Nego (baixinho), nego até o fim

Quer dizer que você pensa que tem alguma chance?
Vai poder virar a mesa quando achar conveniente?
Que as charadas que se lhe impuseram até agora foram brincadeiras?
Que poderia anunciar "não brinco mais" quando enjoasse?
Que os pontos de interrogação uma hora teriam fim?
Que a partir dum instante mágico, que, sendo mágico, seria destituído de timing, sua vidinha, até então às moscas, enfim se inauguraria?
Que a fronteira infância/idade adulta se tornaria nítida duma hora pra outra?

Não quero rir.
Você se leva a sério e bem o sei.
Eu mesmo execraria que debochassem assim dos meus sentimentos.

Na grande guerra dos que lutam por um lugar ao sol, você me abateu.
E fincou o mastro de sua bandeira na colina formada por meu dorso.
E, descendo de volta ao cotidiano, ninguém havia na praça disposto e pronto a exaltar seu triunfo.

Não é amargo, insuportavelmente amargo, que o único a comemorar sua vitória é seu inimigo?

Nada de estupor, exaltação, alarme, ameaça, júbilo

Estou aqui, é onde estou, estou agora, é quando estou.
A parede me olha.
A parede me escuta.
A parede me fala.
A parede me espera.

Não retribuo.
A cautela é uma das minhas qualidades.
Evito a sedução de senhoras estranhas.

Não aceito a promiscuidade e outros vícios intermináveis.
Centenas de mãos calejadas de experiência humana a afagaram.
Indícios e sinais não faltam.

Me recuso a ser mais um.

Meu barco



(sem mar,
sem rio,
sem Tejo,
sem aldeia)


Há anos um barco construo
baseado em livro de engenharia
naval que mandei vir
especialmente de Portugal.
Isso quando ainda
acreditava que Portugal existia.

Aprendi técnicas e decorei termos
náuticos como escaler, chalupa,
crista de aiveca e castelo da popa,
e enquanto pregava pregos e pranchas,
pensando em quantos timoneiros
desorientados fui, sou e serei,
decidi escolher como meu cantinho
predileto o cesto da gávea.

Há anos construo um barco
sólido para cruzar o mais
encapelado dos mares, que
obedeça ao meu saber parco
com calado suficiente para atingir
Tróia, Las Vegas, Antares
mas não o suficiente para encalhar
nos charcos
e me levar ao mais próximo
dos lugares.

E sei que meu barco nunca vai
zarpar (se é que meus barcos zarpam)
porque também sei que os anos que
restam não serão suficientes para
arrastá-lo até o mar.
E se no trajeto deparar com um desses
guardiões que por aí buscam construtores
navais errantes, pedirei, para que
tudo não tenha sido em vão,
pelo menos me enterre no porto
quando estiver morto.




Não


O dia não amanhece.
Há luz. Mas o dia não amanhece.
Pássaros não cantam. Os galhos das árvores não tendem a envergar.
Ninguém diz, nem quer dizer: “Sou livre”. “Minha alma é leve”. “Que se há se fazer?”
Cortes não cicatrizam. Gêmeos não se parecem.
O açúcar não adoça, a guerra não saneia.
Os lápis param de riscar. Os postes desistem de sustentar os fios elétricos. Nos pântanos, os caranguejos não querem mais tomar sol.
(Ao qual nunca se deve olhar diretamente. Menos neste dia.)
E não é um dia de agosto, em que sempre há uma saída – embora a saída nunca seja outra.
E não é um dia de inverno, nem de verão, nem de nada. Pois é um dia que não amanhece. E dias que não amanhacem não têm classificação.
Neste dia, as salas de espera estão vazias. As fábricas continuam imponentes (e muito, muito mais altas que os habitantes da cidade), mas já não devoram operários pelas bocas escancaradas de devorar operários.
Nada depende das circunstâncias. Alguns até queriam mexer os pés, apalpar a nuca para ver se ainda está tensa. Mas pensam bem e decidem que não querem.
Nas feiras-livres não há comadres para comprar os pepinos e os tomates.
Meninos não entram nem saem correndo de casebres. (Meninos não entram nem saem correndo de casebres impunemente.)
E a devastação que se previa – a devastação não veio.
Neste dia que não amanhece não se vêem mulheres sedutoras (ah, que sedutoras as mulheres!).
Os ouvidos se recusam a escutar discursos. E os telefones, a tocar.
Em todas as ruas o asfalto enrugou. Nas cozinhas, as facas não cortam. Nas mangueiras, a água não corre.
As ilhas se incorporaram aos continentes. Os caminhões ficaram cansados. Os panos se recusam a rasgar. Os pedreiros bem que queriam, mas as paredes não se deixam demolir.
Nas ruas, não se vêem jovens perplexos.
As palavras não aceitam mais letras maiúsculas.
Nas calçadas, acabaram-se os tropeços. Nos museus, o cubismo não tem mais sentido.
Os cofres se recusam a ser trancados, os pinos se recusam a entrar em suas sedes, as tumbas se recusam a admitir cadáveres. E as noivas se recusam a morrer no dia do casamento.
Os uniformes não uniformizam. Os impulsos arrefeceram. Os espasmos sossegaram. Nos músculos enrijecidos, os tremores acabaram.
As folhas não têm mais versos.
As mães desistiram de parir.
Todos pararam de envelhecer.
Neste dia que não amanhece, é como se o mundo estampado numa folha de gibi abrisse de supetão a camisa num gesto extremado de expor o peito viril e gritasse: “Chega de esperar milagres!”
Sobretudo – neste dia que não amanhece –, os parafusos se recusam a entrar nas porcas. O fogo se recusa a esquentar. As agendas não aceitam mais horas marcadas (sejam consultas, encontros, compromissos que nunca mais serão inadiáveis).
Não há pistas. (Não há mistérios.)
Não há sonhos. (Não há futuro.)
Mas há, neste dia (e em todos os santos dias), (em certos rostos), um sorriso recatado - o sorriso dos humilhados que não se cansam de ser humilhados.

