Nada além do mundo, ninguém além de mim

Resolvi partir. De repente. De repente como sempre faço. Desconcerto, sei. Me perco na longa noite escura. Quem me vê talvez tome por fricote, confunda com charme. Até uns tempos atrás podia ser. Mas sabe o que é engraçado nisso? O engraçado é que o charme que eu fazia era para mim mesmo. Isso de certo ninguém vai entender. Não parece razoável. Charme e outras coisas só se faz para os outros. Acho que faz parte da nossa ritualística. Nossa, não -- deles. Nesta Fração de Segundo Internacional da minha ex-mulher Sílvia quero a mãe que ocupe a cozinha. Hoje, me pondo no lugar dela, tento me enxergar desempenhando meu próprio papel. E não me enxergo atuando para uma plateia. Tantas perguntas, não é? Às vezes ouço um murmúrio vindo lá debaixo onde ficam as cadeiras. Mas não há nada lá quando olho. Estou absolutamente sozinho. E para quem você vai atuar quando está sozinho? Para você mesmo. Parece complicado. Mas não é. Você atua -- uma cena, duas, talvez a peça inteira --, corre para a primeira fila, senta e aplaude. Mas no meu caso nunca me aplaudo. Isso deve estar óbvio para quem me vê. No curto dia claro me perco. Há horas em que me vaio. Mas na maior parte das vezes me limito a silenciar -- fico lá imóvel estátua, semblante severo, olhar perspicaz de crítico magnânimo assistindo ao meu vulto no centro do palco, por minha vez desempenhando meu papel de espectador a outro de mim que está sentado na segunda fila. E na terceira. E na quarta. E o gás exaure requentando o arroz-feijão eterno descongelando as memórias do freezer refogando doces dores no fogão. Complicado, sei. E é. Não foi à toa que ela cansou. E há algo extremamente errado nesta minha conversa de autoteatro -- vou falando, assim como quem não quer nada, como se todos nós seres da espécie humana fôssemos aferroados pelo dilema da autoencenação. Até podemos. Mas não é condição própria da raça que angustie muita gente. A maioria está preocupada apenas em ser feliz. O que -- hoje admito -- não é pouca coisa. Na sala Sílvia era a amiga que a mim se irmanava, carimbando burocrática as atribuições cotidianas, treinando meus dedos nos desenhos do meu alfabeto para escrever à mulher que preciso encontrar. Posso parecer meio idiota -- ou leviano -- fazendo pouco assim da felicidade. Não faço, acredite. Hoje não. Até ontem, naturalmente. Vou ficando cada dia mais e mais sem respostas. Além de assistir à minha própria encenação, me amarrava em ficar de fora do grande drama humano, tirando uma da cara dos pequenos homens e mulheres e suas pequenas tragédias pessoais e suas efêmeras alegrias de quem se contenta com quase nada e sua cega obediência religiosa aos mitos em que foram ensinados a acreditar e suas patéticas crenças em tudo aquilo que desconhecem e sua previsível e tirânica devoção ao bem-estar e sua esterilizada necessidade de senso estético.

Quando penso me perco, quando me perco me perco, me perco quando me lembro, me perco quando me esqueço. Ela me perdia na minha cama,  porca sem pudor de se emporcalhar, soprando em meus ouvidos revigorantes imundices, me torturando às lambidas até a rendição, me purificando de sua sujeira, me rebatismando com o nome que não sei e sempre esperei ter.

Ela não me entende. Já imaginou uma vida sem perguntas? Como esta ou qualquer outra? Vida assim valeria a pena viver, não valeria? Mas eu a entendo. Naquele instante, não. Agora, sim. Pois agora consegui enfim descansar. Depois de meses. Estou relaxado. Parece até o prenúncio de uma dor maior.

Me perco quando me olhas com teu olhar macio enquanto me tocas com tuas mãos frias.

Há tanto tempo não me sentia assim aliviado. Às vezes parece que tenho esperança. Mas não vou falar da minha desesperança. Hoje não. Hoje vou deixar minha desesperança lá fora da porta na chuva com o meu pessimismo, sob a tempestade com meu romantismo exacerbado, nas trevas com meu culto ao mórbido, na minha loucura fingida, nas minhas, sei lá, neuroses.

Com Sìlvia eu era capaz de achar os caminhos dentro de casa sem me perder.

Então, pela enésima vez, montei Meu Grande Palco das Dores Pífias. E subi à ribalta e estufei o peito e enchi a boca e em tropicantes versos declamei meu drama enquanto a Sílvia teria bastado um pedreiro, encanador, jardineiro, pintor, serralheiro, azulejista, carpinteiro ou eletricista.

