Sonometria tautológica

Quando lhe informo que o mencionaria num textículo que qualquer dia iria escrever, roga, praticamente juntando as mãos num gesto de súplica, que não o identifique. “Magina se os vizinhos ficam sabendo!” Os olhos dele se anuviam ominosamente. “São capazes de me linchar!”
Esse meu conhecido sempre foi brincalhão e me limito a rir.
Os olhos dele se fixam aflitos nos meus e então percebo que não era piada.
“Mas o que foi que houve, homem? Que é que os vizinhos podem ficar sabendo?”
Ele gira o pescoço para os lados, se certificando de que ninguém o segue. Aliviado, me puxa para perto na calçada e cochicha:
“Que sou seu informante.”
Franzo o cenho ante tal disparate.
“Como informante se nunca me informou nada? Além do mais, não sou polícia, nunca fui, nunca serei. Que história é essa?”
Sempre auscultando as cercanias com um olharzinho arredio, ele explica:
“Não é polícia mas é blogueiro. É ou não é?”
“Você sabe que sou. Mantenho um blog há uns anos. Quase ninguém lê mas me orgulho dele. É a minha contribuição, em que pese modesta, aos esforços dos homens e mulheres de bem para evitar que a democracia calamitosa da internet destroce de vez o pouco que resta da Literatura!”
“Baixa a voz!” Ele me puxa pelo braço para um canto próximo a um muro. “Podem estar nos seguindo. Não podemos confiar em ninguém. Absolutamente ninguém!”

Prezada leitora, terceiro round e knockout

[infelizmente segui vivo e, responsável que sou, não me furtei ao round final]

O escritor cumpre estranha empreitada - a de se exibir feito frívolo pavão de penas murchas e desbotadas, arrotando um conhecimento que apenas delira ter, masoquista a chamar a atenção de terceiros para os próprios defeitos até chafurdar no ridículo, desempenhando triste papel em que até o vulgo, até o néscio que não faz a mais remota ideia do que seja literatura, identifica como medíocre e na primeira conversa de balcão de bar com o compadre beberrão haverá de tascar-lhe - ao autor, não ao compadre beberrão - a alcunha de "escrevinhador".
E já que falamos da desculpa, que, como dissemos anteriormente, no mais das vezes recebe o justo apodo de esfarrapada, já de cara eliminando qualquer resquício de dignidade que possa ter restado do pífio embate com a palavra, o que em última instância é a razão por que tantos romances, contos, crônicas, críticas, relatos e comentários - nesta ordem - não passam dum pé no saco (padecimento em que mesmo mulheres podem se incluir se tomarem a expressão, por assim dizer, metaforicamente), não podemos nos furtar a abordar o pretexto.
Ah, quão bela é a contraposição desculpa-pretexto! - quiçá um dos mais interessantes fenômenos da literatura não só contemporânea mas também de todos os tempos. Pois com o pretexto tudo volta a mudar outra vez de figura. No que a desculpa tem de esfarrapada, andrajosa e - por que não dizer? - malcheirosa, encardida, desagradável e ensebada, o pretexto tem de nobre, garboso, distinto, sacro e casto. Com o pretexto, até chatérrimas enumerações de adjetivos pedantemente excessivos, supérfluos e fosforejantes podem parecer ser mais do que reles cascata, frango depenado em trajes de graúna real (se não existe tal ave, lancemos mais outra vez mão do coitado do pavão). Ao contrário da desculpa esfarrapada, em que todo papo é furado, nem toda conversa é mole com relação ao pretexto.
Certo, nem toda conversa é mole - mas pode ser. Tudo vai depender, é bom que se diga, do infeliz.
(Para quem já se esqueceu ou iniciou a presente leitura a partir deste parágrafo - sabem como é, certas leitoras há que morrem de preguiça de enfrentar preâmbulos e só têm olhos para o ponto principal -, peço que voltem ao começo e padeçam tudo de novo.)
A devota leitora já deve ter ouvido falar - ou quem sabe até mesmo lido em alguma revista literária ou na telinha do seu computador - de romances, contos e outros gêneros embasados em pretextos que pareciam uma maravilha - tocavam diretamente em nossos corações, nos incitando a ver em nossas experiências individuais o que elas, experiências individuais, têm de complexo e denso. Certos gênios literários logram mesmo o advento da aceitação do desafio da reflexão teórica e da busca do respaldo empírico que a alguns de nós nos leva ao hospital em virtude dum cálculo biliar malassimilado, assim permitindo que nos identifiquemos a nós mesmos nas palavras dum estranho que não temos a menor ideia quem seja, conduzindo-nos à beira das lágrimas.
Em suma, pretextos há que são os melhores do mercado.
Pois bem. Tendo à disposição um material extraordinário desse tipo, um escritor genuíno seria capaz de produzir uma obra-prima. Mas, e se a pobrezinha da leitora, por um imenso azar, cair nas mãos daquele repelente escrevinhador de que falávamos lá trás? Nesse caso, bem, tudo se põe a perder, obviamente. O desgraçado é bem capaz de meter os pés pelas mãos. E se for de fato um desastrado, não duvido que até cometa um vice-versa e patati patatá!
Para corroborar o que digo, cito um exemplo. Ainda ontem, lia - note, desconcertada leitora, o sutilérrimo emprego do pretérito imperfeito e do eclipse do sujeito, dando-lhe subsídios e mesmo um pano de fundo como mecanismo de legitimação que ultrapassa o alcance da dicotomia forma-fundo - ainda ontem, sentado em minha poltrona na sala diante do aparelho de tevê desligado, lia, repito, elaborada, recôndita, peculiar, transoceânica crítica de autoria de famigerado professor da USP sobre a cooptação e - por que não dizer? - resgate mesmo da obra de Machado de Assis como repercussão da primeira bateria da Mangueira no carnaval que se aproxima. Estou ali lendo a lapidar e bem-estruturada análise teórica, quando lá por parágrafos tantos - talvez no quinto ou sexto, não recordo direito - o quantativamente articulado educador perdeu aquele delgadíssimo fio que essa gente vive perdendo e... tã-tã-tã-tã! - o que fez quando pensou tê-lo achado? Tacou, bem no meio do saboroso e arcaizante texto, sem dó nem etc, um fio do "novelo".
E não cisme a leitosinha leitorinha c'um suposto intuito sub-repticiamente contrabandeado (!) nas entrelinhas desta crônica. Tem gente que apela ao mais vil recurso na malograda ânsia de isso mesmo. O autor só pede um cúmplice, por uma noite que seja. Amanhã cedo retomará sua perambulação infrutífera no úmido, fétido e ao mesmo tempo choco interior de si mesmo, a fitar desmoralizado e gemebundo as rachaduras que duvida se estão no teto ou em sua alma.

