Amorokê na vila - Capítulo 037


“A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da moral nos momentos de aflição; mas a ciência dos costumes me consolará sempre da ignorância das ciências exteriores.”
Emmanuel Lévinas

9:24. Três batidinhas na porta. Me arrepio. Nunca vou me acostumar.
Estou escrevendo a enésima carta de despedida à minha ex-mulher Sílvia e paro.
Abro as quatro trancas. (Essas onomatopeias acidentais, frère Jacques, frère Jacques, dormez-vous?.) Fecho os olhos, sinto o leitoso hálito sorry.
Soninha entra com seus cinco (não perca a conta) celulares. Ontem me mostrou um por um e a parafernália de recursos. Cada qual com um tom de alguma dupla caipira. Claro: meu maior medo é que todos toquem duma vez. Como naqueles filminhos, bem quando estamos engatando na cama. A sinfonia do meu destino.
Sô, um dia vai chegar em que as nossas vidas estarão no YouTube e passaremos nossos dias assistindo nossas vidas no YouTube, entende, Sô?
Queria acrescentar uma citação qualquer de Christopher Lasch. Não pra me exibir. Nem uma demonstração de esnobismo Soninha entenderia. É que sinto falta de profundidade às vezes e com a Soninha é sempre tudo na superfície. Ela tem medo de afundar. Não me atrevo a dizer. Soninha é espontânea. Como jamais imaginei que possível fosse.
Eu tenho medo de aflorar.
Fico pensando na parede. Ela fica pensando no teto.
— Quando é que a gente vai casar?
— Sô, agora não. Estou escrevendo minha enésima carta de despedida para a Sílvia.
Arrisco um olhar de canto. Ela poderia reclamar do meu tom condescendente e antipático. Que sou mesmo duro de aturar. Mas ela é espontânea.
Como dizem os vencedores que levam por prêmio a batata, o silêncio é a melhor resposta. Podia dizer, olha, não me interessa vencer. E não sou muito a fim de batata.
Sílvia, tenho senso de territorialidade como qualquer um aí fora obcecado por ganhar a vida.
Não quero que você me julgue por tudo que lhe disse quando estávamos juntos. E sim no que sentia por mim. O que mais lamento é que esse meu pavor de ser apenas mais um zé-ninguém massacrado por senso de responsabilidade, obrigação de ser o que quer que exijam de mim (seja descomplicado, seja corajoso, seja homem, seja franco, seja tudo que o mundo quer que você seja) foi exatamente o que te afastou de mim. Errei em me fiar apenas no que sinto. Como é que devo agir agora?
Você sabe que não é fácil. Essa coragem que você me cobra é coisa de homúnculos que deixam o que sentem se embotar pelos mandos sociais. Mesmo assim você exigia que eu seguisse o rebanho.
Mas minha cara Sílvia, não nasci para zé-ninguém. Não “sinto” vontade de ter um carrinho manero. Não me “sinto” no dever de dizer que gosto de poesia para que meu público me ache um cara sensível. Tenho horror a quem vive de construir a própria fachada. O zé-ninguém não tem ideia do que deve sentir e quando sente sente-se o mesmo que outros 8 bilhões de zés. Olha, não estou lhe anunciando nenhuma novidade. Só queria que você entendesse que eu merecia a chance de tentar. Certo, não consegui escapar da zé-ninguenzisse. Para um escritor isso é terrível. Tudo bem, sei que você detesta quando falo assim. Mas este é o “meu” tema, o único de que posso e de que sei falar. Tudo bem, sou complicado. Mas qual poeta frustrado não é? Tudo bem, todos os poetas e o pai do Huxley são frustrados.
Descobrir o que sinto é a minha tarefa. Não pretendo soar nobre, como você certamente vai debochar. Apenas tento botar um mínimo de sentido no meu mundo. Sou indiferente ao que não me acenda uma luzinha ou me soe um alarme aqui dentro.
Você sempre tira pressuposições demais. Pare de pressupor o que sou e veja o que sou. Sei, requer um tico de treino. (Os participantes do concurso não levam um prêmio de consolação; teu prêmio seria me ter de volta. Não vou te perguntar se te interessa. Não me cabe essa pergunta.)
Eis um exemplo de suas pressuposições: você pressupõe, como seria “natural”, que tenho de me precaver contra naufrágios. (É mesmo, nunca te falei em naufrágios. Embora, vejo agora, seja bem possível naufragar em águas rasas.)
Ao contrário do que seria “natural”, não fujo de naufrágios. Já os sofri e sofro dia a dia. Embora não seja um navegante. Naufrágios — perdão pelo clichê — fazem parte.
O que acho engraçado é que, depois de tudo, você ainda ache que sou um cara preocupado com os zés e suas besteirinhas. Nos meus naufrágios diários me afogo, ressuscito, volto pro mar, me afogo de novo. E, olha, que é que pode haver de mais belo que um bom naufrágio ao entardecer? Se tiver um copinho de balla na mão direita e um free na esquerda, então, é sublime. E, claro, se tiver você me lendo, aí até me sinto quase feliz.
Teus insultos quando nos separamos não me espantaram. Me espantou, sim, a raiva com que os proferiu. Fiquei parado um tempão tentando compreender. Eram, imaginei, de novo as suas pressuposições. Você se desconcertava quando eu saía do figurino que você aprendeu a obedecer. Mas quando nos conhecemos naquele bar flutuante na ilha Porchat não te disse que sou um desconcertador profissional? Você riu, sem pescar. Tudo bem, falo demais e sei que meus leitores não pescam nem 9,45 por cento do que falo. Tudo bem, posso me defender alegando que lhe preveni. Adoro, você sabe, escandalizar a boa gente à minha volta. Até meus amigos o Fred e o Afonso, que têm uma porrada em comum comigo, vivem se espantando. Sei que não sou moleza. Eles me suportam porque são machos, embora gays.
Mas me diga uma coisa: você me amou porque viu em mim os encantos dum náufrago, não foi?
Não sei se você vai responder. Provavelmente fiz, mais uma vez, jus a teus insultos. Tenho esse dom de agredir na maciota. Dói mais, acho. Ossos do ofício, acho de novo. Não, não que eu queira ou goste de agredir. Bom, gosto, sim. É das poucas coisas que faço com prazer. Sorry. Mas não é deliberado. Escapa. Você sabe que adoro dar minhas espicaçadas. Sobretudo em quem amo. De preferência, com vara curta. Sei que você vai acusar esta alusão genital. Nunca vi uma mulher com tamanha queda pela genitalidade como você.
Quer que lhe diga outra coisa engraçada? Então aí vai: achei engraçado como, ao sair atirando, você me acusou... — como é que foi mesmo? não sei se foram estas as palavras exatas, já bebi além da conta — ah sim, me acusou de “escrever pra atingir outra pessoa”. Pois é, dois paranoicos feito nós não podem ter futuro. A diferença é que assumo minha paranoia, ao passo que você quer fingir que é sã. Você se amarra num teatro. (Embora o italiano com pendores dramáticos seja eu.)
— Vai demorar? — Soninha se posta às minhas costas e espia a tela. — Que é que você escreve tanto?
Quem não escreve (ou quem não escreve a sério) não pode entender. Às vezes nem eu mesmo entendo. Afinal, que é que escrevo tanto? Só ao acordar (de manhã, bem entendido) é que me faz algum sentido.
Não é moleza ter ao lado uma mulher e escrever para outra.
— Pombas, Sô. Assim você me atrapalha a concentração. Vai jogando aí no celular enquanto não termino.
Bom, minha cara Sílvia, por hoje acho que é tudo. Ando meio cansado. Não é moleza sentir o que sinto.
Só mais uma coisinha. Teus insultos me feriram e me divertiram. Feriram porque, apesar das aparências (a tola lei das aparências — Wilde dizia, é superficial não julgar os outros pelas aparências — genial, não? Quantos ensinamentos esses cabras têm a dar a quem quiser aprender), não sou masoquista. A bem da verdade, como diz o Luciano do Valle, sou um tico. Faz, ih, parte. Artistas estão condenados ao sofrimento (se você me perdoa a pretensão de me proclamar artista. Sei que, tem hora, soo um esnobe filho da puta. Sou um filho da puta). E divertiram porque são a prova mais incontestável de que você ainda me ama. Teria mesmo o descaramento de dizer que me adora. Vai ver você também curte curtir uma dor. Deus nos livre a nós dois.
Já que preza tanto a qualidade da coragem num homem, lamento que não tenha tido a coragem de fazer parte da minha ficção. Sim, alguns dias, em certos aspectos, sob determinados pontos de vista, passei de todos os limites. Em outros, também. Tudo bem, você não gosta de quem passa dos limites. Me ama e me despreza. Me acha um doente travestido de lírico. Um maníaco autocentrado incapaz de enxergar os sentimentos alheios.
Mas quase tudo se resumia a isso, minha cara. Tem algum problema? Ou está absurdamente fora do teu figurino?
Você me acusou de escrever para mim mesmo. Minha cara, quem se pretende escritor só pode escrever para si mesmo. Público é para os paulo-coelhos, os caetanos, os chicos. (Chico não escreveu aquelas duas bobagens só para agradar seu público?)
Então até a próxima. Não sei se você sabe, agora tenho um blog. Sei, é esquisito. Logo eu, não é mesmo? Mas, olha, é tudo bem modesto, sem nenhuma pretensão. Quer dar uma espiada? O endereço é este. Você vai ver que mencionei uma ou outra passagem sobre nós dois. Não se preocupe, sou discreto. E, você sabe, não fizemos nada que nos comprometesse. Infelizmente.
O blog me ajuda a relaxar enquanto vou tocando meus livrinhos. Ou “projetos”. Lembra como você ria dizendo que nunca vou acabar nenhum deles? Acho que tinha razão. Preciso de disciplina e vigor. Não tenho nem uma nem outro. Queria deixar registradas algumas coisinhas que aprendi, criar uns personagens a partir dumas pessoas que conheci. Mas como, se tudo que aprendi foi você quem me ensinou e a única pessoa que conheci foi você? Estou absolutamente vazio agora que você foi embora.
E sei que você nunca vai ler minhas cartas.
Queria te dar um beijo.
— Sô! Larga essa porcaria e vem discutir o meu egoísmo. Sei que você se amarra no assunto.


