Amorokê na vila - Capítulo 037


“A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da moral nos momentos de aflição; mas a ciência dos costumes me consolará sempre da ignorância das ciências exteriores.”
Emmanuel Lévinas

9:24. Três batidinhas na porta. Me arrepio. Nunca vou me acostumar.
Estou escrevendo a enésima carta de despedida à minha ex-mulher Sílvia e paro.
Abro as quatro trancas. (Essas onomatopeias acidentais, frère Jacques, frère Jacques, dormez-vous?.) Fecho os olhos, sinto o leitoso hálito sorry.
Soninha entra com seus cinco (não perca a conta) celulares. Ontem me mostrou um por um e a parafernália de recursos. Cada qual com um tom de alguma dupla caipira. Claro: meu maior medo é que todos toquem duma vez. Como naqueles filminhos, bem quando estamos engatando na cama. A sinfonia do meu destino.
Sô, um dia vai chegar em que as nossas vidas estarão no YouTube e passaremos nossos dias assistindo nossas vidas no YouTube, entende, Sô?
Queria acrescentar uma citação qualquer de Christopher Lasch. Não pra me exibir. Nem uma demonstração de esnobismo Soninha entenderia. É que sinto falta de profundidade às vezes e com a Soninha é sempre tudo na superfície. Ela tem medo de afundar. Não me atrevo a dizer. Soninha é espontânea. Como jamais imaginei que possível fosse.
Eu tenho medo de aflorar.
Fico pensando na parede. Ela fica pensando no teto.
— Quando é que a gente vai casar?
— Sô, agora não. Estou escrevendo minha enésima carta de despedida para a Sílvia.
Arrisco um olhar de canto. Ela poderia reclamar do meu tom condescendente e antipático. Que sou mesmo duro de aturar. Mas ela é espontânea.
Como dizem os vencedores que levam por prêmio a batata, o silêncio é a melhor resposta. Podia dizer, olha, não me interessa vencer. E não sou muito a fim de batata.
Sílvia, tenho senso de territorialidade como qualquer um aí fora obcecado por ganhar a vida.
Não quero que você me julgue por tudo que lhe disse quando estávamos juntos. E sim no que sentia por mim. O que mais lamento é que esse meu pavor de ser apenas mais um zé-ninguém massacrado por senso de responsabilidade, obrigação de ser o que quer que exijam de mim (seja descomplicado, seja corajoso, seja homem, seja franco, seja tudo que o mundo quer que você seja) foi exatamente o que te afastou de mim. Errei em me fiar apenas no que sinto. Como é que devo agir agora?
Você sabe que não é fácil. Essa coragem que você me cobra é coisa de homúnculos que deixam o que sentem se embotar pelos mandos sociais. Mesmo assim você exigia que eu seguisse o rebanho.
Mas minha cara Sílvia, não nasci para zé-ninguém. Não “sinto” vontade de ter um carrinho manero. Não me “sinto” no dever de dizer que gosto de poesia para que meu público me ache um cara sensível. Tenho horror a quem vive de construir a própria fachada. O zé-ninguém não tem ideia do que deve sentir e quando sente sente-se o mesmo que outros 8 bilhões de zés. Olha, não estou lhe anunciando nenhuma novidade. Só queria que você entendesse que eu merecia a chance de tentar. Certo, não consegui escapar da zé-ninguenzisse. Para um escritor isso é terrível. Tudo bem, sei que você detesta quando falo assim. Mas este é o “meu” tema, o único de que posso e de que sei falar. Tudo bem, sou complicado. Mas qual poeta frustrado não é? Tudo bem, todos os poetas e o pai do Huxley são frustrados.
Descobrir o que sinto é a minha tarefa. Não pretendo soar nobre, como você certamente vai debochar. Apenas tento botar um mínimo de sentido no meu mundo. Sou indiferente ao que não me acenda uma luzinha ou me soe um alarme aqui dentro.
Você sempre tira pressuposições demais. Pare de pressupor o que sou e veja o que sou. Sei, requer um tico de treino. (Os participantes do concurso não levam um prêmio de consolação; teu prêmio seria me ter de volta. Não vou te perguntar se te interessa. Não me cabe essa pergunta.)
Eis um exemplo de suas pressuposições: você pressupõe, como seria “natural”, que tenho de me precaver contra naufrágios. (É mesmo, nunca te falei em naufrágios. Embora, vejo agora, seja bem possível naufragar em águas rasas.)
Ao contrário do que seria “natural”, não fujo de naufrágios. Já os sofri e sofro dia a dia. Embora não seja um navegante. Naufrágios — perdão pelo clichê — fazem parte.
O que acho engraçado é que, depois de tudo, você ainda ache que sou um cara preocupado com os zés e suas besteirinhas. Nos meus naufrágios diários me afogo, ressuscito, volto pro mar, me afogo de novo. E, olha, que é que pode haver de mais belo que um bom naufrágio ao entardecer? Se tiver um copinho de balla na mão direita e um free na esquerda, então, é sublime. E, claro, se tiver você me lendo, aí até me sinto quase feliz.