Quando ela se foi descortinei o brutal panorama da dor. Todas as outras, a.S e d.S., foram, vejo agora, apenas treino. Sou simplesmente um neurótico, não tenho o direito de me fazer passar por artista. Ou "sensível", se "artista" soar pesado demais. Esse foi meu maior erro. Querer passar por artista almejando às regalias próprias daqueles que fazem arte. Em minha defesa, diria que estava apenas tentando obter um salvo-conduto. Diria. Mas não vou dizer. Não quero me defender. Entre outras razões, porque sou indefensável. Meus crimes são tão medonhos, que sequer constam dos códigos legais. Ah, lá ia eu de novo me fazendo de especial. Não, não cometi crime medonho algum. Minha única falta, que tampouco parece grave, é ser mentiroso. Sou um reles mentiroso, desses que há aos milhares em qualquer esquina do centro, aos milhões em qualquer grande cidade, aos bilhões que neste exato momento estão em seus cubículos mundo afora diante de seus computadores encenando covardes e solitários suas fantasias neuróticas por ser incapazes de tomar ações práticas. E por ser parte desse rebanho -- o que me doi admitir -- jamais cheguei tão perto assim duma verdadeira confidência, pois todas as fraquezas que jamais admiti em mim mesmo admiti apenas para me fazer forte -- por ser parte desse rebanho, não mereço foro privilegiado.

Me perco quando passo diante de sua casa, esperando ouvir sua voz me chamar.

Escrevendo assim para ninguém, sei que ela está me lendo, mesmo assim não consigo ser mais direto do que estou sendo. Depois de tudo que fiz, acabaram-se meus recursos. Ela cansou das minhas idas e vindas. Queria lhe dizer que não sei ser de outro jeito. Porque subo caindo, volto indo, choro rindo. Sou tudo ao mesmo tempo, quero tudo ao mesmo tempo, faço tudo ao mesmo tempo. As coisas acontecem rápido demais aqui dentro. Não sou fácil. Nem me esforço muito para ser. Bem, depois de tudo, até que estou me. Você provavelmente está percebendo. Não está? Estou fazendo tudo que posso. É pouco, sei. Na prática praticamente nada. Não é desculpa para mais um jogo com as palavras. As palavras são meu cárcere e minha treva e a lamparina bruxuleante que vez ou outra sou capaz de acender no breu da minha noite.

Então resolvi partir. Que dia foi? Um, desses. Antes de ontem? Boto um pé fora da porta, bato, tranco, pela janela ela me vê indo. Rio por dentro, fico imaginando o que ela estará pensando, quero adivinhar o que estará sentindo. Pois, você sabe, ela é um enigma. Reservada qual interior escuro de boate para os meus olhos de criança. Sou ao contrário. Você também sabe, me expus por inteiro ao longo desse tempo que parecia não ter fim. Provavelmente não deixei nada de fora dos relatórios sentimentais que fiz a ela. Como se me martirizasse num pau-de-arara, lhe confessei cada um dos meus sonhos e cada uma das minhas vergonhas. Imprudente, supliquei que concretizasse comigo minhas loucuras.

Vou sabendo seu nome completo, profissão, um ou outro da família, suas enxaquecas e tpms, a idade, a naturalidade, que fez três abortos, que, descendente confessa dos peixes, tem uma afinidade quase atávica com a água, que olha a vida com a crença simples de que a uma ação sempre cabe uma reação, que ria das minhas esquisitices c'uma risada franca e cristalina que me acabrunhava, que é sincera (não, mais que sincera: honesta. Duma honestidade que me perturbava, de tão aguda), que é precavida.

De mim, repito, sabe tudo. Menos minhas virtudes, pois essas não as tenho. Mas, você há de reconhecer, nunca escondi meus defeitos. Será esta então uma virtude? (Não, não quero ter virtudes. Preciso preservar esta minha fama de famigerado.) E claro nunca escondi meus defeitos porque são inescondíveis. Então acho que não sou tão bobo quanto pretendo parecer. Ao longo da minha vida, me decidi a iluminar meus defeitos por não ter como ocultá-los. Terá tudo se resumido a um estratagema? Inexistente deus, fazei que não. Não posso estar encalacrado a esse ponto. Estou farto dos meus truques. Por isso, entre outras razões, resolvi partir. Estou no meio do caminho, acho. É tudo tão estranho. Penso estar numa cidade-fantasma. Vou indo como no poema espanhol, o caminho se faz à medida que avanço.

De tudo que não sei, só uma coisa é certa -- espero sabendo que minhas chances acabaram. Talvez nem ao menos isso saiba. Por certo não quero. Em breve me cansarei mortalmente de ir voltando. Já se foi um ano inteiro? Para mim, absolutamente nada. Estou a esperar desde que nasci. E o dia em que a espera já não fizer mais sentido será o dia em que morrerei.

Em vista do acima exposto, envio um poema para Sílvia.

Um ano é uma eternidade

Naquelas tardes ainda era possível amar sem temer que já não havia esperança
E as perdi, aquelas tardes, como quem perde a chave de casa
Me lembro que avançava seguro de mim
Indiferente à minha ingenuidade
Os que pensam saber são tão arrogantes!
Não havia saída então ou não haverá hoje?

