Impressões a partir dum balcão de bar



Rondeau andantino grazioso

Ando meio duro, outro dia tive de aceitar um texto acadêmico pra traduzir para o inglês. É "versão", explicou a "autora".
Fileira interminável de verbos derivados de substantivos, "potencializar" sendo o mais manero.
O que se produz de palavreado inútil em nossas faculdades daria uma grande tese.
Há anos venho me prometendo obrar uma caricatura devastadora e hilária para expor esses monstrengos textuais. Qualquer dia desses acordo cantando e crio ânimo.
Talvez seja tarefa demasiado árdua pra este meu coraçãozinho que nos últimos tempos deu de ameaçar parar a cada três sístoles. Se e quando, será uma detonação extática.
Detonar, esse sim é verbo de verdade. E que, como qualquer outra gíria relativamente produtiva, faltava no vernáculo. Pode perceber. Quando um, com perdão da palavra, neologismo se espalha por corações e mentes feito "o" dengue hemorrágico no desgoverno Lula, é sinal de que veio preencher uma, ugh, lacuna.
E há tanta coisa em nossa cruel realidade brasílica conspurcada pela nova ética lulopetista que está a pedir uma detonação.
No meu dia-a-dia, falando sozinho ─ sou um lobo da estepe, não tenho ninguém com quem conversar, afora um ou outro weirdo que frequenta o boteco do Lacerda ─, é uma das que mais uso. Quero detonar tudo. O que não quero é porque já foi detonado.
Eu mesmo venho me detonando. Há longo, longo tempo.
Quer expressãozinha mais reconfortante que com-certeza?
Hoje me espanta que o pessoal pudesse responder perguntas antigamente sem um ready-made com-certeza pra tacar na bucha. Gosh, não tem vade mecum mais vicário. Resolveu o problema de comunicação de noventa por cento dos brasileiros.
E, Christ, o gerundismo. Fico cada dia mais deliciado. Os profes pasquales da vida já torraram o saco com sua lenga-lenga antigerundista, tá na hora de fecharem a matraca. Estamos vivendo, não estamos? A vida vai fluindo, não vai? A mesma teoria do com-certeza se aplica aqui. Feito uma luva. Vou estar detonando a língua! Genuína literatura coletiva! O povão estando unido no mais feérico poema gerundista jamais urdido.
Alguém precisa macaquear os françois em sua inventividade linguística e deslinguiçar um romance de novecentas páginas todinho feito de gerúndios para estar escrevendo um livrinho arretado para estar fazendo sucesso nas escolinhas de letras do meu sertão derivando.
Em mãos competentes estaria gerando uma obrinha-prima, com certeza.
O gerundismo é tão assobertante, que ninguém escapa. Já vi muito mestre da USP deslizando altaneiro num ando indo da vida. Até eu tem dia ando baixando a guarda e incorrendo extasiado num periodozinho composto de três verbinhos interligados pelo mais nefando ativismo em venerando estado latejando.
E a facilidade com que o povo do Berção assimilaram... o gerúndio em suas atividades domésticas e comerciais é, como diria o Gianotti, sintomática, praticamente telegênica.
Não há volta.
O jeito é ir introjetando o bicho e incorporando sem filtro todas as novidades saxônicas trazidas pelos ventos soprando lá do norte.
Meio Berção anda escrevendo semiinglês sem saber, e não estou falando do gerundismo. Metade do que os personagens das telenovelas ficam mumunhando é pastiche dos diálogos de roliúde.
Os intelectualizados... esses são os primeiros a envenear o vernáculo com os mais "bizarros" estrangeirismos. O gerundismo é apenas sinal de que já estamos todos pensando em inglês.
Ou tentando. Eis outra tese acadêmica que pretendo desenvolver se um dia tiver saco pra. E é a nossa mais incontornável sina. Em cinquenta anos, se o planeta etcétera e tal, a última flor do Láscio idem.
Espero "realmente" ter tempo de desenvolver minha tese. No mínimo os semiliteratos que pululam em nossas "faculdades" irão aprender o que escrever is all about.


