Como é do conhecimento de todos, sou homem duma mulher só.
E como sabem todos vocês, minha mulher é minha companheira. (Ouso
afirmar até mesmo no sentido leninista do termo.)
E o mundo também está a par de que, ao longo de nossa vida juntos,
ensinei à minha companheira e mulher exclusiva uma quase infinidade de coisas.
Entre elas, a desprezar as mentiras sedutoras do misticismo e as bobagens
pueris da astrologia.
Lhe mostrei ainda como comprar peixe na feira sem trazer para casa
um namorado à beira da putrefação. E como preparar um baiacu com pupunha e
legumes verdes de dar água na boca até na estátua de dom Pedro no Museu do Ipiranga.
Além disso, lhe dei dicas – inclusive na prática – sobre como
tolerar os intensos, os descomedidos ataques de cócegas que lhe aplico em suas
fragrantes e glabras axilas sem fazer xixi na calcinha de renda vermelha e
bege.
(Certa feita, depois de passar o dia todo fora só voltando para
casa na minha hora de trabalho, ela tirou um embrulhinho da bolsa e mo
estendeu. (Vou fechar aspas precocemente aqui para não me perder em algum
período mais elucubrado abaixo.))
“É um presente.”
Abri fazendo cara inquiridora ante uma caixinha mimosa e esquisita
fechada apenas por uma aba.
“Pra deixar meu amorzinho perfumado!”,
explicou.
Simulei um sorrisinho simpático enquanto abria a caixinha,
procurando não rasgar a embalagem para aproveitá-la em ocasiões futuras que
requeressem a troca de lembrancinhas.
“É um A Scent Florale EDP”, ela não conteve a
ansiedade.
E emendou:
“Quando
a vendedora me disse que o preço tinha baixado de quatrocentos e quarenta e
seis para apenas cento e setenta e sete, ai, não resisti! E ainda me deixou
pagar em seis prestações de trinta paus no cartão! É feminino, mas sei que você
não liga pressas coisas”.
Assim dizendo, arrancou o frasquinho da minha mão e aspergiu um
ligeiro borrifo em meu braço. Fechei os olhos, cheirei e fiz “hmmmmmm, que
delícia!”.
“Sem graça!”, ela riu.
(Ah como amo quando ela diz “sem graça!” Me sinto o mais endiabrado
homem deste planeta.)
“Você não usa nem desodorante. Podia pelo menos tomar banho mais
frequentemente”.
Fiz de conta que não escutei. Não gosto quando ela critica meus
hábitos pessoais – ou a falta deles. Não sei se vocês concordam, mas
brasileiros em geral raiam a obsessão pelo asseio e a higiene pessoal. Um banho
por semana para mim é mais que suficiente. Não receio meus odores, não temo
meus fedores nem acho que minhas secreções mais softs sejam caso de esfregação
e creolina diária. Me sinto até mesmo reconfortado e mais senhor de mim sabendo
que estou impregnado das bactérias odoríferas do meu próprio suor.
Voltando ao frasco de perfume que ganhei, naquela mesma tarde, por
um desses golpes de sorte que soem ocorrer uma vez na vida etc., fora passear
na rodoviária* no centro da cidade e tivera a ideia de roubar uma rosa duma das
floreiras ao redor da praça onde os ônibus estacionam.
*Não sei se já contei, mas tenho uma
queda por rodoviárias e ferroviárias, a ponto de ser bem capaz de me abandonar
um dia inteirinho zanzando entre os viajantes indo e vindo e vindo e indo como
se quem fora e viera fosse eu e não outro. Mas esta é uma outríssima história
que não tenho tempo de elaborar agora e que deixarei para outro dia. (Tudo bem,
sei que esse outro dia nunca virá, como tantos outros nunca vieram nem jamais
virão, pois míngua cada vez mais minha paciência para escrever sobre minhas
próprias manias (e, já que estou no assunto, sobre qualquer outra coisa)).
(Quando nos conhecemos, costumava invadir os jardins que
encontrasse pelo caminho e roubava uma flor para ela. Se não houvesse jardim
algum pelo caminho sempre dava um jeito de arrumar uma pequena surpresa para
não chegar à sua casa de mãos abanando. Como sempre fui mais duro que etc.,
essa pequena surpresa em geral se resumia a um poemeto garatujado no verso da
embalagem do meu maço de Capri em pé numa esquina. Na época fumava Capri (ou
Hilton long size quando dispunha de algum sobrando). Mas com o tempo acabei
deixando de lado o costume de me preocupar em lhe fazer agrados, provavelmente
porque fui perdendo a capacidade de sonhar e recusar, minimamente que fosse, o
ônus da sobrevivência, até um dia acordar este ser seco, tosco e
desinteressantíssimo que sou hoje.)
