Quem sou eu

Carta de apresentação

Minha naturalidade é o bode. Jamais saio deste estado, nem pra ir ao banheiro. Não faço outra coisa senão ruminar.

Rumino mágoas, dores, saudades, melancolias, martírios secretos, tormentos esquecidos. Rumino sobretudo este país de insensatos em que tive o azar de nascer.

E pasto. De manhã à noite, de segunda a domingo, em fins-de-semana e feriados. Pasto desde que nasci. E pastarei até morrer. Não tenho opção.

Tal como o porco, o cururu e o gato preto, sou um bicho maldito. Quem não me abomina, ri. Quem tem pesadelos comigo, procura psicoterapia ou cartas de tarô.

Não passo dum joguete nas garras das raposas, cachorros, micos, jegues e lobos que dominam minha imaginação, meu passado, meu bairro. 

Meu poema preferido é "O corvo", naturalmente. Por isso, sou "Sonâmbulo perfeito, coberto de nevoeiros e de gelos, com certa ânsia no peito", tal qual meu bode-camarada Cruz e Sousa.

Morro de medo de virar buchada. Deve doer muito. E de parar na barriga d'alguma princesinha mimosa lanchando num McDonalds em NY, só para acabar descartado nas frias águas do Hudson e viver boiando.

Como todos sabem, os gregos homenageavam seu deus Dionísio c'um "sacrifício do bode". Os brasileiros, em contrapartida, optaram logo por se transformar em caprinos. É muito mais simples.

Como todos também sabem, "caprichoso" vem de caprino, e significa "aquele que sabe escolher". A julgar pelas pessoas que mandam no mundo, vê-se que é um tremendo papo-furado.

Como todo mundo não sabe, tenho um amiguinho imaginário. O meu se chama Zé-Ferino. O cara tem a língua mais afiada que já vi. Não deixa provocação sem resposta. Tem pinta de erudito, o que assusta um pouco as vacas que pastam ao largo do meu nada imaginário mundo. Mas apesar da cara de enfezado Zé-Ferino é inofensivo, salvante o prazer com que espezinha os canteiros de orquídeas das minhas fantasias.

Zé-Ferino tem um tio. Seu nome é Bafo de Anta. Segundo algumas más línguas na família, já cobriu mais de 500 cabras e produziu cerca de 20 mil descendentes. Agora estão todos por aí, sem eira nem beira.

Eu estava relutante em exibir informações da minha intimidade, mas não resisti. Esta é uma situação típica que vivo dia a dia. Os bodes fazem fila para entrar no caminhão e ir para o açougue, onde irão virar carne pra paella, tutu e buchada e couro de sapato. Antes, porém, curtem levar um bom ferro, que é pra morrerem em estado de graça.


Mas me desculpe, meu sarcasmo certamente está extrapolando o razoável. Esqueça tudo que eu disse acima.


O que quero mesmo dizer é que sou um cara fácil, gosto de conhecer pessoas novas. Me acho um moleque com mais de 50. Tenho espírito brincalhão, ar de galã, jeito folgazão mas trejeitos comedidos, pois me causa espécie a expansividade fútil. Sendo apreciador da cultura asiática, me ligo nas pronunciadas características dos amarelos e até procuro compreender por que em tantas coisas eles são tão diferentes de nós. E não sendo um alienado arredio à diversidade humana, estou ciente de que faço parte desta colossal energia que corre o mundo.

Sou autoconfiante, não é qualquer revés que me abala os nervos, estou plenamente imbuído da convicção de que esta existência é uma batalha e só os guerreiros sobrevivem. Às vezes sou até abnegado, não me furtando a padecer estoicamente ante situações que reconheço estar além do meu controle.

Tenho carreira estável, com um salário digno que não é nem mais nem menos do que preciso para prover o mínimo de conforto e segurança aos que dependem de mim. Não costumo reclamar das chances que a vida me deu. Esforço, honestidade e determinação operam milagres, que infelizmente muitos lá fora passam os dias a esperar que ocorram por, com perdão do mau jeito, milagre.

E não é apenas um carreira estável com uma vida estável que tenho, não. Disponho também, bem equilibrada sobre ombros largos e sólidos e um pescoço nem longo nem curto, nem grosso nem fino, duma cabeça boa -- relativamente grande, é verdade, mas suficiente para acomodar minhas igualmente boas emoções e meus igualmente bons pensamentos. Meu rosto é meio rechonchudo, admito, mas está sempre iluminado por um grande sorriso largo, jovial, animado e animador, mesmo em tempos sombrios e horas furtivas.