O anão gigante e o gigante anão


Sou o primeiro a chegar à cidade
Antes de mais nada, olho ao longe
Vejo que nas proximidades
Há um deserto
Que à noite é iluminado pelo luar
De dia, aquecido pelo sol
Corta-o o leito dum rio seco
Que em vez de a cidade banhar
Traz submersos um gigante
E um anão

Procuro onde repousar da viagem
Avisto um banco da praça
Me sento
Ao meu lado direito instala-se um
Gigante
Ao esquerdo, um anão
O gigante é mudo
O anão, maldizente
O gigante, feliz
O anão, prudente
O gigante, irriquieto
O anão, transigente
O gigante, confuso
O anão, conivente
O gigante é anão
O anão, gigante

Os anos passam
O gigante encolhe
O anão resplandece
Até que um dia
Percebo que estão
Ambos do mesmo tamanho
Olho para mim entre os dois
Vejo nada mais que pouco
Já não tenho medida
Sou apenas sobra

O dia em que te conheci


A primeira vez que te vi,
te vi primeiro de costas e pensei:
ah! pudesse um anjo deixar de lado um só dia
sua missão de encantar seres não angelicais feito
eu e pôr este mundo do avesso.
Consentisse um anjo quebrar a aura de gelo eterno
que o isola dos seres boçais, deixar-se
contaminar pela dor dum pobre-diabo desgarrado.
Quisesse, um só dia (de todos os dias que já
nasceram desde que o tempo existe), uma só vez (e a
vez tinha de ser aquela, de todas as vezes que não foram
minhas), quisesse um anjo se apaixonar pelo
ladrão que o espia – pior: espiona feito
predador faminto de matar a fome de beleza –,
lambendo-o com olhos doentes,
heréticos e vagarosos de inveja.
Pudesse se deixar contagiar de feiúra
a divindade que, ali diante de mim, indiferente
a este olhar aviltante de quem para salvar-se sempre
mirou o chão.
Pudesse a divindade desistir de se desmanchar, não 
desvanecer na atmosfera como se não tolerasse a raça humana.
Consentir minha presença, existir na mesma cidade,
no mesmo dia!

A primeira vez que te vi,
esse teu jeito de parar com os pés ligeiramente para dentro,
sorriso tão simples, tão simples, que custei anos para me
acostumar. Esse teu jeito de inclinar ligeiramente a cabeça
de lado ao escutar (muitas vezes duvido que tenhas
escutado todas as tolices que te fiz ouvir),
o dia em que te conheci,
a primeira vez que te vi foi assim.

Ouço


Ouço,
Todas as noites, as noites
Todas ouço
Ao longe a voz de tenor
Carregando de sons o mundo
Feito um rastaqüera raid da Luftwaffe

Ai que dor!
Ai que dor!

Ensurdecido, preciso sair
E vê-lo passar
E ele passa
Arqueado
Mãos nos joelhos
Querendo fazer-se de
Símio

Ai que dor!
Ai que dor!

