Tinha jurado parar de beber. Disse a mim
mesmo, se puser uma só gota duísque na boca você é um estrume escroto pândego
peidoreiro. Se voltar a se embebedar tomara que ela te deixe, que arrume o
primeiro que aparecer — e olhe que pra ela é fácil como estalar os dedos.
Os neurônios ficam tantalizados com a
ideia, enviam à garganta um nó que desce para o peito e resfria o estômago. Podíamos
suportar qualquer coisa — bem, quase qualquer coisa —, menos viver sem ela,
seria o mesmo que definhar qual um vira-lata desfigurado de padecimento,
atormentado pela sarna do abandono, um fantoche horrivelmente solitário. Os
olhos veem a cena, primeiro as pernas perambulando às tontas pelos cômodos da
casa, o olhar se deixando perder inutilmente nos cantos das paredes, meia hora
estudando essas teiazinhas de pó que se formam nos interstícios, de repente a
atenção surpresa se dando conta de que os olhos estão ali de olhar parado no
vão entre o sofá e o carpete, então a cabeça se sacode cinematograficamente, a
voz fala alto como se houvesse alguém ao lado do corpo, a cabeça acha que tá
ficando lelé mas um minuto depois se dá conosco em outro canto, outra
teiazinha, outro vão, outro espasmo encenado de náusea, se demorar mais um
minuto a loucura afogará a consciência, sonambulamente pernas pro quarto, as
mãos puxam a calça por cima da bermuda, os pés se enfiam nas havaianas, a
memória tenta puxar vagamente que há alguns anos havia um cuidado com a aparência,
até desprezava esses caras que vão a qualquer lugar maltrapilhos como se não
conhecessem o valor do asseamento, tudo bem, tá todo mundo ligado no mundo
interior, elevando sentimentos à máxima potência, aqui do lado de dentro foi o
que nos sobrou, antes ser que ter, é verdade, precisamos logar o autocontato, o
que importa é desenterrar o eu profundo, ter qualquer um pode ter, olha hoje em
dia você tem de ser você mesmo, checar quem é verdadeiramente, todo o resto é
supérfluo, quem não julga os outros pela superfície? mas cumpre cultivar um
respeitozinho ao próximo senão vira bagunça, há de ter um mínimo de compostura,
o problema de hoje é os extremos a que chegamos para alcançar uma chance de exercer
a liberdade individual, antigamente era bom porque o coletivo vinha em primeiro
lugar, se você se esculacha tá logo dormindo na rua entre mendigos e nem
percebe, nossos amigos me chamam burguês, que papo mais anos setenta, dizemos,
dizem, dizemos mais alto, essa é boa, burguês, era coisa de gente que delirava
com o comunismo, somos todos burgueses, vira homeless, se descuidar morre de
beber, vai pro institutomédicolegal, acaba sepultado como indigente, quem? eu?
Logo eu que fizemos faculdade na usp, nos bons tempos ninguém ganhava de nós no
gogó, discutia qualquer assunto, mandaí, atirava insolente o queixo contra o
intelectualóide do outro lado da mesa entulhada de antárticas vazias, diz mermão,
por que os milicos portugueses deixaram de apoiar a unita permitindo a debacle
do cabral em angola, o ouro sempre terá valor para a elite porque esses porcos
também precisam de fetiche, igualzinho às costureiras, guarda-noturnos
(guarda-noturnos?) e torcedores do coríntians, os heterônimos do pessoa não
podem ser explicados psicologicamente, eu enterrado como indigente? além do
mais somos bem-apessoado, sei o nome do papai da mamãe até dos nossos avós
(menos o materno parte pai), não queria ter de apelar mas bem ou mal temos
linhagem, sem querer abusar, sabe-se que vale Merda, tudo bem que as mãos dão
valor a estatos, me comparar a esses marcianos que vivem morrendo pelas ruas é
descabido, só pra você ter uma ideia, papai já foi dono de escola, tudo bem,
era de datilografia mas escola in its own right, embora isso tenha sido antes
de eu nascer, escola na devida acepção, tudo bem que logo depois de eu nascer
escafedeu-se, mamãe teve de morar em casa emprestada, depois com minha tiaeva, aí
fomos parar naquele cortiço em que ela era obrigada a… bem, eu tinha de… enfio
os pés nas havainas pensando, não podemos ficar mais um segundo aqui dentro