Sou leal à minha esposa, sincero com meus amigos, cordial com conhecidos, receptivo a transeuntes na rua que desejam saber a hora e motoristas perdidos que necessitem de directions. Sou trabalhador. Sou, como já mencionado anteriormente, honesto, responsável, sensual, apaixonado, feliz, zeloso e divertido. Gosto da vida ao ar livre, gosto, ó Deus, gosto da luz do sol, curto parques, me encanto com o chilrear dos bem-te-vis, o gorjear dos sabiás-laranjeira e até mesmo com o pipilar dos pardais que, pobres, sequer cantar podem. Frequento museus de arte, faço longas caminhadas (sobretudo à noite, pois, graças aos céus, me dou bem com o escuro e as sombras, embora sempre opte por uma saudável claridade; em todo caso, meus olhos têm uma incrível capacidade de se adaptarem quase que instantaneamente a uma situação ou outra; mas o que prefiro mesmo, claro, é a alvorada e o crepúsculo, já que são as horas mais poéticas, não pertencendo nem ao dia nem à noite). Gosto de conhecer lugares novos, me ajusto com facilidade a ambientes estranhos e em dois minutos já estou me sentindo em casa, o que me faz um sujeito francamente aberto a novidades, sejam quais forem. Estou aprendendo trabalhos manuais (tricô, crochê, mesmo à custa dum certo preconceito próprio). Quando mamãe estava viva a levava semanalmente a restaurantes (se me permitem uma piadinha -- esqueci de adicionar que sou um piadista nato, estou sempre disposto a rir mesmo de circunstâncias mais fúnebres -- não me convidem para enterros, pois faço até o defunto chorar de rir --, embora saiba manter a compostura em eventos que requeiram um mínimo de solenidade e evito, sempre que posso, debochar dos outros simplesmente para ridicularizá-los, mas, como dizia, se me permitem uma piadinha), depois que mamãe morreu, parei de levá-la semanalmente a restaurantes. Acima de tudo, levo na esportiva quando ninguém acha graça das minhas piadas e procuro logo contar outra para quebrar o mal-estar.

Gosto de cinema, principalmente dos grandes filmes de aventuras com ação sufocante do começo ao fim, pois também sou um homem de ação, evito cair em estados contemplativos que, embora ajudem a relaxar a tensão do dia-a-dia, nem sempre são muito produtivos. Curto dançar, me amarro no carnaval, inclusive este ano vou ver de dou um jeito de desfilar numa escola-de-samba.

Sou um homem romântico!

Não temo os murmúrios sedutores da fantasia e sempre procuro concretizar meus sonhos, por mais extravagantes que possam parecer aos olhos dos mais conservadores e metódicos que desprezam tudo que mesmo remotamente lembre subjetividade. Sou dono do meu taco. A experiência da vida me ensinou que podemos, sim, distinguir os sonhos realizáveis daqueles que são pura perda de tempo. Hoje, é esse tirocínio que me permite separar o joio do trigo, identificando as possibilidades efetivas e me precavendo, assim, de furos n'água. Resumindo, sou um homem com a cabeça nas nuvens e os pés no chão.

Embora tenha mais de 50, aparento apenas 47. É que olho o mundo com bons olhos e escuto as estrelas com bons ouvidos. Não tenho medo da morte, pois, quando chegar a fatídica hora, estarei convicto de ter executado o que me cabia executar e me afastado do que me restava abandonar. Sou vaidoso, cuido dos cabelos, embora sempre os use bem raspados, não fumo (já fumei, há muitas décadas), não uso drogas (já usei, até os trinta e poucos, quando percebi, talvez um pouco tarde demais, que perseverar buscando o prazer a qualquer custo só me traria dissabores), sou macho mas com sensibilidade suficiente para as idiossincrasias femininas, sou branco mas consciente da tragicidade dos que não são, me orgulho da minha integridade, sou emocional, sentimental e espiritualmente independente, tenho, repito, senso de humor, sou fisicamente saudável, apesar de uma pressão ligeiramente elevada e um certo excesso de ácido úrico que às vezes me força a ficar na cama com os dedões do pé inchados feito duas batatas-doces.