Clico enviar. Me planto diante do computador, cruzo os braços, espero. Um email de resposta é um motivo razoável para esperar, não é?

YOU'VE GOT MAIL! YOU'VE GOT MAIL!

Como vai? Olha, tem dia sinto saudades daquelas loucuras... Bj.

Assim, com reticências. O mais sórdido, o mais desumano, o mais ambíguo sinal de pontuação. E a preguiça dos nativos da internet de mandar um beijo por extenso.

Treplico:

Pseudopoeta mudando, acima do peso, poltrão, desleixado, doentio, instável, desempregado, molenga, sociopata (claro), pai de nº incerto de filhos, avesso a qualquer atividade física, repentinamente disposto a chutar o pau da própria barraca, oferece-se para trabalho por empreitada, biscate ou diária. Faço serviços de solda, instalação de luminárias e refletores, sensor de presenças, calhas florescentes, limpeza de caixa d’água, terreno, troco chuveiros, todos os serviços elétricos, troca da fiação geral, disjuntores, chuveiros, tomadas, interruptores, campainha, instalo quadros e cortinas, conserto ventiladores de teto, instalo ar condicionado, executo manutenção de cerca elétrica e portão eletrônico, conserto portas, janelas, armários de cozinha e móveis em geral, trabalho com todas as marcas de pinturas em geral (paredes, pisos e azulejos), faço pequenos carretos, aceito como parte de pagamento algo que você tenha (pode ser ferramentas, máquinas, vitrines, qualquer coisa que me interesse), financio em até 10 vezes no cartão, aceito serviços para fazer em casa, onde eu possa repassar, aceito doação de aparelhos pifados como TV, som, vídeo, livros, portão, bomba de poço, alto-falante, retiro no local, aceito serviços de entrega e vendas, posso trabalhar buscando e levando idosos e doentes, enfim estou pronto para qualquer tipo de serviço dentro da lei e ao terminar posso imitar o Gianni Morandi:

Se non avessi più te meglio morire perché questo silenzio che nasce intorno a me se manchi tu, mi fai sentire solo come un fiume che va verso la fine.

Aforismos revisitados

O inferno são as outras

Simone de Bovoá

O valor de mil palavras



Me-mando incontinenti quando entro num blog literário e dou de cara com fotos. Não confio em quem escora suas postagens em cartões-postais estetizantes.

Mas não pude resistir à propensão ilustratória quando vi esta do Maycon Cleverson Santos da Silva e bela companhia.

Maycon Cleverson Santos da Silva mora em Fontoura Xavier, no interior do RS. No dia 6/10/10 Maycon Cleverson Santos da Silva acertou a Mega-Sena acumulada. Maycon Cleverson Santos da Silva embolsou R$ 119.142.000,00.

Na foto acima podemos ver Maycon Cleverson Santos da Silva e algumas amiguinhas. Não sei se Maycon Cleverson Santos da Silva conquistou essas amiguinhas assim que faturou a sorte grande. Seja como for, dizem que a foto foi tirada 15 minutos depois que Maycon Cleverson Santos da Silva recebeu o prêmio numa agência da Caixa Econômica em Porto Alegre.

Segundo consta, a moça de blusa vermelha afirmou que estava de olho em Maycon Cleverson Santos da Silva fazia tempo. Se postava na janela esperando Maycon Cleverson Santos da Silva passar a caminho do trabalho, pois sempre achou Maycon Cleverson Santos da Silva um gato. Maycon Cleverson Santos da Silva trabalhava em um frigorífico. Não sei se Maycon Cleverson Santos da Silva pediu demissão depois de botar a mão na bolada.

E rumores correm que a loirinha toda de preto passara o ano todinho a escrever a Maycon Cleverson Santos da Silva bilhetinhos encharcados de ofertas lascivas de emporcalhadas orgias. A mencionada loirinha, porém, alegou que nunca enviou tais bilhetinhos a Maycon Cleverson Santos da Silva, pois, segundo suas próprias palavras, sendo extremamente tímida, não teve coragem suficiente. De qualquer forma, Maycon Cleverson Santos da Silva seria incapaz de responder, visto ser analfabeto de pai, mãe e tia.

E, por fim, dizem que a terceira amiguinha, aquela de umbigo de fora, estava, no dia anterior ao anúncio do prêmio, se preparando para ir ao barraco onde Maycon Cleverson Santos da Silva morava, pois tinha decidido que Maycon Cleverson Santos da Silva era o homem de sua vida e ia lhe pedir a mãozona em casamento. Acontece, segundo ela mesma, que, já a caminho do citado barraco, parou num botequim ansiosa por iniciar os festejos do casório, acabou bebendo além da conta, desmaiou e, ao acordar, viu-se numa cama, pelada, ao lado dum mané também pelado que, conforme descobriu depois, era o dono do boteco.

