Instantâneo VIII

Surpresa
Felicidade
Não imaginava, depois de tantos anos de silêncio
Esperando a morte
O sol nascia, pronto, hoje acaba tudo
É que sou meio fantasista
Não sei olhar as coisas como elas são
Não quero olhar as coisas como elas são
Desprezo quem olha as coisas como elas são
As coisas não são como elas são
Sou meio romântico
Tenho essa queda por deixar o mundo de verdade de lado para recriar outro a meu gosto
Embora não goste de nada
Afora a música
Mas não de todas
Gosto da música que não me faz perguntas
Quando escuto uma música que não me faz perguntas me dá vontade de dizer o que penso
E responder num ímpeto
Imediatamente me contenho pensando
Não, não posso mais ser impetuoso
Então fico uns momentos reelaborando a resposta original em que tinha pensado
Reelaboro, reelaboro, até que puf! some tudo
Por isso fico em silêncio
Por vários dias
Vários dias a fio
Gosto de silenciar por vários dias a fio
Sabe por que silencio?
Porque quero dizer não sei o quê
Quero dizer não sei como
Então me ponho a ponderar
Ponderar, ponderar, ponderar
Quanto mais pondero, mais confuso e hesitante fico
É que sou fantasista
Sou romântico
Presa fácil da paixão
Apaixonado, morro de medo das perdas
É que sou meio fatalista
Tudo que ganho acabo perdendo
E quando não perco faço uma forcinha
É que sou meio perdedor
Escrevi um dia alhures que sou um perdedor de estrelas
Procuro perder uma por dia
Pelo menos
E quando a perco, componho uma música
Uma música tipo um mantra
Com o objetivo de amolecer corações duros
umedecer olhares firmes
enternecer a marcha inclemente do destino



Instantâneo VII

Noite de quinta.
Quinta à noite.
A manhã desta quinta parece ter ocorrido há quinze anos.
Fiz tanta coisa hoje e não fiz nada.
Nada do que queria fazer.
Nada do que precisava fazer.
Preciso fazer tanta coisa.
Não preciso fazer nada.
Não quero fazer nada.
Só me resta pensar em minha biografia.
Desenvolver mais um mm minha pessoalidade.
Calibrar meu tom lírico.
Descansar.
Hoje depois do almoço me rebelei contra a herança da fé deixada por meus pais.
Agora à noitinha me rebelei contra a herança da fé deixada por meus pais.
Ontem me rebelei contra os inertes que se recusam a abandonar o morno conforto espírito-intelectual proporcionado pelo sacramentado.
E antes de ontem.
Há décadas venho tentando dar por vencida minha batalha contra crenças. Religiosas, psicológicas, culturais, marca de multi-inseticida.
Esse gostinho amargo de deslealdade para quem nos ensinou tanto com tanto sacrifício, não há o que dê jeito.
Trair requer peito.
Noite de sábado, zanzando no labirinto cibernético (que horrível esta palavra, que medonho este mundo, que infindável solidão revestida de links).



Instantâneo VI

Não sei quem é Sartre.
Como, se não sei nem mesmo quem sou eu?
Okay, digamos que seja apenas uma frase de efeito.
Todo mundo sabe quem é todo mundo.
Eu sei quem é todo mundo.
Todo mundo sabe quem sou eu.
E pronto.
E fôdasse.
E acabou.
E que sejam todos felizes pra sempre, com lacinhos rosas e azuis em suas respectivas cacholas.