Fardo físico-químico, injunções holandesas, sei lá



Un poco meno andante

Eram 11, onze e pouco?
A notívaga pequena
isabela
abandonada pela mãe
foi ao chópin
e voltou
estrangulada pela madrasta
e o pai, habituado a todas
as noites se desfazer
dos sacos de lixo lixeira
abaixo, achou por bem
defenestrá-la
duma vez por todas.

No avançado da noite
deus, já na cama,
preocupado com os terremotos
e enchentes e desabrigados
de amanhã, acabou cochilando
e pegou no sono e não
sonhou. Deus não sonha -
quando muito, tem pesadelos.

Desprovida das asinhas que
o senhor e os que acreditam no
senhor lhe prometeram,
a menina despencou, sem
nenhuma testemunha que
rezasse pela abolição da
lei da gravidade.
E colidiu contra a
terra dura sob a
macia, quase suave
grama do jardim do
edifício london.

Para espanto da nação,
porém ém ém ém,
isabela não
morreu.
Socorrida por
investigadores,
delegados, promotores,
advogados, vizinhos,
jornalistas,
transeuntes,
telespectadores e
a população em geral,
foi deitada num
sofá das casas
bahia e sem
entrada e sem
saída e sem
mais nada
vai sendo justiçada
pela bocarra medonha
da mídia diante dos
olhos marejados do
distinto, perplexo público
enquanto
falece em
intermináveis,
suaves prestações
e o próximo
bloco
não
chega,
não chega, não
chega


Tentativa de fuga solitária para o centro da cidade com olhos presos no chão e lembranças pulsantes como se não me pertencessem


Obbligato
Gott, me deu saudade daquela dor
Hoje à tarde virei definitivamente um monstro
Ou estou morto

Grand pause
Mas não a ponto de passar pela favela aqui perto e, olhando-a, saber que estou testemunhando o começo ou o fim de algo.
Não sei exatamente de quê.
Mas sei que é algo grandioso.
Em breve ─ tampouco sei quando ─, tudo será diferente.

Tarantella?
Pois quando ela me deixou me senti um misto de órfão, monstro e astronauta. Qual um fastio absoluto de finalmente ter passado por todas as experiências que um homem pode passar.
(Grande pausa. For god's sake.)
"Ela", eu disse? Pai, me referia a você.

Cheio de imensa canção


Senza cedere
Há uns anos escrevi a um dos meus filhos começando assim:
Todas as noites em que eu vaguei, por dentro cheio de imensa canção...
Nos dias idos em que era rei, pós-adolescência, auge prematuro da existência qual um aborto engendrado por deus, vagava horas zumbi pelas ruas emitindo acordes mentais, morcego sonâmbulo me guiando pelos ecos reverberando nos muros da cidade enlouquecendo de dores e sons.
Era feliz e, ó graça, sabia. Hoje olho à minha volta e me pergunto de que me serve esta pseudolucidez a que me agarro feito náufrago prestes a despencar no abismo de Tártaro. 
Os produtos da pretensa ludidez não valem nada. Sobretudo a música.
Música é um estado interno. Música é estar encharcado de sons, sons que fazem parte de você como sua cabeça ou seu coração. 
Nesse estado a música brota feito uma mina d'água, sem que você saiba de onde, sem que você queira saber. 
Nesse estado você cantarola mentalmente algo que lembra Beethoven, Roberto Carlos, Xitãozinho, acordes inefáveis, teus acordes oníricos, tua música primeva. 
É essa a música que interessa.

Extraordinária linguaruda


Sejamos crianças
Com a manha das crianças, decifremos estes nossos biquinhos infantis
Ai que pena
Ficamos amiguinhos, mesmo assim não tenho o mais leve pendor para violar teus criptográficos lábios
Ai que vontade preguiçosa de querer carinho
Desarma os beiços
Aborta o desipnotizador estalido que pode me levar a atônita surdez
Ou será essa tua pompa bucal apenas efeito da farofa abocanhada no almoço apressado?


