Onze

Nada tem importância. E, se tiver, não deveria. Ninguém vale a pena. E, se valer, não tem importância. O vivo me para na calçada, despeja dois ou oito baldes de palavrório nos meus ouvidos. Fico lá parado fingindo escutar, fazendo que sim, sim, sim. Não sei se o vivo apenas condescende com meu fingimento ou se nem se dá conta. Não seria de estranhar que nem percebesse. E não tem importância, obviamente. Para nenhum de nós dois. É apenas mais um dos incontáveis rituais que executamos dia após dia após dia. O vivo só daria importância se eu erguesse a mão espalmada diante do nariz dele, mandando que fechasse a matraca. Ele faria aquele esforço tremendo para disfarçar o mal-estar. Os papéis se inverteriam. Me daria conta. Mas não dissimularia. O vivo ainda exudaria grotescamente umas frasesinhas sem-graça para reforçar que por ele o ritual ficaria de pé até o sol resfriar daqui a dez bilhões de anos e então se despediria com alguma desculpa não muito esfarrapada.

Sou perito em dizimar rituais. Até entendo a necessidade ritualística, não sou bobo, não sou biruta. Só não tenho paciência. Nisso me equiparo ao nosso homem exemplar, Lula, que está de saco cheio de tantas denúncias contra seu partido de virgens vestais. Só divirjo do rapaz nessa questão. Lula também é expert em quebrar rituais. A diferença é que os estraçalha porque já sacou que assim obtém a devoção, quando não o temor, de seus seguidores tribais. Lula e seus apaniguados fazem o tipo rebelde chique. Quanto a mim, muito pelo contrário. Tenho nojo de todas as características e de todos os motivos de Lula e de como usa seus talentos histriônicos para conquistar a simpatia dos outros. Em Lula a demagogia é óbvia, obviamente. Mas todo mundo e sua estátua de Mussolini plantada no criado-mudo é demagógico, em maior ou menor grau.

Para mim pessoalmente, os demagogos mais intoleráveis são os que tentam seduzir usando a poesia. A sedução em si não deixa de ser uma forma de demagogia, mas concedamos que seja aceitável para atingir seus objetivos. Pessoalmente, sou munido duma sirene contra a poesia sedutora – poetas sedutores em geral são essencialmente desonestos e corruptores – e os que tentam se valer de emoções baratas para cair nas graças alheias, desprezíveis. Strictu senso não há escritor ou poeta não demagógico. Afinal au au os que escrevemos tentamos, legitimamente, levar o leitor a baixar a guarda e nos deixar convencê-lo de algo – ou conquistá-lo para nossas hostes. Num processo, entre outras sacanagens, bidu, sedutivo. O exímio poeta e o escritor competente o farão sem se deixar apanhar – e é aí, quando se dá a surpresa, que arrebatam o leitor – que estava inicialmente desconfiado ou mesmo emburrado –, vencendo sua resistência. O truque, para produzir o efeito intentado, deve ser imperceptível.

Não falo dos shakespeares, naturalmente. Estas minhas divagações erráticas de crítica literária se destinam apenas a consumo interno. (Se desafiado, alegarei, como sempre, que escrevo para mim mesmo.) Um truque que todo escritor deve guardar debaixo da manga é evitar ao máximo cair no ridículo. Infelizmente é grande o número deles que se deixam seduzir pelas próprias fantasias e quebram a cara sem precisar de ajuda externa.

Sim, cheguei até aqui abrindo mil possibilidades de desdobrar o texto. Por meio desta declaro-as, todas as mil, fechadas. Como na postagem de ontem, morri na praia a cada ponto final. E olhem que ainda ia trazer Nietzsche, Sartre e Beauvoir pra roda. E o vivo, pauvre? Esqueci do coitado logo no primeiro parágrafo. Quer saber por quê? Vou te dizer: porque não estava nem um pouco a fim de falar dele. É isso que dá começar a batucar no teclado. Sei lá, ainda não pude determinar, parece que, cada dia mais, escrevo um assunto pensando em escrever outro. Será que me faria bem ressuscitar Jacques Prévert? Pra variar, li Prévert ao vinte e tantos e o mundo e a vida me pareciam fantásticos e dignos de viver então.

E era então que precisava escrever um assunto pensando em outro. Mais uma vez as coisas saíram de sincronia. Queria finalizar proclamando que é o que sempre acontece, mas é o que sempre acontece e ainda não descobri como superar Pessoa. Será que preciso superar Pessoa? João Cabral diz que sim.

Me despeço esta noite de sábado mais uma vez professando minha humildade reconhecendo que minha liberdade se realiza em meu texto e é esta liberdade tudo a que almejo.


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