Literalidades
O rapaz entra no boteco, mal olha
para o balconista vai logo exigindo:
— Me dá uma pinga aí. E depressa.
Pois sou poeta!
O homem atrás do balcão, lavando
alguns copos na pia, enxagua as mãos e seca-as num pano encardido. Solta o
pano, olha enviesado para o rapaz e contrafeito retruca:
— Tem semancol não? Não se vai
falando assim sem mais nem menos “sou poeta”. Tremenda falta de pudor, seu. Vê
aquele sujeito ali? — ele aponta um tipo tomando cerveja no balcão, ar nem
solerte nem indiferente nem prazeroso. — Esse não é poeta. Nem por isso chega
dizendo “devagar, pois não sou poeta”. Questão de sensibilidade. Você, sendo
poeta, devia saber disso.
— Eu sei — diz o rapaz. — É que às
vezes me esqueço.
O balconista meneia a cabeça num
gesto de censura e o rapaz emenda:
— A, é verdade. Não devia me
esquecer. Nem me lembrar. É que sou poeta.
O outro faz novamente não com a
cabeça, agora com mais vigor:
— Não diga que é poeta. Já falei.
Está vendo aquele ali? — ele indica outro sujeito ao balcão, este tomando um
cafezinho. — Ao contrário do outro, esse aí é poeta. Não, não está escrito na
testa nem se distingue pelo jeito de se recostar no balcão. Vê-se,
simplesmente. Não me pergunte como sei. Só posso dizer que sei. É algo
indefinível, você sabe. Você sabe, não?
— Acho que sei.
— Sabe, sim. Reconhecer um poeta é
tão difícil quanto reconhecer a poesia. Às vezes, mais. O mundo está cheio de
exemplos. Veja o Drummond. Quem, olhando aquele homúnculo a primeira vez e não
sabendo tratar-se do Drummond, diria que era poeta? Poucos. A maioria pensaria
estar diante de um funcionário público (o que era fato), dentista ou caixeiro
viajante (pois, você também sabe, na época do Drummond existiam caixeiros
viajantes. Mas também não me pergunte que fim deram, pois aí já é especular
demais da conta). E o Oswald de Andrade, que profissão você lhe daria só de
olhar?
— Açougueiro.
— Isso aí. Vejo que temos bastante
em comum, embora eu seja balconista de bar e você, poeta. E o Mário de Andrade,
tinha cara de quê?
— Esse é fácil — o rapaz se anima.
— Professor de música.
— O que também é fato, claro.
Murilo Mendes?
— Padre.
— Bandeira?
— Empresário.
— Vinícius?
— Dono de padaria.
— Êpa. Essa doeu. Pessoa?
— Esse tava na cara que era poeta.
— É. Também acho. Mas…
— E a minha pinga? Sai ou não sai?
— Já vai — o balconista ergue uma
das mãos, pedindo paciência. — Às vezes poetas também precisam esperar, como
nós mortais.
O rapaz, que a essa altura já
tinha sentado num tamborete, apóia um cotovelo no balcão e com o punho cerrado
e ar resignado, segura a cabeça. O balconista prossegue:
— Bem, onde estávamos? A!
Falávamos daquele sujeito ali bebericando cafezinho. É poeta, mas sabe que isso
não lhe dá o direito de vir exigindo isso ou aquilo, pois sou aquil'outro.
Chega humildezinho, compenetrado, atento a algo que lhe passa dentro d'alma.
Eu, do meu lado, fico na minha, assuntando, esperando enquanto a poeira cósmica
abaixa dentro dele. De repente, ainda distraído, ele, com simplicidade, pede,
um cafezinho, por favor. Para mim, basta. Sei que estou diante de um. Com o
tempo aprendi a reconhecer. Hoje vejo de longe. Até de costas. É só um botar os
pés aí na porta, já penso, olha outro aí. Então sirvo e fico aqui no meu canto,
observando discreto. Sei que ele sabe que observo, pois, claro, é poeta e, ao
que consta, poetas sabem tudo. Mas tem outra coisa que me admira nesses
sujeitos. O estoicismo. Pombas! penso comigo (e você, poeta, não importa se bom
ou não, há de concordar que só posso pensar comigo e com mais ninguém), o
sujeito tem uma sensibilidade de outro planeta, sofre todas as dores deste
mundo e de outros que possam existir por aí, vive cada segundo a se indagar,
testando a si e aos outros, especulando desconfiado de todas as verdades que já
deveriam ser certezas mas que só se tornam mais dúbias a cada dia, matutando
uma ideazinha constante que de repente aflora aqui e ali no inefável teatro da
cabeça lírica, torcendo para que a ideazinha venha de mãos dadas com a palavra
certa, a palavra justa, quase implorando aos céus só mais esta palavrinha,
senhor, para que formem um par indissolúvel que reluza feito a peróla rara na
aurífera corrente da afinidade, tão espetacular afinidade que as testemunhas
(pois sempre as há) desse encontro do pensamento com a palavra certa,
extasiadas, comovidas, buscam dentro de si uma forma para definir a magia mas
nada logram senão elogios arrebatados como puxa! quanta harmonia. Como pode
alguém ter idéia tão singular e expressá-la com tamanha propriedade? O mais
interessante, porém, é que esses pensamentos não se geram assim tão
cristalinamente e aí! aí está o segredo! O desprevenido leitor põe os olhos no
versinho ali no papel, entre distraído e impaciente, irresoluto se vai se meter
ou não na empreitada de ler o poema até o fim, mas se já chegou até ali é
porque está carente dum pouco de poesia, não sabe por que mas está (a, quanta
gente está), e meio a contragosto vai avançando, querendo saltar alguns versos
mas intimado a querer ler, afinal precisa dum bálsamo, precisa se revoltar, se
conformar, não sabe o quê mas está necessitado... De repente, se o que tem
diante de si é de fato poesia, se as ideazinhas do poeta estão de fato casadas
em comunhão de bens com as palavras, o sujeito começa a beber cada uma delas
como se fosse a pinga que lhe vai redimir todos os sofrimentos. Por falar
nisso, tome lá a sua. — O balconista apanha uma garrafa de 51, entorna-a sobre
um copo e pacientemente deixa gotejar uma dose de cachaça, sob o olhar sôfrego
do rapaz. — Da próxima vez, já sabe: a palavra justa. Tenho horror ao
supérfluo. Além do mais, todos os que chegam pedindo uma pinga feito você são
poetas. Eu sei. Não precisa anunciar.