“Também me lembrei de
você”.
“Cadê?”
“Na geladeira”.
Ela abriu a porta do refrigerador e lá estava a rosa, num meio copo
d’água bem no meio da prateleira do meio.
“Tem um pouco de lasanha no forno e uma caixa de suco de pêssego
na geladeira. Ah, o maço de Camel tá na segunda gaveta do armário”, acrescentei.
Ela sorriu, alisou minha barba com os dedos e reclamou que eu
prometera aparar a cuja para seu aniversário e aproximou a rosa do narizinho
arrebitado e aspirou o perfume da flor com a doçura que a natureza cometera a
suprema justiça de depositar num único ser e sorriu um daqueles seus sorrisos
igualmente suaves, só para me mostrar como é que se aspiram os perfumes da
vida.
“O presente de verdade é
este aqui, seu bobinho”. Rindo, ela me estendeu outro
embrulho.
“Poe!”, adivinhei, esticando as pontas dos
bigodes, ansioso.
Não me canso de espiar (e expiar também) a desfortuna do
Afortunato.
“Para com isso, que tá virando ferida!”
“Não abre a torneira que ainda não arrumei o sifão!”,
alertei.
O sorriso se transubstanciou e por um segundo vi diante de mim uma
serpente com as presas prestes a abocanhar o mais frágil camundonguinho do
mundo. Ela aspirou novamente o perfume da rosa, agora com mais entusiasmo, e
disse que estava morrendo de vontade de comer carne.
Eu também, pensei.
Mas não disse.
E não disse tantas outras coisas.
Nem naquela ocasião, nem naquele dia, nem nunca.
Não disse que por “homem duma mulher só” não quero dizer
simplesmente que sou fiel à minha mulher. Ou que temos uma relação monogâmica. Não,
não é só isso que quero dizer.
Por “homem duma mulher só” quero também dizer que tive apenas uma
mulher ao longo de minha vida.
(Fora mamãe, que não conta nesta conta).
Por “tive apenas uma mulher ao longo de minha vida” quero dizer
que nunca tive outra mulher em minha vida.
Que nunca me apaixonei por outra mulher.
Que nunca fiz sexo com outra mulher.
Se o Polo Norte ou o Polo Sul não fosse tão desumanamente gelado e
inóspito, eu a carregaria para dentro duma caverna entre as geleiras e
romperíamos com o mundo e nos devotaríamos um ao outro longe dos tenebrosos
perigos a que estamos sujeitos nas cidades e nas comunidades sociais e
exclamaria “que se foda todo o resto!”
com entonação de macho protetor e ela, minha única, minha exclusiva mulher,
selaria nosso pacto cum beijinho úmido e estalado.
Enquanto eu sonhava com as distantes, cavernosas geleiras, ela já
voltava do barracão no fundo do quintal trazendo uma chave de grifo e uma
bisnaga que a princípio não pude reconhecer.
“Arruma logo esse sifão, que não dá pra ficar lavando louça no
tanque”. E enfiou a ferramenta e a bisnaga entre minhas mãozinhas delicadas
de inteleca sedentário.
“Que coisa é essa?”, perguntei, lendo o nome do
produto.
“Vedador de rosca, ora. Não foi você quem pediu?”
“Anaeróbico? Pra que serve?”
“Bom, quando vi o
anaeróbico, pensei, deve ser melhor que o aeróbico. Senão, não fabricariam um
anaeróbico.”
Me sapecou um selinho e foi cuidar da vida, me deixando de grifo
na mão tentando ler as infinitesimalmente minúsculas letrinhas da vasta descrição
na embalagem da bisnaga.
Bem, certamente não vai explodir quando eu aplicar no sifão,
pensei animado, me ajoelhando diante da
pia da cozinha.
Vendo que finalmente me agachava para fazer o serviço, ela ligou o
rádio (que nunca tiramos da Cultura FM). Em geral tenho a sorte de não deparar
cuma extravagância qualquer de Paganini, o mais chato dos compositores já nascidos
neste planeta de chitõezinhos. E minha estrela me acudiu mais uma vez: começava
a tenebrosa, a fantasmagórica, a apocalíptica introdução de Lohengrin, com Jonas Kaufmann.
In fernem
Land, unnahbar euren Schritten,
liegt eine
Burg, die Montsalvat genannt;
ein lichter
Tempel stehet dort inmitten,
so kostbar,
als auf Erden nichts bekannt
Em meu computador tenho duas versões do Lohengrin: essa com
Kaufmann, outra com Franz Völker. Raramente escuto apenas uma – gosto de ficar
comparando – no que, tem dia, sou capaz de gastar várias horas. Pois nunca
consigo me decidir qual é a melhor. São interpretações bem diferentes. Um
barítono, outro, tenor. Um, doçura do começo ao fim. Outro, alternâncias
repentinas, tons surpreendentes em cada frase. Depois que conheci Kaufmann
nunca mais escutei Plácido. E ninguém pronuncia o alemão como um alemão, como
diria Heidegger, secundado por Kant, Hegel e Blonda, a cadela pastor-alemão do
Adolf.