Sou magro, atraente (ou, se preferirem, bem-apanhado), nunca pedi a ninguém para me pagar cerveja, às vezes sou sarcástico, não sou perfeito mas sou feliz e meus vizinhos gostam de mim, o que, no meu modesto caderninho de critérios da existência, é uma dádiva divina. Minhas qualidades especiais são evidentes, vejo na reação que causo nos outros, mas nem por isso sou arrogante ou exibido. Gosto da tradição, cultivo as convenções, sei que trago dentro de mim o peso e a benção da experiência humana, não sou o primeiro homem nesta Terra abençoada, não tenho o direito de desprezar os grandes feitos dos meus antecessores em troca de explorações (aventuras) temerárias.

Sou ajuizado, amável, gentil e brilhante. Não arrisco o pescoço por nada neste mundo. Concedo que cometo pequenos crimes, tudo bem, mas nada que vá me impedir de conquistar a recompensa de outras possíveis vidas que existam depois desta suave jornada que todos vimos empreendendo em nossa bela comunhão planetária. Não sou frívolo, acho, embora, reconheço, adore ser mimado. Não pratico esportes mas cuido da saúde, não quero me tornar um fardo para meus filhos quando envelhecer. Ah! Sim, tenho filhos. Eles me amam. Eu os amo. Fervorosamente. São minha paixão. A razão do meu viver. Meu passatempo. Meu presente. Meu futuro. Por eles ponho a mão no fogo e os pés na salmoura.

Sou exigente, mas sem frescura. Até onde me permite minha razoavelmente sólida cultura e minha classe social, sei apreciar o que é bom. Tenho senso estético apurado. Desde muito pequeno sempre fui um desbravador do belo. Nem por isso ando me pavoneando por aí. Não, não vejo mal algum em anunciar minhas virtudes. Também não vejo motivo para ser autodestrutivo. Acredito na autoformação. Sou um leitor insaciável. Leio em pé. Deitado. Sentado. Andando. Comendo. No banheiro. Enquanto dou banho na Zezeí, minha estimada fox vira-lata, um tico desobediente, reconheço, mas alegre, estimulante e faceira como o dono.

Gosto de futebol. De bocha, como papai, que era campeão da modalidade em sua cidade natal, Brusque, terra de gente valorosa e trabalhadora. Se me der na telha, jogo até de baseball e golfe. Um pouco de sofisticação não faz mal a ninguém, faz? E nunca é demais participar dum jogo com 18 buracos.

Não fujo do perigo. Não tenho medo do verão. Mas nunca fui à Bahia, nem pretendo. Estou sempre pronto para me divertir, para curtir uma cervejinha com os amigos e jogar bastante conversa fora, para fazer companhia, para trocar confidências, para ouvir, para dar um rápida aula de química.

Adoro sentir o vento no rosto.

Nos últimos tempos ando brincando com a idéia de sair a esmo, zanzar pela cidade até a noite, entrar num boteco, tomar uma pinga, puxar prosa com o peão ao lado para não me sentir sozinho, falar distraidamente da sensualidade das meninas de roupas atrevidas desfilando na rua, a juventude liberada de hoje, coisa e tal, esquecer que tenho carro, esquecer os luxos e confortos que o trabalho duro me deu, esquecer o trabalho duro que ainda me cumpre enfrentar para levar a patroa à Flórida ano que vem, esquecer que esta minha vidinha provinciana até que valeu a pena, sentenciar, com a voz solene dos sábios, que sexo não é tudo na vida, quero apenas a humildade de saber o que posso e o que não posso ter, o que posso e o que não posso ser, umas boas gargalhadas neste finzinho de tarde miraculoso.

Então, assim que a noite começar a cair, antes do jornal, tomar uma chuveirada rápida, verificar meu email, talvez dar uma última olhada em alguma foto dum passado longínquo antes de me sentir capaz de entender a dor duma mãe que sonha com o filho que se matou.

Sem título 2

Sou pobre. Sou pobre e alegre.

Durante meu dia tenho momentos em que me dá vontade de virar ladrão.
Isso não significa que nunca roubei nada.
Roubei, sim.

E roubo, se tiver chance e não houver risco de entrar em cana.
Quero roubar mas não ser preso.
Espero que não seja pedir muito.
Não me daria bem dentro duma cadeia.
Cadeias estão lotadas de assassinos, vigaristas de todo naipe, estelionatários.
E outros ladrões.
Quero ser o único a roubar e, se for preso, o único preso.