O voo

Na Barsa de 1966 de papai tinha essa pintura dum espanhol retratando uma ave em traços tão espessos, tão pródigos, que a tinta em excesso escorria livremente, em solene indiferença aos caminhos que pudesse trilhar na tela, e fiquei deslumbrado em meus onze anos com a ousadia do pintor – meus professores no liceu digno de Raul Pompéia na certa teriam uma síncope ante tamanho desprezo pela regra e meus olhinhos adolescentes brilharam impunes por mais uns anos.
Até você me deixar.
Na noite desesperada peguei um pincel e uma lata de tinta azulada e desenhei uma ave na parede da garagem.
E na semana seguinte recobri minha obra c’uma tinta pastel que sobrara d’outros carnavais.

Prezada leitora, segundo round

O segredo da boa escrita é o pretexto. Por que esse sujeito escreveu isto? pergunta-se a curiosa leitora. Mas então tudo já foi por água abaixo, pois em fazendo a pergunta mata a charada.
Escritor que dá no couro não deixa que lhem percebam o pretexto. A leitora lê, empolga-se, comove-se, distrai-se, chora, ri. Quando termina, está assoberbada pelo emprego justo e judicioso das palavras. A amostra de verdade com que teve o privilégio de entrar em contato a elevou a um estado de deleite e fruição, como gostam de dizer os hermeneutas e os eruditos. Num quase êxtase, não atenta para o pretexto que, como tudo que é interessante nesta vida, está por trás. E sem saber chega feliz à conclusão de que eis um autor dotado de, com o perdão da palavra, conteúdo.
Esse final feliz, porém, só ocorre com escritores verdadeiramente escritores. Quando não é o caso, a coisa toda, com perdão do clichê, muda de figura. E não é a única coisa que muda - muda também a boa-vontade apriorística da melindrosa leitora, que se, além de melindrosa for honesta, se meteu a ler desarmada de más intenções.
Nem sempre, nevertheless. É fato que entre essas senhoras dotadas de fervor estão infiltradas muitas espíritos-de-porco (ou não sei se devo dizer "porca", ignoro se essa pitoresca expressão tem flexão de gênero). São as que leem apenas para depois baixar o sarrafo no que leu e, ai de mim, no pobre do autor. Para rabugentas que tais não há bons escritores, mas tão-somente amadores atordoados pela veleidade de se ombrear aos camões (em minúscula, sim senhorita) do augusto e áureo panteão literário.
Não tratávamos de Camões, todavia, antes de perdermos o fio da meada. Nosso assunto, era, sim, o pretexto que nós, pobres escrevinhadores, precisamos forjar para escrever.
Quando o cabra é escritor apenas em sua própria imaginação e um amontoador de palavras na cruelíssima dimensão da realidade, aquele pretexto que, dizíamos, usa para entreter e ludibriar - no bom sentido, apresso-me a esclarecer antes que me acusem de maledicência, garantindo que nenhum dos sentidos que a leitora encontrará nesta crônica é mau, pelo menos não de todo - pois bem, nas mãos dum reles escriba aquele pretexto a leitora enxergará apenas uma desculpa. E como até os passarinhos em sua aérea e alada sapiência sabem, toda desculpa é tão esfarrapada quanto a ética lulopetista.