Amorokê na vila - Capítulo 036


aprendi ontem
(Devo estar atrasado, ou talvez seja apenas um falso rumor, daquelas fofocas rancorosas que circulam entre a pia e a latrina na hora em que as refeições que foram ingurgitadas mais uma vez são jogadas nos baldes de merda),
aprendi ontem...

Antonin Artaud

Órbita em torno de nada, não tá na cara?
Tinha decidido não escrever mais hoje, mas minhas decisões só duram 3 segundos, tempo bastante para decidir que decisões são sempre erradas. (Sei.)
Ter blog é complicado. Minha cabeça está cozendo/cosendo o assunto há dias. Mas vou deixar esse papo para outra ocasião, quando amadurecer. À minha revelia. Ou, espero, apodrecer. Você sabe, nossas cabeças têm vida própria.
Se escrevesse hoje, ia ficar embananado, palavroso, devaneante e onírico no mau sentido. (Sempre é o caso do que quer que seja onírico. Em que pese ser o onírico e o sonambulismo meu habitat.) E tem mais: neste momento estou cuma raiva de dar medo. (É meu estado mais comum. Vou ver se consigo uma brecha amanhã de manhã.)
Agora quero falar da Soninha. Não posso casar com a Soninha. Ela já é comprometida. (Com o pai, Lacerda, dono de bar. Que a come todas as tardes na despensa nos fundos do boteco.) A última vez que dancei, The Animals, tinha 14 anos, quando tomava uns trecos barra-pesada. Minha dieta diária são 4 maçãs. Meu recorde é 8. O único problema da Soninha é que ela não aguenta beber. Se encachaça com duas meias cervejas. Preciso de alguém que se afogue de uísque comigo. Já vi gente que nunca ficou ébria na vida. E já vi gente que curte farejar o buquê duma taça de vinho, se possível seco.
Ufa, parece que desandei no palavreado mais uma vez. Vou tentar manter a sobriedade.
Fico sentado 18 horas/dia mas minha bunda é rígida qual a dum cadáver. Já tomei um ou dois banhos de cachoeira na minha vida. Num deles quase me afoguei. E já morei no mato. Caminhava uns 5 km por dia, hoje só saio de casa uma vez por semana para comprar cigarro e birita. É, no boteco do Lacerda. Ok, podia fazer logo um estoque e poupar o trabalho, mas tenho de ver a Soninha regularmente. Ela é a razão desta minha vida de cachorro, embora seja feiosa qual o pai. Me prometeu me curar a brochisse. Daí as sessões trissemanais. Ficaria com ela duma vez por todas se minha ex-mulher Sílvia tivesse a decência de sair da minha cabeça e deixar minha inexistente alma em paz.
Livros, vou ciscando aqui e ali, quase sempre no computador, leio umas 4 hs/dia, o último em papel que li até o fim foi Inveja e gratidão, M. Klein, há uns 20 anos, despenquei num abismo depressivo e nunca mais superei. Acho que foi então que tive a prova cabal de ser maluco clínico. Já tomei choque. Um baratão — qualquer dia quero de novo.
Hollywood, não consigo aguentar mais de 2 minutos. E se alguém me bota diante dum "filme de arte" tenho gana de sacar a pistola no melhor estilo Goebbels. Bin Laden errou — devia ter mirado a festa do Oscar, fazendo farofa de brads pitts, angelinas jollys, spielbergs e outros superherois e assim dado um alento à raça humana. Durante anos resisti à tevê a cabo, até que ano passado alguém aqui em casa mandou instalar à minha revelia. Só não atiro a tevê pela janela porque às vezes assisto a festa dos 95 anos de minha mãe. Se eu não esticar as botas antes dela, quero registrar o velório da velha em devedê. Assim terei algo para fazer quando não estiver no computador.
Meu guarda-roupa? Bom, o que meu guarda-roupa menos guarda é roupa. Entre uma mixórdia de badulaques tem apenas um paletó que aposentei ao desistir de vender toalhas para os turcos da 25 de março e duas calças de tergal que já não dão conta da minha barriga que, ao contrário de peter-pan, aparentemente decidiu não parar de crescer, contra minha vontade e parecer técnico. Meu médico recomendou persistir na terapia etílica. Pelo jeito vai levar mais uma década para fazer efeito. Na gavetinha de cima do guarda-roupa ainda tenho a última carta que mandei para a Nicinha, uma das minhas inumeráveis paixões pós-adolescência, carta que ela me devolveu sem abrir e que até hoje sei de cor.
Queria fugir de Sampa com a Soninha, mas me arrepio com a ideia. Primeiro porque o Lacerda ia me caçar até o fim do mundo por fugir com sua filha-amante. Segundo porque não sei se tolero por muito tempo a Soninha e seu rostinho de camafeu a aquele sorrisinho evasivo, inquiridor e insolente.
A maior parte do tempo vivo pré-armado c'um espírito amistoso que na hora agá sempre sai pela culatra, eterno moleque encabulado, mãos perdidas buscando o abrigo dos bolsos, surdo para o azáfama dos carros na rua e dos vizinhos. Gosto de beber no boteco do Lacerda porque fica numa esquina. Assim tenho mais rotas de fuga. Embora não faça muito diferença, pois quase sempre estou inundado (em vários sentidos).
Se fugíssemos, tenho certeza de que meu coração ficaria acelerado de paralisia, em permanente expectativa do alarme e do 38 do Lacerda. Não me perdoaria a imprudência e passaria cada momento doido de vontade de socar a cabeça contra um poste por ter caído na minha própria armadilha. Por que não fiquei no meu cantinho? Todas as vezes em que tentei concretizar minhas fantasias foram um desastre. Embora até hoje o pior que me aconteceu tenha sido uma ou outra bofetada de algumas ex-namoradas.
Por hoje é só. Agora tenho de ir na feira com dna. Jussara, mãe de Soninha. Curto ir na feira com ela porque vou analisando as fachadas das casas enquanto levamos um lero sobre os preços da batata e da cebola. Manjo um tico de arquitetura, guardei umas lições da época da faculdade, nas noites em que não estava de porre ou em que não esticava a bebedeira no balcão do Bate-Pinga, saudoso botequim que ficava na Corifeu de Azeredo Marques na entrada da Cidade Universitária, hoje substituído — ó praga — por uma academia de ióga. (Outro dia falei "ióga" não lembro onde e quase apanhei. Por que será que os ioguenses perdem a fleuma hinduísta e logo querem briga por causa dum ózinho mais aberto?) Vou omitir que uma razão secreta que me leva à feira é que me divirto com os olhares coquetes com que as donas de casa apreciam meus dotes físicos. Pois é, sou bem-feito de corpo. Parece que, quando saem para comprar seus víveres semanais, elas deixam a pudicícia em casa. Ah, se os maridinhos pudessem flagrar as sem-vergonhas. Qual caquis maduros, algumas até que são comestíveis, se você escolher direito e apalpar no lugar certo, tomando cuidado para não estragar. Feira-livre é melhor do que bienal das artes, mesmo com aquelas gostosas siliconadas que capitaneiam os estandes e nas quais eu não me atreveria a botar a mão. Já cometi a façanha de ir numa bienal sem olhar um único quadro. Outro dia tinha um nordestino vendendo uns anões de jardim depois da última banca. Aproveitei e trouxe um para casa. Onde vou pôr, nem imagino. Bidu, não tenho jardim.


Amorokê na vila - Capítulo 035

Acredito profundamente em ser minimalista. A menos que você esteja de fato partindo para resolver o problema geral, não tente montar uma estrutura para resolver um problema específico, pois você não sabe como será essa estrutura.