Sou pró-ativo e conformado.
Psicanálise é melhor que nada. Melhor que ver televisão, melhor que desperdiçar meus dias em fóruns na internet.
O progresso, porém, é o nosso destino.
Tudo -- a natureza, as pessoas a quem amamos, nossos instintos e nós mesmos -- tudo nos impulsiona à frente. Este é um mundo sem alternativas.
Estamos condenados não a mudar e sim evoluir.
Rumo ao dia de baixarmos ao túmulo.

Insensatos há que participam de ações como a Marcha com Deus pela Liberdade, a Coluna Prestes, a Marcha Húngara, Fidélio.

De todas as viagens e odisséias e evoluções e paradas militares e desfiles de escola de samba e travessias pela rua numa nublada manhã de abril, a minha preferida é a Marcha de Sísifo.

Sou pobre.
Pobre mas alegre.

Tenho índole de ladrão.
Sou rancoroso
e sufocado.

Bebo, como, espero além da conta.
Como todo bêbado, bebo para fingir que disciplino o caos.
Como todo comedor, como para ter energia e, assim, poder esperar.
Quando bebo, como e espero, obediente qual menino do jardim-de-infância (jardins-de-infância existiram? ou foram rodopios num gira-gira impossível de sonhos e pesadelos sob um nome sublime?), quando bebo, como e espero disciplinado e obediente, enceto resignado minha marcha e sublime e resignado cometo uns poemas.
Que, quando estou sóbrio, esfomeado e desesperado, me dão nojo.
Me recuso a acreditar que foi um bêbado, disciplinado, obediente, marchador, nostálgico e vencido que os cometeu.

No meu jardim-de-infância de marmanjo me equilibro em minha gangorra.
Sou um marchador, nostálgico e vencido conformado com a minha natureza, a minha vocação, a minha angústia.
Quando estou ébrio, quando estou em trânsito, semeio minhas ervas daninhas pelos jardins.

Os jardins não gostam de mim. Não gosto deles.
Me sinto uma ratazana em jardins.

Fórmula poética

Me reparo.
Me separo.
Me preparo.

Uma pitada.
Um caco.
Meia asa.
Um exímio golpe de faca.
Se não houver uma caneca pra recolher o sangue que pinga do talho no dedo,
Um fértil copo translúcido.
Adicionar meia dose.

Um olhar janela afora.
Meio gosto entre a boca e a virilha.
Meio fevereiro.
Outro olhar janela adentro.

Um homem.
Multidão dentro da cabeça.
Um cheiro que inebrie.
Uma mosca de ontem pousada no açúcar à minha frente iniciando sua peculiar faina de arregaçar
As mangas e, como se quisesse me chamar a atenção,
Voa ao som de trombetas, voa para a tigela
Vazia, de tão lisa,
Limpa
Plana superfície.

Se o relógio da sala soar,
Um mergulho redentor.
Um afogamento.

Três passos de lado.
Um azáfama.
Um elogio. E
Milhões de vermes correndo para colocar-se sob as solas dos meus sapatos
Em suicídio coletivo.

Não, nem um estrondo.
Meio azar!
Um vulcão a implodir,
Erodindo a paisagem pelo ralo
Apocalíptico a engolir o mundo.

Jogar tudo no meu liquidificador.

Bater por um segundo
Ou mil anos
Tanto faz.
Só preciso tomar cuidado
Para não adicionar a fatal, hipertrófica sílaba do
Verso extra.

Resolução

Resolvi mudar
Não uma coisa ou outra
Mas mudar pra valer
Empreender uma reforma tão profunda, temerária, radical
Que quem me olhe se pergunte se perdi o juízo
Me demolindo feito uma dessas casas velhas, atravancadas de badulaques
Removendo o entulho da sala, atirando pela janela a mobília que nunca fez sentido
Trocando o piso, as peças dos banheiros, o encanamento, a fiação elétrica
Para acordar um novo morador numa nova cama num novo quarto numa nova manhã
Só não derrubarei as paredes porque a casa viria abaixo
(Quem sabe tenha bastante coragem pra botar a casa abaixo?)

