Drum und Dran

Quer dizer que a questão é compreender?
Parece que sim.
Que os bebês são incapazes de andar e falar porque não compreendem, que os loucos têm de ser confinados num manicômio porque não compreendem, que os inebriados – pelo álcool, pela paixão pela música ou pela palavra – têm de redobrar o cuidado porque saem do estado de compreensão, que os fascinados pela liberdade absoluta de ser o que são e não o que os outros querem que sejam não estão nem aí se são compreendidos ou não?
Sim, não compreender parece impossível. A menos que, numa situação altamente hipotética, você pudesse existir permanentemente no pomar do Jardim do Éden apenas a olhar e a ouvir e a vislumbrar sonhos primitivos e a fruir.
Sendo assim, compreendo.
Compreendo que a vida seja uma luta e que os vitoriosos ganhem de troféu o mundo. Que os vitoriosos tomem posse do que até um instante atrás existia livre nesse mundo e a partir de então comecem a usufruir de suas posses apenas para seus próprios fins e enxerguem na liberdade a semente de todo o mal.
Compreendo que a lei da gravidade governe a movimentação e o peso dos corpos e que, portanto, seja sempre mais fácil se entregar que resistir à atração das massas maiores que cada um de nós.
Compreendo que um mundo sem leis seria inexequível. Que o império do caos nos expulsaria deste maldito estado de conforto que tanto teimamos em conquistar e estabelecer como nosso estado natural eterno e definitivo. Que o império do caos nos forçaria à lida permanente com a confusão e o risco frente às novidades que brotam ante nosso olhar a cada minuto e que a preguiça que nos impingem leis como a da gravidade e as dos homens de pronto liquida e inuma e que cedo na vida nos transforma em seres frouxos e moles obcecados por um apoio onde encostar o lombo, doentes de apatia e atormentados por pesadelos do que queríamos ser e já não podemos.
Compreendo que, não fôssemos o que nos tornou este império da lei do mais forte, o império do caos faria de nós seres transgressores, quiçá, por uma dádiva divina, anárquicos.
Compreendo que o império do caos finalmente nos obrigaria a chutar a bunda uns dos outros a cada momento pois talvez nos convertêssemos em novos humanos com o sistema de nervos simpáticos removido e os músculos das nossas pernas e os neurônios adormecidos dentro dos nossos cérebros, a cada instante espicaçados pelo pensamento constante, eliminassem da vida o império do sentido de preservar, manter, proteger, garantir, guardar, defender, cuidar, dormir e perpetuar para não sermos esses fantasticamente inúteis seres fantásticos que somos.