[sotto voce]


(schmack)


Hum


Durmo
Catapultado para onírico berço
Sou criança.
Meu mundo não vai, não volta, não para
Meu sonho me beija na bochecha
Que espetáculo vislumbro à minha frente e sorrio sabiamente


Criança
Que não foi
Escrita
Dita nem
Aprontada


Só amada

Descompressão


Perdendosi

Prestes a partir
Estou munido dos meus apetrechos dolorosamente diários
Num dos braços, nada
N’outro, tudo

Embarco e a nave alça voo
Com destino mais que certo
Da porta me dirijo ao meu lugar ao sol e
Minha nave se chama ave
Ah que louca falta de pousar os pés no meu planeta!
A porta foi deixada aberta
Salto
O sutiã azul-marinho que trago dobrado às costas se abre
As duas copas me sustentando miraculosamente no ar
É meu mergulho para a morte e ao mesmo tempo meu primeiro grito de liberdade, entende?
Em forte piano
Não creio em quem prega todo o dia o credo!
E minha nave se chama solidão

Untitled

Amabile

Eu procuro
você aí fora 
que não está perdido
seguindo teu caminho indiferente aos que procuram
existindo para espreitar
cachorros na calçada a subir e descer pelas ruas
atentos a cada interstício, eco e lampejo da cidade
e me submeto aos não
sujeitos às inundações e desmoronamentos e colapsos e trombadas dentro das nossas cabeças
que não procuram
por não precisarem encontrar
montinhos de cocô na calçada
a história que não os espreita nem permite
que nos encontremos

Esqueci


Cantilena


Antes de tudo, esqueça a teoria. Salvo se estiver a fim de fazer crítica literária.
Teoria é regar com ácido edificante regulador tuas sementes em vias de explodir. Teoria é racionalização. Ou o que quer que você tenha aí dentro a ponto de explodir.
Escrever e racionalizar são, seriam antagônicos se a vida fosse simétrica como pretendemos que seja.
Depois de décadas escrevendo, ou tentando, tenho uma teoria, acho. (Escrever é carcar o pé na merda da contradição.): escreva até doer. O dia que vir que tá doendo, doendo pra caralho, nesse dia provavelmente estará escrevendo. Escrevendo, o que, porra? Não importa o quê. Aquilo que tem aí dentro que precise ser escrito.
Todos temos aqui dentro algo a escrever, acho. A maioria nasce e morre sem saber disso, lililiralará. Estão todos ocupados demais vivendo. (Versinho que Lennon fez pro filho dele: Life is what happens to you when you're busy making other plans.)
Se você está cheio, escrever vai te esvaziar até você encher de novo.
Se está vazio, escrever vai te deixar cheio. Do que quer que precise ser enchido.
Aí acontece algo fantástico: você se enxerga no que escreve(u). Nesse dia também terá escrito.
Por que a gente escreve? Sei lá. Só os teóricos e críticos literários sabem. Escritores, digo, artistas não sabem. Por quê? Porque sabem.
Cada um escreve por sua razão. Por isso esse botãozinho que nos abre a porta de nós mesmos é tão duro de achar.
Escrevo por várias. Às vezes, porque preciso, com perdão do clichezão lavado. Outras, por causa da lei da inércia ─ os dedos calejados saem teclando sozinhos e pumba! tá escrito. (Essa "técnica" é ruim, lalarálariri, escrever mecanicamente é uma merda e não leva a nada, mas não tem saída quando o monstro da inspiração tá dormindo e você tem medo de acordar o desgraçado.)
Todo escritor precisa de algum limite, senão termina obrando aquele palavrório insosso e embananado que todos conhecemos. Ou, se tiver talento, a Busca do Tempo Etc.
Por isso e por aquilo, prezados e desprezados diletantes, não posso me despedir sem um manifesto antimodernista aos que, mesmo boiando na estratosfera, pisam no cocô tentando desviar da vida durante a desesperada volta pra casa:
Seus diletantes,
Vocês não entenderam lhufas. Ai, como é gostoso, como é gostoso embasbacar incautos, ver em suas bocas primeiro a espuma gosmenta da perplexidade, depois a secura gordurosa do nojo.
Eu sempre soube. Vocês são todos tão previsíveis. Mas a previsibilidade é o que vocês mais prezam, não é? Nada como o conforto íntimo de saber que o mundinho que vocês conhecem será o mesmo daqui a 1 minuto, 1 hora, amanhã, ano que vem, sempre. Não ocorrerá nenhuma surpresa, nem boa nem má. Tudo ao redor e o que vocês amam será eternamente igual e vocês mesmos continuarão nascendo múmias e milagre! morrendo múmias.