Não, leitora castíssima, não abane a cabeça. Antes que me acuse de embromador, estou, admito, ciente de não haver na Última Flor do Lácio dupla de adjetivo-substantivo mais manjada do que esta. Uma desculpa, bem o sei, não importa quão justificada, não pode ser rota, maltrapilha, andrajosa e qualificativos que tais. Se quiser valer no duro, tem de ser aquela palavrinha já mais batida que a carteira do contribuinte brasileiro por Lula e seus apóstolos. Assim como sei que uma disputa não haverá de ser outra coisa senão encarnecida, um toque, de otimismo e as eras, bem, as eras só podem ser priscas. E não nos esqueçamos de que as obras-primas só podem ser verdadeiras, genuínas e autênticas.
Tão logo manja a desculpa engendrada, não enxergará a atenta leitora senão uma sucessão de períodos, com perdão da aliteração, insossos e bisonhamente alinhavados? E o autor? Bem, jaz mais que claro que o infeliz teria se saído muito melhor se tivesse mantido a compostura em vez de tentar bancar o espertalhão. O problema é que muitas vezes o desgraçado não almeja outro propósito senão o de fazer papel de bobo. Arre! certamente desdenhará risonhamente a leitora incrédula de que possam existir sujeitos maluquinhos a ponto de se expor voluntariamente ao ridículo. Não pode ser! emendará, tampando, com dedinhos de cutículas aparadas e unhas esmaltadas, os lábios semiabertos e afunilados sobre o queixo caído e ao mesmo tempo estatelando os olhos, num típico gesto de quem tenta conter dentro do peito um palavrão mais cabeludo e expressivo.
Deveras. Aos olhinhos pragmáticos da inocente leitora é incrível que exista no mundo alguém disposto a meter-se tola e deliberadamente em labirintos dos quais, sabia de antemão, a saída não haveria de enxergar. Sendo um infeliz neuroticamente devotado a se meter debaixo das luzes da ribalta literária, foi-se aventurar por um caminho que a princípio parecia margeado de flores e ornado de regatos, imaginando-se protagonista dos Lieder do Winterreise pelos quais visualizava zanzando indolente sob a trilha sonora de canários e pintassilgos, se os houvera na Germânia de antanho. Só que, mal avançou os primeiros passinhos, o atrevido de cara percebeu tratar-se dum horrendo beco sem saída guardado por um exército das mais concretas gralhas e urubus.
Afinal, para que todo esse trabalho? a preocupada leitorazinha haverá outra vez de perguntar-se. O miserável teria feito muito melhor ficando bem quietinho no seu canto. Contristado, sem dúvida. Mais: terrivelmente frustrado com a própria incompetência. Ou ainda pior: angustiado por se descobrir um (ar)rematado poltrão. Mas ter-se-ia preservado lá em seu cantinho mesmo assim. Para a imensa maioria dos mamíferos bípedes que povoam o planeta, ser precavido é a maior, a mais vantajosa, a mais conveniente das virtudes. Há mesmo certas regiões do mundo em que, por paradoxal que possa parecer, não há proeza maior que admitir as próprias limitações  Em geral, os zés-ninguém não querem outra coisa senão desaparecer no meio da multidão. No linguajar do vulgo, dá-se a isso o nome de prudência.
Só nos cabe, só nos resta orar (a quem? Deus meu?) que nosso pobre amigo, na proverbial e zombeteira esquizofrenia com que tenta driblar e afastar pela linha lateral os revezes da existência,  não esteja esperando colher a valentia quando semeia sua gorducha escrevinhação sob oceânica enxurrada de filosofice.
[continua amanhã, se ainda estiver deploravelmente vivo]

Uma lata de gasolina, um palito de fósforo

Sílvia
Se você não voltar
Isto é um’ameaça
Boto fogo num busão
Da Vila Nova Conceição
Onde você foi morar
Deste ano não passa