senão piro, vamos dar o pira, saímos pra rua malajambrado, fôdasse, nego tem
que ver o que com nossa vida? e se embobar as mãos damo vexame memo,
precisoextravasar, o nó no estômago subiu de novo pro peito, só poder ser enfarte,
o cara tá com uma dor encalacrada, sem mais nem menos cai duro, não extravasou
dançou, tem que pôr pra fora, não interessa, ficar engolindo essa Merda pra
quê? se na hora me achar no direito vamos pro meio da rua e paro o trânsito,
subo na capota do primeiro carro, abaixo a calça, a bermuda, minh’alma
saponácea precisa platéia, temos muita coisa guardada aqui dentro, ficaria bobo
se soubesse, segredos que jamais contei a alguém, desde pequeno, sabe que todo
dia a memória tenta lembrar o primeiro pensamento lúcido que tivemos na vida? coisa
de crânio, temos umas visões do balacobaco, termo forte, tô sabendo, fazer o
quê? um dia, ou melhor, uma noite, tô deitado, tá escutando? tô deitado na cama
pra dormir, um segundo antes de o sono chegar passa um filme pela nossa cabeça,
bem, pode chamar de curta-metragem — não, documentário não — no dia seguinte
conto pra mamãe, que falou: foi sonho. Mas não foi não, era premonitório, vimos
limpidamente em três dimensões como no cinema o quênede levando uma azeitona na
cabeça, embora o que mais me tenha causado espécie foi a gostosa da jáquie, que
mulheraço, c’uma mulher daquela eu também encararia liôsval, jaquezinha senta
no colinho do guardacosta enquanto o liôsval não vem, é cê vai dizer, tinha de
ter uoliú no meio masquequepossofazer? tá vendo, ainda temos a manha de me
defender expondo detalhadamente nossos argumentos, outro diria o que tem a
dizer, daria as costas queimando o chão, olha tinha só 2 ½ anos mas de repente
ter telefonado ao efebeí teria salvo o marido da jáquie, ui! jaquezota tô
plugadaço na tua fleumática Xoxota que não derramou uma lágrima em público, se
for verter me chama que enxugo, dá aqui esse lencinho branco de cetim, deixa
cair que pegamos, as pernas entram na tevê e me enfio debaixo dessa tua saiona
preta de luto te aliso todinha negra rainha da morte esvoaçando na penumbra do
nosso quarto e desassombrando nossas noites de rostos sem rosto de insondáveis sorrisos,
de repente entra a marcha com deus pela liberdade, mas se nem mamãe acreditou
por que você haveria?
Escuto uma buzinada na rua. Vamos olhar.
É o motoqueiro entregando pítsa no vizinho. Em dia de semana, fIlhOdapUTa. É
quartafeiradecinzas por acaso? Já sabe-se. Como não pensamos nisso antes? Uma
bomba. Melhor: cianureto. Morte lenta. Pode levar três dias. Se a dose não for
cavalar. Mas não dá pra pôr uma dose cavalar numa pítça. Mesmo que seja de
gorgonzola. Nosso, só italiano pra gostar daquela merda. Sim, nosso vizinho é
paulista. A maior solidão dum paulista é conversar com um nelsoniano. Isso
porque você nunca foi em casa dum sábado à noite pra traçar uma de alitche e
muçarela com rios de coca. Suprema experiência da autoimolação. End da vida.
Para o cara, o paroxismo da celebração, olhinhos hipnotizados do casalzinho de
guris assistindo enquanto papai executa o ritual do fatiamento, a esticação dos
queijos derretidos (você sabia que uma fatia de pítça de muçarela de búfala
pode esticar do chuíaooiapoqueaochuí?), a turma tomada dum acesso nervoso
contido pelo cheiro combinado da azeitona com as bordas queimadas da massa,
mamãe apressa-se a ir buscar guardanapos, guardanapos de pano, ai mamãezinha
gostosaça essa dos filhos do vizinho, que gostosona tem o vizinho, que tetões
suculentos os da mulher do vizinho, onde esse FiLhOdAPutA foi arrumar essa dona
saborosa, se tivesse uma mulher dessas, deixa que eu seguro teus tetões
enquanto você distribui a de atum, vamos lá, uma pro chefe da família, uma pro
zezinho varão da família, uma pra mariazinha donzela da família, entrementes dê
aqui esse guardanapo de pano que o corpo fica limpando essas excreções de molho
de sangue premenstrual atomatado à la tarantella, melhor elessedê.
continua em...
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