Confissão dum torturado

Fiquei largado lá minha mesa, cigarro entre os dedos, copo intocado à frente, olhando o nada. Tinha ciência dos vultos circulando ao redor longínquos como personagens dum desenho animado, emitindo fonemas numa língua sem sentido. Não havia nenhum pensamento na minha cabeça. Pressa no meu coração. Propósito na minha existência.

Não precisava existir. Não precisava morrer.

Mesmo sem pensar, sabia que aquele rosto em meu rosto não era meu. Como não era minha aquela minha camisa azul xadrez. E não eram meus aqueles meus olhos olhando o nada. E não era mais minha a minha mesa onde fiquei largado por um segundo feito de séculos até ver minha espera finalmente abolida.

E, mesmo sem haver fim, a espera terminou.

Então abstive-me de aspirar a um sorriso, à compreensão, ao gole seguinte, a uma trepada.

E abstive-me, abstive-me, abstive-me.

Até me inundar do passado.

Enquanto pauso e suspiro

Soninha ronca feito marreca pulando na frigideira.

Não ligo muito. Não acordei ainda. E o meu radinho de pilha, que nunca silencia, está tocando um concerto de Haendel. Ouvir um sujeito como Haendel sonâmbulo é insuperável. Distingo claramente os violinos dos trompetes, as xifópagas fugas se imbricando, os acordes robustos e palpáveis, as frases vivas se enroscando e desenroscando qual minhocas na lata de óleo de milho que papai levava em suas pescarias com mamãe e a empregada.

Os violoncelos se enfurecem, umas vaguesas sobrevoam aos tropicões em meu cérebro pedindo que as registre no meu blog. Faço que sim. Mas é só uma promessa. Meus resíduos oníricos nunca se mantêm os mesmos. Às vezes viram pó e somem pela lixeira da alma, outras se aglomeram tomando um corpo demasiado grande para a minha consciência.

Toda manhã levo uma hora entre semiacordar e me semierguer na cama e me semilevantar e semivestir as calças e semienfiar os pés nos chinelos e semidescer para o escritório semissonâmbulo com fragmentos de ideias e palavras e frases primitivas e nomes de blogs semipipocando dentro da cabeça. Mais ou menos uma vez por mês, à noitinha, quando já cliquei à tripa-forra, me animo a assuntar num blog alheio. Raros são legíveis. Começam mal já no nome. Um deles chega ao cúmulo de trombetear-se "sonâmbulas sonecas", numa grotesca tentativa de fazer poesia com esse escorregadio estado mental comum a todos nós enquanto raia porcamente o trocadilhesco.

Rezam os críticos que trocadilhos são indesejáveis. Eu também.

A maioria inclui no título do blog cafonices como delírio, palavra isso e aquilo, letra aquilo e isso, glamur, profundo sei-lá-o-quê e por aí afora. Alguns almejam a fazer graça. Outros cometem a imprudência de se autointitularem "poéticos". Os autores desses blogs obviamente nunca leram Eliot e suas sentenças de morte à poesia excessivamente poética que não raro se afoga desamparada no brega. Tendo o parnasianismo deteriorado há pelo menos 150 anos, muitos "poetas" ainda confundem poesia com retórica. Palavras bombásticas, obsoletas, extravagantes ou meramente sentimentalóides podem até produzir algum efeito elegante ou efemeramente intrigante, mas de certo não são as mais apropriadas para expressar os nossos sentimentos. Acabam apenas traindo pretensão. But who cares? Blogs não passam de fetiche tecnológico e pouco têm a ver com poesia. Os verdadeiros poetas estão lá fora tentando viver apesar da vida. E, mais importante, ninguém lê blog literário. Escrevemos torcendo que uma alma caridosa nos leia, mas somos nossos únicos leitores. De minha parte escrevo unicamente por vício. Ao longo de quatro décadas devo ter escrito o equivalente a meia Recherche e sei que vai tudo embora comigo. Dizem que não levamos nada desta vida. Alguns levamos sim.

Mas antes que eu consiga dar um passo para fora do quarto Soninha geme e acorda e me vê na penumbra e sorri. Essa mania de sorrir antes de qualquer outra coisa me irrita ao delírio. Não entendo essas demonstrações mecânicas.

Você comprou as passagens para Buenos Aires?

Pronto, os semifragmentos de semiideias para o blog foram pro saco.

Digo que não tive tempo, vou comprar quando puder. Nunca, naturalmente. Se Borges não aturava os argentinos, por que eu haveria de?

E se fôssemos para o interior em vez da capital?

No interior eles têm tango? Se a gente não for, você me paga um curso de tango?

Se tiver curso de tango nesta cidade, pago.

Ela tira uma perna da cama e para, pensativa. Alguns segundos depois tira a segunda e para de novo. (Detesto esse para sem acento. Por que os acadêmicos e políticos têm de mexer na língua dos outros?)

Já vou indo. Tenho um cliente às onze. Minto, claro. Não tenho cliente nenhum há uns oito anos. Até.