Só por cortesia


Enlouqueçamos

enlouqueçamos os que se querem sãos
nobres e bonitos e
felizes e sábios
e risonhos sob a máscara de Erasmo

a irradiar nos olhos o brilho sujo do lixo
que escondem em suas almas

lamento, meus caros, lamento meu amargor

é que neste horário fujo dos meus 
perspicazes carcereiros e por alguns instantes
esqueço que sou prisioneiro

E nesses fugazes instantes posso admitir
e me conformar de
que sinto o que sinto

Necessário narcísico arqueólogo


Sórdido eu?
Que isso, bondade sua.
Taí uma palavrinha que sempre me foi simpática.
E, dádiva, rima com mórbido.
Desde guri tento ser um cara sórdido mórbido.
(Mastiguemos: SM).
Hoje, 57 primaveras no lombo, me acho no meio do caminho.
Sinto que não viverei o bastante pra chegar a SM.
Não taux a fim de ultrapassar os 58.
E atingir o status de SM qual um Miller, um Genet, um Jô Soares (mastiguemos de novo: hehehe), requer não só vontade mas também talento.
Felizmente não tenho nenhum de ambos.
Mas, veja, embora não seja hoje um SM literário, sempre o fui pessoalmente. Eu, SM nato, e os não SM, temos e sempre tivemos um relacionamento conflituoso: eles têm nojo de mim, eu tenho nojo, asco, repulsa e repugnância deles.
Agora me referindo à poética, quero acrescentar que um poeta que se preze deve necessariamente ser um SM. E se não for de nascença, deve fazer um curso. Por intensivo que seja. Eu mesmo sou professor. E não cobro nada para ensinar.
Quero também dizer aos que pensam que a poesia se resume a flores e anjos que não confundam Quintana e Rilke. Rilke fez as Elegias de Duíno em que seus anjos são tão dominantes, mas não tem nada a ver com as gracinhas de Quintana et adjacências.
O mesmo princípio se aplica aos que batem o pé e não me aceitam como sou.
Muitos dos que pensam “gostar” de poesia se viciaram em quintanas e florbelas e até em meu amigo Leminski que às vezes reduzem a poética a um gracejo pueril, tanto quanto Verissimo reduziu a crônica a uma piada de papagaio.
Por isso esses preferem minha prosa à minha poesia.
Sinto muito: tal preferência apenas demonstra que não sabem o que é poesia.
Há por aí alguns que não consideram a poesia sagrada.
Que dizer então de poetas?
Poetas fazem cocô, arrotam, tiram caca do nariz da mesma forma PROFANA que os bípedes normais.
Mas, estando eu do lado de CÁ, tenho minhas dúvidas.
E esse tipo de dúvida é um dos affairs que fazem parte especial do menu poético.
Ouso mesmo defender que a poesia (e aqueles que a criam) devia ser ensinada nas escolas desde o 1º ano.
Mas não como fazê-la, pois fazedura de poesia não se ensina nem se aprende.
E sim como respeitá-la. E, dependendo, temê-la. E, dependendo mais ainda, glorificá-la aos píncaros de Vênus.
Porque, sabe, são tantas as vidas que se debatem numa gota de saliva trocada num beijo.
São tantas as possibilidades que se abrem neste meu copo de uísque.

A cor da tarde de domingo e o canibal das luzes




Antonio Maria fecha uma de suas crônicas assim:
"Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida."


Nunca fui muito de banquete, mesmo que platônico.
Uma vez, daquelas vezes que aconteciam quando éramos crianças, fui a um.
Não me lembro de quase nada. Mas lembro cristalinamente que senti uma solidão brutal.
Ah, sim. Lembro de outra coisa: as centenas de pessoas à minha volta pareciam espantalhos que deus colocara ali só pra me enganar.
Você talvez possa imaginar meu dilema:
Ou me conformava com minha solidão.
Ou me conformava em banquetear com os seres empalhados.
Para meu assombro, saí vivo.
Para meu assombro, estou vivo ainda hoje.
Talvez eu tenha extraído uma lição daquilo: Nunca me empanturrar.
Do que quer que seja. Onde quer que seja — banquetes, churrascos, cervejadas, casamentos ou batizados.
Vou ficando mais e mais inepto a cada dia que passa.
Descobri que preciso apenas duma gota umedecendo a massa numa colheradinha de café.
Guardo esta mania infantil de sempre começar pela sobremesa.
Duro destino prum sujeito para quem sobremesas não existem.
Quero me converter num sugador de ossos.
Antônio Maria tem uma crônica chamada Canção de Homens e Mulheres Lamentáveis que começa assim:
"Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá."

