O vencedor

Respiro. Enquanto você decora a sala. Me entrego aos vírus e às bactérias. Enquanto você passa batom na boca. Bebo ao próximo minuto. Enquanto você planeja seus próximos vinte anos.
Respiro o pouco de ar que me cabe na atmosfera e que me foi deixado de herança por alguns poucos homens e mulheres prudentes desta terra hoje em chagas.
Por uns segundos me acho um ser eleito e elevo ao ar, dramaticamente, um brinde a esse meu deus que não existe e que esse meu raciocínio grosso e leal à minha história ao fim de tais segundos torna a se impor e a hemorragia dos meus pensamentos na superfície do meu cérebro estanca e agradeço envergonhado a algo ou alguém nos céus.
Tenho saudade da tuberculose que matou Álvares de Azevedo e das touradas madrilenas de Hemingway que hoje não toleraria reler. Quando li Adeus às armas, adolescente, jurei num dos cantinhos escuros da minha mente que seria um toureiro alcoólatra para todo o sempre. E fui. E sou. Toureiro hoje sem capa nem espadas nem touro ou arena ou sangue.
Sinto as pupilas se dilatando ante o brilho das tuas joias e o gosto amargo no fundo da garganta ante a meia-calça que vestes para sair na noite sem hora para voltar. Revivo minha era do Anjo azul e uma explicação imemorial me crucifica que, estou certo, fui desmamado precocemente. Um rádio longínquo toca Out of the Blue, de John Lennon, e lamento não ter prestado a devida atenção aos meus sentimentos quando tinha a capacidade de saboreá-los com a necessária intensidade então apropriada aos meus vinte anos.
Poderia ter, então, me enforcado. E, também estou certo, teria sido relativamente fácil e quase indolor. Hoje minha única opção é tentar imitar aquele que já não sou há tantas décadas.
Ao contrário do que imaginava então, o tempo vai devorando minhas palavras, aos poucos me encurralando num beco seco e estéril. Me reduzi a um espectador desse espectro que sobrou. Meus lábios se expandem sob a memória dos dias em que acreditei na lógica das ciências e me deixei enganar pelos princípios da termodinâmica e vislumbrei algum sentido no estudo das onomatopeias. Nos raríssimos momentos em que o superego me dava alguma trégua, fugia para as peladas no campinho da esquina e me entregava resolutamente aos dribles dos garotos azes do futebol.
Não acreditava na época em subordinação e não acredito ainda hoje. Era, e é, apenas um pretexto, obscuro para mim, mais obscuro para eles. Nunca – em instante algum – vi qualquer problema em me deixar enganar. Sempre – em todas minhas épocas – soube que o ludíbrio é parte integrante e natural das leis particulares que me regem.

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