Rsrsrsrs

Leio na cordata Folha de São Paulo que um sujeito de nome Juliano Cazarré, com 33 de idade, “foi criticado nas redes sociais ao desdenhar de uma camisa que comprou por R$ 8 no Nordeste”.
O jornal informa que Juliano Cazarré “viveu o Ninho de ‘Amor à Vida’, da Globo”. Bem que podia informar também que raio de ninho de amor à vida é esse. É ou não é o caso de sair fazendo piadinha sem graça com o troço.
Consta que, sobre a citada camisa, Juliano Cazarré escreveu numa rede social que "lavou, acabou". Para em seguida começar a receber pauladas de seguidores por causa do comentário.
Que foi que Juliano Cazarré fez então?
Foi correndo pedir desculpas ao seu “público”. Segundo a Folha, elogiou a peça. Jurou “estou feliz com a minha camisa e vou usar até se acabar! Tomara que dure muito, porque é linda! Não quis ofender ninguém! Fiz graça do tecido da camisa. Se alguém se sentiu ofendido, peço agora sinceras desculpas!”
Meus leitores que me perdoem, mas os pontos de exclamação são de Juliano Cazarré. Não tenho nada a ver com isso.
E Juliano Cazarré foi além. Declarou “adoro o Nordeste, conheço muito a cultura daqui, leio muita literatura e escuto muita música boa feita aqui.” E, nos termos usados pela FSP, garantiu: “Vou continuar usando a camisa amarradão!”
Um dos programas de tevê no alto da minha de lista de ódio era aquele Casseta e Planeta. Às vezes lia os carinhas quando ainda publicavam um jornaleco meio satírico vendido nas bancas. Me lembro de algumas capas altamente mordazes (com perdão do arcaísmo). Uma ilustrava Maluf sendo enrabado por um negão. O jornaleco fazia sentido dentro da impostura cultural brasílica e não era eu o único leitor a perceber. Quer dizer, os caras começaram a fazer algum sucesso e logo foram para a Globo. Como é óbvio, acabaram aí. Milionários mas artística e culturalmente nulos. E perderam o sentido social antigo para ganhar um novo, o da grana acima de tudo. Tudo bem, vivemos sob o capitalismo, ainda, e, ao que parece, continuaremos assim por algumas décadas mais. Lula já está no osso e não terá tempo de enraizar o stalinismo no “seio de nossa gente” (vou botar entre aspas, nunca se sabe).
Nem tudo que o tal Casseta e Planeta criou, contudo, foi lixo. O bando deixou de legado pelo menos uma expressão idiomática (que, aliás, parece já estar morrendo, não a leio nem escuto amiúde por aí). Vocês haverão de convir que não é pouca porcaria. Só para fins de comparação, pensem em Monteiro Lobato, Mario de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda e tantos mais. Esses legaram ao vernáculo uma porrada não só de expressões mas também de conceitos e visões de mundo. Okay, nem a Nicinha, a atendente da farmácia aqui na frente que me passa Rivotril na maciota, nem ninguém mais dá lhufas para o que Lobato, Andrade ou Buarque deixaram ou deixaram de deixar. Pode parecer que não, mas sei muito bem minha realidade e estou ciente das minhas limitações e dos meus limites.
Fosse eu “seguidor” de Juliano Cazarré...
Me perdoem mais uma vez, mas quer dizer que agora as pessoas têm seguidores? Quem é Juliano Cazarré afinal?
Ah sim, esqueci de dizer. Vi essa “notícia” da FSP numa seção intitulada “Celebridades”. Juliano Cazarré é, ao que parece, uma celebridade. Tudo bem, não escreveu nenhum poema digno da “Tabacaria”. Tampouco liderou uma blitz-krieg contra a casamata da NSA em Washington por ter espionado os importantérrimos telefonemas que Vilma Vana trocou com La Loca de la Casa Rosada. Muito mais que isso, Juliano Cazarré viveu o Ninho de Amor à Vida da Globo. É natural que o sigam. Onde? Numa “rede social”. Aonde? Não tenho a mínima ideia. Por quê? Bem, vocês provavelmente imaginam.
Minha ex Sílvia deixava a tevê ligada a noite toda e quando passava na sala eu parava pra ver e escutar aquele gordão do Casseta e Planeta numa situação qualquer debochar com a maior cara de pau do mundo “fala sério!”
Não queria esgrimir essa expressão enquanto falo do Juliano Cazarré. Já saquei que estamos diante dum pobre-coitado impossibilitado de falar sério.
Fala sério, ninguém nem seu ventríloquo é capaz de falar sério.
Todo mundo e seu papagaio é, cada dia que passa, mais incapaz de falar sério.
As pessoas hoje em dia sequer falam.
As pessoas hoje em dia emitem bordões. Papagueiam frases prontas. Ecoam slogans que seus cérebros ainda-já moribundos se recusam a ignorar sob o açoite dos instintos.
As malditas redes sociais estão moldando um novo comportamento que vai engendrando uma nova linguagem que vai conformando uma nova língua. Hoje alguns de nós ainda somos capaz de compreender o que Camões escrevia mas duvido que daqui a 50 anos os ultra guris filhos totais da tecnologia entendam o que falamos hoje.
Os robôs nas redes são todos clones do singelo Juliano Cazarré que bateu continência feito um autômato ao ser pego no flagrante da inconveniência social.
O coitado comprou uma camisa que se desmanchou na primeira lavada e manifestou em público seu descontentamento com a efemeridade do produto e sofreu um linchamento cibernético.
E se apressou a suplicar misericórdia. Pois Juliano Cazarré é uma celebridade e celebridades devem cuidar de sua imagem midiática.
Mas nem só elas, celebridades.
Navego dois minutos pelas “redes sociais” e, cáspite, todos se tornaram celebridades. O zelo é o mesmo. O receio de ofender o outro é o mesmo. Ninguém diz o que pensa. Ou diz apenas parte do que pensa.
O “rsrsrsrsrs” é o passaporte para uma vida confortável e sem traumas na rede. Virou praxe há algum tempo, mesmo anos.
Você diz não o que quer dizer, mas o que acha que o outro quer ouvir. E, por medida de segurança, apõe um “rsrsrs”. Pelamordedeus, não me entenda mal. Estou apenas interagindo. Eu te entendo e espero que você me entenda. E se não me entender, rsrsrsrsrsrsrsrs... (As reticências sempre atuam como dispositivo extra contra mal-entendidos.)
A nova estirpe de rede-comunitários digitais vai acabar gerando uma nova raça humana. O internauta não ousará expressar um pensamento que possa de alguma forma ir de encontro ao senso comum.
Ah, o senso comum!
Será o grande fetiche da humanidade de que nem o próprio deus desconfiava?
Lá vão todos eles em fila rumo ao Grande Senso Comum que faz de todos um e único um.
A égide do rebanho é, se é bom pra você, é bom pra mim.
E se, enquanto caminha para a totalitarização, uma voz destoar no meio da manada, esta emitirá em uníssono um imenso, um definitivo, um ensurdecedor RSRSRSRS! que o selvagem, o subversivo, o inconveniente jamais ousará utilizar o cérebro outra vez.