Ensandecido, fecho os olhos
E prossigo vendo
O atormentado cometa singrando esta
Rua da minha infância

Ai que dor!
Ai que dor!

Como se não soubesse dizer outra coisa!
Como se nunca tivesse dito outra coisa!

Ai que dor!
Ai que dor!

Emudecido, vejo que ele
Pára, um parar espasmódico,
E gira o pescoço e olha
Para trás, como se alguém
O seguisse. Olho para onde
Ele olha, não vejo ninguém.
Olho de volta para ele. Tem
Olhar de quem vê.

Outras vezes pára como
Esperando e quando aquele
A quem espera o alcança, de
Repente arqueia de novo as costas,
Repõe as mãos nos joelhos e retoma
O passo estudado, o avanço predestinado,
e retoma
A toada

Ai que dor!
Ai que dor!

Vai sumindo no fim da rua, nesta
Rua que jamais foi minha
A voz soando

Ai que dor!

Cada vez mais potente
Todas as noites

Roteiro em dezembro


Então sóbrio saía rumo a tua casa, 

fecundando fantasmas na noite inda rasa

Entre luscos malucos, fuscos familiares
nas ruas sem casas, somente de bares
pinguços nas mesas das minhas bodegas
voando no escuro onde o sonho navega
me acordando na mesa doce algaravia
de vozes melífluas, a minha alquimia

braço pousado no balcão eu sorria

Haurindo com pressa de folia e luz.

E uma delas em nobre dialeto me dizia:
vem! É hora do ameno apogeu
Bebe este vinho, já anoiteceu
sorve a quem te ama e espera
um trago ao amor e à primavera.

Encho, não nego, até a borda da taça
com a senha do céu, a santa cachaça
que põe em meu mundo um tico de graça.

E pião embalado em mil corrupios
curvas, cristais, caracóis e assobios
colhendo o néctar de gole em gole
Ao lado um ébrio trombeta e mole
brindando em tom grave nossa liturgia
enquanto em silêncio eu te antevia
pedindo “Não dorme! Me espera!" 
Que preciso beijar essa tua boca!

Meu lugar

Vou fazer agora uma exceção e conectar uma postagem diretamente a um título.
Meu lugar
Que vergonha
Não sei qual é meu lugar
Esqueci
Nem imagino se tenho um
Não tenho um lugar quando saio à rua rumo à padaria que parece não atender fregueses como eu
Não tenho um lugar quando, em vez de rumar à padaria por receio de não ser atendido por alguma razão além do meu entendimento, tomo o rumo contrário e logo me vejo sopesando os prós e contras da minha decisão


Okay, vocês que têm um lugar vão dizer que é fácil se proclamar um homem sem lugar
Defacto, é.
É!
Vocês, mais que todos, sabem.
E portanto deviam ser clementes.


Afinal um homem que não sabe seu lugar não poderá lhes fazer mal
Pelo contrário
Estou lhes dando uma oportunidade de exercerem a clemência


Vocês nunca a tiveram.
Ela, clemência, não é prerrogativa de quem se atreva a praticá-la.
Ela, clemência, tem de ser ofertada.
Por quem a merece.

Sexta-feira, 20 de abril de 2012

O impossível foi possível ontem
O impossível será possível amanhã
O impossível é impossível agora
E não falo mais deste assunto

Adágio de cordas

Ainda sei onde meu pai escondeu a bateria da minha vida.
Mas me esqueci onde o mundo guarda o meu segredo.
(Não se engane -- eu ter um segredo meu não significa que você tenha um seu. Provavelmente não. É segredo que só nós que temos segredos sabemos.)


Ter me esquecido do segredo do mundo também não é lá tão importante.
O mundo mo revela quando não o espero.
E assim a revelação assume ares de epifania.
E então acordo deste meu medonho torpor.


Não quero, nem vou, olhar para cima.
Não me interessam rastros, pistas, história.


Houve, sim, aquele dia.
E não há mais.

Retornando ao mundo


Sem acessar o teclado cibernético
da manhã, crispo os punhos no lençol para
me agarrar.

Não está em mim, em você, onde está?

Com um dos ouvidos, um dos olhos,
Uma das mãos, um dos corações,
um dos pés no barco que volta, tenho um outro
que avança,
na boca meu gosto de nada,
o gosto de mim.