Anders Hejlsberg

Até porque.
Mas vamos ao que interessa.
Você quer fofoca. Quem não quer? A fofoca é a forma mais simples e direta com que um terceiro nos descreve um segundo e, o melhor de tudo, nos escalando ouvinte privilegiado da descrição e, melhor ainda, nos envolvendo no enredo da vida do terceiro nos agraciando com a benção da interação. E, ainda melhor, a fofoca versa sobre o que para nós é o mais importante: pessoas. Se falar de pessoas ricas, legal. Se falar de pessoas ricas que amam, lindo. Se falar de pessoas ricas que trepam, e trepam numa fúria e duma forma que ousamos imaginar só em sonhos, ótimo.
Eu também fiquei decepcionado com as anotações vagas e quase abstratas do escritor amigo do tal de Fred.
Fatos, até que revela, mas poucos e esporádicos, E quando o faz o faz en passant, os adindo incidentais e irrelevantes, próprios para a lixeira.
Li a primeira vez até porque, que então parecia tão inofensiva e que dali em diante viraria praga, em Minha razão de viver em que Samuel Wainer conta que foi ora chegado ora desafeto de todos os poderosos da República a partir de Vargas. É um livrinho, com perdão da palavra, didático, mostrando quanto um jornalista que vira amigo de poderosos torna-se omisso com a desculpa de assim poder continuar fazendo parte da corriola e passar ao leitor “informações” de primeira mão. Embora eu sempre tenha sabido da porqueira que rola entre jornalistas e políticos, o livrinho me deixou meio enjoado. Essa gente que cobre o “círculo do poder” pode ser tão escrota quanto os mandachuvas. A promiscuidade come solta. Será verdade que aquele presidente engravidou uma jornalista? Difícil de acreditar, não é? E aquele ex-presidente do Senado cujo nome olvido que teve filha com a jornalista que depois mostrou as pudendas numa revista? Esse pessoal pululando em torno dos grandalhões da República faria melhor se abrisse para a gente o lado, digamos, mundano de suas relações profissionais, tipo “ontem transei com o presidente da Câmara e descobri, para a minha própria surpresa, que não dou importância a tamanho, salvo quando se trata daquela graninha por fora para o leite das crianças”. A circulação dos jornalões ia dobrar da noite para o dia. Quem sabe seria a salvação para o número de leitores em queda há uns anos, o pessoal parece mais interessado em interagir e dar uma de autor na rede do que ler notícia mofada do que houve há centenas de meses, ou seja, ontem. Faz uma cacetada que matutos digitais sacaram que a verdade jornalística é papagaiada e que não existe essa de visão objetiva e nós queremos é impressões individuais dum mundo cada vez mais refratário a explicações. Os telejornais aboliram a notícia e toda noite jogam na nossa cara de bobo um angu feito de sangue e terrorismo espetacular salpicado das inefáveis “informações” sobre o dólar, a bolsa, o tempo e, novo filão dos produtores da tortura em que se converteu a tevê, o tamanho dos congestionamentos. Isso não vai, não pode durar mais dois ou três anos, ninguém seria, acho, estúpido a ponto de engolir essa escrotice, a cada quinze minutos entrando uma trilha sonora alarmista para a mocinha carinha de sonsa “informar” que há 143 km de lentidão e estamos com 23 graus na av. Paulista, santo padre. E, suplício de todos os suplícios, dá-lhe Lula no palanque rodeado de coronéis nordestinos assentindo caninamente enquanto o salvador da pátria pela enésima vez vocifera em sua sofisticada tonalidade jato de areia contra a elite da qual ele mesmo faz parte há 40 anos e a igreja e a imprensa e o Congresso e os países ricos como se o presidente da República fosse eu, quem me dera, não ele. E, a cobertura política, que é que há para “cobrir” afinal? Durante uma boa parte da minha vidinha de inseto padeci dessa curiosidade idiota sobre o intramuros dos palácios e sua fofocaiada inócua. Atrai e ilude o leitor que confunde diz-que-diz e jornalismo. Editores sabem e escalam meia dúzia de relações-públicas para a fazer plantão no Planalto e no Congresso para no dia seguinte nos “informar” do que Dudu disse de Juquinha, lastimavelmente omitindo que Juquinha comeu Dudu e Dudu traçou a mulher de Zezinho.
Há uns anos ganhei da patroa um tijolo acho dumas 600 páginas escrito pelo alcoviteiro palaciano Carlos Castello Branco, nenhum parentesco com o ex-presidente sem pescoço, que narrava minuciosamente o cotidiano dos milicos por corredores e gabinetes. Parava aí, quando os outros aposentos é que valeriam a pena. Não lembro em qual jornalão escrevia, tinha uma “coluna do Castello” citada por todo mundo e sua manicure, lembro que lia esporadicamente sem dar bola, não sei por que cargas d'água-furtada Sílvia cismou que eu ia querer vinte anos de mexerico político empacotado num só volume. Enfiei o calhamaço no fundo duma estante qualquer e só bati o olho nele de novo outro dia quando fuçava à procura duma coletânea de artigos contendo aquele em que Carpeaux desce o ferro em Huxley, que achei deveras intrigante quando li a primeira vez, assaz curioso quando li a segunda, me soando algo de implicância com o baita sucesso que Huxley, menos erudito que Carpeaux mas ganhando em sagacidade, sempre fez entre a rapaziada sôfrega de entender o mundo, que Huxley procurava traduzir sem se emaranhar numa obscura mitologia germânica medieval lá.
São essas, acho de novo, minhas reflexões voltairianas, quando olho para o balcão e meus olhos dão com os olhos viajantes do Lacerda.
Mais feio que encoxar a mãe no tanque, o Lacerda foi compensado por deus com um tico de imaginação e criatividade, embora às vezes me faça duvidar que seja defacto humano e não protótipo experimental dum engenheiro genético infiltrado entre os fregueses do buteco.
É dos poucos, senão único, donos de bar eruditos que conheço. Tinha o Luizinho, retirante né em Brejo do Piauí que me servia no balcão do Bate-Pinga segunda, ou terceira, na Valdemar Ferreira à esquerda de quem entra para a Cidade Universitária, defronte uma churrascaria cujo nome me “escapa” e de cujos frequentadores dandizinhos garanhões e dondocas taradas assexuadas saindo de carrões e passando o volante a manobristas primos do Luizinho também naturais de Brejo do Piauí espanando felpitos imaginários ou não e esticando vincos e rugas com dedinhos nervosos dos terninhos de tergal e vestidões de baile ficávamos rindo anóxicos inebriados de soberba revolucionária, moleques ingênuos crentes que em breve escorraçaríamos os generais dos palácios, faríamos de dândis e dondocas nossos lumpen-servos. À medida que os grãos finos trotavam pernaltas para o restaurante com o rei-na-barriga de afluentes ignorantes cabeça de vento, teatralizávamos do outro lado da rua qual escolheríamos para chauffer, faxineira, coiffeur, jardineiro. As dondocas nove ponto cinco na escala Richter designávamos camareira particular. Dandizinhos mais bufões, mordomo. Escravo sexual não vale, alguém esgoelava, a revolução ainda não chegou lá, maconheiros promíscuos éramos todos mas nos avexava explicitar taras, a esbórnia sexual, vejo, está começando apenas hoje, os pré-adolescentes fornicadores atuais num só mês trepam mais vezes e com mais parceiros do que eu em toda minha existência de casto coagido, naquela época baixávamos o olhar puritano, hipócritas como nossos pais. As meninas bolshevikes, muito mais decididas e promíscuas que nós machos — como falavam aquelas viragos, deixariam Fidel no chinelo num concurso de resistência em palanque, ferocidade pittbulliana, muitas topariam numa nice um cargo de ajudante de ordens do delegado Fleury, que acabou com a raça duma meia dúzia de esquerdizoides antes que estes acabassem com a dele, tarefa de que