Há alguma coisa na sombra?

Estou tentando escrever desde domingo passado. Cinco dias. Só de pensar me dá dor de barriga e meio que entro em pânico. Fantasio que nunca mais serei capaz de escrever um "a" sequer. Então me lembro de que já passei tantas vezes por esse angu e fico dizendo a mim mesmo, é fase, é passageiro, é temporário, é o caralho.
O maior medo é descobrir que escrevo por escrever. Isto é, não impulsionado por uma necessidade íntima ou como reação a uma experiência. E o medo é tanto, que NUNCA penso nisso. Há muito tempo achava que a hora de pensar viria assim naturalmente e eu me veria obrigado a pegar o bicho à unha, sem ter aonde escapar. Hoje sei que não é tão FÁCIL.
É TÃO fácil identificar a escrita automática nos outros. E não só em escritores amadores. Escrevi muito a respeito há uns cinco, seis anos, imaginava que tivesse resolvido o assunto para fins de consumo interno. É com desgosto que admito que o problema não tem solução.
O "traquejo" é a desgraça.
Lembra do traquejo? Há anos não leio em lugar algum. Parece que não usa mais.
Nos tempos em que se usava ordinariamente, significava "facilidade ou habilidade adquirida com o uso". Hoje aprendo que pode se tornar um flagelo para quem aspira a mostrar o que sente, MUITO, MUITO além do que simplesmente sabe fazer ou faz por obrigação.
É mais ou menos sempre — repito, é mais ou menos sempre — num momento como este que me ocorre pensar e escrever sobre um dos meus temas pessoais prediletos — o mecanicismo.
Sem pretender fazer piada, o mais duro é não tocar o assunto mecanicamente.
Como já escrevi mil vezes em outras mil vezes, todo escritor, inclusive o grande, está irrecorrivelmente circunscrito ao seu próprio mundo, feito de suas próprias experiências, e dele é incapaz de fugir. Exatamente por isso, todo escritor — ou artista — cedo ou tarde se repete. Ninguém tem a capacidade de englobar toda a experiência humana numa só experiência. Shakespeare e Goethe talvez tenham apenas chegado perto.
Um dos grandes inimigos do criador é a capacidade de emular — e é precisamente aí que ele se aliena da capacidade de criar, na acepção original e única do termo.
Temos um controle apenas ilusório sobre nossas capacidades e habilidades de perceber as coisas. Ou, pra ficar na arte, de perceber as coisas duma maneira nova, seja pros outros, seja, principalmente, pra nós mesmos.
A realidade exige de nós uma atenção altamente exaustiva. Imagino que seja esta a razão de termos flashes e vislumbres e insights extremamente fugidios do mundo. São fagulhas cujo brilho nos encanta por um átimo e que tentamos reter e converter em EXPERIÊNCIA para poder traduzir em arte em algum momento no futuro, mas fogem da nossa apreensão como fogo-fátuo que são.
Nesse sentido, penso que tenho sido honesto comigo mesmo.
Quer dizer, reconheço que não sou Shakespeare ou Goethe ou Proust e que MEU TEMA não é esmiuçar a realidade dos homens e sim me colocar de antemão como mero, como simples, como humilde aspirante à chance de dar uma fugaz espiada no GRANDE SISTEMA.
A empreitada não é mole. À medida que avanço, vou cometendo abusos e incorrendo em injustiças e até mesmo pecando por um dos crimes que não perdoo a ninguém — a leviandade. Sou e tenho sido leviano muito mais vezes do que me permitiria se pudesse encontrar outra saída para minhas próprias pequenezas.
Escritores e poetas são como rojões — atingem as alturas, eclodem em esplendor, deslumbram, aturdem e caem apagados. A história da literatura está forrada de exemplos dos grandes que não se conformam com o destino do brilho efêmero. Nada mais humano que o sonho da eternidade.