Nenhuma beijoca?

Por que mulher gosta tanto de beijar? Deve ser papo de mãe. Sílvia, apesar da dureza e do feminismo, também gosta. Um beijinho frio e seco como o clima de Frankfurt. Sílvia agora só tem amantes, diz que não vai mais namorar ou casar. E só homens casados. Deve ser necessidade de aventura. Adora debochar dos ex-maridos fiéis que lhe caem nas garras chucros. Tem de lhes ensinar até o básico. Não sabem sentir prazer. Uns se recusam ao sexo anal. Sempre me pergunto por que comigo ela nunca quis sexo anal. Soninha curtia pacas, mais que eu. Sílvia agora arrumou um amante negro. Perguntei se estava satisfeita com o tamanho. Pode parecer boçal, eu sei. (Já me chamaram de escatológico. A classe média e suas fantasias de assepsia.) É mentira quando mulher diz que tamanho não é documento. Do meu ela se queixava.

Faço cara de arrependimento, vou até a cama e lhe aplico um selinho. Ela sorri como se ganhasse na loteria.

Dá pra você botar essa carta na caixa do correio? Ela aponta em cima da cômoda.

Tudo bem. Pego a carta, dobro e enfio no bolso sem ler ou perguntar para quem é. Saio prometendo a mim mesmo que vou arrumar o curso de tango nem que seja em São Paulo. O Serra fez uma estação do Metrô relativamente perto. Serra é do bem.

Só mais uma coisa. Você prefere esta blusa verde ou a amarela?

Meu ímpeto é dar de ombros. Não entendo essa preocupação das mulheres com o que vestem. Nunca, uma vez que fosse, pensei em escolher uma camisa pela cor.

Amarela.

Novo sorriso.

Hoje vou ver se pego aquela vaga.

Ah, boa sorte.

Soninha viu uma placa no comitê da Dilma contratando moças. Entrou para perguntar, disseram que era para proselitismo. Duvido que um petista de bairro saiba o que é proselitismo. Chegou aqui, perguntou que raio era aquilo. Expliquei. Ela se animou. Soninha adora a Dilma. Esquerdistas têm uma visão profundamente pueril do mundo. Pediu para eu mostrar como se faz. Tentei. Não sou bom de fala e mímica. Minha voz anuncia de longe o meu enfado permanente (uma vez tentei dar aulas de inglês, mesmos os alunos mais esforçados caíam no sono em dez minutos), minha linguagem corporal deve parecer missa em latim. Mas Soninha é esperta e pegou no ato. Cinco minutos depois seguramente tinha esquecido o significado de proselitismo. Mas já era uma proselitista nata.

Então até, repito.

Bom trabalho.

Saio pela porta dos fundos e desço, chutando hibiscos fenecidos caídos no caminho de pedra mineira. Piso nestas pedras desde que nasci e cada vez que piso me pergunto de que profundezas de Minas terão vindo. Tenho tando dó do mundo.

Olho para a janela do quarto, está apagada. Soninha voltou a pegar no sono. Quanto entusiasmo para dormir tem essa menina. Se não tivéssemos 35 anos de diferença, dava uns tapas no Lacerda, fugia com ela, comprava um vestido de noiva e me casava na igreja, o maior desejo dela. Outra coisa que não entendo nos pobres, mas já me acostumei. Antes de conhecer Soninha eu vivia rindo de certos conceitos e de certas palavras useiras na mídia. "Fenômeno", por exemplo. É uma das mais repetidas entre "cientistas políticos" debatendo as eleições na imprensa. De minha parte, nunca presenciei um fenômeno, nem de longe. Certo poetas, como Ferreira Gullar, por exemplo, vivem exaltando a importância do absurdo em suas "obras". Para mim o absurdo não existe. Quando olho para fora e penso em mim, tudo me parece natural. Inclusive a loucura. Fenômenos são igualmente raríssimos na nossa vidinha besta. Na minha, exceto minha eufórica, amada Soninha.

Meto a chave na fechadura, preciso trancar sempre que saio, morro de medo que levem meu computador com a minha metade da Recherche e de que só faço backup uma vez por ano por preguiça.