se desincumbiriam com proficiência, seguramente levando “serviço para casa”, preservando distância higiênica dum maricas vocacional feito eu —, concediam que, tudo bem, dariam para o Chê, pero le lambiendo los pies sólo tres veces por semana. Membro da doidivanas Libelu trotskista, o mais anárquico, um dos dois únicos não puros-sangues da troupe, seguidores fiéis de Bakhunin, juntamente cum japonês chamado Mário cujo anarquismo autêntico, eu sentia na pele, me dava calafrios em meus pesadelos em que me via desmascarado em meu papelzinho de burguês cagão travestido de terrorista de botequim e que, estava certo, empalaria, se tivesse chance, a filha dum general por dias a fio tal como os torturadores da Marinha faziam com as donzelas revolucionárias que lhes caíam nas garras, me apavorava inconfessamente a ideia de um dia ver no alto do pódio um suicida assassino como aquele japa sorridente de sorriso, com perdão da imagem sovada porém verídica, sinistro. Às vezes, enlevado por uma jarra de batida de maracujá com pouco gelo, pouco maracujá e muita cachaça, um stalinista da Caminhando empunhando um violão a relinchar para não dizerem que não falei de flores, porcaria infantiloide que só virou hino da esquerda universitária porque proibido pela censura dos milicos, expert em proscrever e levar às paradas bugigangas que de outra maneira cairiam no mais inelutável olvido, censores que tacavam o pincel atômico em qualquer bobagem que mesmo remotamente parecesse carmim ou cravo, metade do que “libertários” do naipe de Chico Buarque, hoje de olhinhos tão singelamente fechados e língua solenemente morta ante os desvarios totalitários cometidos pela nova casta de sindicalistas emperucados no poder ávidos por macaquear o estilo de vida dos ricaços que sempre condenaram, com a safada desculpa de não querer dar pano à direita, a sambar no bloco dos carregadores de “bandeiras” enquanto fôdasse a verdade, às vezes um stalinista violeiro ouvia nossas piadinhas escrachando a luta de classes e tentava nos passar um pito resmungando que libelus sem fibra nunca faríamos a revolução porque levávamos tudo na brincadeira, vaticínio de cuja confirmação só vim a me dar conta quando outro dia olhei e de repente vi na manchete do Estadão foto de Joe Dirceu de grão-vizir de Lula com aquele olhar tá-no-papo de réptil lá. Os calafrios não me abandonam. Quem conheceu um stalinista a olho nu sabe como é. Eu e o japa pedíamos pros órfãos de Stalin tocarem Mutantes, a primeira e única banda, com perdão do palavrão, iconoclasta do nosso horizonte perdido, heresia a que os bolshevikes missionários tinham ganas de nos excomungar a paulada, de que nos safávamos na base do gogó, pois que lêramos pelo menos Que fazer, o Dezoito brumário e o manifesto aquele, ao contrário dos joe-dirceus pragmáticos cuja cultura se resumia a meia dúzia de mandamentos maoístas.
Vezes raras eu decidia sair do Bate-Pinga e rumar para a ECA ao invés de dar a volta na Vital Brasil e pegar o outro buteco em que costumávamos nos reunir para deliberar sobre os rumos do Berção, de repente me ocorre que hoje eu podia ser um ministro aí com cartão corporativo, cota de diretorias na Petrobrás e outras benesses mais se tivesse perseverado naquela vida de vagabundo, se há um dito popular que aprendi a prezar acima de todos é “meu, o mundo dá voltas”, e nessas raras vezes o Luizinho insistia em me acompanhar até a sala de aula em que se convertia no único a prestar atenção na arenga do professor enquanto nós “politizados” prosseguíamos heroicos a deblaterar no buteco nossa trama para salvar o Berção do fascismo e outras aventuras quixotescas. Os olhos do Luizinho brilhavam excitadérrimos nos assistindo deblaterando efervescentes do outro lado do balcão as razões históricas do atraso nacional, Caio Prado Júnior nas pontas das línguas, a irresponsabilidade das elites, a validade das táticas estudantis e, épico dos épicos, qual seria nossa estratégia para chegar de mansinho a Brasília e pedir educadamente ao gal. Figueiredo que cedesse o trono a um de nós pelo menos por uns dois anos, que imaginávamos suficientes para converter o País no mais deslumbrantemente infinito canavial jamais visto na Via Láctea, instalando de km em km espantalhos com a carona do Fidel para afugentar os abutres capitalistas.
O Luizinho, saquei logo, levava jeito e por isso não me importava de arrastá-lo comigo à aula esporádica e às orgias à Calígula em geral levadas a cabo e rodo no prédio da História e outras menos populares. Leu toda a coleção do Darcy Ribeiro que uma professorinha condoída dos destinos das massas lá nos passou e que comprei a princípio entusiasmado com a, ugh, perspectiva de entender duma vez por todas os milhões de problemas incompreensíveis da Sexta Potência Econômica e que duas semanas depois lhe presenteei sem nem tirar o invólucro de elastano. O Luizinho a esta altura deve ter descolado um empreguinho público na prefeitura de Brejo do Piauí como qualquer filho que não foge à luta inteiramente devotado ao roubo e à corrupção. Provavelmente o piauiense está levitando sob as estrelas do sertão, muito melhor que eu, que renunciei a belos cabidões na Caixa Federal e na Secretaria do Planejamento de SP enojado, sou, afinal um carinha honesto e otário, com as pequenas e rendosas panelas que se formam em cada saleta fétida dos arranha-céus abarrotados de barnabés de papo para o ar e que se trabalhassem uma hora por dia certamente produziriam a segunda revolução industrial. (Preciso maneirar na musicalidade, vão pensar que não passo dum vate sem-vergonha.) Os libelus, não sei que fim deram, parte criou algum partidinho manero para proteger funcionários do Banco do Brasil que levam todo santo mês trocentas pilas na conta bancária e juízes com dois meses de férias por ano e seguro médico e odontológico e qualquer outro imaginável, afinal somos um povão feliz que não se pode dar o luxo de correr riscos, ao trôpego passo que os stalinistas da Caminhando entraram todos sob as cálidas asas de Lula.
Eu dizia que o Lacerda, mais feio que bater na mãe na Sexta-feira da Paixão e compensado por deus com tremendo poder imaginativo e engenhosidade e erudição, colou com durex um pedaço de cartolina na parte posterior da registradora em que estava escrito “Fiado só amanhã”, letrinhas grandes esmeradas da, como já disse, esposa dona Juçara.
Peguei e, vozinha fininha e débil, protestei.
Ao que o Lacerda me passou um carão, emendando:
“Até porque...”
Se cágado tivesse voz, seria assim.
Desliguei. Recolhi minhas milhares de anteninhas ouriçadas tentando captar todo e qualquer fenômeno desses com que a vida nos presenteia a cada segundo e que os 23 bilhões de futuros escravos dos chinas teimam em não acusar.
Uma ficou sintonizada. Por mais que pratique, nem sempre logro consumar minha técnica de me fingir de morto, que venho treinando desde que nasci e os anos seguintes de amarga obsessão por retomar aquela terna quinzena anos de amamentação que me deixou o gosto indelével da vida sob a língua.
Falei que até porque era a puta o que o pariu.
O tom dele subiu quase uma oitava de dó sustenido a si. Uma súplica. Fiquei enojado. O fedepê sabe ser repulsivo quando quer. Já pedi, várias, centenas de vezes, me avisa antes, me avisa antes! Sempre que for tascar um “até porque” a cada dois períodos em tudo que jorra copiosamente dessa vossa gargantinha de ouro, bota uma palavra de alerta.
Fred balança a cabeçorra, se divertindo.
Fred gosta duma citação creditada a Bakhunin: “O mundo será um lugar melhor quando o último burguês morrer enforcado nas tripas do último padre e afogado no sangue do último militar.” Será?