Talvez seja por isso que certos pequenos se contentem em deslumbrar os cegos.


Aviso aos naverrantes

O naverrante que por caminhos insondáveis vier desembocar pela primeira vez neste blog certamente estranhará o título. (Pra quem não notou, “UM BLOG LITERÁRIO BRILHANTE”, tudo em caixa-alta, próprio dos cabotinos histéricos.)
Donde veio a ideia de achar que os textículos por aqui brilham, nem imagino.
E, além de reluzir na mais escura treva da mais longa das noites, este meu pequeno blog vai singrando pesadamente pelos vagalhões sinistros do mar gélido da solidão cibernética, brbrbrbrbrbrbrbrbrrrrrrr brbr brbrbr brbrbr brrrrrrr brbr brbrbr br brbrbrrrrrrr.
O naverrante ávido por horizontes desconhecidos encontrará por estas praias com excesso de areia árida e escassez de vida e abundância de conchas abandonadas cadáveres e esqueletos para todos os gostos. Bem ao, com perdão da anáfora, gosto dos odisseus modernos.
(E pensar que certos leitores de tão modernos, nem ao menos leem.)
Tem lirismo comedido para os retardatários do Otto Maria Carpeaux, tem lirismo descomedido para os atrasados do Modernismo mundial, tem grandes teatros sem ninguém no palco e narrativas farsescas que nunca terminam. E tem muitos outros tipos de lirismo cuja taxonomia, que ainda não tive tempo de levar a efeito, acho que deixarei a um crítico da Folha ou da Veja quando finalmente se dignar a fuçar o sítio arqueológico dos blogs literários.
Afora a lira ocasionalmente desafinada, o naverrante verá também que o que não falta por aqui é desabafo. O autor – eu – é e sempre foi um sujeito deveras etc e por isso precisa bidu, caso contrário é bem capaz de pois é.
Como já mencionei em outras ocasiões, primeiro sofri aquele tremendo afogamento de nove meses dentro do útero de mamãe (que nem por isso pegou leve depois de me expulsar sumariamente de seu ventre; muito pelo contrário, até; ficou tão ressabiada, que dedicou parte da minha infância a me fazer pagar pela gravidez que, no meu entendimento, era desejada apenas por esse ajuntamento vago de vizinhos, parentes, amigos e conhecidos que se unem para formar a coação social e nos obrigar a fazer o que não queremos; até hoje, sempre que chego em algum lugar, a primeira sensação é que não sou bem-vindo; esse sentimento de “deslocamento”, como gostam de se orgulhar poetas e rebeldes em geral, não surgiu à toa). Me conhecendo como me conheço hoje (já fui muito mais ignorante a meu próprio respeito, creia), nem imagino como suportei aqueles nove meses sem respirar, sem mudar de ambiente, sem ter como sair correndo para a rua com minha Zezeí mescla de chiuaua e dog alemão como faço agora sempre que me dá essa minha gana de tacar meu cabeção na parede por não ver saída deste cul-de-sac em que fui metido.
Só a título de ilustração do “maternal” tratamento materno que recebi, certa ocasião fui rebocado pela orelha esquerda ao longo de um quarteirão e meio por ter surrupiado uns trocados da carteira da velha e comprado uns pacotes de figurinhas na quitanda da esquina. A meninada de-bem-coa-vida dos tempos que correm nem imagina que as frágeis orelhinhas dos capetas de antanho serviam mais de alça do que qualquer outra coisa. Eu era o único – ou um dos únicos – moleque das redondezas destituído da regalia de ter um álbum dos grandes times paulistas e não podia permitir que essa falha gravíssima – que escapava cabalmente à minha responsabilidade – virasse motivo de deboche da minha pessoa. Todo mundo que já teve uma infância e sua babá sabe que violadores das regras sociais infantis não têm perdão – cedo ou tarde acabam no ostracismo, castigo pior do que uma tunda moralizante aplicada numa quebrada qualquer na volta da escola ou um muquete no pé d’ouvido só para lembrar quem é que manda no pedaço.
Mas, peraí, estou atropelando o enredo. Apanhei muito dentro de casa antes de começar a apanhar na rua.
Comecemos do começo.
Minha gestação foi bastante tardia, digo, para os padrões de hoje. Mamãe contava 41 outonos. Naquele annus mirabilis de 1954 (Getúlio estourou o próprio coração c’um balaço parcos quatro meses antes da minha entrega; uma época fiquei bastante chateado por ele não ter me esperado), normal.
