“A ciência das coisas
exteriores não me consolará da ignorância da moral nos momentos de aflição; mas
a ciência dos costumes me consolará sempre da ignorância das ciências
exteriores.”
Emmanuel Lévinas
9:24. Três batidinhas na porta. Me
arrepio. Nunca vou me acostumar.
Estou escrevendo a enésima carta de
despedida à minha ex-mulher Sílvia e paro.
Abro as quatro trancas. (Essas
onomatopeias acidentais, frère Jacques, frère Jacques, dormez-vous?.) Fecho os
olhos, sinto o leitoso hálito sorry.
Soninha entra com seus cinco (não perca a
conta) celulares. Ontem me mostrou um por um e a parafernália de recursos. Cada
qual com um tom de alguma dupla caipira. Claro: meu maior medo é que todos
toquem duma vez. Como naqueles filminhos, bem quando estamos engatando na cama.
A sinfonia do meu destino.
Sô, um dia vai chegar em que as nossas
vidas estarão no YouTube e passaremos nossos dias assistindo nossas vidas no
YouTube, entende, Sô?
Queria acrescentar uma citação qualquer
de Christopher Lasch. Não pra me exibir. Nem uma demonstração de esnobismo
Soninha entenderia. É que sinto falta de profundidade às vezes e com a Soninha
é sempre tudo na superfície. Ela tem medo de afundar. Não me atrevo a dizer.
Soninha é espontânea. Como jamais imaginei que possível fosse.
Eu tenho medo de aflorar.
Fico pensando na parede. Ela fica
pensando no teto.
— Quando é que a gente vai casar?
— Sô, agora não. Estou escrevendo minha
enésima carta de despedida para a Sílvia.
Arrisco um olhar de canto. Ela poderia
reclamar do meu tom condescendente e antipático. Que sou mesmo duro de aturar.
Mas ela é espontânea.
Como dizem os vencedores que levam por
prêmio a batata, o silêncio é a melhor resposta. Podia dizer, olha, não me
interessa vencer. E não sou muito a fim de batata.
Sílvia, tenho senso de territorialidade
como qualquer um aí fora obcecado por ganhar a vida.
Não quero que você me julgue por tudo que
lhe disse quando estávamos juntos. E sim no que sentia por mim. O que mais
lamento é que esse meu pavor de ser apenas mais um zé-ninguém massacrado por
senso de responsabilidade, obrigação de ser o que quer que exijam de mim (seja
descomplicado, seja corajoso, seja homem, seja franco, seja tudo que o mundo
quer que você seja) foi exatamente o que te afastou de mim. Errei em me fiar
apenas no que sinto. Como é que devo agir agora?
Você sabe que não é fácil. Essa coragem
que você me cobra é coisa de homúnculos que deixam o que sentem se embotar
pelos mandos sociais. Mesmo assim você exigia que eu seguisse o rebanho.
Mas minha cara Sílvia, não nasci para
zé-ninguém. Não “sinto” vontade de ter um carrinho manero. Não me “sinto” no
dever de dizer que gosto de poesia para que meu público me ache um cara
sensível. Tenho horror a quem vive de construir a própria fachada. O zé-ninguém
não tem ideia do que deve sentir e quando sente sente-se o mesmo que outros 8
bilhões de zés. Olha, não estou lhe anunciando nenhuma novidade. Só queria que
você entendesse que eu merecia a chance de tentar. Certo, não consegui escapar
da zé-ninguenzisse. Para um escritor isso é terrível. Tudo bem, sei que você
detesta quando falo assim. Mas este é o “meu” tema, o único de que posso e de
que sei falar. Tudo bem, sou complicado. Mas qual poeta frustrado não é? Tudo
bem, todos os poetas e o pai do Huxley são frustrados.
Descobrir o que sinto é a minha tarefa.
Não pretendo soar nobre, como você certamente vai debochar. Apenas tento botar
um mínimo de sentido no meu mundo. Sou indiferente ao que não me acenda uma
luzinha ou me soe um alarme aqui dentro.
Você sempre tira pressuposições demais.
Pare de pressupor o que sou e veja o que sou. Sei, requer um tico de treino.
(Os participantes do concurso não levam um prêmio de consolação; teu prêmio
seria me ter de volta. Não vou te perguntar se te interessa. Não me cabe essa
pergunta.)
Eis um exemplo de suas pressuposições:
você pressupõe, como seria “natural”, que tenho de me precaver contra
naufrágios. (É mesmo, nunca te falei em naufrágios. Embora, vejo agora, seja
bem possível naufragar em águas rasas.)
Ao contrário do que seria “natural”, não
fujo de naufrágios. Já os sofri e sofro dia a dia. Embora não seja um
navegante. Naufrágios — perdão pelo clichê — fazem parte.
O que acho engraçado é que, depois de
tudo, você ainda ache que sou um cara preocupado com os zés e suas
besteirinhas. Nos meus naufrágios diários me afogo, ressuscito, volto pro mar,
me afogo de novo. E, olha, que é que pode haver de mais belo que um bom
naufrágio ao entardecer? Se tiver um copinho de balla na mão direita e um free
na esquerda, então, é sublime. E, claro, se tiver você me lendo, aí até me
sinto quase feliz.
Teus insultos quando nos separamos não me
espantaram. Me espantou, sim, a raiva com que os proferiu. Fiquei parado um
tempão tentando compreender. Eram, imaginei, de novo as suas pressuposições.