Leda Eva


Amorokê na vila - Capítulo 034


Véspera de primavera


Um mar de sujeira corre na rua. Se abrir a porta as fezes poderão invadir minha sala.
Há décadas não troco os lençóis e a fronha do meu travesseiro, fósseis de “marcas de amor”, mamãe ficaria uma fera, não tenho jogo de reserva mas hoje decidi arrumar a cama.
O problema é você se habituar por convivência ou proximidade. Vivo com a nojeira à minha volta mas não me habituo. Meu projeto de vida era não me deixar contaminar.
Soninha tem seu projeto de vida. Falar-tudo-que-lhe-der-na-telha. Não dá bola para a sujeira. E se funcionasse também comigo? Fico um milímetro esperançoso. Já experimentei, claro. Tempos imemoriais. Desembuchava minh'alma entremeado de carreiras de palavrões. Então estamos combinados, caralho. Amanhã dou uma passada, puta merda. Talvez leve uma amiga, merda, tem uma bucetona agasalhadora coberta por uma schwarzwald de pentelhos pra gente descontar estas nossas descompensações existencialistas, porra.
Veja, não é a visão moralista da sujeira daquele taxi driver em Nova York. Dois terços da raça chafurda no esgoto e está feliz e não sente necessidade de justiça e outras ingenuidades. Falo da minha sujeira.
Minha cama está cheia de pentelhos. Alguns grisalhos, provavelmente meus, outros loiros tingidos da Soninha, outros morenos da Sílvia, outros indefinidos. Durmo num museu. Não é hoje que vou bater os lençóis. Arrumo a cama fumando um cigarro e em vez de beber saio para a praça aqui perto. Passo a tarde sentado assistindo à algazarra dos passarinhos e à noitinha sou roubado na esquina sob o luar por um cafuzo empunhando um 38 de plástico.
A Soninha tinge o cabelo e os pentelhos de loiro, menos as sobrancelhas. A sujeira me trava e preciso me lubrificar.
Che mondo piccolo questo nostro, cochicho no ouvido do cafuzo enquanto ele me revista procurando meu celular.
Não tenho celular. Ele não acredita. É verdade, rio. Ele fica furioso. Não tenho celular, dinheiro, cartão de crédito.
Tentei várias vezes cair fora. Foi a mesma época em que achava todo mundo hipócrita. Aquela trajetória manjada que nos horroriza quando nos damos conta do clichê metafísico e ficamos desenxabidos com a nossa exasperante falta de originalidade. Eu sou feliz, fôdasse, enxergando a hipocrisia por toda parte. É bico? Puta merda, é tão fácil entornar meia garrafa de balla em 20 minutos sabendo que vou recomeçar, recomeçar, recomeçar.
O cafuzo quer me matar mas como me matar se tem na mão um cano de mentira?
Considera me esganar. Mede meu tamanho, sou o dobro dele. Posso lhe mandar um muquete no pé do ouvido. Me limito a repetir, che mondo piccolo questo nostro. É o empacotador do mercadinho em frente ao buteco do Lacerda.
Estupidificado de crack e perplexidade com a enrascada em que se meteu, o cafuzo pensa que a frase em língua desconhecida vem do além, que para esses caras é muito maior e mais verossímil e mais paradisíaco que o aquém. De minha parte ainda sopeso dar um tapão na cara dele, berrar que estou sendo assaltado e assim disparar um linchamento para ver se espanto um pouco o tédio deste meu lusco-fusco sob o luar encardido.
Mas o 38 plástico também me deixa confuso. Se fosse de verdade pediria para ele me soltar um teco na testa. Encharcado de crack, ele não entenderia, as sílabas cantadas no idioma estranho ainda reverberando em suas orelhas escalavradas dos açoites no pelourinho. Não se conforma com a viagem perdida. A frustração atávica e o envenenamento exigem um maremoto de gratificações assoberbantes instantâneas. Um segundo é uma eternidade intolerável. Impossível que eu não tenha nada. Todos os bocós que trafegamos para cima e para baixo sem destino certo pela cidade somos fontes inesgotáveis de felicidade imediata.
Saber fazer média é o que distingue os gênios dos jumentos. Não tenho a mais diminuta ideia de como fazer média. Nem como fazer um strip. Posso tentar, se quiser, seu cafuzo. Que música você prefere? Posso começar tirando esta minha camiseta imunda que não vê água desde que nasceu. Se preferir, digo que não uso cueca. Devo alertar que sou um sedentário convicto, o que tem afetado o volume da minha barriga há umas três décadas. Acho que aprendi algo com o espetáculo do crescimento das minhas células graxas. As banhas aos poucos vão tomando o lugar da esperança e acabam desempenhando o papel que antes pertencia à possibilidade de felicidade. E as papas que então me faltavam sob o queixo e na língua.
Não tenho celular, dinheiro ou cartão, tudo de que disponho sou eu mesmo. Me leva inteiro com minha experiência e minhas dores e neuroses de marmanjo inexperiente. Podemos até formar uma dupla. Talvez acabemos nos casando. Ele faz meia-volta e dá no pé.
Volto para casa querendo fazer polenta não querendo voltar para casa ou ir a lugar algum não querendo fazer nada. Quando estou assim tenho vontade de me matar em praça pública. Fazer polenta é dos meus tempos em que olhava em volta achando que o mundo e seus habitantes eram autênticos. Antes da polenta de esgoto cozinhando everywhere. A autenticidade me era tão essencial quanto o ar. O mais autêntico de tudo era a noite. Aquela minha noite que nunca morre, que ainda me faz me dar o trabalho de flexionar a nuca e olhar o céu. Olho o céu pela minha noite sem procurar nada em particular. Então abaixo o olhar para encarar a parede. E o chão. O vapor da polenta repugnante sobe para se acumular no céu e não há nada escrito nas nuvens nem em lugar algum. Quando saio para minha praça para me juntar aos meus passarinhos barulhentos e aos meus cafuzos restos de lixo do cosmos vejo letras enfileiradas em placas de anúncio nas ruas e nos ônibus, vejo letras enfileiradas nas embalagens de detergente e mata-pulgas e nas latas de chocolate e nas capas dos livros e nas folhas dos livros, letras enfileiradas por toda minha volta, letras enfileiradas que querem me dizer tudo e não me dizem nada.
Engordei e procuro me ater ao que penso ser essencial, e o essencial hoje está tão distante do que me parecia essencial há três décadas. Naqueles tempos acreditava no que me diziam e no que me mostravam. As coisas não tinham começo nem fim, faziam parte natural. Até que passei a achar a vida meio insossa e carregar no dramático. Quando posso, bebo até cair para que cada um dos meus dias termine num gran finale. Na época em que mamãe fazia polenta tinha vindo a este nosso — sim, meu e dela — mundo como convidado da produção do espetáculo.
Vou voltando para casa sem querer voltar para casa, nada tenho de que me orgulhar, tampouco de nada ter de que me orgulhar. Podia me orgulhar dos meus pensamentos deformados pelas minhas palavras em cacos instáveis, fugazes, ariscos ao jugo da lógica, que se vão transportando soterrados em nós que não me são motivo de orgulho que me são motivo de dor e pasmo e impotência e frustração. Não vejo problema em me orgulhar de frustração e impotência e dor e pasmo. Assim como não vejo para que me orgulhar do que quer que seja se vivo por tudo e por nada, se sonho com o imprevisto, se aguardo sem esperança e se me uno à ruptura. E se a ruptura é impossível, como parece de fato ser, e me desconcerto que sejamos sobreviventes do rompimento umbilical e sobrevivendo buscamos e sobrevivemos buscando a eterna reunião, posso me contentar com rupturas, assim no atacado, assim de cambulhada, assim de ponto sem volta e dor sem trégua. A continuidade da vida e das coisas e do tempo me consola e me tortura, me tortura e me consola. Sei o que espero fazer daqui a pouco ou amanhã, pois mês que vem estarei morto e quererei estar mesmo que não esteja. Espero o imprevisto mas não, não espero nem almejo a me entender nem espero ser entendido. Recuso as facilidades do conhecido, não sou dado a exploração introspectiva, não sou dado, tirado, recebido ou festejado. Não me delicio, não me encanto. Não me entrego a nada, por nada me entrego. Por nada me comungo. Há uns tempos me admirava com o mundo e os que o habitam, agora só me admiro por ter levado tanto tempo para me assumir rastejante até acabarem todas minhas saídas e me entregar incondicionalmente às crueldades do meu deserto noturno. Sei que há de tudo neste nosso mundo que também a contragosto habito. Inclusive gente como eu. Nunca vi ninguém como eu, mas imagino que, sim, há. E são poucos. Talvez um no Mato Grosso. Outro em Uberlândia. Em Frankfurt. Um hoje soterrado por uma bomba num deserto nas cercanias de Bagdá, outro daqui a pouco se matando para doar um rim meia-boca a um irmão. Sim, há de tudo por aí. Inclusive gente como eu. Embora “inclusive” seja uma palavra que gente como eu não ousa usar. O nada, inclusive. Inclusive mesmo assim.
O cafuzo se assustou com minha oferta de casamento. Agora sei que devia ter pedido em italiano. Podia também ter lhe oferecido algumas noites no meu alpendre em que eu discorreria sobre Mahler e depois leria J.G. Pessanha em voz alta, tentando explicar certas passagens mais intricadas, atento aos espasmos de indiferença em seu rosto pueril de assassino cósmico. Seria bom ter um cafuzo cativo que me obedecesse todas as vontades. A Soninha bem que tentou uns dias, depois resvalou de volta aos seus sertanejos e novelas. No meu aniversário perguntou que disco eu queria, pedi que me desse um isqueiro Bic. Laranja ou roxo.
Glup blop flop blup, os beijos transubstanciados de mamãe pipocam na superfície virgem da polenta subindo do fundo da minha panela onírica se misturando ao blup blop glup flop dos beijos de Sílvia e abrocho os beiços sonhando. Meio sem querer acabei dando o troco. Ela me “traiu” com Augusto, devolvi a “traição” com nossa então empregada Nilceia. Nilceia era meu projeto de mulher infantil, 6 aos 8 anos, se tivesse cu para encarar uma alternativa amorosa não burguesa. Não precisa mais do que te dou, ela parecia querer dizer em seu mutismo abúlico. Preciso dum coração, eu queria enfatizar. Uma mulher que me explique as idiossincrasias de mamãe. Mães burguesas não facilitam esse tipo de coisa a sua prole, you know.
Já é outra manhã? Meus inpensamentos voam nas asas sem plumas das horas, meus dias voam nas asas decepadas fritas a passarinho que Soninha me traz no almoço. Olho os lençóis imundos, o buraco exposto no meio do colchão. Colchão ortopédico nos bons tempos, que Sílvia comprou numa dessas lojas especializadas em Pinheiros. Era um colchão rígido feito tábua, me sentia um faquir. É bom pra coluna, Sílvia decretava.
