Quase nunca tenho motivo para sair
Sendo precavido como sempre fui Guardo tudo que preciso ao alcance das minhas mãos Quem me vê de longe certamente pensa que sou um homem caseiro Mesmo contra meus princípios Mesmo contra minha vontade Tem dia em que manter clausura é impossível, naturalmente E hoje foi um dia desses em que tive de deixar meus domínios Dizem que até Dalton Trevisan se vê forçado a abandonar sua citadela às vezes Será verdade? Sei lá. Não é coisa que me preocupe Em outros tempos, sim, era, e muito Vivia encafifando com Dalton Com R. Fonseca, Jerome David Salinger E com qualquer escritor tido por recluso Eu mesmo fantasiava que um dia seria um deles E a imprensa cismaria com os meus motivos A escritor não cheguei E dentre os reclusos não sou dos mais convictos E mesmo que ninguém se pergunte por quê (sequer os que me vêm de longe) Pelo menos cumpri, digamos, um terço da fantasia O que me deixa até meio orgulhoso (Tudo bem, a aritmética... Vamos deixar assim suspenso.) Quando tenho de sair Como tive hoje O incômodo é tanto, que em geral acabo fazendo um poema Como este aqui Certo, botando em palavras agora Sei que daquela perturbação sobrou pouco mais que o conceito E da poesia não restou quase nada Mas, veja, tenho uma justificativa a apresentar Que, embora não explique minha má poesia Pelo menos mostra que sou um aspirante a vate responsável É que tudo numa rua me assoberba Tudo numa rua me seduz São tantas coisas a me chamar a atenção Que até me esqueço de vislumbrar o céu De tudo que tenho que cuidar Meu maior zelo é onde piso E avançando assim cabisbaixo Cabisbaixo como já não se fazem homens hoje em dia Ensimesmado avanço sem dar conta do olhar Será que devo apreciar a fachada desta casa Só para estimar em que ano foi construída? Ou é melhor analisar o jardim da frente Para ver se os donos são minimamente asseados? E assim vou andando enquanto penso E se cruzo c'uma mulher perfumada Então paro e fecho os olhos Pois não quero me perder E, diferentemente do brasileiro médio Não troco olhares com os que vêm em contrário Rezando para que também sintam nojo De trocar olhares c'um desconhecido na rua Já voltando, paro na esquina esperando a passagem dos carros E decido, mais ou menos à minha própria revelia Que, se deus ou qualquer outro ser superior a mim Me der a graça de evitar que as minhas palavras sequem, virando refugo metafísico Este será meu primeiro poema c'um gerúndio no título Então, só para provar a deus ou qualquer outro ser superior a mim Que estou falando sério Chego ao portão de casa rezando assim: São Gerúndio, padroeiro dos semipoetas praticamente pseudorreclusos Defensor dos vespertinos inúteis Fazei com que este meu passeio nesta tarde abafada de dezembro não tenha sido em vão |
Passeando
Pequeno incidente de percurso
Literalidades
Estou passando meio distraído quando escuto ─ ou
penso escutar ─ um choramingo.
Paro apreensivo. Olho em volta. Não vejo ninguém.
Dando de ombros, me volto novamente para a
direção em que seguia ─ ou penso que seguia. Meus sentidos vivem me
enganando. Até parece que têm um certo prazer em me pregar peças.
Retomo a caminhada. Mal completo o segundo passo,
outro choramingo. Agora mais agudo.
Dou meia-volta de supetão, tentando flagrar o
engraçadinho.
Ninguém. De uns tempos para cá meus delírios
parecem estar ficando incontroláveis. Tem horas que a confusão beira o
insuportável. A idéia de procurar um médico torna a me afligir. Será tão
sério assim? Quem devo procurar? Um psicólogo? Neurologista? Um calafrio me
percorre a espinha. Uma cartomante?
─ Aqui! ─ alguém chama.
Saio a custo da minha reflexão mórbida e viro
para o lado de onde a voz parece vir. Estreito os olhos. Ninguém. Olho em
outras direções. Nada.
─ Estou aqui! Veja!.
Desta vez consigo identificar a direção. Debaixo.
A voz vem debaixo. Será alguém caído? Ferido? À beira da morte?
Só há mato em volta ─ um mato ralo e rasteiro que
dificilmente poderia ocultar um corpo. Ou ─ o mesmo calafrio me sobe
novamente costas acima ─ um moribundo!
