Breve entrevista c'um escritor acima de qualquer suspeita

Noitinha, ressaca nauseabunda quando eu devia é estar começando a encher a lata (o que não vai me impedir de fazê-lo doravante, obviamente), nível zero de inspiração (pombas, depois que resolvi ter um blog, perdi não só o fio da meada como a própria), não faço ideia do que escrever.

Estou em vias de me decidir a voltar ao boteco do Lacerda quando a musiquinha do programa de email faz priiiiim e a voz de locutor das Casas Bahia anuncia, "Youu'vee goot maaiiil!"

Mais um spam, penso c'os botões do paletó que usei no meu casamento com a minha ex-mulher Sílvia que me trocou por um gerente de banco chamado Augusto. (Do nosso banco, cáspite.). Provavelmente o spam foi enviado por um descendente de cossaco vivendo numa caverna ao pé do Everest louco para me vender algum afrodisíaco milagroso. Como esses caras descobriram minha broxisse, nem imagino.

Mesmo convicto de que é propaganda de viagra, vou assuntar, claro. E em que pese este meu ar de estóico niilismo (sei, há os que preferem grafar "nihilismo"; eis aí uma opinião que ainda não formei; e não sei como é que os filólogos-burocratas, que se acham donos da língua, querem que eu grafe), sempre acalento um fio de esperança -- vai ver a Sílvia lembrou que existo depois desses três meses. Terá se cansado do gerente assim tão cedo?

Olho o nome do remetente: LFV.

Franzo o cenho, incrédulo. Não pode ser. O homem não ia se dignar a responder. E mesmo que, não seria assim tão rápido. Não com aquela cara de sonolento em constante marcha-lenta.

Clico em cima do email em negrito.

"Prezado sr. Vaccari. Tudo bem. Mas só se for via Skype. E com duas condições: nada de trocadilhos indesejáveis. Me reservo o direito de terminar a entrevista incontinenti caso essa condição seja violada. E sem vídeo. Meu endereço é..."

Segue o endereço de LFV no Skype, que tenho por bem omitir. Não que FLV, digo, LVF haja estipulado. Mas é o mais recomendável, você concorda?

Passo o ponteiro do mouse sobre o link e aparece a mãozinha solícita, evocando meu clique. Eu falando com o Luiz Fernando em tempo real! Sinto um frio no estômago. Antes de efetivar o clique, porém, me ocorre a boa ideia de ir até a cozinha e abastecer meu copo, que há vários minutos jaz vazio num canto da mesa do computador. Em geral não preciso de motivos para comemorar, mas se tem uma ocasião que pede um balla, é esta.

Vou, volto e clico por fim. O Skype azulece a tela. O telefone intergalático bipa. Uma. Duas. Três vezes.

-- Boa noite.

Uau, é a voz dele! Quero responder mas minha língua está grudada no chão da boca (será este o nome do antípoda do céu da boca?). Incapaz de articular duas sílabas que pelo menos soem como resposta à saudação vinda dos autofalantes, emito um mumunho e agarro o copo e sorvo metade do uísque, que em dois segundos parece exudar pelos poros do meu rosto. Ainda bem que LVF, digo, VLF vetou o vídeo. Imagine o fiasco se ele me visse assim.

Depois do meu mumunho, silêncio. Será que ele já está esperando minha primeira pergunta assim de chofre? Sem nenhum foreplay?

Liquido o resto do balla e sinto a coragem nascer por encanto. Agora vai.

-- Seu Verissimo, primeiro queria...

-- Pode me chamar de tu. Não sou afeito a formalidades.

Não sei se devo me alegrar com a prerrogativa. A última vez que usei a segunda pessoa foi no ginásio. E nunca aprendi em quais casos devo apor um s no final.

Indeciso, resolvo partir pras cabeças. Já que cheguei até aqui, f..., digo, dane-se.

-- Teria algum problema se eu o chamasse apenas de "Vê"? É que Verissimo me soa tão superlativo.