Durante a mudança, vou arrumar uma holandesa
Dessas de olhos verdes, como soem ser as holandesas
Cabelos claros mas não propriamente loira
Que se interesse --
Não, que se interesse, não -- que efetivamente participe dum movimento político
Participe pra valer -- estou cheio de fazer de contas
Um movimento pela defesa da Amazônia ou das focas
Ou uma reles comissão de bairro formada para pressionar a câmara dos vereadores por mais faróis nas esquinas
Haverá de ser uma holandesa castanha clara ativista militante
Originária d'algum lugarejo obscuro na Holanda
E, se não a encontrar, dum ponto obscuro qualquer da Europa Ocidental
Como a europeia que conheci quando era criança, por quem me apaixonei no mesmo segundo
E numa certa manhã, passando em frente à minha casa de mãos dadas com o namorado também forasteiro
Me dirigiu, assim sem querer, o mais ligeiro dos sorrisos
Um sorriso franco e simpático (talvez notando minha paixão)
 
Enquanto ia tagarelando, numa língua que então era minha, com seu enigmático sotaque
Com o namorado que tinha a pele mais branca que jamais vi e se limitava a emitir "hums" esporádicos à guisa de resposta
Até que dobraram a primeira esquina, me deixando louco a especular aonde iam
E que, adulto, compreendi, decepcionado, que apenas representavam minhas pobres fantasias edípicas

Depois que estiver em meu novo apartamento com a minha nova holandesa castanha clara politizada evocadora dos meus sonhos infantis
Mas antes de olhar em volta para me dar conta do que foi que fiz da minha vida
Farei -- Não, não farei nada -- implantarei, pois então já serei o grande empreendedor de mim mesmo
Implantarei -- talvez de olhos fechados, não me decidi -- mudanças ainda mais atrevidas
Sim, serão verdadeiras mudanças -- duma verdade de que nunca fui capaz até hoje

(Pensando melhor, não serão mudanças nem reformas
Não posso manter vestígios do que sou
Não posso evoluir, pois comigo evoluiriam meus defeitos
Não posso crescer, pois comigo cresceriam meus desajustes
O que preciso é duma transformação.)

Haverá de ser uma transformação radical
Que arranque de mim esta minha personalidade de ser hesitante, confuso, cabisbaixo, invejoso
E me faça o homem de caráter que sempre almejei ser
Um homem -- nas categóricas palavras dos antigos -- de fibra
E então terei fôlego para executar as tarefas que me cabem
E tranquilidade para dormir o sono que me resta
 
Acordando um novo homem numa nova manhã (minhas manhãs têm sido tão velhas)
Decidido a encarar -- nas solenes palavras de meu pai -- as coisas de frente
Um homem tão diferente deste homem
Que escarre no novo carpete da nova sala de sua casa nova
Passando um estilete na garganta de sua nova mulher holandesa
E recomece sua velha vida

Pois é

[Echo OFF]

Meu riso é um desastre
Sem timing, deslocado
Riso mais sem graça

Rio quando não devo
Rio logo cedo da descarga da privada
No almoço, da almôndega, da salada
Rio à noite do gato que mia pra lua
E do excesso de perfume das raparigas em flor descendo a Av. Angélica
Rio do ladrão, rio da facada
Rio de tudo sem motivo nem nada
É tanto riso, tanto, tanto, tanto riso
Que emprego numa claque é que preciso
O problema é que não rio da piada

O dia em que mais ri
(E como ri, ri, ri ─ rio só de lembrar)
Foi à beira do túmulo de meu pai
Que morreu de tanto rir no velório de minha filha
Quando as nuvens no céu ficaram maravilha
Como praga de família

Quer dizer que me decretas dispensado?
Então dispensado do meu riso me declaro
(Eis que a claque silencia)

[Echo ON]

Ode aos errados

Nasci canário cansado de voar.

Canário de bico torto, asas quebradas, caolho e manquitola, albinas penas encardidas próprias de pássaro de chão, ave digna de piedade e cusparadas.

A galinha é mais graciosa, a barata voa mais belo.

Me faltando apenas a dádiva da surdez, de sol a sol prometo a mim mesmo "Nunca escutarei o chilreio dos canários destinados a chilrear".

Nasci canário caolho, manquitola, asas quebradas e bico torto, só me resta assobiar.