O que vi atrás do teu bilhete


Estranha.
Fica à vontade.
Estamos entre amigos. 
Estou acostumado.
Também estás, eu sei.
Embora estranhes.
És estranho.
Um dos mais estranhos que já vi.
Sou estranho.
O mais estranho que conheço.
(Embora não me conheça quase nadinha.)


Se nos déssemos as mãos, teríamos um choque de frio, talvez frieza.
Se nos olhássemos nos olhos, desviaríamos instantaneamente nosso olhar.
Se escutássemos a voz um do outro, teríamos um sobressalto.


(De minha parte, um quase insuportável desconforto.
Fico aqui a imaginar como seria tua voz.
Rouca? For Christ, não!
Anasalada?
Morna, sólida, impessoal?
Sonolenta?
Ah sim, que seja sonolenta!)


Estou ilusoriamente acostumado.
E se nos revelarmos estranhos o bastante, nos abraçaremos apertado e sairemos dançando noite adentro.


Me oferece uma bebida.
Um jantar.
Não me pergunta nada.


Nesta noite em que mergulhamos cegos, mudos e surdos, preciso que sejamos estranhos, estranhos ao longo das horas, estranhos até o fim da vida.


Impossível, eu sei.
Mas posso te ensinar um segredo.
Quando chegar a hora, durmamos nos braços um do outro.


Então sonharemos que não somos estranhos.
No sonho, terei te encontrado.
No sonho, terás me encontrado.
Sem enganos.
Sem procura.
Teremos, veja, até mesmo uma data certa: hoje.
Este vinte de maio de dois mil e doze.
Ao invés de noite, será uma tarde.
Não estranha.

Especulação

Não perdam meu novo continho em http://sites.google.com/site/wilvaccari/a-especulacao

Hahãn (limpando a garganta)



Sou meu filho.
E um dia haverei de sair para nunca mais voltar.
Veja, trata-se apenas duma fuga da dor e portanto aceitável.
Se for ele, serei eu.
Daqui deste ponto onde estou divergem linhas que são retas.
Darei o primeiro passo sabendo que não me será concedida a prerrogativa de pesquisar os arredores, não estarei de braços abertos em pose de sacrifício e então me.dividirei.para.atender.à.meia.dúzia.de.dedos.indicadores
Há uma placa à frente que diz: "Entre aqui para chegar ao fim do mundo e encostar a mão no céu". 
Em seguida meu imaculado nome.
E uma tábua com uma única lei:
Gire ao contrário do mundo, voltado para dentro, pobre e sem nunca almejar à sobrevivência, bracejando por debaixo das superfícies aversas à virgindade enquanto rodopia livremente preso a uma corrente de ferro.
Foi assim então que lancei um último olhar para os lados aonde seguia o caminho e dei meia-volta para confrontar as linhas divergentes.
Por aqui me aguarda minha revolução. Por ali, meia dúzia de virtudes. Mais para o lado, o deserto intransponivelmente abrasador além do qual reside minha salvação.
Se optar por este lado, poderei criar asas e voar para longe onde vivem pássaros acossados pela demasia da realidade e caçados por espantalhos sem arte nem emoções.
Por aqui batizarei minha inocência com o caldo passado de mão em mão e sacrificarei meu espírito enquanto caminho por entre prédios que engolem homens e mulheres.
Aqui, uma fábrica de bonecas. Ali, uma de utensílios domésticos. No meio, uma fileira de automóveis luzidios.
Não.
Seguirei avante.
Certo, terei de perpetrar algumas mudanças, sobretudo em minha cabeça.
Talvez pelo caminho encontre uma tenda de fantasias e compre uma máscara de porcelana e repetirei "não! não! não!" na fuça da realidade e renascerei.
E esquecerei.

