Esta noite me sinto um tantinho menos
desamparado e reuni coragem para afirmar que mais uns meses – no máximo, alguns
anos -, seremos todos felizes.
Bem que gostaria de saber que estou um pouco
menos desesperançado que ontem mas, vocês todos sabem, não dou, nunca dei,
lhufas para o que deflagra – ou entorpece – meus sentimentos. Tudo que sei é
que sou movido por eles e isso me basta. Para a frente ou para trás, de manhã
ou depois do café da tarde que tomei a última vez com papai em 1969, nada disso
me interessa.
Há uns dias ando meio ressabiado com a cara sisuda
com que meu vira-lata Quico me olha às vezes. Não queria admitir – a mim mesmo,
ressalvo, aos outros nunca admito nada –, mas nessas vezes me dá meio que um
calafrio. O olhar dele se revela demasiada, extremamente intenso, como se me
censurasse... como se me condenasse... por existir! Não pode ser! me recrimino
em pensamento, refreando um sorriso íntimo, voltando o olhar para a minha amiga
mais íntima, a parede, me achando um pateta por deixar que um vira-lata me
intimide. Então tudo que não sei sobre mim mesmo e o pouco que sei de outros
homens e mulheres por meio da literatura me sobe ao cérebro (sobe ao cérebro?) como
se viesse me acudir e sinto o peito desofegar ruidoso em alívio e o terreno
desconhecido da humanidade vai lentamente reassumindo suas feições familiares. No
instante seguinte Quico escuta um cachorro latir algures na vizinhança e parte
em disparada, ladrando feroz mas disciplinadamente como se obedecesse a uma tábua
de mandamentos caninos. Arrematando o entrevero me ocorre lembrar duma definição
de Konstantinos Kaváfis: “os animais têm
sempre uma expressão séria”.
Mais uns meses, mais uns anos...
...mais umas conversas, umas reuniões,
uns entendimentos...
...seremos todos amigos.
Seremos todos inimigos.
Mais alguns instantes, alguns instantes
que nos tragam outros pensamentos e nos revelem outras realidades...
...e, se formos humildes o bastante para
enxergá-las...
...mas, você também sabe, esperar
humildade de nós mesmos depois que atravessamos uma vida inteira aprendendo a vestir
esta nossa intrincada máscara de autossuficiência, capacidade, diplomacia, inteligência,
sabedoria, perfeição, limpeza, maturidade...
Mais alguns instantes, compreenderemos as
sinfonias que se estenderem pelo céu da cidade assim que surgir a primeira luz
da manhã.
Talvez então, pela primeira vez em nossas
vidas, possamos aquilatar em sua plenitude o significado da palavra “humildade”.
E talvez então sejamos capazes de
aquilatar o significado da palavra “tolerância”.
E quem sabe um dia poderemos todos –
todos – aprender a rir do espetáculo em que os palhaços somos nós.
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