Só quero me sentar no alto da escada e assistir o fim do dia

Sílvia, pode parar com a dissimulação, sei que você e Sô andam se encontrando às escondidas. Quer dizer, você anda, Sô sempre faz tudo absolutamente às claras, já te disse, é a pessoa mais honesta que conheci, resolvida, quem é mesmo que vivia reclamando que eu nunca seria um sujeito resolvido?
Lembrei, era você.
Como dizia minha avó Celestina, o mundo dá voltas e isso é muito bom, muito bom para mim, se tem um cara para quem o mundo dá voltas esse cara, você sabe, sou eu, você sabe, se fosse desses sujeitos que vivem declamando eu-sou-assim, eu-sou-assado, eu-sou-fudidaço, eu-faço-e-aconteço, desses sujeitos que têm um mote e aplicam seu mote em todo lugar a qualquer hora na fuça de qualquer um não dando a mínima ao constrangimento que causam nos outros quando entre os outros há um cara cheio de pudores que nem eu, o meu, o meu mote seria não-falei? você não quis me dar ouvidos, agora aguenta, agora toma, agora fôdasse, agora toma, agora aguenta.
Ah minha querida Sílvia, Sô me contou. Fiz que não. Não. Não. Não. Não acredito, benzinho. Sílvia não. Tá enganada. Sílvia não permitiria. Poderia ser qualquer uma, ela não.
Quer dizer que você engordou algumas arrobas e tá balofinha feito uma leitoa de Natal? Não. Não. Não.
Minha Sílvia não.
Olha as fotos aqui, Sô pegou o celular e começou a cutucar.
Não, não, não. Não quero ver. Não quero ver Sílvia gordinha, Sílvia gorducha, Sílvia fofinha, Sílvia balofa, Sílvia abarrotada de substâncias graxas.
Imagina minha cabeça o momento em que Sô me contou.
Imaginou?
Impossível né?
Nem eu seria capaz.
Depois daquele momento tentei vários exercícios, lembra? lembra dos meus exercícios mentais, intelectuais, emocionais, sentimentais?
Lembra sim senhora. Vivia debochando. Não um deboche escancarado como qualquer outra. Mas aquele teu, aquele fininho, aquela estrelazinha luzindo quase invisível nos lábios, a condenação a triscar atrás do olhar, pretensamente inacessível à minha percepção e, se percebida, imprópria como prova à minha acusação.
Ah meu amor, quantos infindáveis exercícios implementei em teu nome, hasteei em tua honra, macerei por tua buceta na solidão escura do meu mundo em permanente dissolução, sempre aflito por prever a próxima volta e garantir que teus imprevisíveis folguedos não me atirassem num lixão de amores numa dessas minhas dimensões da qual jamais seria capaz de escapar.
Olha só essa, morzim. Sô empurra o celular pro meu lado.
Ah amada Sílvia, lembra dos meus exercícios... meus exercícios...
Sô aperta meus lábios com um indicador.


Impermeável

Quero as facilidades do mundo longe de mim.
Nada de legados.
Não pedi herdade a nenhum testador.
As invenções da civilização europeia, joguem no lixo cada uma delas. Penicilina, ar condicionado, motor a combustão, som estéreo, jacuzzi.
(O scotch, tudo bem, não sejamos extremistas.)
Acabo de fazer uma descoberta – maior do que a de Colombo, Pedro Álvares ou Arquimedes. Descoberta grande para mim e, se é grande para mim, me basta.
Nada de legados ou herdades.
Os que fazem algo de útil na vida e deixam o que fizeram de útil de legado aos seus pósteros, tenham bom proveito.
Enfiem no meio do rabo.
Doem para a Cruz Vermelha.
Façam como todas as civilizações fizeram até hoje, deixem para a prole.
Neste vinte e sete de julho de dois mil e quatorze.
Declaro que morri ontem.
E nasço hoje.
Doravante me constituo do que escolho ser.
Decido o que penso.
O que me faz pensar o que penso.
As palavras que me fazem pensar o que penso.
Os sentimentos e as sensações que produzem as palavras que me fazem pensar o que penso.
Não será Mallarmé que determinará por mim como devo sentir o que sinto e quais palavras usar para expressar o que sinto.
Pois foram Mallarmé e seus colegas colonizadores que me impediram de saber o que sinto e como expressar o que sinto.
O que sinto, afinal?
Sinto esse aborrecimento, esse aborrecimento destituído de cores e qualificativos.
E é só esse aborrecimento que sinto?
Não estou bem certo. Talvez esse aborrecimento e umas beliscadas pelo corpo como se fosse uma leitoa sangrenta aprisionada num aquário povoado de piranhas.
Coberta de feridas que nunca saram.

Instantâneo V

Acabo de retornar.
Acabo de retornar duma viagem.
(Ainda não conheço Gliese 667Cc, aquele exoplaneta na constelação Escorpião a apenas 22 anos-luz de distância de nós. Provavelmente jamais conhecerei Gliese 667Cc.)
Estou tão aliviado.
Tão imensamente aliviado.
Quando você puder largar tudo e dar um basta definitivo em seus problemas, experimente também. Vai adorar.
Na ida da minha viagem, esqueci o que sou.
Na volta, o que não sou.
Hoje em dia é o mínimo que se espera duma excursão. Seja para fins turísticos ou outros.
Antes de partir pensei até em levar aquele frango com farofa que mamãe preparava quando íamos ao clube de campo aos domingos.
Posso sentir fome na viagem. Mamãe nunca permitiria que passasse fome numa viagem – qualquer viagem que fosse.
Nada disso, me apressei a mudar de ideia. Onde encontraria um frango com farofa daqueles? Ninguém neste mundo moderno saberia fazer um frango com farofa daqueles.
E, principalmente, nada de nostalgia hoje. Chega. Quero mudar de hábitos. E de práticas. Estou farto de ser nostálgico. Será que alguém poderia me explicar pra que raios serve a nostalgia afinal? Nos traz algum resultado prático? Fortalece nossa crença no destino? Afasta definitivamente de nossas cabeças a suspeita de que não temos utilidade alguma neste mundo?
Sentávamos na relva num canto afastado do imenso clube de campo na manhã de domingo após a missa, isto é, sentávamos depois que mamãe estendia a toalha xadrezada sobre o capim alto. Papai coordenava a logística, orientando eu e a mana a buscar no carro os badulaques do piquenique. Tudo no lugar, a caçarola era o centro das atenções, sob controle de mamãe. Ela apanhava o frango inteiro e ia destrinchando em partes e distribuindo a cada um de nós. Eu sempre queria a coxa. A mana, não lembro o que queria. Papai não fazia conta – tudo sempre estava bom para ele.