Ah, minha preguiça. Poderia ficar dias escrevendo sobre ela não fosse ela própria. Essa sim é um "fenômeno". Custo tanto a pegar embalo. E escrever é tão excruciante. Me lembro do Rubem Fonseca toda vez que penso no assunto. Fonseca diz (ou dizia quando escrevia regularmente, não sei se ainda escreve) que escrever (certo, essa repetição irrita mas me acostumei de tanto ler Bernhard e não consigo adotar o costume lusitano de usar aqueles pronomes espantosamente oblíquos, embora tenha escrito em lusitano muito anos antes de (me) cansar) é questão de, mais que talento, muque. Todo mundo sabe que ele praticava halteres, não sei se apenas para escrever ou também pensando na saúde e longevidade. Taí outra coisa que não entendo: escritor halterofilista que preste. Meu ideal de poeta é Roberto Piva ("Eu só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental, que não tenha medo de beber, tomar alucinógeno, amar."), apesar da pecha cafona de "maldito". Todo "bom" poeta é maldito em algum sentido. Mesmo os que na vida fazem(izeram) parte do mainstream. Meu ideal de poeta é Ana Cristina, Sylvia, Anne S. Ah, quanta coragem é preciso ter para renunciar à paz, ao sossego, à simplicidade, às fantasias "burguesas" pela poesia. Quem dera eu a tivesse. Mas não ia querer o cerebralismo estéril dum Haroldo ou a erudição dum Mário Faustino. Minha poesia, se fosse ungido, seria tão bruta e rudimentar, que qualquer idiota fosse capaz de entendê-la. Se poeta fosse, eu falaria do prazer de falar besteira a torto e direito. Exaltaria a sacralidade duma cambalhota na grama. Enumeraria as virtudes da falta de vocação para os afazeres utilitários ou para qualquer outra coisa, incluindo a poesia. Descreveria a sensação de lembrar quando mamãe me vestia com a roupa da missa me dando um beijinho de prêmio. Versejaria sobre a insuperável experiência de parar na esquina para ficar olhando o mundo passar à minha frente.

Mas me tornei este burguês de que cresci lendo Sartre debochar de. Acho que tenho límpidos na memória os vários momentos em que desisti da opção pela minha poesia bruta e brutal para me tornar um pusilânime esbanjando saúde a verter uma poesia enfermiça. A marginalidade mental não admite receitas de prozac. Meu ideal de poeta é Stela do Patrocínio. A marginalidade emocional não admite clemência por compaixão. Meu ideal de poeta é Orides Fontela.

Nós burgueses impenitentes não sabemos avançar para além do amante seguro, próprio para manejar e esconder. Ocasionalmente um ou outra comete uma gafe. Pode então ver seu casamento desmanchado, perdendo até mesmo metade dos malditos bens. Tudo depende da boa-vontade do cônjuge corneado. Ou da capacidade do cônjuge corneador em levantar os podres daquele para fazer uma barganha. Você larga o teu, eu largo o meu e voltamos a dormir na mesma cama como se nada tivesse acontecido em nome das crianças e do Peugeot novinho em folha. Os mais radicais ousam sonhar com a vida que não tiveram enquanto assistem um dramalhão hollywoodiano. Então enchem os olhos d'água e confessam para si mesmos que, sim, certos sentimentos, embora genuínos, são e serão ocultados em nome dos negócios.

Estou falando, em grande parte, de Sílvia, claro. Não mercadejei assim tão descaradamente meu "coração". Apenas me vendi mais caro. E, vendo o estado a que cheguei, e a que chegaria de qualquer outra forma, tomei na cabeça. Não é exagero explicar que mamãe ficaria de cara amarrada se me visse agora. Que bom que já se foi. Não suportava vê-la sofrer.

Mas burgueses renitentes não são a única raça que povoa este sombrio corpo celeste. Há os aspirantes a. Há os felizes. Pior: os ditosos. Há, ó minha amada pequenina Sônia, os eufóricos.

Soninha é um frasco vazio. Seu possível conteúdo depende de mim. É a primeira vez na minha vida que escrevo conteúdo sem aspas. Certas palavras são impronunciáveis.

Minha pequena cara, é teu este mundo. Quantos, quais de nós não nasceram para sobreviver? Você de certo é uma das eleitas. Vejo teu olhar deslizar pelas coisas que te rodeiam e vejo que estás em teu habitat, teu território. És a gaivota contra o céu da praia, a foca no mar da Patagônia, a boa bactéria na flora genital. Não deixa que sequer uma gota de mim te ocupe. Pois uma gotícula de mim poderá te envenenar. Estragar teu sorriso singelo. Empestar o puro ar que teu narizinho aspira. Perverter teus abençoados hormônios. Te expor à verdade do mundo.

[será que continuo amanhã? terei terminado? ou não era nada disso?]

Mistura em ré

Estou exausto de exaustão. Será este o autêntico derradeiro cansaço?
Vejo meus esconderijos devassados, minhas emboscadas antecipadas, meus golpes e ataques rechaçados pelo inimigo.
Só não vejo o inimigo.
Não sei quem é o inimigo.
Terei mesmo um?
Haverá um?
Se houver, então não será um só.
Mas tantos quantos eu seja capaz de esquecer.

Estou exausto dos meus inimigos.
Os sinto indóceis ao acordar. (Se é que acordo.)
Soberbos na claridade do dia.
Arrogantes sob a noite sem luar.
Invencíveis quando me venço.

Irresoluto vencedor, fico exausto do meu cheiro.
Exausto do meu gosto.
Exausto de mim mesmo.

Definições revogáveis

Grafiteiro: tipo de escritor que se põe a escrever nas paredes antes de se cansar de escrever para as paredes.