Como temia, manejar a chave de grifo acumulando estes 120 quilos
que a preguiça me deu sobre meus pobres joelhos que nasceram para apoiar não
mais que sessenta e tentando enfiar a cabeça por sob a pia logo me deixou
absolutamente exausto. Detesto ter de mexer os músculos. E minha barriga há
décadas deixou de ser encolhível, um centímetro nem por um minuto. E se não
posso retraí-la, não sou capaz de avançar o tórax outro centímetro que seja.
O suor começou a me escorrer pela testa, as têmporas, atrás das
orelhas, se infiltrando na barba, escorrendo pelo queixo até gotejar nos
espessos pêlos que tenho no peito e que também já estavam encharcados.
Foi nesse instante que me lembrei de
que estava morrendo de fome antes desta desastrada aventura de encanador.
Quando decido que estou
morrendo de fome não há o que me dissuada (epa) da vontade de enganar a
pança. Então lembrei que tinha visto, ao lado do meio copo d’água bem no meio
da prateleira do meio da geladeira quando ela abrira a porta do refrigerador
(opa), uma cartela de isopor ainda fechada contendo umas rodelas de mortadela.
Pessoal, se existe algo neste mundo repleto de carcamanos sem rumo
que faz com que o que me restou de lógica nos meus pensamentos deturpados se
dissipe num instante é a visão de rodelas de mortadela.
E se tem algo neste planeta de seres nascidos para a sedução pelo
estômago enquanto almejam à confraternização com os anjos que me sequestra do
meu estado de homem minimamente racional para me jogar numa cela obscenamente repleta
de guloseimas, quitutes e elixires divinos é a ideia de traçar um belo sanduba
de mortadela em pão italiano (epa) na companhia duma geladérrima garrafa
(detesto as famigeradas latinhas) de brama.
Incontinenti, larguei a chave de grifo e a bisnaga de cimento
plástico num canto debaixo da pia, me pus em pé sob uma traviata de gemidos e
palavrões, lavei as mãos e tomei as providências cabíveis.
E, equipado com os apetrechos do meu piquenique noturno, rumei
para o alpendre e assentei base.
Sanduba numa mão, copo de cerva n’outra, me entreguei aos meus
devaneios.
(Okay, pessoal, vou poupá-los dos ditos. Vocês, ou pelo menos a
maioria, já me conhecem e sabem que esse papo ameno que estou levando aqui pode
degringolar de repente. Sim, sem mais, nem menos. Vocês também sabem, é uma das
minhas fraquezas, essa coisa de degringolar, de vira-e-mexe. Se não me
controlar, logo parto pra virar a mesa. Dizem que sou louco por pensar assim. Mas
não se preocupem. Enquanto tiver meu sanduíche nesta mão e meu copo de cerva
nesta outra, estamos todos a salvo.)
Mas – e acho que, depois de tudo, tenho pleno direito a levantar a
questão – que outro momento me seria mais apropriado a devanear senão naquele
em que estou mais apto e desimpedido para me entregar aos meus devaneios?
E, mesmo nunca ter tido sexo com outra mulher, me sinto capaz de
afirmar que até hoje houve apenas uma fêmea com a qual fiz sexo verdadeiramente
ensopado de erotismo, paixão, volúpia, sofreguidão, fantasia, egoísmo,
animalidade, ternura, cumplicidade.
(Um dia (ou melhor, uma noite) me vi sem saída ante uma virago que
não pestanejou (não! não pestanejou, o monstro!) ao dar cum homem tão
suscetível em sua simplicidade mental e sua unicidade espiritual e tão frágil
em sua inépcia de se autodefender e fui obrigado a brochar para impedir que o
estupro se consumasse.
Pois é. (Ixe!)
As feministas de araque não imaginam – ou não são suficientemente
humildes para admitir – que muitas dentre o rebanho feminino seriam
plenamente capazes de executar aquelas tenebrosas ondas de estupro e impulso
eugênico que até hoje os historiadores afirmam ser prerrogativa masculina. É
mentira que uma mulher seja incapaz de perpetrar uma violação sexual, como
atestou Germaine Greer em A
mulher-eunuco. A mulher não estupra simplesmente porque não pode deixar em
sua vítima a semente duma nova vida mas sua vítima pode deixar uma semente na
estupradora. Como costumava dizer Humphrey Bogart, a humanidade está sempre uns
pensamentos atrás da natureza.
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