As lembranças viraram traumas indeletáveis e diante dessa calamidade todo o resto é pífio. Talvez tenhamos acabado assim porque havia outras interrogações entaladas que Sílvia não se permitiu expressar por se orgulhar de ser orgulhosa. Não há muita diferença entre escrever e assimilar a nojeira, amar e fazer polenta. Sílvia torceu a cara com asco de ter nascido, me chamou de bicho do mato e bye. Bicho do mato, sim. Por natureza e por opção. Uma fera inconformada com a própria ferocidade. Nas breves, brevíssimas folgas da ferocidade, uma oportunidade de contemplar meu essencial. Ai que nojo. Quando não fosse um dia em que nada me fosse essencial. Quer dizer, perguntei, quer dizer que tua aversão a mim ficou entalada na tua garganta desde que nos conhecemos e só extravasou quando você começou a dar para o Augusto? Até meus 15 anos eu também tinha asas de frango frito entaladas na minha garganta. Quão longa será esta nossa noite, meu amor. E quão curta terá sido quando abrir os olhos amanhã de ressaca tentando lembrar o que não aconteceu. Não, não quero deixar rastros neste mundo nesta minha passagem rumo ao inferno.
Acendo um cigarro, vou para a sala procurar minha garrafa, que é que vejo? Vejo os ballas, os steins, os amendoins, talvez de ontem, talvez do mês passado, vomitados em cima da mesinha de centro. Ainda não joguei fora essa mesinha de centro? Sílvia comprou naquela feira de móveis em São Bernardo a que me arrastou um dia depois de virarmos pombinhos. Tampo de vidro, perninhas anêmicas ligeiramente curvadas escorridas de licor visceral.
Cândida. Preciso desinfetar.
Dou uma pernada até o mercadinho em frente ao buteco do Lacerda para comprar cândida e quem é que encontro empacotando no caixa? Bidu. Meu cafuzo sobra de lixo cósmico. Pago a Nicinha, amiga da Soninha, que até outro dia trabalhava na farmácia do Nando e com quem já brochei várias vezes. Meu cafuzo me passa o saco com a cândida e duas latas de cerva sem gelo sem dar mostra de me reconhecer. Tem os olhos de eletricidade morta da falta de crack. Aproximo o rosto da orelha dele e cochicho se quer tomar uma em frente, agora em português. Ele faz que sim animado.
Saímos para a vasta, a vasta estepe entulhada de butecos entupidos de pinguços em algazarra e becos sem saída, recusando a mim e ao meu acompanhante subterfúgios convenientes, sonegando um analgésico. Meu inpensamentos se esvaem em cacos de cacos de cacos. Paro na beira do precipício da calçada, volto meus olhos moribundos para o meu cafuzo, sorte de azar o nosso. Somos seres aconectivos. Por uns minutos serei seu muso, pelo resto dos meus dias ele será minha cobaia. Não desconfia que está lidando c'um muso sem vocação para ser evocado, sem mote para ser amado, sei que estou lidando c'uma cobaia desempenhando sem saber seu papel de cobaia. Para sua felicidade de dois segundos suficientes para a pinga descer pela goela a engrenagem manca da vida irá funcionar por 2'' suficientes para a pinga lhe descer pela goela antes de enroscar de novo. Durante essa eternidade ele será e saberá. E eu o testemunharei. E ele me testemunhará. E seremos e saberemos. Por 2'' os cacos dos cacos dos cacos farão algum sentido e na cabeça dele sintonizarão uma vaga saudade de ter sido humano e na minha formarão algumas frases desorientadas de palavras toscas miseravelmente supérfluas.
Encostamos no fundo do balcão, ergo dois dedos para o Lacerda, 2 51, + 2'' de felicidade.
Noto que meu cafuzo faz menção de abrir a boca e renuncia ao esforço. Talvez uma comichão metafísica agônica dessas que nos leva a reclamar de que parece haver algo errado e a que estamos todos propensos? Talvez queira falar do tempo, de seu ofício de empacotar pasta de dente e bolacha maisena e omo e água sanitária e fubá para polenta, da deplorável situação política? Talvez conheça algumas palavras, talvez saiba que basta deixar a propriocepção trabalhar à sua revelia para que a comichão faça cócegas naquele algo e articule aquelas poucas palavras e mova seu maxilar e instigue seus lábios e ressuscite sua língua para nada. Sejamos simplesmente felizes, meu simples cafuzo.
Ergo dois dedos, + 2 51 para + 2''. Gosto do Lacerda porque ele jamais espicha as sobrancelhas espantando-se com “mais duas”. Sabe da importância de não haver fundo.
Vamos fingir que não temos língua? Nem dentro da boca, nem no cérebro. Vamos fingir que nunca queremos falar nada e, em nunca querendo falar nada, não precisamos da fala. Porque nunca pensamos nada. Somos apenas dois robôs mudos vagabundeando diante dum balcão empunhando um copo já vazio, esperando o próximo olhando os carros passando na rua. Não temos promessas a cumprir porque não nos prometemos nada e se nos prometêssemos ficaríamos decepcionados. E não as cumpriríamos mesmo se as tivéssemos feito — não vemos sentido em cumprir.
Ele mumunha falô-mermão e vai. (Que saudade. Não sei. Quero deter o maremoto de cacos para me lembrar. Não me lembro. Não me lembro nem mesmo do que estou tentando lembrar.)
A doce algaravia dentro do buteco sobe, sobe, sobe, estrila num buquê de tilitintins, paralisa meus inpensamentos, cai, cai, cai. O Lacerda e dona Jussara do outro lado do balcão tagarelam sobre abrir crediário, carnê, pagamento em cartório. Lacerda se diz de saco cheio. Cansou de encher a barriga de vagabundo. Que já perdeu a paciência. Acho que quero + 2''. Não vou fingir. Sempre finjo que enterro o que passou sob uma pá de caaal. Quero ver todas as línguas recolhidas, quero ver todas as línguas jazendo mortas dentro das bocas, todos os motivos sem motivo, todos os atos intomados. Quero ficar na minha. Tentei aprender. Desisti. Me diluí no meu tempo e no meu espaço, não tenho mais corpo nem voz. Preciso dar adeus a esta minha hipersensibilidade de garoto. A imensidão ilimitada desta prisão é tão pequena. Quero ficar aqui até o fim da tarde quando não haverá luzes para que possamos todos ver o luar. Aqui é o meu lugar, aqui me igualo aos meus. Sem eles não existo. Aqui não tenho livros, aqui não tenho planos, aqui não me servem minhas (inexistentes) qualidades. Sou o feliz proprietário dum sentido trágico da vida. Fim da noite, Sílvia vai dormir, pego meu Notas do subterrâneo pela enésima vez. Para que tantos escreveram tanto depois de Notas do subterrâneo? Almejo a ser um homem sem nome. Um homem sem vontades. Um homem sem necessidades. Quero a plenitude do vazio. Cansei de me vestir de lobo da estepe. Quando estávamos juntos fingia um relacionamento à la Bergman, ficava atento às reações que os seus (frios) feedbacks produziam em mim. E me punha à espera. Por mim esperaria pelo resto da vida. Com Sílvia ao meu lado nada me soava fora de lugar.
O Lacerda diz a dona Jussara que esta noite fará lua cheia. Dona Jussara olha para a tevê, eu olho para a rua, os bebuns em todos os bares olham para o fundo do copo.
Sílvia me perguntava quase todo dia o que eu esperava da vida, dela, de mim mesmo, eu ficava meio aflito procurando responder com algo que fizesse algum sentido mas acabava dando um chute sem muita direção. Onde você acha ideias como essas? ela queria saber. Então eu tentava uma piadinha para fazer ela rir com aqueles seus dentões de coelha deslumbrada e perdia o pique e ela se decepcionava. Não acredito que pude ir levando aqueles anos todos. Não vai dar, não vai dar. Ela cansou da minha gaucherie autocondescendente.
Estou enternecido sob este espírito de comunhão evocado pelos beijos da polenta, se um desconhecido me der a mão na esquina não estranharei. Preciso dum ladrão que me roube de mim mesmo. Me tornei tão útil quanto esta folha seca caída na sarjeta. Estou ficando cansado. Preciso voltar para ler mais uma vez o finzinho das Notas. Você quer mais que um homem que não busca reconhecimento? Houve um tempo em que era capaz de sentir um frio na barriga. Estava em boa situação. A polenta ficava puta de quente e vem de beijos cuspia seu cuspe incandescente no meu braço e nada tinha fim. Meu pai me queria qualquer profissão que desse grana e fosse invejada pelos vizinhos e parentes. Será que caras feito eu são normais? Espero estar extinto até amanhã a qualquer hora. Fecha os olhos para os riscos à frente, se livra do peso da precaução, danem-se as milhões de possibilidades que o recomeço encerra. Vrum! o pouco que ainda resta em pé vai desmoronando. Não vou mais pagar o preço. Chega de desperdiçar palavras. Chega de engolir caroços grandes demais para engolir. Peço só mais vinte segundos de palavrório sem fim sobre o que não estou bem certo. É mais que uma eternidade mas who cares? Vou voltando dentro da escuridão prateada. Me esqueci do que sinto e silencio. Onde posso tirar meu atestado de inutilidade? Sinceramente, lamento. No recomeço tudo é tão rosa. Em que porta devo entrar, em que ponto devo fazer o sinal? O maior problema de ser bicho do mato não é a solidão. O maior problema do lobo da estepe é a falta de referências emocionais. Será que saí errado? Posso falar do meu frio na barriga?
Não me importa estar condenado. Se eu fosse um gestor, desses que gerenciam equipes e seus infalíveis conflitos humanos, faria as médias que todos sabem fazer tão bem. Tudo depois de Sílvia é nada e não tenho bônus.
Snif. 51? Há tantos anos passei da minha fase de cachaça. Lá, me manda um balla sem gelo.
Provo. Preciso beber a mim mesmo. Sou incapaz de fugir do meu círculo de fogo. Estou em estado senoidal. Quero desaparecer antes de articular uma resposta. Não vou me despedir com um gran finale. Explodam a lua.
A vida é uma sucessão de milagres? Será um milagre a inefável bola que de dia esparge luz sobre minha cabeça e meus ombros revezando guarda com a inexplicável esfera chamuscada de prata que durante a noite cria as sombras de que preciso e de que não busco mais fugir? Milagres como a angelical batucada dos pingos da chuva que me cerca, caindo talvez do céu, para criar a minha toada. Quantos pequenos grandes milagres, ora a me comover, ora a me dar inescapável sono.
Vou ficar aqui parado no escuro sem esperar nada. A escuridão é o único milagre que espero. Se vierem outros, não vou aceitar. Nem recusar. Vou ficar aqui parado esperando a transição.
Pelo escuro da minha vida passaram amigos, gatos, inimigos, carrascos, prometidos, ratos. Teria sido possível conseguir mais que isso? Não logrei senão vislumbrar os rostos 3x4 faiscando suas dentaduras brilhantes que compõem o cemitério da minha memória. Não sou afeito à promiscuidade. Não reivindico o direito de devassar a escuridão.
Criança, me ensinaram que a devassa era minha obrigação e levei décadas para recusar a lição. Não nasci para roubar, apesar das fantásticas ocasiões que me ofertaram, embora nascido fervoroso ladrão.
A entrada estava livre mas preferi recusar. Eles seguem sua missão de figurar em listas, frequentar clubes, comunhar, deixar pegadas indeléveis. Não pretendo ficar mais que o tempo necessário para não deixar nada.
Vou ficar aqui no escuro assistindo o fluxo infernal do mar sujo sob a lua cheia. Amanhã é primavera. Talvez chova. Um mero pingo de chuva me atordoa.

