apaixonados, perdemos a noção de democracia e legalidade.
Sinto estragar o clima, eu, mas então veio o plano.
A necessidade.
O poente se desmanchou num céu borrado de aquarela lambida.
O acrobata campeão desmaiou.
E morreu no dia seguinte e morto seguiu às cambalhotas sem saber.