Empreendedor abre loja de poemas


Deu no Estadão

Empreendedor abre loja de poemas ao ar livre nos Estados Unidos

Zach Houston espera por seus clientes nas ruas de São Francisco e costuma ganhar entre US$ 2 e US$ 20






NPR




Ele decidiu abrir uma loja de poemas. Não só isso. Uma loja de poemas ao ar livre nas ruas de São Francisco (Califórnia). O nome do artista-empreendedor é Zach Houston e antes de mais nada é preciso dizer que o negócio faz sucesso nos Estados Unidos: Zach costuma ganhar entre dois e vinte dólares por poema e ele garante que já recebeu - mais de uma vez - uma nota de cem dólares.


O empreendedor disse que largou seu emprego convencional no dia 1º de abril. Era o dia da mentira e Houston conta que as pessoas não acreditaram quando ele disse que escreveria poemas nas ruas com uma máquina de escrever. E por dinheiro. "Não era uma piada de primeiro de abril", contou Houston ao site da National Public Radio (NPR).


O negócio parece prosperar. Mas o poeta parece realmente interessado em oferecer produtos de qualidade para seus clientes, que fazem sugestões de temas para Houston e o deixam criar. "Eu sempre amei poesia. Sempre me preocupei como a linguagem funciona", conta.


De acordo com o empreendedor, a ideia do negócio surgiu do amor pela poesia. "Eu imaginei que poderia ganhar alguns dólares e sobreviver escrevendo poemas", conta

Silêncio perpétuo


Fria chuva abrindo circunferências nas poças

Chora a morte dos ecos nos vãos dos tijolos das paredes
Águas rumo ao esgoto marulham escorrendo em inusitadas trilhas
São sintomas do mundo
Que soam falsos
Rindo, olha, não abre tua boca, abaixa a cabeça:
Não passas dum hóspede
Te contenta com as bocas podres que beijou
Te dá por satisfeito com a secura dos olhos que te viram
És a casca que, descolando desta árvore
Te dás conta de que, por viveres grudado ao caule
Anos a fio
Pensavas fazer parte da natureza
Agora que o Ciclo te apanhou
Não importa aonde teus passos caminham
Sempre caminham do começo para o fim
Sim, lamentas, mas eles ecoam
Faz diferença?
Toma, escreve tuas palavras nos muros
Cinzela os vultos que fogem na noite
Enquanto aviões zumbem distantes
E os que têm a dádiva do sono dormem arrogantes

Tua mão em minhas costas

Um devaneio
Miríade de sinônimos
Galpão de beneficiamento de arroz
Bifurcação

Bifurcação 

Bifurcação
Me esqueço de onde estou
Não quero o dever de me lembrar de que dia é hoje
Ou aonde vai este ônibus
Flutuo

Flutuo
Flutuo
Faiscantes ondulações
Cada centelha uma
Lembrança 
Branca 
Mansa
Manca

Basta de me condenar

No escuro do túnel vazo meus olhos
No inverno da vida no Sul
Regulo o volume, amassando papéis
Dobrando curvas, lambendo açúcar 
Aspirando à terra, minando a dor
Amuado
Refletem-se brilhos enquanto em
Furos, buracos, cavidades, depressões entro
No elevador, subo alisando a roupa
Cerrando os punhos, inchando de calor

Embora só use algodão, não sou complexo

Totalizam-se as contas enquanto beijo bochechas
E esgrimo com fantasmas
Surrando mortos, abominando mães 
Celebrando chuvas, deitando bases
Cavam-se covas enquanto aceito a teoria das paralelas
Fecham-se portas enquanto me agacho, por qualquer coisa que seja, meu deus
Como se fosse minha prerrogativa natural

Almejando à grandeza, acalento a possibilidade de viver uma existência secreta
E me comunico com outros, estejam mortos ou não
Rolo para cima, atento ao tilintar das xícaras e das moedas
Tendo como favas contadas que um dia minhas mãos ficarão trêmulas
Enquanto se conectam tomadas
Me precavo do que viola (ou deixa de violar?) a lei da gravidade
Movendo os lábios, tossindo, despertando depois de sonhar
Atravesso a rua me intrigando com o princípio "mulheres&crianças" 
Deixo a água ferver até borbulhar renunciando a ser dono de mim mesmo
Contemplando o céu, me certifico se ainda sou jovem 
Fujo de infecções, cismando com a verdade da "teoria do tipo"
(reconheço que estava errado! ela é meu tipo! Sempre
foi! Olhos castanhos claros, boca carnuda, discreta
Equilibrada, delicada, sensível, não tolera palavrões
Controla o próprio peso, resguarda a própria intimidade
Não é muito de abraçar, nunca poria silicone. 

