Tive um pesadelo esta noite


Eu sei, escutar pesadelos alheios é castigo. De estranhos então, tortura. Já bastam os nossos próprios, não bastam? E sonhos dos outros são meio nojentos. E completamente irrelevantes.


Mas, pombas, acho que tenho direito a um desabafo. Será o primeiro. E o último. Juro.

Estava c'uns amigos. (Amigos? Por acaso tenho amigos? Só em sonho.) E falava, falava, falava. Só que ninguém me dava ouvidos. Cochichavam entre si sobre algo que parecia muito suspeito. Eu tentava captar a conversa, mas eles não tinham voz. Então desatei a chorar. Mesmo assim ninguém me deu importância.

Certo, nada promissor até aqui. Na verdade, desinteressantíssimo como previsto. Mas tenha paciência. São só mais alguns parágrafos.

De repente vi minha irmã. Ao lado dela, um cão imenso e feroz e medonho. (Dobermann? Mastin? Chiuaua gigante? Não sei dizer.) Que de pronto nos atacou. Começamos a fugir. Corremos por ruas, avenidas, vielas e becos, até que entramos numa casa amarela e demos com mamãe conversando com um tio nosso que não víamos desde crianças. (Ele parecia uma daquelas visitas "especiais" que recebíamos sem sabermos donde nem por quê.) Roguei para que nos deixassem entrar, embora já estivéssemos na sala. Nos pusemos à espera. A porta nunca se abria. Terrivelmente assustado, tentei explicar a situação a mamãe. Mas ela me ignorou. Prosseguia em sua conversa com titio enquanto eu insistia em tentar lhe falar, em vão. Olhei para minha irmã e ela fez aquele olharzinho resignado lá dela, dizendo, mamãe nos ensinou a aceitar as coisas como elas são, a nos conformar, a baixar a cabeça para tudo e todos. "Desiste!" ela parecia aconselhar. Soluçando, olhei para o meu próprio peito. Estava banhado em lágrimas e sangue.

Nesse instante acordei. Senti o rosto molhado. Você pode calcular minha decepção ao constatar que havia uma ligação entre o pesadelo e a realidade. Fazia muito tempo que não tinha um sonho que me deixasse em prantos. Logo voltei a dormir.

Assim que caí de novo no sono, tive um insight instantâneo. E terrível. Como se a mais brilhante das lâmpadas me iluminasse por dentro, compreendi que sou um homem triste.

Ainda na casa amarela, surgiu uma escada a um canto da sala. Queria lembrar de que tal escada era feita, mas não consigo. Só lembro que caminhei qual sonâmbulo na direção dela e me pus a subir. Eram degraus intermináveis. (Me perdoe este novo clichê.) Depois de longas horas (ou meses, não sei direito), cheguei a um corredor. No fim do corredor avistei uma porta. Sendo, além de triste, curioso, rumei para a porta e abri.

Sabe o que havia atrás da porta?

Você não sabe, claro. Mas sei que pode imaginar. E sei também que assim já estou abusando. Que depois de me prestar a contar um pesadelo protagonizado por mães, tios e irmãs, ainda venho c'uma porta no fim dum corredor. Não, não vou cometer o absurdo de dizer que a escuridão no corredor era imperscrutável. Mas -- que é que posso fazer? -- era.

Atrás da porta havia um espelho. (Devo confessar neste momento que em minha casa real não tenho espelhos. Espelhos me dão medo. Não tolero ver minha própria cara. Certo, lembra alguém. Mas é uma coincidência involuntária.)

Ainda com a mão crispada em torno da maçaneta da porta, quis desviar o rosto. Tarde demais.

Vislumbrei a mim mesmo em toda minha pessoalidade. De novo, uma percepção aguda. Agônica.

Quis tapar os olhos ao ver uma cara estranha e inexpressiva de quem não tem nada por dentro. Era uma inexpressão medonha, se é que posso dizer assim. Cara de alguém desprovido de alma (embora eu nunca tenha acreditado em almas). Pior: cara dum sujeito vazio de sentimentos. Mais vazio que aquilo, só morto. O que me espanta agora é que a possibilidade não tenha me espantado então. Me perguntando se cadáveres expressam alguma coisa em seu rigor post-mortem, notei que não ter sentimentos me parecia perfeitamente normal -- e isso me perturbava uma barbaridade.