Você se desconcertava quando eu saía do figurino que você aprendeu a obedecer.
Mas quando nos conhecemos naquele bar flutuante na ilha Porchat não te disse
que sou um desconcertador profissional? Você riu, sem pescar. Tudo bem, falo demais
e sei que meus leitores não pescam nem 9,45 por cento do que falo. Tudo bem,
posso me defender alegando que lhe preveni. Adoro, você sabe, escandalizar a
boa gente à minha volta. Até meus amigos o Fred e o Afonso, que têm uma porrada
em comum comigo, vivem se espantando. Sei que não sou moleza. Eles me suportam
porque são machos, embora gays.
Mas me diga uma coisa: você me amou
porque viu em mim os encantos dum náufrago, não foi?
Não sei se você vai responder.
Provavelmente fiz, mais uma vez, jus a teus insultos. Tenho esse dom de agredir
na maciota. Dói mais, acho. Ossos do ofício, acho de novo. Não, não que eu
queira ou goste de agredir. Bom, gosto, sim. É das poucas coisas que faço com
prazer. Sorry. Mas não é deliberado. Escapa. Você sabe que adoro dar minhas
espicaçadas. Sobretudo em quem amo. De preferência, com vara curta. Sei que
você vai acusar esta alusão genital. Nunca vi uma mulher com tamanha queda pela
genitalidade como você.
Quer que lhe diga outra coisa engraçada?
Então aí vai: achei engraçado como, ao sair atirando, você me acusou... — como
é que foi mesmo? não sei se foram estas as palavras exatas, já bebi além da
conta — ah sim, me acusou de “escrever pra atingir outra pessoa”. Pois é, dois paranoicos
feito nós não podem ter futuro. A diferença é que assumo minha paranoia, ao
passo que você quer fingir que é sã. Você se amarra num teatro. (Embora o
italiano com pendores dramáticos seja eu.)
— Vai demorar? — Soninha se posta às
minhas costas e espia a tela. — Que é que você escreve tanto?
Quem não escreve (ou quem não escreve a
sério) não pode entender. Às vezes nem eu mesmo entendo. Afinal, que é que
escrevo tanto? Só ao acordar (de manhã, bem entendido) é que me faz algum
sentido.
Não é moleza ter ao lado uma mulher e
escrever para outra.
— Pombas, Sô. Assim você me atrapalha a
concentração. Vai jogando aí no celular enquanto não termino.
Bom, minha cara Sílvia, por hoje acho que
é tudo. Ando meio cansado. Não é moleza sentir o que sinto.
Só mais uma coisinha. Teus insultos me feriram
e me divertiram. Feriram porque, apesar das aparências (a tola lei das
aparências — Wilde dizia, é superficial não julgar os outros pelas aparências —
genial, não? Quantos ensinamentos esses cabras têm a dar a quem quiser
aprender), não sou masoquista. A bem da verdade, como diz o Luciano do Valle,
sou um tico. Faz, ih, parte. Artistas estão condenados ao sofrimento (se você
me perdoa a pretensão de me proclamar artista. Sei que, tem hora, soo um esnobe
filho da puta. Sou um filho da puta). E divertiram porque são a prova mais
incontestável de que você ainda me ama. Teria mesmo o descaramento de dizer que
me adora. Vai ver você também curte curtir uma dor. Deus nos livre a nós dois.
Já que preza tanto a qualidade da coragem
num homem, lamento que não tenha tido a coragem de fazer parte da minha ficção.
Sim, alguns dias, em certos aspectos, sob determinados pontos de vista, passei
de todos os limites. Em outros, também. Tudo bem, você não gosta de quem passa
dos limites. Me ama e me despreza. Me acha um doente travestido de lírico. Um
maníaco autocentrado incapaz de enxergar os sentimentos alheios.
Mas quase tudo se resumia a isso, minha
cara. Tem algum problema? Ou está absurdamente fora do teu figurino?
Você me acusou de escrever para mim
mesmo. Minha cara, quem se pretende escritor só pode escrever para si mesmo.
Público é para os paulo-coelhos, os caetanos, os chicos. (Chico não escreveu
aquelas duas bobagens só para agradar seu público?)
Então até a próxima. Não sei se você
sabe, agora tenho um blog. Sei, é esquisito. Logo eu, não é mesmo? Mas, olha, é
tudo bem modesto, sem nenhuma pretensão. Quer dar uma espiada? O endereço é
este. Você vai ver que mencionei uma ou outra passagem sobre nós dois. Não se
preocupe, sou discreto. E, você sabe, não fizemos nada que nos comprometesse.
Infelizmente.
O blog me ajuda a relaxar enquanto vou
tocando meus livrinhos. Ou “projetos”. Lembra como você ria dizendo que nunca
vou acabar nenhum deles? Acho que tinha razão. Preciso de disciplina e vigor.
Não tenho nem uma nem outro. Queria deixar registradas algumas coisinhas que
aprendi, criar uns personagens a partir dumas pessoas que conheci. Mas como, se
tudo que aprendi foi você quem me ensinou e a única pessoa que conheci foi
você? Estou absolutamente vazio agora que você foi embora.
E sei que você nunca vai ler minhas
cartas.
Queria te dar um beijo.
— Sô! Larga essa porcaria e vem discutir
o meu egoísmo. Sei que você se amarra no assunto.