(Falando em Vargas, certa vez, alguns meses antes do meu incidente inaugural, o presidente passou com sua longa comitiva na rua lá de casa rumo a uma fábrica de ladrilhos que à época era a maior da região. Mamãe e toda a vizinhança acorreram às calçadas para agitar bandeirolas e flâmulas (comuns então) e saudar o grande líder misto de salvador da pátria e ditador, mais ou menos como o homúnculo misto de stalinista e demagogo que nos honrou com sua presidência antes da ascensão de Dilma Vana. Lamento pacas que a moda inaugurada por Vargas de se safar duma crise política dando cabo da própria vida não tenha sido seguida por outros grandes líderes que vieram nos atazanar a existência depois. Estou torcendo fervorosamente para que Lula se candidate no lugar da Dilma Vana este ano. Assim, a esperança será a penúltima a morrer.)
Naqueles tempos era comum mulheres de 40, 50 e até mais parirem. Como vocês sabem, quanto mais a fêmea mantém seu mecanismo procriador ativo, mais aumenta sua capacidade de proliferar e mais prolonga seu período de fecundidade. Hoje dizem que o risco de gerar um portador de Down é enorme. Ui que me arrepio. (Só a possibilidade de gerar um ser flagelado com algum mal incurável é motivo para sequer sonhar em ter filhos. E mesmo males curáveis dão o que pensar, naturalmente. Sendo que a própria vida já não tem cura, pra começo de conversa. Embora esta seja uma outra conversa.)
Por outro lado, em minha infância e adolescência nunca conheci nenhum desses pobres coitados amaldiçoados com a mortificação do Down, apesar do grande número de mulheres que engravidavam tarde antigamente. Sei, era apenas falta de conhecimento. Hoje se divulga tudo, se sabe tudo. (Mudança forçada de rota neste ponto. Não sei falar deste assunto.)
Papai, por seu turno (ando tão afonso-arinos-de-melo-franco), estava a uma semana de completar 45 quando desci ao mundo naquela fatídica, candente madrugada do dia 14 de dezembro. (Dizem que maioria das encomendas chegam de madrugada, será verdade?) Sim, ambos com idade para ser meus avós. Talvez tenha sido o que foram de fato, sem me dar a compensação daquele lado benigno, segundo explicam os entendidos nesse tipo de coisa, da condescendência, quase licenciosidade, com que os avós tratam os netos em contraposição ao rigor disciplinatório aplicado pelos pais.
Quando desembarquei da minha cápsula aconchegante e protetora mas desprovida de ar e passatempos, minha avó materna era a única a ainda resistir bravamente viva. Só foi dar o último suspiro aos 63, em minha casa, quando eu já celebrara o oitavo aniversário na presença do meio-irmão mais velho, da meia-irmã mais velha, da irmã mais velha, dos primos e parentes e nenhum vizinho. Foi vovó quem me ensinou tacitamente a palavra “neurastênica”, cujo significado e significação nunca mais esqueci – malgrado as tentativas nos incontáveis, homéricos porres que tomei e venho tomando com devoção mais e mais intensa a cada dia. Arrastava malsã pra lá e pra cá o corpo alquebrado de tio Goriot entre os cômodos da casa e o quintal, sem se preocupar em esconder ou disfarçar uma máscara amarga e o dissabor de existir. Não falava, só se exprimindo aos resmungos, no mais das vezes monossílabos impacientes que soariam qual latidos se fossem mais potentes. Quando comecei a desenvolver um tico de consciência das coisas me dei conta de que movia minha avó uma profunda revolta de viver. É um sentimento absolutamente assoberbante que me ocupa a mim também a maior parte do meu tempo e contra o qual tenho de travar uma luta permanente para não sucumbir, batalha quase sempre perdida. É revolta comum em quase todos os descendentes da mãe de mamãe. O que me distingue da maioria, acho, é que eles parecem ter aceitado quase com naturalidade o amargor hereditário, se deixando entregar a uma rabugice que, com a noção de total bem-estar e sanidade e busca sem tréguas da saúde física e mental que regem a ideologia de hoje, dificilmente seria tolerada. Ou geraria conflitos que certamente dariam na ruptura. E seríamos ainda mais solitários do que nos coube ser.