Então olhei meus próprios olhos. O contraste com o rosto foi um choque. Vi focadas em mim duas pupilas afogueadas, confusas, desorientadas, viajando erráticas nos glóbulos amarelentos em cuja superfície reverberavam freneticamente faíscas e trevas, lampejos e sombras, fulgores e negrumes, visões e cegueiras.

Cerrei incontinenti as pálpebras para não ver mais meu próprio olhar. Foi um erro, me dei conta instantaneamente. Pois tive a aflita percepção do meu cérebro. E de quanto meu cérebro era fantasmagórico. Seres terríveis o habitavam.

Seria eu um hospedeiro de animais até então absolutamente mudos, retraídos no fundo escuro de suas jaulas, dedicados a suprimir as manifestações de sua própria existência? Seria eu um zoológico ambulante, interditado à minha própria visitação?

Embora cônscio da minha anormalidade (consciência que tem me atazanado desde que tomei consciência de mim), experimentei um instante do mais puro, do mais radical horror. Há anos me entretenho com a ideia pueril de que meus fantasmas estão vivos e que posso até trocar algumas confidências com eles nas horas vagas. Mas os fantasmas que vi em mim naquele instante eram diferentes. Reais. Pude sentir mesmo seu hálito azedo e, cruzes!, a nítida noção da repugnância de seu couro viscoso.

Considerei a alternativa de acordar. Pus em dúvida minha capacidade de tolerar aqueles seres repelentes. Mas de pronto me ocorreu que, em meu estado anormal, meus pesadelos são uma delícia perto da minha realidade. Sofro da síndrome de Levi. Você sabe, o maior padecimento de Primo Levi em Auschwitz era quando ele acordava com o toque da alvorada só para constatar amargamente que seus dias no campo de extermínio eram reais e não um simples pesadelo.

Desesperado (não serei frívolo a ponto de dizer que quase tanto quanto Levi, mas posso garantir que foi um desespero inteiriço, totalitário, definitivo), tentei apelar para o único recurso capaz de me dar algum alento nessas horas: os escritores acima de qualquer suspeita. (Sei, você vai achar ridícula essa concepção. Pois ache. Afinal, também sou humano. Apesar dos pesares.)

Desatei a rogar: Jorge! Jorge! Jorge Luiz!

Por séculos a fio clamei pelo nome dele. Até que, exausto, me dei conta: Borges ficava pê da vida quando alguém trocava o esse pelo zê.

-- Jorge Luis! -- experimentei a grafia correta.

--  ¿Que  pasa?

Senti algum alívio ao escutar a voz rouca e imperial. Expliquei a situação, certo de que Jorge não se furtaria a socorrer-me.

-- I cannot help you. Sorry. -- Em inglês castiço e sem reticências ou aspas, como era de seu feitio.

Ao que não pude deixar de arguir:

-- No problem. Já não serei feliz, e isso não importa. Há muitas outras coisas nesse mundo.

Estranhamente, não me decepcionei com Borges. No fundo, sendo ele quem é/foi, já esperava a negativa.

Considerei a hipótese de apelar para outro autor acima de qualquer suspeita. Mas em seguida me rendi -- estava aspirando demasiadamente alto. A esta altura da minha vida, altura em que já não me concedo a delícia das mentiras juvenis, sei que os gênios literários não são para o meu bico.

Gregório teve de admitir-se barata. Eu, mesmo não metamorfoseado -- ainda --, vivo feito uma. Nada mais me cabe neste infindável universo amalgamado de luzes e sombras. A luz, quando ilumina apenas o interior, entreva tudo lá fora. A missão de escapar deste meu pesadelo-redemoinho em que sonho estar vivo já não me inspira. Devo entregar minhas armas.

Então, só me cabe a pergunta: terá meu pesadelo algum significado? Bah, não quero mais sonhar. Detesto sonhar. Detesto sonhadores. Nunca tive um sonho bom. Se tive, não me lembro.

Sei que os gênios literários não são para o meu bico. Resta-me contentar-me com os médios. Não necessariamente medíocres.

Ou, cruz credo, reconhecer que tudo não passa duma doença e ligar a televisão.

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