Longa fila se estende pela calçada na tépida
tarde de primavera.
Consiste de pacientes senhores já
passando da meia-idade, talvez com os brios domados pela experiência, mocinhas
com ares de quem aspira à nobre profissão de secretária, desanimadas e
rechonchudas donas de casas que já criaram os filhos e hoje não têm mais que
fazer, garotões irriquietos que relutam em aceitar a fatalidade da espera.
Estava de saída para viajar. Destino:
Nova York.
Ao abrir a porta da frente, já com a mala
na mão, lembra de algo.
Volta ao quarto. Fecha a porta.
Definitivamente.
É noite. Dormem as árvores, os carros nas
garagens, os pássaros, os trens, as namoradas que acenaram antes de ir embora,
os motoristas de táxi, os jogadores de tênis, as crianças cegas — dormem todos.
Exceto os pernilongos e os japoneses doutro lado do mundo. (Será?)
Antes de fechar a janela olho pela última
vez o escuro lá fora, procuro uma estrela no céu sem estrelas, encosto as
venezianas, desço a vidraça. Rumo cabisbaixo para a cama e deito e apago a luz
e sem fechar os olhos inundados de negro atento os ouvidos para qualquer ruído
que possa servir de sinal de vida.
Nada aqui dentro. Do lado de fora a
calçada e os postes e os muros e as paredes das casas dormem, lá onde sempre
estiveram e estarão, talvez para sempre, indiferentes a mim.
Nasceu xifópago de si mesmo.
Havia os que incomodavam fora. Havia o
que incomodava dentro.
Havia o que incomodava dentro os que
incomodavam fora.
Havia os que incomodavam fora o que
incomodava dentro.
Quem mais o incomodava era o que estava
dentro.
Até que, aos oito anos, por ninguém nos
arredores mais suportar, a mãe o levou ao doutor.
Dupla personalidade, diagnosticou o
doutor. E receitou choque.
A mãe e o pai ficaram felizes por Edson
ter nascido e inventado a eletricidade.
No dia marcado, o doutor mandou deitar.
Perguntou como chamava o amiguinho dele. Enquanto pensava na resposta, recebeu
a anestesia.
Quando acordou, dorzinha chata na nuca,
olhou dentro. O xifópago ainda estava ali. Ele, não.
— Diz. Quando é que você se viu
derrotado?
— Não sei. Quando pensei que fosse perder
tudo. Aos oito anos. Aos vinte e oito. Me achei numa iminência. Tive de engolir
o veneno. Meu veneno. O mais amargo que há.
— Enquanto você consegue jogar a culpa
sobre os outros, identificando neles um pecado que se sobreponha ao seu, tudo
parece bem. Mas cedo ou tarde, de repente não é mais possível usar esse truque.
Você tem de se encarar.
— Se essa hora chega, é porque teus
pecados já foram longe demais. Estão além do teu controle. O dispositivo que
todos nós temos que nos preserva mecanicamente do nosso próprio julgamento
nessa hora já parou de funcionar. Ou por desgaste natural ou emperrado por
falta de uso.
— Na prática, é a mesma coisa. Tuas
salvaguardas de ti mesmo sumiram por alguma causa misteriosa que já não
interessa investigar. Agora é mano a mano.
— As mentiras que você se acostumou a
usar para consumo externo, mantendo a face, agora não valem nada. Para os
outros, serviam porque eles não tinham como verificar a “tua” verdade. Para
você, que sabe os caminhos falsos pelos quais trilham tuas mentiras, não há
mais como sustentá-las.
João foi detido. Alguns acharam injusto.
Outros, merecido. Outros ainda, bem-feito.
Na cela, João começou a ser torturado.
Choque. Pau-de-arara. Afogamento. Supressão do sono. Terror psicológico.
Sob padecimento intolerável, João desejou
que o tempo voasse.
Anos depois, embora traumatizado, estava
razoavelmente feliz por a tortura hoje fazer parte do passado.
— Veja. O pai foi o primeiro. Depois a
menina. Então o menino. Por último, a mãe.
— A mais corajosa, como sempre.
— Ele, o mais covarde. Como sempre.
— Se fosse você, como faria?
— Igual, acho. É insuportável, seja como
for.
— Alguma semelhança com o caso da
Aclimação?
— Bastante. Só o número de filhos difere.
Lá eram quatro.
— A mãe por último...
— É...
— Com esse já são oito. Será que
continua?
— Pelo jeito, sim. Vai longe.
— Como será que eles conseguem o...?
— Pois é. Tem alguém muito esperto...
— Muito...
— Bom. Té manhã.
— Até. Onde será a próxima?
— Zona Norte, talvez. Tatuapé...
Dava um duro danado pra ganhar a vida.
Escravo do trabalho, nunca se queixava.
Certo dia começou a olhar os aviões no
céu.
Ficava ali parado, boca semiaberta, meio
absorto, meio esquecido de tudo.
Foi olhando, olhando, ficou assim.
E nunca mais fez mais nada.
A amante do prefeito tinha tetas tão
generosas, que a cada munícipe foi outorgado o direito a uma chupada semanal,
mensal ou anual, de acordo com a volúpia (desde que não fosse alérgico,
naturalmente).
Em compensação, a esposa do prefeito tinha tetas tão
egoístas, mas tão egoístas, que os sindicatos (de quase todas as categorias)
organizaram uma manifestação domingo cedo, dizendo “assim não é possível, mon
amour”.