Infinitamente

condenado
me seduzo
me fecundo
acalentando
meu não parto

Expedição de descoberta a Portugal

Lá longe toca um roquinho vagabundo cantado em uma voz aveludada e metálica de criança velha.

Estou morto, penso, checando meus sentidos atento a novas diferenças sensoriais.

O chão estremece. Deve ser a raça de seres do espaço que vive debaixo da minha casa, me reconforto.

É engraçado estar morto. Será que Pavese também se sentiu assim?

Não devo brincar de forma tão frívola com a morte. É só mais uma das minhas obsessões mórbidas e vagabundas como esse roquinho longínquo, como a de qualquer marciano com fobia de elevador ou lugar alto. (Que engraçado.) Me lembro daquele médico português que insistia que Pessoa era um esquizofrênico com síndrome de múltiplas personalidades.

Tudo não passa de neuroses. Estou morto e espero não ressuscitar.

Projeto de hoje:

Esquecer.

Desequilíbrio fino

Que é que é: tem um cabaço que nunca rompe
Que é que é: tem um útero que jamais fecunda
Que é que é: tem um coração que nunca bate
Que é que é: tem uma cabeça que só pensa em explodir (que é que é: tem uma ideia que jamais basta, me diga, que é que posso fazer?)
Que é que é: tem uma faca que jamais corta
Que é que é: tem um rio que nunca corre, um sol que nunca brilha, uma chave que jamais abre
É que - ó amordaçada boca que grita - é que tem uma palavra que nunca é dita que nunca é ouvida

Chega de subir escadas, ascender elevadores, levantar cadáveres, erguer brindes
Preciso de quedas

Que é que é: um dia que nunca passa feito inteirinho de instantes que nunca passam
Tchau soa leviano, adeus, solene
Os ecos da tua voz ressoam pelas paredes e sei que nunca vão morrer
Sou impossível

Ventania wertheriana

Lembra quando você leu Werther?
Werther é um tolo, claro. (Tudo bem, só se usa "tolo" literariamente.)
Sempre que venta lembro da força invencível da natureza em Werther.
Lá fora na manhã deste 7 de outubro os ventos botam as árvores do meu jardim pra gemer.
E chiam as copas e soluçam as telhas e eu aqui dentro preciso celebrar à insurreição das coisas.

Revoada

Não, não é uma revoada de pássaros.
Tampouco sumiço súbito de pensamentos. Nem uma debandada de ideias em greve.
Não é sequer revoada. Nunca vi revoada. Sei lá o que é revoada.
Botei revoada no título só para pescar. Assim meio que jogando farelo na superfície da água.
Você se amarra em revoadas, eu sei. Embora, como eu, nunca tenha visto uma. E, ao contrário de mim, adoraria testemunhar uma no fim dum dia duro de trabalho.

Revoadas dão as melhores iscas.
Não é difícil botar uma revoada no título duma postagem. E se o peixe for afoito, basta sacudi-la entre as pontas dos dedos.
Você sabe, peixes nascem para ser comidos.
E se não te fisgasse eu podia apelar brandindo uma "Revoada de borboletas".
E se mesmo assim você se recusasse a morder, eu não hesitaria em intitular minha postagem de "Revoada de borboletas azuis num crepúsculo de primavera enquanto a lua acorda no céu".
Só que, além de não saber nada de revoadas, borboletas de qualquer cor me dão alergia, o lusco-fusco me dá palpitação, me sinto mal na primavera, não gosto da lua nem do céu. Acho mesmo que não gosto de nada.
E me entediam pescarias. Na verdade nunca pesquei. E me encafifam pescadores e sua paciência interminável à espera da mordida na beira do lago, assim como a manha que desenvolvem ao longo dos anos até adquirir traquejo, embora eu não seja dado a cismas. Cismas e revoadas são para apaixonados.

Perdi a fórmula da paixão.
Esqueci os objetos das minhas antigas curiosidades.
Mas sinto em mim nós.
Sinto em mim nós que não podem ser desfeitos.
Sinto em mim nós que nasceram antes de mim.

Isto posto, te faço aqui alguns alertas.

Não confie em mim.
Não, não sou desonesto. Ou baixo.
Só não aprendi a apreciar revoadas.
Por isso cresci confuso, atrapalhado, tristemente desastrado.

Assim me desonero de responsabilidade por propaganda enganosa.
O conteúdo é imprestável qual a embalagem.
Sou antes de tudo e depois de tudo um sujeito doentiamente desapaixonado.
Desapaixonado pela morte, pela vida, por todas as coisas.