Pensamento errático na rua Arruda Alvim



É cafona essa gente por aí que se denomina "Zé Poeta", "Maria Poetiza", "Jukinha dos Doces Versos", "Belinha das Belas Letras".
É cafona quem posta "Ai que lindinho este meu versinho", "Assinado: Joãozinho da Silvinha".
Poeta, embora poeta, também faz parte do mundo. Caga, mija e vomita como qualquer outro bípede erectus. Portanto, pode ser falso ou legítimo como qualquer nota de dólar ou uísque paraguayo.
O mero versejar não faz do versejador um poeta.
Tenho cá pra mim que poeta legítimo (ou, for that matter, qualquer um que se expresse em qualquer forma literária) não pode se autopromover como se fora um agente publicitário de si mesmo, se confundindo com uma caixa de sabão em pó. Para isso existem Omo e paulos-coelhos.
Sim, não pode.
É questão de pudor.
O distinto público apreciador da poesia (e da literatura em geral), digo, da genuína poesia e literatura, não quer ser tratado como consumidor de frases bem ajambradas e bonitinhas maceradas para deleite instantâneo e olvido imediato.
Se seu verso for um scotch digno do nome, o apreciador o identificará e saboreará sem que você precise anexar a ele, verso, um bordão propogandístico com o nome do produtor embaixo em neon pink.
Não há nada mais estranho à palavra que a embalagem.
Poesia não é jingle.
Poesia não é truque.
Antes de qualquer coisa, decida-se se quer servir à palavra ou simplesmente virar celebridade.

O arrepio das praças


A dor de nascer
não está ao alcance
dos que precisam de razões

Quem quiser comercializar
Jogue no balcão que
A dor de descobrir
que sua existência
é o troco do amor
que jamais será retribuído
por teu canto ou teu verso
nem, ó Lohengrin, um cálice
do teu sangue

Ó Deus dos Solitários
enojado dos que te buscam!

Escuto teu sussurro de escárnio
Te ofereço em troca as estrelinhas
Dos meus olhinhos
Brilhantes que enxergam
Dentro de mim e de ti
Dentro de ti e de mim
Ó

Acaricia meus cabelos
Libera teu urro que divisa
A passagem da besta
Rumo a estes dois corpos
Que se abraçam

Estou livre!
Por um minuto
Estou livre!

Hei de bater neste momento
Ferreiro obstinado do tempo
Detentor do engenho que
Construímos juntos
Durante o nosso amor
Cultivado ao extermínio




Retorno intempestivo

Meus vizinhos sãos uns amores
Exibem só alegria
Ocultam todas as dores

Acenam de entusiasmo quando me veem
Rostinhos iluminados por sorrisos tão largos
Que fico emocionado

Isto na minha volta
Saberão eles que quando parti
Pouco antes
Poderia ter sido a última vez?

Fecho a porta com todo silêncio possível
Esvazio o ar preso nos pulmões
E recosto na parede
Sentindo a testa gelada coberta de suor

Inoculem meu farto coraçãozinho
Com o vírus desta mentira verdadeira
Que teima em me poupar
Inda não foi desta vez que os enganei


Você quer dizer "Allegretto Molto de João Sebastião"

Não lembro mais do dia dos meus anos. Diga, isto é sinal de amadurecimento, demência crônica ou realismo?

Sempre pulei.

Quando fiz 14 mamãe chamou a parentada, alguns amigos da família, uns vizinhos, umas figuras estranhas que na hora não identifiquei mas cuja origem e propósitos na festa de aniversário penso vir desvendando ao longo das décadas.

Mamãe comprou um bolo na padaria em frente (que depois se revelou estragado, para azar do português que não soube como responder quando confrontado com a flagorosa evidência. Constatei então que, senhores dominantes dos mares no século 16, os lusitanos ou não davam pelota para bolos estragados ou ainda dominavam a técnica de impedir a deterioração da massa, mesmo com a geladeira desligada sob os quase 35 graus dos trópicos).