E o lado materno e seus vastos emaranhados é, obviamente, apenas o segundo membro da minha equação de infinito grau. O primeiro, o paterno, talvez seja ainda mais intrincado. Mas não tenho ânimo de tratar dele agora. E, mesmo tendo chegado até aqui (para minha própria surpresa), não me sinto confortável como memorialista. Prefiro meu papel de escritor sem uma história pra contar. Ou, em nome da minha tradição pessoal que venho me esforçando caninamente para construir, de ator sem um papel pra representar.
Sobre minha ascendência paterna, vou citar apenas que seu embate com meu lado materno gerou um resultado explosivamente malfadado.
O casamento de mamãe e papai foi o segundo para ambos. Este trazia na bagagem um filho adolescente. Aquela, uma menina, também na adolescência. Anos antes mamãe perdera para a hemofilia um menino, com apenas nove, morte que, aos meus olhos, parecia ter aceitado c’uma candura que nunca consegui compreender. Talvez como consequência do catolicismo, que era sua razão de viver.
O casamento se deu ainda num vilarejo chamado Américo Brasiliense, próximo a Araraquara, onde meus avós maternos mantinham uma padaria, escalando a filha primogênita para o cuidado de seus sete irmãos. A família de papai – que tinha oito irmãos, um a mais que mamãe – habitava uma grande fazenda de café situada num lugarejo de nome Santa Lúcia, na mesma região.
Papai começou a trabalhar na roça aos nove. Juntamente com os irmãos, acordava à quatro, empunhava a enxada às quatro e meia depois dum grande copo de leite tirado diretamente de úberes bovinas adoçado com açúcar cristal, almoçava às dez, jantava às quatro da tarde e às sete da noite já estava debaixo das cobertas. O dia de cada um dos precoces roceiros era repleto de aventura, logicamente – o eterno mourejar contra a indomável natureza – que hoje, aparentemente, estamos domando ao extermínio – e sua insistência em cercar cada pé de café c’uma trempa de touceiras do inferno. (A blasfêmia é minha. Papai não blasfemava. Nunca escutei um único palavrão de seus lábios. Em contrapartido, emito um a cada cinco segundos. Como lamento não tê-lo mais por perto para apreciar sua docilidade e circunspeção.)
Foi em Américo Brasiliense que nasceu minha irmã, dois anos mais velha que eu. Logo em seguida a dupla de caboclos se mudou com sua pirralha para perto de Sampeia, onde mamãe, instada por papai, viria a ter um aborto, que deplorou dia após dia até seu último suspiro neste mundo, de que partiu duas semanas antes de soprar 96 velinhas. Profundamente religiosa, nunca se perdoou. Imagino que tenha sido trágico também para papai. Pouco depois chegava minha vez. Queria sinceramente poder evitar mas não resisto a especular como seria se o “destino” me tivesse trocado de lugar com aquela vida que gorou pouco antes de mim. Soa frívolo, sei, mas este blog então não existiria e não existiriam todas as coisas e nem o mundo e nem a vida e tudo seria simples e hoje não seria domingo e as crianças não estariam fazendo algazarra em frente aqui de casa.
Veio então aquele asfixiamento, frenético afã que todo mundo e seu pediatra comete contra um réu recém nascido. A família acorria em peso à nossa humilde casinha encarapitada no alto da ladeira para contribuir com a solidez da educação do novo bambino e se empenhar no máximo esforço de evitar que o pobrezito desse co’s burros naquela água que vai escasseando hoje em virtude da imprevidência da Sabesp. (Alguém aí já leu, quer dizer, tentou ler os artigos dominicais dum sujeito chamado Gaudêncio Torquato nas edições dominicais do Estadão? Ele escreve assim. Assim como? Como escrevi acima, largando displicente símiles sem-vergonha ao longo do texto até lograr a mais insossa e atravancada salada literária da Terra.)
Bem, como estava dizendo antes de me interromper, todo mundo e seu coroinha vinha em casa ajudar a macerar lições de vida para o novato. Sendo a família constituída de beatos, um padre ou outro sempre dava uma passadinha. E tia era o que não faltava. Cada uma mais neurastênica que a outra e todas mais que a matriz.