Escuto

Quando você exala o definitivo suspiro antes de acordar

Se contorce de preguiça, mãos entrelaçadas e braços esticados à frente

Ainda sem abrir os olhos no escuro, cabeça vazia feito um cupuaçu seco,

Que se vai preenchendo de meios pensamentos à medida que te escuto

Escuto levantar da cama sob o ranger do colchão, farfalhar das cobertas,

E teu primeiro pigarro do dia.

Depois, de olhos entreabertos, auscultando algures dentro de ti,

Escuto enquanto você caminha teus passinhos até o banheiro e emite teu primeiro som distinto desta e de todas as manhãs da tua existência

Ouço o estalido metálico da fechadura da porta do banheiro, seguido do baque suave

Quase surdo, da porta que você encosta com o cuidado adquirido

Ao longo de todos esses anos de treino

Então escuto o exalar abafado dos teus gases que você todos os dias solta no ar

E que vão se juntar à estratosfera

E cujos odores neste dia serão o registro marcante da tua presença neste mundo

Escuto então quando teu intestino se alivia do resto do que você

Diligentemente ingeriu ontem para sobreviver

E permitir que eu continue escutando tua passagem matinal

Escuto quando você começa a urinar, um jorro vigoroso

Que aos poucos vai diminuindo e se torna uma sucessão de pingos cada vez mais Minguados, desagüando o copo de leite tomado ontem antes de deitar

Que inicia agora um regresso de consecutivas etapas pelo esgoto para o rio para a nuvem para a chuva

Então escuto a torneira do lavatório, a água escorrendo alguns

Segundos enquanto se estuda no espelho

E a seguir ouço quando escova animadamente os dentes

E sofregamente esfrega o rosto

E pacientemente assoa o nariz

E animadamente esfrega o rosto

E sofregamente assoa nariz.

E depois volta ao quarto

E escuto o roçar de tuas roupas enquanto você se veste

Puxando caprichosamente as calças pelas pernas

E te imagino na penumbra, tateando esmeradamente o peito


Em busca de cada botão, de cada casa de botão

Te escuto caminhar à cozinha e me preparo para o longo rito do teu metódico desdejum de ritmo andante, ciciando a tampa da lata de chocolate que desenrosca

E faz respousar na toalha da mesa cuidadosamente, sem um ruído mas que adivinho,

E logo vem o movimento allegro dos ressonantes estampidos quando destampa a margarina, depois o vidro de café instantâneo, o açucareiro

E a porta da geladeira e a colher mexendo o leite e teus sorvos na xícara

Então vai para a sala, abre a porta da rua e a fecha zelosamente às suas costas

Para não me acordar

Gosto quando 長澤まさみ me chama de ridículo

Gosto quando 長澤まさみ me chama de ridículo

Dizendo assim, até parece que é toda hora
Não. Foi só uma vez
(ou duas? não me lembro bem)
Mas o suficiente para eu saber que
gosto quando 長澤まさみ me chama de ridículo

長澤まさみ me chama de ridículo
escandindo a sílaba tônica

Tudo bem. Vc vai dizer que qualquer um
escande a sílaba tônica ao dizer
qualquer palavra que seja
Afinal é para isso que servem as
sílabas tônicas

Eu sei. (Como não saberia?)
Mas quando 長澤まさみ escande aquele "dí"
escande fazendo um cicio
(ou seria um chiado? não sou bom em onomatopéias.)
assim:

Ridgggggiiiiculo

A primeira vez (Ou a segunda? também não lembro.)
Fiquei ridgggggiiiiculamente apaixonado
Tudo bem. Vc vai dizer que no meu caso é natural
Sim, já estava. (Não estou sempre?)
Mas fiquei apaixonado querendo ouvir
長澤まさみ me chamar de ridgggggiiiiculo
a cada segundo, entende?

Se 長澤まさみ me chamasse assim
a cada segundo
A cada segundo
eu ficaria mais ridgggggiiiiculo
(como se fosse possível)

Ai que vontade que eu tenho de 長澤まさみ me chamar de
ridgggggiiiiculo.

Nove e trinta e dois

Passa a madrugada desvairada em promessas?
Zanzando aflita entre ontem, a cama, a sala,
tua espera entre a porta da rua, o quintal
Erra um amanhecer seguro onde pousar um
minuto.

As horas doentes do medonho furacão dos teus
rostinhos em miniatura em vitral inefável
Murmurado em versinhos frágeis qual cristal
que, em reza angustiada, não se estilhacem
em cacos cortantes se um dia vier a dissipar
meus milênios no redemoinho da minha febre.