Então mamãe enfiou uma velinha de 1 e outra de 4 na cobertura e alguém apagou a luz e, antes que ela puxasse as palmas para dominar a festa, pedi: deixa que eu acendo.

Matrona, ela torceu o nariz. Pretendia, como sempre,  o comando cabal. Mas como era meu aniversário, aquiesceu.

Incendiei os dois pavis e veio o estrondeante parabéns-a-você-nesta-data-querida-muitas-felicidades-muitos-anos-de-vida-é-pique-pique-pique.

Acenderam a luz.

As velinhas estavam trocadas. Fazendo um 41. Todo mundo riu menos eu. Me pareceu tão lógico e natural, apenas mais um insight em mais um dia meu formado apenas de insights que para os outros nunca prestaram para nada e para mim é o que têm (sic) me salvado so far.

Qual Pessoa, hoje não comemoro nem 14 nem 41.

Qual sei lá quem, não penso em inverter minhas velas apagadas há décadas. O aniversário que eu queria ter guardado mesmo era/foi o dia em que tudo perdeu o sentido. De que só me dei conta sei lá quantos anos depois quando já era impossível saber.

Naquela data eu teria dado uma festa.

E, se me perguntassem, teria pedido um tiro de presente.

Não acho que teriam coragem de mo dar. É muito mais fácil, seguro, são matar um pobre coitado à base de festas de aniversário.

Me diga: terei tido sorte ou azar até aqui?

Um tiro é demasiadamente traumático. E libertador, se pegar bem no alvo.

Orelhas sempre alertas


Sejamos desonestos:
Pessoas há que me dão vontade de beber.
Pessoas há que me dão vontade de morrer.
Pessoas há que não me dão vontade de nada.
Pessoas há -- ah inalcançável, inatingível delícia -- que me dão vontade de amar.


Você espera que eu minta, bien sûr.


Sou um mentiroso que não sabe mentir.
Minto: sei.
Mas sou um mentiroso incapaz de mentir.
Não sei.
Não posso.
Tento. Naturalmente.
O resultado é tão grotesco.


Parecer grotesco é tão vergonhoso.


Okay, as pessoas em geral não dão a mínima
pareçam ou deixem de parecer.
Grotescas, patéticas, festivas, insensatas.
Fôdasse.
Ou melhor: sorry, nada há a foder aqui.


As pessoas almejam ardorosamente a ser.
O que quer que seja.


Entre ser e não ser, você acha que lhe seria aceitável ser um mendigo da rua Martins Fontes se não pudesse ser outra coisa mais digna, menos dolorosa, menos insuportável de ser?


Há pessoas que me dão vontade de beber.
Pessoas há que me dão vontade de morrer.


Que vontade será que dou em alguém que passa por mim na calçada?
Sei que sim.
Sei que dou.
Não sou, não posso ser o único ser vivo que não desperta absolutamente nada 
Entre seus semelhantes.

Sob nova direção


Repentina bomba atômica íntima
Paredes se esfarelam rumo ao fundo
Erupções familiares, calhaus do naufrágio, âncoras aéreas
Macia, doce, gosmenta soçobração
E horror
A isso tinha tanto apego?
Escombros
Me agacho, manuseio os fragmentos estilhaçados
Valeria a pena uma triagem?
I don’t think so, mon ami
Tudo supérfluo
Estas obcessõezinhas aqui
Pego na ponta dos dedos, faço cara de arqueólogo, ajeito o monóculo imaginário, viro, reviro, atiro longe
Estes ressentimentos! Que perda de tempo
(Para que mais tempo sem saber o que fazer de mim?)
Engraçado me ver arrastando entre a porcariada, levando  avante a tralha aqui dentro até agora
Fabulosa jamanta sobrecarregada de fezes e chumbo deslizando tonta sobre uma rodinha de triciclo
Veja estes amores não correspondidos da adolescência
Doce, amarga bobagem pela qual perdi mil noites de bom sono
E estas esperançazinhas reluzindo no meio do entulho feito brilhantes
É este meu tesouro?
É por isto que vicejam dentro de mim cânceres, enfartes, cirroses, úlceras em promessa à Grande Recompensa amanhã, ano que vem, nos próximos dez quilômetros lá adiante?
O cogumelo restaurador lança absoluta luz sobre meu abafado íntimo