A troupe reunida formava um coral de lamentações que entoava sem parar a grande, a imensa sinfonia a capella da minha infância, feita só de gemidos, guinchos, lástimas, muxoxos, cochichos e sussurros. Para tristeza de Bergman, gritos eram raríssimos, quase inexistentes. As carrancas de padecimento não ficavam atrás com narigões italianados a se torcer e retorcer, cenhos a franzir e desfranzir, lábios crispando, se amorfanhando, enrugando, esticando, dentaduras mordendo, pálpebras se espremendo, emprestando ao conjunto a mais poderosa carga de drama e furor que jamais presenciei. Papai assistia a tudo num canto, impávido colosso, não tenho certeza se divertido. E o pequeno paladino na voragem do olho do furacão do vórtice do redemoinho só tentando entender, estado em que se encontra até hoje.
Até os três, quatro aninhos penei pra c’ralho (sim, ainda na minha fase lusitana) nas mãos dos meus amorosos genitores e tias à beira dum ataque de nervos e primos cruéis e padres tarados (com perdão do pleonasmo). Pois que estavam decididos a fazer de mim um vencedor na vida.
Quem venceu foram eles.
Depois passaram a bola – eu, de novo – para os vizinhos e os filhos dos vizinhos e a comunidade em geral. A ideia, imagino, era me socializar, verbo que deixaria ambos – mamãe e papai – apreensivos se a pedagoga do instituto de ensino onde me enfiaram um dia para que o taciturno, enigmático, amargurado, quase lúgubre e provavelmente misantropo diretor seu Vicente me mantivesse sob seu olhar cujas características ensejariam uma fileira ainda mais comprida de adjetivos  o pronunciasse durante uma reunião de pais e mestres. Como nem tudo na minha vida foram espinhos, por sorte eles nunca compareceram a uma tal reunião, lavando as quatro mãos e por conseguinte designando a uma estranha a missão de ensinar ao pestinha onde a porca torcia o rabo. Tinham mais que fazer além de escutar as admoestações técnicas que uma fariseia desconhecida pudesse ter sobre o rebento que tinham arrancado do nada com tanto sacrifício.
Como devem estar lembrados, disse no parágrafo acima que a “ideia” era me socializar. Certamente perceberam que foi apenas força de expressão. Mamãe, sua única ideia do que quer que fosse era descolar uns trocados na cidade grande pra ver se deixava pra trás a infância e a mocidade de mínguas no balcão da padaria da Américo Brasiliense velha de guerra. A aspiração a crescer na vida era pelo menos um começo. Pois papai, esse não tinha ideia absolutamente nenhuma. Foi indo aos trancos e voltando aos barrancos aonde quer que mamãe o puxasse pelo braço, ar entre apático e agoniado, um defeito de infância no pé direito que o obrigava a mancar distintamente e, por isso mesmo, um andar meio trôpego, a encarnação da insegurança. Asseverar que nutria um plano para fazer de seu caçula – eu, mais uma vez – um cidadão minimamente “resolvido”, para usar o jargão moderno, seria viajar na maionese. Lá em casa não tinha dessas chiquezas não. vivíamos da mão para a boca.
Bem, por ora esta sessão de reminiscências vai ficando por aqui. Se a preguiça me largar, talvez acabe obrando uma autobiografia qualquer hora. Mas acho que já a perpetrei. Está tudo aí atrás neste mesmo blog. Se viesse a fazê-la, a biografia, é bastante provável que trouxesse a lume apenas o lado ruim. Ficaria mais manca que papai, que por sua vez não era tão manco quanto um irmão de mamãe que trabalhava na estação ferroviária, acho que também em Américo, e teve o pé atingido por uma daquelas argolas metálicas que antigamente eram arremessadas na plataforma pelos maquinistas quando o trem passava pela estação sem parar. Se usavam as argolas para entrega de mensagens provenientes de outras estações. Esse tio também neurastênico como os demais membros da tribo.
Well, comecei me dirigindo aos meus prezados naverrantes e, pra variar, acabei perdendo o rumo. É uma das coisas que mais gosto de fazer. Senão a única. Nunca tive rumo, nunca quis ter, nunca gostei de ter, nunca deixei que me obrigassem a ter. É assim que sei fazer o (pouco) que faço, é assim que sei ser o que sou.