Sim, ela é meu tipo!)

Arre! (Peço perdão a mim mesmo, pois
sou o único censor possível que vejo
no meu horizonte. Graciliano, ó senhor, é tudo
que posso evocar.)


Arre retórico bezerro!
Me deixa esquecer quem sou!
Mesmo mortalmente desgarrado
Encerra teu berreiro
Engana teus dilemas
Inventa teu caminho

Um sujeito equilibrado

Sendo um sujeito simetricamente equilibrado
Tenho metade duma parte meio inteira
E outra que não é minha
Uma terceira quase sempre cheia
Uma quarta vazia de quem quero bem

Meia metade é fácil, é dócil
Mais inteira quanto mais me encolho

Esses pedaços vivo a juntar
No dia em que estou todo em meu quarto
Na noite, qual esta, me deixo parte na sala
Metade a incendiar, meio empunhando um balde
Metade queimaduras
Metade a me perguntar

Por isso me vejo capaz de enfatiz
ar:

Fui proeminentemente uno e misto fui
Meu pai, ex-combatente da segunda grande guerra
Não tinha inteiramente revelações espetaculares a me fazer
Nem me lembro totalmente das suculentas guloseimas que minha mãe jamais preparou para mim na infância

Arrumei amigos estrangeiros, inimigos conterrâneos
Meio argentinos, norte-americanos inteiros
Minha forma era minha pele
Herdei explosões dos astros cujos farelos caíram nos oceanos do meu planeta
Me tornando indeciso ante todas minhas decisões vitais

Sou parte agora, parte em um segundo
Não espero que me chamem Walter ou Narciso
Nem nunca ansiei, parcialmente que fosse, a uma viagem para Varsóvia
Pois se num meio-dia fosse
Voltaria metade
E nada continuaria

Vazamento



Com o mais revelador pensamento na ponta da língua
Que enfim expressava
Toda minha revolta
E raiva
E o gosto amargo que me sobe do estômago
Sempre morrendo na garganta
Acordei, alta madrugada
Suado e triunfal
Estava ali, tão acessível
Bastava pegar a caneta e registrar no papel
O pensamento na forma que, sei lá, desde meus oito anos
Traço e refaço, faço e desfaço, ponho e tiro
Odeio e afago
A forma que desde que nasci
Vou escarafunchando com dores pontiagudas na alma
E tateando cego névoa adentro
Alma afora
Estava ali agora
Tão simples
Como não pensara nisso antes?
Que fácil! veio assim no meio do sono
Num bem-acabado bloco
De palavras justas
De versos tesos
De conceitos sólidos
De horizontes limpos
Agora ela veria
Todos veriam
Que por dentro este mané
Sempre meio trôpego
De gestos inseguros
Fala enrolada e taciturno
Abriga um fero vingador de si mesmo
Porta-voz definitivo dos que ocultam outros dentro de outros
Então, peguei a caneta e o papel que sempre deixo no criado-mudo
E na penumbra do quarto pus-me a garatujar na minha letra aflita
Rápido! pensei, rápido antes que desapareça a tão rarefeita esporádica inspiração
E me deixe mais uma vez fuçando a palavra fugidia
Rápido! pensei, antes que venha o tédio
Antes que eu desperte de novo para o mundo vazio

Interrupção quase acidental


Fiquei hesitando em responder, pesando as conveniências, deixando os pensamentos correrem soltos se perdendo se absorvendo em outros sumindo, me parecendo bobos e inúteis enquanto tentava salvar os menos insatisfatórios como quem escolhe maçãs podres num cesto obsoleto que me recuso a jogar fora por inércia e preguiça e medo de perder a substância de que se constitui minha cabeça.