É a mais efêmera das luzes, por isso aproveito para olhar cada montinho de matéria sentimental – ou seria psicológica? – mal empilhados por todo lado
Aguardam meu sinal para desmoronar

Desmorona, ona, ona
Desmorona, ‘té cair
Desmorona, madrugada
Não deixai meu bem dormir

Ruína, dai a graça de mim
Isto sou eu
(Que amontoado de tolices sou.)
Wait a minute
(É tudo que peço.)
E estes testemunhos do passado
Era com eles que ia desenvolver meu projeto de ser?
Era eu minha arma secreta
Mãe de todas as bombas – não me faltai nesta hora, brava, prática tecnologia internáutica –, refazei-me


Com um pouquinho de sorte


A determinada hora da tarde, dizem
a algumas quadras, aqui pertinho,
na rua detrás
se você tiver um pouquinho de sorte,
um pouquinho exato de sorte,
ao passar, logo depois de dobrar a
esquina,
mas tem de ser antes do crepúsculo
brutal

É o que dizem

Se tiver força de vontade
se tiver cautela
fulminando os pensamentos
errados
finalmente se entregando
por uma piscadela
as dorem que dóem param e
quem sabe – também dizem –
a falta de ar

Diga quem é você


Se puder.

Então você tem um blogue. E, mal vendo a hora de botar pra fora as ideias que colidem desengonçadas dentro de sua cabeça, escreve em seu bloque diuturnamente.
Talvez tão diuturnamente, que escrever em seu blogue se tornou sua razão de viver?
Se for este o caso, espero que você seja como aqueles grandes escritores para quem escrever continuamente é tão essencial quanto respirar oxigênio.
É?
Não?
Então, me diga, por que você escreve em seu blogue com tamanha assiduidade?
Não, isso não. Não me diga que dispende diariamente todo esse esforço apenas para entreter o diminuto público que acompanha periodicamente suas postagens.
Quer dizer, "entreter" é força de expressão.
Espero não ter soado leviano recorrendo a verbo tão... tão descompromissado.
Pois estou certo de que seus leitores acorrem a seu blogue com a mesma fome de literatura com que você vai loucamente digitando parágrafos atrás de parágrafos na ânsia de registrar o que sente.

Afinal, é por isso que todos os que escrevemos escrevemos, não é?

Mencionei "literatura".
Não foi por querer.
A literatura me mete medo.
É palavra sacra. Mais que incluir, cobrir, abranger, engloba.

(Naqueles distantíssimos anos escolares, não dava lhufas e corria para o quintal jogar bola. Hoje não me atrevo a pronunciar seu nome.)

Você não vai me dizer quem é, bem sei.
Por que diria?
Ainda mais nesta abismal rede em que somos tudo e nada, sujeitos e objetos, algozes e vítimas.
E, mesmo que quisesse dizer, não saberia o quê.

Quem sou eu?
Sou um blogueiro sem identidade.
Como assim, sem identidade? você aí poderia perguntar.

Ao que eu responderia: bom, é uma história longa e triste e deprimente e inacreditável.
Que por ora não tenho nem ânimo nem coragem de contar.

Sei pouco de mim e, quanto ao resto de mim, menos ainda.
Meu nome, não sei.
Meu endereço, não sei.
Não sei nada.
Sou um blogueiro. Disto estou bem certo.
Como  blogueiro , curiosamente,
Ajo como blogueiro.
Escrevo qual blogueiro.
Expresso meus sentimentos feito blogueiro.

Que é que se poderia esperar dum blogueiro?
E, embora  blogueiro, há certos dias em que me acometem dúvidas existenciais.

E então fico em dúvida:
Serei mesmo um blogueiro?
Ou não passo dum pobre solitário?

Depois do vendaval


 

Teu couro lona
Tua mulher vazio
Tua cria crime
Teu sangue água
Tuas mãos garras
Teus olhos espias
Tua boca caçapa
Teus ouvidos alarmes
Teus pés instrumentos
Tuas pernas estandartes

Teus braços cordas

Tua cabeça tamborim
Teu coração bomba-relógio
Teus dias panorama
Tuas estrelas traidoras