Someday somewhere

Me dá vontade de irradiar
Rir da morte, celebrar a vida
Não responder as perguntas
Esquecer minha identidade
Deixar de ser pequeno
Deixar de ter tamanho
Até, veja só! fazer planos para
Um dia ter amigos!
Me dá vontade de deixar de
Ser terrivelmente triste
Me dá vontade de
Ser poeta
Mais poeta do que jamais
Poderei ser quando
Te vejo



Lance sem jogo

Meu trem apita atrás da última curva
Em breve estará aqui
Queria ser mais preciso
Mas não vou me preocupar com detalhes
Na hora da partida

Escuto meu trem chegando
Hendrix também escutou
A todos que pensavam ter o azar de estar
Por perto
A guitarra dilacerante
Angustiada, desesperada
Desesperadora, revoltante
Parecia apenas coisa
De adolescente
Adolescente que era, a mim também
Por décadas dei graças por não ter sido
Diferente
Por décadas optei pela auto-enganação
Olhando em volta, quem não?
Desde que comecei a tomar consciência
Das coisas
E ciência do mundo
Tenho esta maldita mania
De olhar em volta
Que é que espero tanto, afinal?
Ainda não sei e nunca haverei de saber
O que sei é que esperar me deixa exausto

A vida demora demais
Por que tudo não nasce, existe e acaba
Em meros três segundos?
Seria suficiente para nos provar a todos
O sentido de “tudo”, não seria?

Para Franz Kafka o sentido da vida
É que ela acaba
Certa vez, numa mesa de buteco, disse a uma estudiosa de Aristóteles  que todos os sistemas filosóficos não valem um centavo diante dessa afirmação. A moça me olhou incrédula. Se recusou a considerar a possibilidade. Passados uns segundos, vislumbrei um brilho de extrema decepção em seus olhos. Os músculos da face parecem descer alguns milímetros. Em seguida testemunhei um valente esforço de superação. Não ia se dar por vencida depois de décadas de dedicação aos grandes pensadores que nos explicam desde a Grécia antiga. Não, o fantástico, incomensurável monumento que vem sendo erigido há milênios não haveria de desmoronar sob um dístico patético de oito patéticas palavras. Por um átimo vi passar por seus pensamentos, como naquela introdução dos jogos da Copa em que cada jogador aparecia cruzando os braços, o grande time formado por Platão, Sartre, Kant, Nietzsche, Russel, Heidegger. Os campeões do espírito humano não podiam sucumbir ante um simples romancista, por mais genial que fosse. Seriam, no mínimo, tão geniais quanto.
O sentido da vida é que ela acaba. Kafka deu um nó na lógica. Botou os racionalistas pra correr como se fossem humanos repentinamente convertidos em baratas. Qualquer filósofo que se arrogue seriedade deveria começar daí.

Escuto meu trem a se aproximar
E vem que vem que vem desde que existo
Tentei não o escutar, admito
No pôr do sol de certos dias
No nascer do dia em certas madrugadas
Fazendo que não era comigo
Não era eu o passageiro
Não era eu na estação
Outro o escutava em meu lugar

Escuto passos subindo a escada
Uma voz chama meu nome
De todas as vezes em que meu
Nome foi chamado
Me congratulo por não ter de
Responder



Instantâneo IV

Você já tentou apagar um sorriso?
Duvido que tenha tentado.
Mas, se já, duvido que tenha conseguido.
Pois, se conseguiu, não era um sorriso sincero.
E, se não era um sorriso sincero, do que é que estamos falando?
Estamos falando dum sorriso genuíno.
Daqueles que brotam de dentro.
Indiferentes a piadas, gracejos, coquetices.
Infensos sorrisos.
Sorrisos infensos ao mundo.
Esses que sorrimos, sei lá,
Duas, cinco, oito vezes

Na vida.