A tentação parece irresistível, eu sei. I've been there. Você tem esse sentimento de posse da dor, com escritura passada em cartório, e tudo está resolvido. Optou pela tristeza. Despreza os alegres. Alegria é atestado de bem-estar, bem-estar é prova de alienação. Não podemos esquecer nem por um minuto que somos seres vocacionados para o padecimento. Você não reivindica o direito à felicidade. Nutre, mais que um espírito, uma alma. Os equipados com alma não se podem dar tais luxos. Os felizes caminham -- você dá passos. Mas não são os passos cautelosos, estudados ao alcance de qualquer um. Seus passos são premeditadamente hesitantes. Deliberadamente irresolutos. Incertos de sua direção.  Trôpegos. Parecem buscar um tropeção. Só os tolos pisam firme. E quando seus pés tropicam, que a queda seja súbita, atordoante, perturbadora. Nada como um bom tombo para restaurar a sensação de estranhamento. E o mundo visto de baixo pode render inéditas perspectivas. Enxergar os adultos lá em cima como se fora um inseto rastejante, a musa preferida de Manoel de Barros. Esses adultos mesquinhos, robotizados, venais, previsíveis. Que graça tem saber o que acontecerá ano que vem, amanhã, daqui a um minuto? Você quer é levar a vida aos sobressaltos. A mesmice é o mal a combater. Está se viciando em surpresas. Quer virar um espantado profissional. Só o inusitado tem importância. Recebeu um mundo de segunda mão, um mundo a girar em rodopios que não nos deixam tontos, a despertar sonhos sem graça, a inspirar versos batidos. Crê que sentir-se deslocado é suficiente. Lança nas coisas esse seu olhar doente de perplexidade e se compraz. Quer-se atônito, desconcertado ante o milagre, a sentença, a impossibilidade de viver. Por isso, ao invés de viver, procura. Busca. Vasculha. Pergunta. Mas pergunta só a você mesmo -- está convicto de que os outros não têm a resposta. Acredita em mistérios como os religiosos acreditam em deus e os místicos em numerologia. Seu mundo está recoberto de véus, véus indefectivelmente diáfanos em cores pasteis, véus que caem e recaem sobre véus que encobrem apenas em parte as formas originais das coisas para que você nunca esqueça que as formas originais das coisas não lhe apetecem. O mundo como ele é não lhe interessa. Objetividade, eis a maior doença dos homens. O soterramento do pessoal em nome da sobrevivência física. O utilitarismo que devora as idiossincrasias, nos automatizando a todos. A ditadura das horas, dos costumes, das agendas, da língua. Você nasceu para indispor-se. Confrontar. Comprar briga. Fazer inimigos. Quebrar o espelho. Arrancar a máscara das máscaras.

Quero ser novo

Centauro, sátiro e/ou homem em fase de velha renovação procura profissional com tempo disponível e inesgotável paciência desejoso(a) de monitorar seus pensamentos vagos e prestar acompanhamento ao longo de seu dia. Nesta sua nova transição, dispensa números indefinidos, controles, orientação, mágicas, vaticínios, brumas e estados de espírito.

(Estados de espírito em geral são atropeladores e consomem todo o doce das coisas.)

Tal monitoramento deverá incluir ainda minhas etílicas noites em que meu desvairado repouso oscila qual um velocímetro esquizofrênico entre minissonhos fosforecentes em variegados tons pastel e os mais sombrios pesadelos que um ser supostamente humano já foi capaz de tolerar.

Favor me enviar proposta com seu melhor preço, discriminando prazos de entrega, de pagamento e de validade. Se possível, anexar um croqui indicando minhas necessárias saídas de emergência. Propostas metafísicas serão descartadas sumariamente. (Favor tomar cuidado para não acabar me transformando em galinha.)

Agora e sempre

Minha mãe me fita bem nos olhos e geme: "Essa noite eu morri".
Fico olhando o rosto dela sem saber se escutei direito. Ela morreu mesmo? Ou o morto sou eu?
Desvio o olhar para a empregada, em pé ao meu lado. Vejo nos olhos dela um brilho caleidoscópico de batatinhas fritas.

Seco feito carne de sol

Passei o dia todinho escrevendo sem escrever (nada que preste). E quanto mais escrevo menos sentido minhas palavras fazem. Fui, voltei, levei e trouxe. Tive ideias, persegui ideias, escrevi ideias até ultrapassar todos os limites da sensatez, desisti, tentei novamente com as mesmas, tentei com outras. Digitei palavras, pontos, vírgulas, travessões e aspas, períodos e frases e parágrafos. Apaguei uma a uma, um a um, deletei tudo, reescrevi, deletei de novo. Fui ler Neruda (quando estou mal leio Neruda porque Neruda me irrita), fui andar, fui beber, reescrevi, apaguei, fui beber, fui andar, fui ler Kerouac (tudo ficou pior). Escrevo, escrevo, escrevo, leio e não compreendo nada do que escrevo, carreiras de letras formando vocábulos sem significado numa língua estranha num alfabeto que desconheço. Estou absolutamente ágrafo. Beethoven escreveu a Nona praticamente surdo, depois os quartetos para cordas totalmente surdo. Certos críticos chamam os Quartetos de "visionários".