Teus insultos quando nos separamos não me espantaram. Me espantou, sim, a raiva com que os proferiu. Fiquei parado um tempão tentando compreender. Eram, imaginei, de novo as suas pressuposições. Você se desconcertava quando eu saía do figurino que você aprendeu a obedecer. Mas quando nos conhecemos naquele bar flutuante na ilha Porchat não te disse que sou um desconcertador profissional? Você riu, sem pescar. Tudo bem, falo demais e sei que meus leitores não pescam nem 9,45 por cento do que falo. Tudo bem, posso me defender alegando que lhe preveni. Adoro, você sabe, escandalizar a boa gente à minha volta. Até meus amigos o Fred e o Afonso, que têm uma porrada em comum comigo, vivem se espantando. Sei que não sou moleza. Eles me suportam porque são machos, embora gays.
Mas me diga uma coisa: você me amou porque viu em mim os encantos dum náufrago, não foi?
Não sei se você vai responder. Provavelmente fiz, mais uma vez, jus a teus insultos. Tenho esse dom de agredir na maciota. Dói mais, acho. Ossos do ofício, acho de novo. Não, não que eu queira ou goste de agredir. Bom, gosto, sim. É das poucas coisas que faço com prazer. Sorry. Mas não é deliberado. Escapa. Você sabe que adoro dar minhas espicaçadas. Sobretudo em quem amo. De preferência, com vara curta. Sei que você vai acusar esta alusão genital. Nunca vi uma mulher com tamanha queda pela genitalidade como você.
Quer que lhe diga outra coisa engraçada? Então aí vai: achei engraçado como, ao sair atirando, você me acusou... — como é que foi mesmo? não sei se foram estas as palavras exatas, já bebi além da conta — ah sim, me acusou de “escrever pra atingir outra pessoa”. Pois é, dois paranoicos feito nós não podem ter futuro. A diferença é que assumo minha paranoia, ao passo que você quer fingir que é sã. Você se amarra num teatro. (Embora o italiano com pendores dramáticos seja eu.)
— Vai demorar? — Soninha se posta às minhas costas e espia a tela. — Que é que você escreve tanto?
Quem não escreve (ou quem não escreve a sério) não pode entender. Às vezes nem eu mesmo entendo. Afinal, que é que escrevo tanto? Só ao acordar (de manhã, bem entendido) é que me faz algum sentido.
Não é moleza ter ao lado uma mulher e escrever para outra.
— Pombas, Sô. Assim você me atrapalha a concentração. Vai jogando aí no celular enquanto não termino.
Bom, minha cara Sílvia, por hoje acho que é tudo. Ando meio cansado. Não é moleza sentir o que sinto.
Só mais uma coisinha. Teus insultos me feriram e me divertiram. Feriram porque, apesar das aparências (a tola lei das aparências — Wilde dizia, é superficial não julgar os outros pelas aparências — genial, não? Quantos ensinamentos esses cabras têm a dar a quem quiser aprender), não sou masoquista. A bem da verdade, como diz o Luciano do Valle, sou um tico. Faz, ih, parte. Artistas estão condenados ao sofrimento (se você me perdoa a pretensão de me proclamar artista. Sei que, tem hora, soo um esnobe filho da puta. Sou um filho da puta). E divertiram porque são a prova mais incontestável de que você ainda me ama. Teria mesmo o descaramento de dizer que me adora. Vai ver você também curte curtir uma dor. Deus nos livre a nós dois.
Já que preza tanto a qualidade da coragem num homem, lamento que não tenha tido a coragem de fazer parte da minha ficção. Sim, alguns dias, em certos aspectos, sob determinados pontos de vista, passei de todos os limites. Em outros, também. Tudo bem, você não gosta de quem passa dos limites. Me ama e me despreza. Me acha um doente travestido de lírico. Um maníaco autocentrado incapaz de enxergar os sentimentos alheios.
Mas quase tudo se resumia a isso, minha cara. Tem algum problema? Ou está absurdamente fora do teu figurino?
Você me acusou de escrever para mim mesmo. Minha cara, quem se pretende escritor só pode escrever para si mesmo. Público é para os paulo-coelhos, os caetanos, os chicos. (Chico não escreveu aquelas duas bobagens só para agradar seu público?)
Então até a próxima. Não sei se você sabe, agora tenho um blog. Sei, é esquisito. Logo eu, não é mesmo? Mas, olha, é tudo bem modesto, sem nenhuma pretensão. Quer dar uma espiada? O endereço é este. Você vai ver que mencionei uma ou outra passagem sobre nós dois. Não se preocupe, sou discreto. E, você sabe, não fizemos nada que nos comprometesse. Infelizmente.
O blog me ajuda a relaxar enquanto vou tocando meus livrinhos. Ou “projetos”. Lembra como você ria dizendo que nunca vou acabar nenhum deles? Acho que tinha razão. Preciso de disciplina e vigor. Não tenho nem uma nem outro. Queria deixar registradas algumas coisinhas que aprendi, criar uns personagens a partir dumas pessoas que conheci. Mas como, se tudo que aprendi foi você quem me ensinou e a única pessoa que conheci foi você? Estou absolutamente vazio agora que você foi embora.
E sei que você nunca vai ler minhas cartas.
Queria te dar um beijo.
— Sô! Larga essa porcaria e vem discutir o meu egoísmo. Sei que você se amarra no assunto.