Instantâneo III

A razão que eleva o homem à Lua
Reduz o homem ao átomo
Não me eleva ao teu céu
Não me traz ao teu chão
Nem impede teu dia de seguir
Até o asilo da noite
Enquanto mal começo a
Amanhecer



Instantâneo II

O dia tá parado
Não parado feito estátua
Mas parado como só
O dia pode estar
Logo vem a noite e nhac!
Engole o famigerado
E de papo cheio, a noite
Primeiro dormita, depois
Desmaia e sonha
Sonha que o dia vem e
Fica lá parado como só
O dia sabe ficar e então
Ela, a noite, schlupt! e
Dorme e sonha enquanto
Tento não prestar atenção



Instantâneo I

Ele para o carro em frente à casa dela. Por uns segundos pondera se deve desligar o motor. É a decisão mais difícil dos últimos tempos. Resolve deixar funcionando, por via das dúvidas.
— Só mais uma coisinha — ela exala o ar tirando um peso do peito, quem sabe das costas e da vida. — Aquelas fotos que te dei. Quero de volta.
— Te mando pelo correio. — Ele estufa o peito e reflete. — E já que é assim, me devolve as duas bíblias que escrevi em teu louvor. Uma imagem vale mil palavras, certo?
Ela tenta calcular. Se atrapalha. Desiste.
— Faz as contas aí. Veja quantas fotinhos tá me devendo. Não precisa ser na ponta do lápis. Pode ser sem pose. E pode pagar em suaves prestações.
— E sabe quanto vale o último beijo que nunca te darei? — ela sai do carro e bate a porta.




Quem diria que haveria relembragem neste julho de secura torrencial?

Hienas atacam em bando. Quando sozinhas, fogem com os rabos entre as pernas.
Hienas são criaturas covardes por natureza.
Hienas são assustadiças.  Vêm, dão uma mordidinha e saem correndo para debaixo do seu low profile. Em sua tibieza, não usam sequer as próprias palavras. Preferem recorrer a citações. Ou então a reticências. Como todos sabemos, reticências são o refúgio silencioso dos covardes.
Hienas mantêm um low profile pois assim nunca se expõem, naturalmente. São tão corajosas, que até se aproveitam da carniça deixada por predadores terceiros.
Hienas só abrem a boca para devorar (três pontinhos) o que foi enjeitado por outros. Se amarram em pegar carona na vida alheia. Assim fica bem mais fácil de atacar sem o perigo do contra-ataque. Quem mandou ser tonho a ponto de abrir a boca sem ser chamado? O lema das hienas é: Não me comprometa. Deixa que os outros metam as caras. Esses são bobinhos. O mundo é feito de bobinhos. O mundo não é dos bobinhos.
Isso tudo soa tão familiar, não soa? Vejo hienas. Vejo hienas em todo lugar. Vejo hienas em todo lugar a que vou. Hienas constituem a maioria esmagada da humanidade. São bilhões delas, são bilhões de hienas espertalhonas que, muito espertamente, optam por ficar o tempo todo na tocaia, aguardando os idiotas que ousam erguer a cabeça acima do rebanho.
Só não vejo mesmo hienas é na grande literatura. Qual grande escritor você poderia qualificar de hiena? A mim não me ocorre nenhum. Pois o que faz dum grande escritor exatamente o oposto duma hiena? Isso mesmo – a consciência da própria solidão. A certeza da própria individualidade. Por isso ele, o escritor digno do nome, se faz um combatente de moinhos. Um demolidor das fachadas mambembes ao seu redor, que o sufocam. Um estridente, irritante desafinado bem no meio do coro dos contentes.
Hienas não quebram o protocolo. Hienas não infringem a etiqueta do comportamento típico do brasileiro. Hienas não fodem com o ritual do beija-mão. Hienas não saem do compasso na eterna dança do puxassaquismo mútuo que impera em antros como a Academia Makakita de Letras. O que importa para as hienas e seus congêneres é exibir o fardão para a foto. Mamãe, olha eu aqui fazendo literatice! Hienas se nutrem de muito compadrio – se deparam com literatura, enfiam o rabo entre as pernas. Chafurdam no imorredouro teatro das aparências. Hienas espelham o circo do Congresso Nacional em que os calhordas se tratam de Va. Exa. (Enquanto a plateia que chia sempre acaba votando nos safados. Também rings a bell, doen't it?)
Peço às hienas que não tomem zanga de mim por ser um humilde arranjador de garranchos. Reconheço, admito, confesso: as hienas são minhas mestras.
Meia culpa, Hies. Podem continuar a imperar neste mundo. Em meu mundo. Já me acostumei. Quem dá bola? O que interessa é que vocês guincham e todos lá fora pensam – ou fingem pensar – que escutam rouxinóis. Tudo aquilo por que lutamos, sofremos e lutamos é absolutamente secundário.