Silêncio. Dois. Quatro. Seis. Dez segundos.

Já era, penso. Não sei se desanimo ou exulto. Que ideia, entrevistar o Verissimo. E soltar um pedido sem-vergonha desses logo de cara. Pombas, me sinto tão brasileiro nessas horas. Gosto de me imaginar um cara civilizado, tenho aqui comigo que na outra encarnação fui um lorde britânico, mas não passo dum cafajeste. Chamar o mais prestigiado escritor midiático (urgh) brasileiro por uma reles sílaba, onde já se viu? A petulância produz um insight agudo e cruel. Sim, atingi o nível último do alcoolismo. O mínimo que posso fazer é inventar alguma desculpa esfarrapada, fechar o Skype e voltar ao meu alpendre velho de guerra para terminar minha faina etílica. Mas que tipo de desculpa não soaria como mera desculpa? Minha cabeça está mais branca que lençol lavado com Omo. E se eu simplesmente desligar o computador? Afinal, o homem não me conhece. Nunca ouviu nem jamais ouvirá falar de mim. Sou tão ou mais desconhecido que o capítulo final de Finnegans Wake. Sair pela tangente apenas viria a acrescentar mais um vexame na longa lista  cujo registro provavelmente só eu mantenho. Além do mais...

-- Tudo bem -- LFV interrompe meu stream of consciousness. Deo gratia.

-- Seria demais pedir que aguardasse vinte segundos para uma viagem de ida e volta  à cozinha para reabastecimento? Serei meteórico, prometo.

Escuto minha própria voz fazendo a pergunta e não quero acreditar. Sim, AAA amanhã cedo. Sem falta.

Copo transbordando na mão, grau dez de autoconfiança etílica, inebriado de joie de vivre, por alguns minutos poderei fazer jus ao objeto introjetado do meu narcisismo mórbido. E, melhor de tudo, impunemente.

-- Vê, me diga uma coisa. Quando é que você planeja largar o osso?

-- A que osso você está se referindo?

-- Você sabe muito bem. Não se faça de desentendido.

Novo silêncio. Aguardo. Finalmente a lei está do meu lado. Como ele se omite, volto à carga:

-- Osso duro de roer você, hein Vê? Quem diria.

-- Amigo, tu por acaso está com fome? Trabalha em açougue? É ortopedista?

-- Não, Vê. Você sabe que não é nada disso. O que quero saber é: quando é que você vai se aposentar, abrir espaço para a nova geração, ora, vocês medalhões ficam aí esquentando lugar, você sabe, tem gente na fila querendo escrever, quem sabe chegou a hora de cuidar da aposentadoria, veja só o papelão que o Domingo está fazendo, assim de tenor esperando uma vaga no palco e o cara não se manca, pombas, já não conquistou todas as glórias? que mais ele quer? caramba, dá uma chance pros coitados, ainda mais você, sendo filho de escritor coisa e tal, olha, se meu pai fosse famoso, se tivesse publicado um livrinho que fosse, eu nem tava aqui te enchendo a paciência,  ia viver esnobando "Meu pai era escritor, entendeu? e não um escritorzinho qualquer, não, mas o maior escritor do Rio Grande, sacou?" Você sabe, sempre tem...

-- Chê...

-- ...o programa do Jô pra você mostrar seus...

-- Chê, JÁ DEU!

O tom categórico inusitado me tira do transe. Olho o copo. Inapelavelmente seco.

-- Me desculpe, seu Vê, é que minha mulher me deixou, sabe como é...

Silêncio.

-- Peraí, Vê, ainda tenho umas perguntas...

Silêncio.

-- Vê, não quero soar pretensioso, mas podíamos explorar umas possibilidades, sei lá, escrever a quatro mãos...

Silêncio.

-- Pelo menos me diga como terminar esta entrevista. Devo dar uma cortada abrupta como se o mundo tivesse acabado? Fingir que hoje é domingo? Apelar para aquele truque matelinguístico que você sempre usa...?

Nenhum comentário:

Postar um comentário