Bati o olho no teu email e hesitei entre a alegria e a apreensão, desconfiei da gravidade do teu assunto, me interroguei, que é que ele (pois que há uma infinidade de tempo sou obrigado a te sentir outro) tem a me dizer, há séculos desistimos de nos dizer coisas, ao longo desses anos fui me decepcionando -- primeiro uma decepção meio milimétrica, desconcertada, procurando me agarrar nos sinais esvanecentes da tua infância que ia acabando à minha revelia, me traindo, me deixando em meu abandono enquanto o tempo te roubava para uma dimensão que, a cada dia eu via meio aterrorizado, era vedada primeiro à minha entrada, depois ao alcance das minhas palavras e à curiosidade dos meus olhos. Fui assistindo a contragosto os passos que você arriscava fora dos limites que tracei para o nosso domínio, até que dum supetão vislumbrei tua existência autônoma e a minha incontornável obsoslescência num crescimento ao contrário.  Parece que os dois finalmente chegamos ao que todos chegam cedo ou tarde – só me resta me conformar com as verdades e convicções que couberam ao outro e renunciar à esperança de que o outro me compreenda e aceite.
Fui lendo de respiração presa, temendo O troco. O troco é o terror de todo pai não cafajeste, do pai que, disposto a criar um filho, se mete no fogo sabendo instintivamente que a partir daí irá se queimar aos poucos à extinção. O pai que se ausenta da criação dum filho se ausenta da criação dum filho por medo d’O troco. A revanche dum filho é definitiva, não comporta revisões, não faz parte das encenações românticas fajutas que gostamos de representar porque gostamos de fazer de conta que somos protagonistas fajutos em nosso palco fajuto e porque, feito um felino que brinca com a presa entre suas garras até matá-la, gostamos de brincar com o conceito da segunda chance. Aquele dia tua mãe voltou do médico dizendo que estava grávida esperando, na mais decepcionantemente hollywoodiana das cenas, ver brotar em meu rosto alegria para ver apenas estupor, esse estupor amargo com que a brindei na maioria das vezes em que nessas décadas de fardo um sorriso singelo bastaria e conviria, caí em estupor porque percebi com a mais aguda das clarezas, entre todas as outras coisas que percebi com dolorosa clareza e que até hoje vou tentando classificar na minha taxonomia íntima, que a partir dali não teria mais o refresco da segunda chance. E naquele vislumbre de fulgor quase cegante vi também que, mesmo sem a misericórdia da segunda chance, continuaria cometendo os mesmos erros que nasci e morrerei cometendo e que, manjadíssimos que são hoje para a minha capacidade escassa de discernimento, não tenho a mais ínfima ideia de como evitar. 
Fui lendo atento mais a possíveis sinais de perigo aqui dentro de mim do que aos significados do teu texto. Até este momento li apenas uma vez e provavelmente passei batido na maior parte do que li. Sobrevoei aéreo tuas palavras, temeroso de pousar, refratário, resistindo aos significados que em outras circunstâncias e para outros remetentes e destinatários seriam simples de pescar, esperando atrás de cada vírgula a cilada que, sei, me espreita atrás de cada coisa. Ainda vou retornar ao texto – ou será que me falta coragem de aceitá-lo a carta que de fato é? Texto é tão mais genérico, neutro e descompromissado, estamos rodeados e enterrados sob textos de todos os tipos, matizes, ideologias e línguas, textos com que nos engalfinhamos para vencer e assimilar esperando que aprofundem nossa inteligência turva e resolvam nossos sentimentos confusos e pavimentem em blocos sólidos o caminho precário à frente, textos com que lutamos a mais encarnecida das lutas como se dependesse deles nossa sobrevivência porque não queremos e não podemos ler o texto primordial que temos dentro de nós porque não queremos e não podemos articular as palavras que soam penosas como se fossem apócrifas.


Cheios de esperança
Vamos na balança
E voltamos
bêbados e cegos

Meu pai passa o grosso braço de lavrador
Em torno da minha cintura
me segurando
Festeiro e tênue
E então eu te seguro filho
Enquanto deslizamos
Mergulho abaixo.

A alegria em nossos rostos é franca:
nos recusamos ao afogamento sob o oceano do
dinheiro, ante a
derrota da
última semana

Com o movimento nos debatemos
carnavalescos
soltos das regras
da autoridade
das respostas.

A balança vai e
quando retorna, nos separamos
e cada qual amadurece num sistema autônomo
de dor

Vamos nos separando sob a sina da substituição
Vê?

Viva Viva Viva

Estendo o braço no escuro para alcançar o interruptor da luz e descubro que meu mundo foi roubado
Tenho de reconquistá-lo das garras dos usurpadores
Me encho de coragem, dou um passo, entro no quarto
Costas arriadas sob pesadelos sem tamanho, num salto pulo para cima dum carro sem rodas
Atiço meus cavalos com o cheiro da vitória, impensável até há um minuto
Nos olhos dos quadrúpedes rutila em neon:

VIVA! VIVA! VIVA!

Escoltado ao ritmo das palmas da minha audiência ilusória
Parto em viagem sem volta por milhões de cidades
Me invado em nome da paz
E concluo minha epopéia quando a luz se acende