Será um longo parêntese.

Amorokê na vila - Capítulo 033

Toda a juventude acaba na praia gloriosa, à beira d’água, ali onde as mulheres parecem enfim livres, onde estão tão belas, que sequer necessitam ainda a mentira dos nossos sonhos.

Louis-Ferdinand Céline


A náusea 
O cinismo me aturde. Me dou conta de que tenho vivido nos últimos trinta anos sob torpor. Não um desses estados intransferivelmente pessoais em que caímos sem mais nem menos desde quando tomamos consciência do mundo e que aos poucos vamos aprendendo a suportar, até o aceitarmos como parte da nossa natureza à medida que o tempo nos faz amadurecer, no meu caso, na marra. É um aturdimento, como todos os aturdimentos, imperceptível. Sendo assintomático, quem me olha, mesmo de viés, pensa que estou apenas distraído, matutando essas encucações que me habituei a matutar. 
Então, nauseado de assombro, me dei conta de que o cinismo é tão natural nos seres humanos quanto o são as nuvens no céu e o oxigênio no ar. Ainda há pouco olhava o mundo sob uma escala classificatória. Minha escala começava lá do alto com valores bons como honestidade, fraternidade, espírito de luta, esforço pelo bem comum. E terminava aqui embaixo com valores ruins como safadeza, perfídia, deslealdade, patifaria. De repente percebo que estava grosseiramente errada — essa  é a escala dos tolos, dos que trocam as bolas engolindo o mal camuflado em poder, que aceitamos inermes, vencidos, lassos e covardes. Pior, saco com desgosto que até há pouco minha visão do mundo, da vida, dos seres humanos, da história e dos fatos era, por Alá, religiosa. A religiosidade cega, de que sempre debochei desde criança, era meu refúgio no mundo dos adultos e eu não sabia. O insight me dá inescapável sensação enojada de mim mesmo. 
Não sei, nunca soube, aceitar a baixeza como apenas mais uma verdade intrínseca da natureza humana. Nós românticos temos essa mania neurótica de forjar fantasias para amenizar a feiúra que nos cerca. Quando o desvario pega fundo a ponto de nos deixar absolutamente cegos, como é o meu caso, olhamos as pessoas e, numa tentativa de fazer com que pareçam menos grotescas, as imaginamos vestidas com nossas doces, diáfanas, sedosas alegorias. 
Meus dias são feitos de vislumbres. Do início ao fim da jornada vou atinando, através de vagos filtros sensoriais, com os fundamentos de que somos feitos. Filósofo embriagado, identifico as verdades e, solerte, as transfiguro em nome dos meus mais egoístas interesses, obtuso, vesgo contrabandista de mim mesmo. 
O cinismo é minha dolorosa evidência interior de que não podemos ser outra coisa que não benignamente esquizoides. Sim, agora vejo tudo com clareza: devemos ter duas ou mais dimensões. Se não for ridiculamente tolo, se não quiser passar por degenerescência ambulante estapafúrdia, tenho de assumir minha ambiguidade ética. Nesta época em que todos precisamos estar atentos às inexoráveis transformações evolutivas do ser, há que incorporar “lados” antes insuspeitos que vicejavam feito aliens em nosso âmago. Temos de assumir nosso lado andrógino, aceitar nosso lado tribal, condescender com nosso lado escuro. Sim, somos multifacetados. Não complicados, apenas complexos, o que pode ser reconhecido quando eliminamos do olhar o viés moral. O cinismo por fim me demonstra inequivocamente que meu sonho com o Bem — sonho básico, que pensava estar indissoluvelmente mesclado à minha Alma — era apenas isso: sonho. Prova também que enfim posso deixar de me martirizar por ser, mais que vacilante, dúbio — agora sei que dentro de mim habitam eus que pensam o que lhes dá na telha sem maiores preocupações uns com os outros. Sou um ambivalente ocupado por seres que na maior parte do tempo me levam em direções diferentes, às vezes antagônicas. Por isso mesmo, agora me sinto mais solto. E livre. 
Queria ser irônico, invocar meu pai, dizer, pai, quanta perda de tempo e saúde você ter querido me ensinar o certo e o errado. Que tremendo simplório, ter escolhido nascer numa época ingênua, chegando já sem lugar neste mundo em que os adultos sequer piscam mais na presença de cafés-com-leite. Pisamos e pisaremos eternamente descalços nos cacos de vidro vindos das garrafas de inebriante néctar que eles arremessam em nosso caminho. Nossos pés sangram, olhamos atônitos para o chão, eles dão contagiantes gargalhadas nos vendo atônitos. Não é um mundo novo e sim um paraíso leve e isento de injunções éticas para nós inédito. Existe há cinco mil anos, a idade da civilização. É o mundo em que o esperto engole o bocó, pai. Neste para nós inusitado changrilá sob um dissimulado império da lei da seleção natural, nossos senhores, movidos a cinismo, não nos devoram — apenas nos digerem para nos regurgitar escravos. Somos mais úteis vivos. 
Em meio a estes dolorosos insights, a névoa que encobre meu espelho vai se descortinando. Aos poucos identifico os novos homens e mulheres em que haveremos de nos converter à luz dos recentes, penosos aprendizados. Em breve, quando nos acharmos encurralados num dos muitos becos sem saída em que vivemos nos metendo, ventosas salvadoras nascerão em nossas mãos para escaparmos subindo paredes. Quando, desolados, vasculharmos a mente em busca duma saída e não encontrarmos senão pensamentos inutilmente vazios, novas cabeças, alívio!, brotarão de nossos ombros, cabeças de cérebros rejuvenescidos e ágeis, equipadas taticamente com algumas dezenas de olhos alertas, poderosos, faiscantes de energia redentora. A cada nova enrascada — que, americanamente, chamaremos “situação” —, veremos nascer, embevecidos, um novo lado em nós mesmos, um lado que, embora apenas parte de todos os nossos lados, será paradoxalmente unívoco, apto a expor-se estrategicamente dependendo das imposições imediatas do meio ambiente. Quanto aos pés, continuaremos a ter os dois de sempre. Mas — se você me permitir, enfim, uma decepcionante conjunção — agora cada qual voltado para um lado. Assim — se você cordialmente permitir que eu o tome pela mão e o conduza —, evoluiremos parados ao sabor desses antigos novos amos que ditam nossos destinos. Seremos, enfim, meros sobreviventes.


Barraco metafísico na noitinha que chega

(Esta deve ser a terceira vez que posto 

este texto. Predileção, acho. É 

uma das minhas melhores descrições. Não 

que isso interesse a quem quer 

que seja. Tenho nojo de quem se interessa por mim e 

pelas coisas minhas. Sou, qual 

Artaud, meu pai, minha mãe, não qual 

Artaud, meu tio amalgamado à minha tia. Sou meu 

amante, pratico o auto-incesto. A quem tem alguma curiosidade 

por mim, podia dizer 

fôdasse. Não vou, já 

o disse vezes demais 

e não adiantou nada. Agora vejam aí como uma mulher 

pode ser maluca a ponto de largar 

um poeta.)