Tchau

E Gabriel García Marques se vai e os meios de comunicação caem em polvorosa e os articulistas se põem a tricotar suas sentenças sobre o “homem” e o “escritor”.
Jesus, salvai-me.
A máquina do panegírico entra em ação pela enésima vez em sua faina de triturar individualidades e pensamentos íntimos para converter tudo numa colossal máxima de fácil consumo.
García Marques não precisa dum elogio fúnebre, foi suficientemente louvado em vida por ter obrado o paradigma do artifício da imaginação.
Ah “fecunda imaginação”, o par perfeito, o indefectível adjetivo seguido de seu substantivo xifópago.

Enquanto me permito me contentar com minha pequena verdade de que os que se intitulam explicadores são os grandes responsáveis pelos obscurantismos das eras todas.

Incolores cores

O sujeito entra no palco. A plateia o aguardava havia horas. Mais de oito bilhões de homens, mulheres e crianças que mal se continham de ansiedade.
O sujeito empolga o microfone e saúda “boa noite!” e um coro de oito bilhões de vozes replica “boa noite!”.
O sujeito faz uma mesura.
“Vocês estão aqui para ouvir o segredo.”
A turba aplaude. Metade ovaciona.
Sim, eles querem ouvir o segredo.
Cada um deles saiu de sua casa, enfrentando as mais díspares condições de saúde e transporte e locomoção, para saber do segredo.
“Queremos saber o segredo!” pipoca aqui e ali na vastidão do oceano de gente.
“Me desculpem todos, mas esqueci o segredo enquanto subia a escada que traz ao palco. Lamento muito, sinceramente.”
O turbilhão compacto de bípedes começa a se desmanchar pelas beiradas. Aos poucos um a um ruma de volta para casa.
Nesta noite a humanidade toda, a humanidade inteira se fez poeta.

E conheceu intimamente a liberdade.

O ladrão de certezas

Esta noite quero pronunciar dos nomes o mais melífluo
E, o mais melífluo sendo,
Contenha todos os possíveis nomes de caber
Em um único e só.

E quando desanuviar o cenho de granito
Da estátua despreocupada
A esfinge ébria, com a autoclausura
Do gelo horrorizada
Terá se perdido das origens
Da Lua? Júpiter? Alfa Centauro?
Mirando sorrisos para onde
Os seres não têm terra
Não têm onde
Não têm nada
Não são nada.

A vítima no mesmo instante
Cai cega e
Esquecida da utilidade das
Aspas e parênteses e
E o faustoso livro estufado do vocabulário
Da cartilha escolar.

Basta.
Não nasci para aprender a humildade, não presto para cultivar a modéstia.
Tenho guardado comigo até meu último segundo o nome, a senha da face oculta da lua nesta noite de sábado que guardei na minha remota adolescência.
A alegria anda longe dos meus olhos.
A recompensa do esquecimento foge do alcance das minhas mãos.
Não há incógnitas.
Estou farto de mistérios.
Estou farto de mistérios.
Estou farto de mistérios.

Nada do que está recôndito me interessa
Nada quero que não possa ser achado
E se acho é porque não procurava
E se procurava era porque já não me interessava

Me diga: pra que mais?
Não estamos num concurso televisivo.
Te digo:
Não sonhe
Comigo

Digam o que quiserem, não me importa.
Me importa é que ontem saí de casa
Rumando sem rumo
Acariciando no bolso o nome que tenho pra chamar
E caminhando solitário sonhei
Sonhei solitário que
Chegava solitário a uma festa
Fadado à minha solidão
E eis que nos primeiros passos salão adentro
Alguém me estende a mão
“Oi!” e declara um nome
E aceito o gesto e aperto os dedos entrelaçados nos meus e não digo nada, só reconheço.

Será a vida um liquidificador?
E se for?
Que mistura fará de nós?
Não.
Quem sabe seja um liquidificador para uns, não para todos.

A luz das trevas não existe.
A luz das trevas não quer dizer nada, salvo um desejo obscuro, inconfesso que parece tão imenso no escuro da noite mas míngua na tíbia, tíbia, tíbia...
No que quer que haja de tíbio na manhã em nós.

Eis que chega a hora de partir e
Dou meia-volta já esquecido do teu rosto
Que forra o céu do lusco-fusco sombrio
Qual a foto do meu planetário.

Não me pergunto que é que está havendo
O mundo não entrou em convulsão
Não tenho cólica no coração
E se for conspiração
Jamais saberei.

Missão cumprida
Já criança
Sim, já.
Movido a paixão
Por todos os deuses e as deusas do éter
E todas as possibilidades
Que me atiçavam lá de longe
A me remover da insuportável pobreza
Deste mundo.