Chega então vazia da ressaca da tua inspiração
e, quase envergonhada, vestida sem cor na
surda fôrma do sábado, luz e sons abanando
meu impossível presente.

Masami

Na parede daquele restaurante
Fronteira de Pinheiros
C'um pé na Vila Madalena
Tinha atrás da nossa mesa
Uma placa de fato intrigante

Lembra?

Muita atenção, senhores navegantes!
Incluindo cavalheiros e mulheres
Neste local é proibido tinir os talheres

Então de consciências tranquilas
Tilintamos nossos copos
Na noite incandescente
Esquecendo O'Neill, Céline
E conflitos de gerações
Entre pais, filhos, irmãos e
Apaixonados

A Orides Fontela

Do copo
   bebo-me
Enquanto
  devoras
Minha
  esfinge
Sem o favor do enigma

Instantâneo

Sabe, mãe? Então tudo para
E em tudo está incluído o mundo
Sabe, pai?
(Vem pertinho, quero cochichar no teu ouvido)
Vamos rir um pouco
Nesta tarde de sábado
Tudo parado
Mas não tem problema
Com uns giros em minha
Metafísica manivela
Os encantos haverão de se restabelecer

Tudo foi um erro desde o começo
Vocês sabem mas não custa repetir
Um tão cômico erro
A deflagar tantas risadas ao meu redor ao longo de todos esses anos
Escuta as gargalhadas paradas no ar
Levadas ao léu por ventanias que não sopram
Abafadas por tempestades que não desabam
Murmuradas por cadáveres que não apodrecem

Ontem à noite tudo parou tanto
Que tive tempo de me olhar no espelho atrás da porta
Depois de todos esses anos
Venci o medo, me olhei nos olhos

Ah, pobreza de espelho
Se limitou a entoar uma sinfonia
Me convidando a desvirginá-lo
Ri um riso mudo
Sem ousar romper o silêncio

Quer dizer que tudo então está parado?
Sim, tudo está parado
No mais insustentável dos equilíbrios

O que a luz escondia

Olhando bem, o que mais gosto
em mim é minha
sombra.

Uniforme em seu contorno
recatada em sua escala de cinzas
calada
obediente
sóbria.

E sobretudo
(sem nenhuma intenção de
trocadilho indesejável)
o contrário daquele sujeito
manjadíssimo que estou
cansado de ver no
espelho
sempre com cara de
quem quer me contar
um segredo que
nem ele mesmo
conhece.

Tradução de trecho de Friedrich Heinrich Jacobi

Quando o homem examina a natureza que se expõe ao seu sentido externo com o sentido interno e esforça-se por entender, compreender, fundamentar sua essência infinita com seu entendimento, não resta a ele, no final de seus esforços, nenhum fundamento de explicação dela e do universo, mas apenas um escuro abismo. O entendimento ainda infantil pensa esse abismo para si como um caos, do qual emana um composto de necessidade e incerteza, aos poucos materiais de formação, e então, já formados, deuses e mundos, animais e homens. O entendimento da maturidade reprova o abismo e o caos, porque ele se elevou à clara compreensão de que o pensamento de um universo que se desenvolve apenas gradativamente a partir da eternidade é um pensamento completamente sem sentido, com o qual se pode reduzir tudo aquilo que ele apresenta ao nada absoluto. Aqui entra a doutrina de uma perfeição sempre igual do universo, de um ser infinito que faz um círculo em si mesmo de eternidade em eternidade, cujo infinito sem finalidade ora surge tão-somente por meio da necessidade de sua natureza, ora deixa perecer sem que em qualquer lugar ou em qualquer tempo ocorra um surgir ou um desvanecer essenciais. A doutrina de uma natureza que não é nenhuma força de criação, mas apenas uma eterna força de mudança.

O entendimento que se afunda sozinho na natureza não pode chegar a um conceito mais elevado, tal como o que é fornecido aqui do En kai pan; ele não pode encontrar nela aquilo que nela não está, o seu autor, e daí põe a sentença: autônoma, suficiente em si mesma, ora e outra viva, a vida é ela própria a natureza; somente ela é e além e acima dela não há nada.

Traduzido de "Einleitung in des Verfassers sämtliche philosophische Schriften".