Me diga, como você pode abrir mão dum poeta? Já teve um antes? Não, nunca. Pela sua cara, vê-se que não toleraria um. Poetas dão trabalho. “Trabalho”? Essa é nova, poeta eufemista. Poetas são é fardo. Afinal, pra que presta um sujeito com visão de mundo? Com visão pessimista, desfocada, esquizoide, estapafúrdia de mundo? Visão de mundo é coisa de astronauta, aquele do “a terra é azul”, que deus o tenha. Carinha queria que fosse o quê? Rosa pinque? E essa minha dolorosa inquietação? Ah, vejo um risinho aí no canto da sua boca, não é? De sarcasmo, bem sei. Okay, tira a “inquietação”. Inquietação é pra poetaço daqueles de nobel. Não passo dum atabalhoado. Não, atabalhoado ainda soa literário demais. Trapalhão, isso sim. Mas, pombas, admita, vez ou outra cheguei a trapalhão lírico, não cheguei? Digo, lembra aquela uma ou duas vezes que você riu duma tirada minha? Boutade, você diria? Que nada. Nunca logrei boutade nenhuma, não. Não levo muito jeito com as palavras. Estou ciente que, prum poeta, fica meio estranho. Fazer o quê? É só mais uma das minhas, com perdão do clichê, inconsistências. Coisa de... Adivinhou: poeta. Trapalhão, mas poeta. Ou, se preferir, poeta, mas trapalhão. E, falando em clichê, você acha que devemos fazer das tripas coração para evitá-los? Digo, tem neguinho aí que não usa um clichê nem que a vaca tussa. O resultado em geral fica meio estranho. Pra não dizer ilegível. Mas o que importa é a originalidade, não é mesmo? Viu como é? Não levo jeito pra poesia, muito menos pra boutade. Sempre morri de inveja do wilde. E do twain. Quando moleque, tinha todas as melhores do oscar na ponta da língua. Não posso negar que tentei. E ainda tento, às vezes. Nunca cheguei perto... Bom, aquelazinha... Até que você gostava. Lembra? Eu declamava toda manhã quando você abria os olhos e me via te observando. Deus meu, você me inspirava, moça! Sabe qual era o meu maior medo? Não, não sabe, pois nunca lhe contei. E, se não lhe contei, você não sabe. Você é assim, sem encucações. Você é simples. Não se dá o trabalho de sacar o que não é explícito. Simples e previsível. No bom sentido. Pois é, nem toda previsibilidade é ruim. Os aeronautas que o digam. Ah, como invejo essa sua capacidade. Você sabe, me refiro a essa mania, essa minha irritante mania de ficar pescando o, ugh, subliminar. Coisa mais chata, seu. Meu maior medo, dizia, meu maior medo era um dia te perder e ficar sem inspiração. Me dava calafrio. Toda manhã acordava de madrugada, ficava lá quietinho te olhando pasmo, absorto e outros adjetivos subpoéticos mais, brincando com a ideia de que um dia você ia me largar, eu curtia pacas a brincadeira — tudo bem, pode me chamar de masô, já tô acostumado, todo poeta, pretenso ou não, é masô, nasce pra levar ferro, tanta felicidade dando sopa por aí, não é não? tanta dona gostosa pra comer, tanto chópin arretado pra passear e torrar grana ao cair do crepúsculo... — aliás, por que será que crepúsculo cai, tardinha cai, noitinha cai, — às vezes, no meu caso, até desaba como se tivesse tropeçado nas minhas dores —, e o dia apenas nasce, raia e outros quejandos edificantes do tipo? Engraçado como a gente acaba escolhendo que nome dar às coisas, não é? — Bom, estava dizendo, me amarrava naquela brincadeira de ficar te olhando imaginando te perdendo, então a angústia vinha, uma angústia espinhenta, caroçuda, que eu não podia conter de tão insuportável, vinha só pra se atenuar em seguida sob a saraivada de contrapensamentos que eu disparava contra ela, até vencê-la e declará-la morta — morta pelo menos durante a próxima meia-hora. A graça estava exatamente aí — em me penitenciar imaginariamente com meus próprios terrores. Mas, hoje, vendo você ir embora assim de verdade, me pergunto, de que serve minha imaginação se não me ajuda a te convencer a não desistir de mim? Então sou obrigado a admitir — não sei se estávamos em guerra — estávamos? —, se estávamos, você aparentemente ganhou, minhas graçolas temperamentais não me valem de nada, não enchem barriga, no pitoresco caipirismo da minha finada mãe, coitada da minha mãezinha, tanta esperança nutria pelo guri que se mostrou um pamonha depois que cresceu — tudo bem, admito, já era um pamonhinha quando criança — sabe aquele meu retrato em que estou c'uma gravatinha borboleta que parece feita de palha de milho? — e se de fato cresci, foi só em tamanho —, pensando em mamãe agora, vocês duas até que se dariam bem, acredite, jamais haverá neste mundo outras duas mulheres tão devotadas a massacrar os pífios pendores artísticos dum cristão, espezinhar o natimorto talento com que o miserável nasceu pra uivar pra lua —, mas, pombas, me explique uma coisa que nunca entendi, embora também nunca lhe tenha perguntado, morria de medo de tocar no assunto, seria o mesmo que armar minha própria arapuca, mas agora que tudo acabou posso enfim abrir o coração, então aí vai, que foi que você viu em mim afinal de contas? Não, não é falsa modéstia coisa nenhuma, estou querendo saber honestamente, mais, estou me juntando aos senhores seus pais e parentes e amigos que desde o primeiro dia em que nos viram juntos abriram aquela boca do grito de munch, ojeriza, perplexidade, sei lá, estava escrito na cara de cada um deles, que foi que a nossa princesa viu nesse paspalho feio, taciturno, resmungão, vesgo, desajeitado, narigudo, jeitão de quem não é chegado a um banho, arrogante, perna torta, vozeirão mole e enjoado feito o arauto agonizante do fim do mundo, diga, minha deusa impiedosa, que foi que você viu em mim? Só não confesse, rogo, não confesse que teve pena, mesmo afeito ao melodramático eu não aguentaria tão medonha revelação, não sendo isso, pode se abrir, agora que não pertencemos mais um ao outro sejamos sinceros, eu pelo menos estou sendo, nada mais há a ganhar, a perder, bem, certas coisas não vale a pena desenterrar, afinal isto não é um ajuste de contas, eu só queria lhe perguntar, pombas, como você pode abrir mão dum poeta? trapalhão, vá lá, e, sim, poetas dão trabalho, mas olhe bem nos meus olhos e diga se não valeu a pena, diga, se tem coragem, posso não ser o vencedor que no fundo você sempre buscou, posso não saber ganhar a grana preta de que precisa pra comprar esses badulaques com que você emoldura essa tua vidinha reta sem acidentes de percurso, tudo bem, sei que é pra combinar com a área de arquitetura de interiores em que você trabalha, mas, pombas, deixe de ser durona, confesse que pelo menos umas três ou quatro vezes te fiz rir, provoquei uma gargalhada leve que te fez olhar pro céu com esses seus olhões sonhadores, não fiz? e pelo menos umas cinco ou seis vezes te fiz chorar, mesmo que tenham sido lágrimas de crocodila, mas, seja como for, sinais, que você não conseguiu esconder, de que eu tinha atingido algo aí dentro do seu coração de pedra e aço inoxidável, tudo bem, hoje confesso, confesso que faço essas coisas quase sem querer, ao acaso mesmo, mas, jesus, você sabe, sabe que tentei, e tentar significa alguma coisa, não significa? pois, você também sabe — afinal teve tantos homens em sua vida, é mulher experiente, mestra honoris causa em blefar no pôquer da vida —, você também sabe que a maioria por aí só anda atrás de rabo-de-saia, pode rir, sei que estou falando feito heroína de telenovela femin[oide, rabo-de-saia, urgh, mas quantas vezes trocamos confidências qual duas maricotas, quantos segredos íntimos você me contou como se eu fosse sua comadre, lembra? Eu mal prestava atenção no que você dizia, me deixava encantar pelo brilho de cumplicidade nesses seus olhões de fada, diga, que outro homem poderia desempenhar com tamanha naturalidade sua porção feminina que não um poeta? Por isso, resolvi vir aqui te perguntar, diga, como você pode abrir mão dum poeta? trapalhão, reconheço, poetas são um fardo, os trapalhões mais ainda, mas, sendo um, mesmo de meia-tigela, um belo dum poeta de meia-tigela, não consigo imaginar. Imaginar uma razão, digo. E, olha, imaginação não me falta. Tudo bem, também sei que você não engole carinhas com imaginação. Pombas, imaginar o que, não é mesmo? Se você não estivesse com tanta pressa de ir embora, de cruzar pela derradeira vez esta porta de madeira compensada, eu poderia lhe dizer o quê. Fica pra próxima. Certo, não haverá próxima. Sendo assim, deixa pra lá. Sejamos honestos, imaginação em geral só atrapalha, não atrapalha? o mundão aí fora pra conhecer, a vida pra viver, tanto prazer pra fruir, porra, e carinha fica lá no escuro, introspectivo, falando sozinho, cozinhando e comendo os próprios sonhos como se estivesse numa padaria metafísica, parece doença, não parece? pombas, a gente tem é de ser feliz, lembra quantas vezes você me advertiu? eu fazia que sim, alheio, alheio pra variar, você torcia a boca de impaciência, sei que fui um pé no saco, imagino quanto te fiz sofrer, toda essa sua vitalidade animalesca, esse corpão pra dar e vender, e eu ensimesmado, às voltas com meus fantasmas, minhas quimeras, eternamente zonzo em luscos-fuscos existenciais, ególatra inebriado de cachaça e de mim mesmo, uau, olha, entendo, agora entendo, deus, como pude ser tão cego, essa minha falsa sensibilidade, gosh, sou uma besta, mas, olha, mesmo com o tico de imaginação que deus ou sei lá quem me deu, posso bem imaginar, posso bem imaginar quem vai me substituir ao seu... Óuffff! Veja só, quase digo “ao seu lado”. Me calei a tempo, graças. Me diga, alguma vez estive ao seu lado? Alguma vez você me deixou ficar ao seu lado? Não, não é a isso que me refiro, fisicamente, vejo agora, fisicamente quase não tem mais importância. Puxa, só me sentia de fato ao seu lado à noite na cama, enquanto você dormia. Ai que solidão, christ, como eu queria rezar, espremia a memória tentando lembrar o pai-nosso que estais onde? onde estás, afinal, paizão? estará atrás da porta escura onde às vezes penso — penso? — enxergar unhas vampíricas se estendendo em minha direção? estará sentado à mesa no escuro da cozinha enquanto todos dormimos, menos eu, que apenas finjo? ou estará simplesmente esquecido dentro duma gaveta do passado, as incontáveis gavetas da cômoda no quarto que guardavam meu mundo pra mim enquanto eu delirava de vazio com os olhos fixos nas trevas do teto, cruzes, pensar que em casa rezávamos o terço toda noite antes da novela das sete na tupi, eu era apaixonado por uma das marias, aquela manca, sabe?, não lembro se do pé direito ou do esquerdo, morria de pena da pobrezinha, era apaixonado pelas outras também, obviamente, posso não ser poeta stricto senso, mas coraçãozinho de manteiga, esse nunca me faltou, guardo toneladas de manteiga, ou, se preferir, margarina rançosa com muito sebo, na meia-tigela que me coube, veja, veja como transborda a metade da tigela que me coube, diga, peço, quem é que você vai amar agora? Por acaso será o engenheiro que projeta os próprios sonhos contando realizá-los, como se sonhos fossem pra ser realizados? Será o contador que calcula todo próximo passo que dará na vida? Já pensou? Já pensou como deve ser letalmente entediante um carinha que é previsível em cada palavra, em cada riso amarelo, em cada suspiro? Diga, by god! É por um defunto desses que vai me deixar? Ou será por um garçom cheio de dedos e salamaleques e com-licenças que adivinhe seus caprichos e lhe entregue tudo numa bandeja de prata e se afaste em silêncio numa mesura submissa, a encarnação da deferência que você sempre me exigiu e eu nunca soube lhe dar? Diga, por deus. É por esse, ó mãe, projeto-de-vida que vai me largar? Ou será... Sim! Como fui tão cego? Só pode ser. Apesar de viver no mundo da imaginação, agora está tudo claro. Finalmente. Ele tem pau grande. Não posso acreditar. Ser trocado por um caboclo fornicador. É tão... tão... anticlimático. Foi só isso que sobrou do nosso projeto metafísico? Gosh, e toda a filosofia que ousamos? E a nossa cosmologia? Que é que vou fazer agora com aquela nossa cosmologia que eu acalentava qual um filhotinho de labrador virtual? Tudo por uma rola tamanho família. Então era esse seu, com perdão da boçalidade, sonho de consumo? Quem diria. Eu, aqui maravilhado com meu suposto poder de imaginação, não imaginei. Maldito pendor às coisas do espírito! Praga de vocação para a intelectualidade! Senhor que estais no céu, fazei deste humilde servo um animal bem dotado pra reprodução da espécie! Quer dizer que tudo era uma questão de centímetros? Arre, maldição católica de menosprezar os desejos do corpo. Tinha nas minhas mãos frágeis de teórico da vida uma cadela prestes a se incendiar de volúpia carnal, tinha em minhas mãos e não vi! Mas, diga, meu anjo ninfomaníaco, um simples dildo de borracha não resolveria? Ó deus, podíamos ter usado a imaginação! Que tragédia por um pinto. Ora, direis, não se abandona um poeta por um pinto. A lei não permite. O presidente proibiu. Meu pai que jaz no túmulo há 30 anos não deixaria. Ou será...? Não! Isso não. Eu não deixo. Por um pinto, até aceito. Me conformo. Pensando bem, eu no seu lugar talvez fizesse o mesmo. Mas isso não. Jamais. Não pode. Não tem cabimento. Mulher alguma jamais fez isso. Jamais. É desumano. Cruel além da imaginação de deus. Seu sangue vai secar dentro das veias. É contra o universo. A terra vai girar ao contrário. Será o fim do equilíbrio quase tácito entre todas as coisas. Você não se atreveria. Por outro poeta, não. Não se troca um poeta por outro. O quê? Ele não é poeta? Ah, ah. Que trouxa sou. Foi uma piada. Ufa, veja, me encharquei de suor. Pra dizer a verdade, acho que mijei nas calças. Meu doce de coco, meu tesouro, olha, tem coisa que não se brinca. Jesus, poeta! Ah, não.