Sou doente.
Sou doente.
Sou malvado. Sou um homem desagradável. Acho que sofro do fígado. D.
Sofro de sofreguidão. Talvez por isso
sofro do fígado.
Não quero padecer da minha doença
sozinho. Não posso padecer da minha doença sozinho.
Procuro uma vítima. Uma vítima em que possa descontar as agruras que me causam os
sintomas perversos da minha doença.
Quero uma vítima que possa assimilar toneladas
de lixo emocional.
Alerta: o efeito pode ser fatal.
Sou doente e invariavelmente me tomam por
louco.
Loucamente, sou capaz de me trancar no
quarto um ano inteiro, de cabo a rabo, e escrever pr'uma vítima.
Finalidade: sedução.
Posso obrar um romance de dezenas de
centenas de páginas carregadas com minhas visceralidades.
Sei bem: minhas visceralidades,
misturadas às minhas excreções mentais, espirituais e morais, haverão de deixar
a dona de queixo caído, literalmente. Sendo magnânimo, pedirei então que ela
feche a boca. E ela, em completando a leitura do insensato alfarrábio, simplesmente
me perguntará:
“Quais são
suas intenções?”
Sem hesitar um segundo, arregalarei os
olhos e, talvez babando uma baba fina de quem tem o fígado atacado pela
sofreguidão, cuspirei algo como “Acho que
não tenho intenção nenhuma não senhora. É que sou maluco e cometo esse tipo de
maluquice ao sabor dos meus pensamentos caóticos. Mas, olha, tome cuidado. Não vá me pedir em casamento.
Sei como essas coisas tendem a acontecer aí fora.”
Não estou disposto a aceitar esse mundo
que chamam real. E, ante minha não aceitação, a dona cortará relações. Imediatamente.
Ficará de mal. Ao que simularei um arzinho de desconcerto.
E, afetando ingenuidade, perguntarei (a
mim mesmo, pois a essa altura estarei irrecorrivelmente sozinho):
“Então não
é assim que se conquistam pessoas?”
Para fins de ênfase dramática,
completarei a cena acionando minha cara de coió.
E, a mim mesmo, responderei: “Não, burro. É assim que se afugentam
pessoas”.
Posso gastar minha vida inteira nesse
esforço de sedução. E se a dona expressar surpresa ante tamanha obsessão,
reagirei desconcertado de novo, como se não tivesse aprendido porra nenhuma:
“Escuta,
meu bem. Pra mim nada é mais natural que escrever pra minha musa da vez. Posso
ficar dias, semanas, meses sangrando. Só para o benefício dos teus olhos”.
“Que absurdo!” ela provavelmente saltará
da cadeira, da poltrona, do sofá ou da banqueta onde estiver.
Meu irracionalismo escapa à sua lógica,
estou sabendo.
“Meu amor,
que é que vou fazer com essa subliteratura pueril? E, você sabe, não tenho
tempo a perder. Muito menos paciência. Got a life to lead. E afazeres diários,
afinal. Sai da frente e não me atrapalha mais, peço encarecidamente”.
Qual o anti-herói de D., sou doente, sou
malvado, sou um homem desagradável. E ao contrário dele, tenho certeza de que sofro
do fígado.
Então mandarei bala. Meterei fumo. Carcarei
o pé. Ela haverá de se admirar com a insistência. Se alegrará — sem dar muita
bandeira, claro — por eu não ter desistido.
Então afiançarei juntinho ao seu ouvido:
“Olha, bem
que tentei. Tantas vezes fiz papel de bobo. Me senti humilhado. Então descobri uma
coisa. Não dava importância. Fiquei desconcertado pela terceira vez, agora
comigo mesmo. Não sei tolerar humilhação. Só que, com você, vi que tolerava. E
exultei: amadureci um tico, santa madre. Estou aprendendo. Quem diria, com esta
minha cabeçorra de pedra, minha inflexibilidade de trilho de trem, minha
aversão a tudo que seja alheio à minha natureza”.
E, aproximando ainda mais meus lábios da sua
orelinha macia e perfumada, farei outro pedido:
“Me responde
uma coisa (se é que posso abusar da tua falta de tempo e de paciência para marmanjos
fátuos de cabeça na lua feito eu). Dois pontos: pareço muito maníaco demais? Vou
ficar esperando a resposta”.
Se achar que sim, poderei reconsiderar, lhe
escrever não mais que duas linhas.
Pois admito, só quem não bate bem da
cabeça haveria de engendrar dezenas de centenas de páginas entupidas de
visceralidades para impressionar uma mulher. Afinal, romancistas mundo afora
produzem suas obras visando a ganhar o Nobel. Os mais humildes, a faturar o
Jabuti. E os mais modestos, a tão-somente ver o próprio nome estampado na capa
dum livro para exibirem orgulhosamente aos primos, aos vizinhos, ao moço que
vem ler a luz todo mês.
Todavia, espero que me entenda, tenho em
algum lugar aqui dentro — os médicos até hoje não descobriram exatamente onde —
essa mina que fica brotando sem parar. Mina que com sua voz densa e respiração
ofegante me distrai da insuportável mesmice do mundo. Da sacal previsibilidade
das pessoas. Da mesquinhez que as pessoas usam como dinheiro falso quando
tentam passar adiante seus sentimentos. Da infame renúncia a buscar a sintonia
com suas emoções em nome duma objetividade e dum pragmatismo dignos dum robô.
E depois de devorar meu romance de
dezenas de centenas de páginas escritas em seu louvor, ela dará seu veredito:
“Que
lindo! Pena que não confio em você”.
Pela enésima vez desconcertado, tentarei me
consolar.
Poderia mentir, ao molde dos derrotados,
que serviu de experiência. Que me ajudou a conhecer um pouco mais, senão a raça
humana, pelo menos as mulheres. Mas responderei apenas que me rendo por fim ao impossível.
Centenas de dezenas de páginas. Que prolixidade.
Será que sinto mesmo todos esses milhões
de palavras?
Uma apenas podia bastar.
E basta.
Mas não me conformo.
Então escrevo e escrevo e escrevo.
E esqueço e esqueço e esqueço.
Minha sofreguidão não tem limites. O que
sinto é o que sinto ao quadrado.
Minha missão é a mais difícil: não afundar
no mar de mentiras. Me manter à superfície exige uma bravura que não tenho e
poucos têm e que busco. A mentira puxa todos pelos pés para o fundo.
Mina que mina, mina, me poupa da
minha sina. Não me afoga em teus borbotões melífluos. Se preciso for, seca.