─ Aqui! Estou aqui. Olhe com atenção, que me
verá. Bem abaixo de você. Perto dos seus pés.
Tento me concentrar. Curvo o pescoço para baixo.
Aguço o olhar. Franzo a testa. Tudo que vejo é uma pedra. Está semi-encoberta
por uns tuchos de grama silvestre
─ Isso mesmo! ─ a voz diz. ─ Finalmente me
avistou.
Dobro os joelhos, me abaixo. Aproximo o rosto.
─ É você que está me chamando?
─ Hãhã ─ ela faz.
─ Qual é o problema? A solidão? As intempéries?
Precisa de alguém pra trocar umas idéias?
─ Olha, não lamento muito minha condição, não.
Posso suportar qualquer coisa. Menos a eternidade. Não quero existir para
sempre.
─ Talvez o planeta não resista tanto ─ digo em
voz meiga, apiedado de tão triste lamento. ─ Quem sabe quando houver a
primeira guerra nuclear...
─ Não acredito ─ a pedra tem a voz ligeiramente
esganiçada, como se procurasse conter um sentimento mais agudo. ─ E mesmo que
as bombas atômicas fizessem tudo soçobrar, mesmo assim o máximo que poderia
acontecer comigo seria me partir em milhares de pedacinhos. Isto, como deve
estar evidente, certamente seria muito pior.
─ É verdade! ─ caio em mim. Só de pensar tenho
outro calafrio. ─ E se eu te moesse, te convertesse em pó? ─ Começo a me
angustiar com a situação da pobre pedra.
─ Ai! ─ ela emite um ganido fremente de dor
moral. ─ E se cada um dos meus grãozinhos, por mais minúsculos que fossem,
padecesse desta mesma aflição? Seríamos milhões, quem sabe bilhões de novos
serzinhos condenados à eternidade!
─ Puxa, não tinha pensado nisso. ─ Engulo em
seco.
Apanho a pedra, escondo-a dentro do punho. Me
ponho de pé, olho as redondezas. A algumas dezenas de metros há uma lagoa de
águas turvas. Reúno todas minhas forças e arremesso. A pedra desenha um arco
contra o céu azul e, abrindo um buraco na superfície plana da água, mergulha.
Posso ouvir vagamente o “tibum” breve, efêmero. Uns pequenos jorros d'água se
erguem alguns centímetros e instantaneamente desaparecem. Talvez ali nas
funduras da lagoa ela encontre uma saída.
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Pernilongo
Literalidades
Tempo.
Sequer te devia dirigir a palavra. Mas não há
saída. Agora estou cismado. Como a vida pode ser tão irrazoável? Engendrar
tão vil insetozinho.
Vem me atacar, agora que estou com a bomba de
flite nas mãos.
Vem! solerte narigudo de longuíssimas pernas. E
aspargirei em tua volta a névoa de querosene que será a última nuvem que
verás em tua inútil existência aérea.
Achava-me em meio à mais dramática das batalhas
oníricas, peleando contra bárbaros monstros ávidos por me devorar a cabeça.
De repente, pressinto o fiozinho indistinto, zuindo não sei onde, subindo,
zuindo, subindo, até se configurar na mais palpável das torturas.
Sonambulamente atônito, agarro múltiplas e
frenéticas vezes o ar, tentado surpreender o bandido.
Vem aporrinhar-me, sorrateiro notívago, pois
agora estou – acho – desperto.
Covarde! Agredir um sujeito que, mais que
deitado, está caído.
Um coitado, inerme, em permanente aporrinhação
quando em estado de vigília, e agora, jogado neste leito, ora esticado, ora
encolhido, ora dum lado, ora d’outro, atormentado pelos próprios suspiros,
suando, perseguindo a única aspiração de dormir sem sobressaltos senão uma
noite inteira (pois essa dádiva só os eleitos a merecem), pelos menos umas
duas ou três horas a fio. Três horinhas, era tudo que eu almejava! Mas a
aleivosia de certos seres deste mundo não mo permite.
Como te atreves, pérfido invertebrado! E no
escuro, que é a arma que só usam os rasteiros. És pernilongo ou barata?
Fosses e te espezinhava até de manhã.
Mas pior é a desfaçatez do teu pernóstico
zumbido.
E me diz, pachorrento: para que serves? Não, não
quero desvendar outros segredos dos indiscerníveis desígnios do teu criador.
Tampouco intento descobrir a razão desta nossa tola existência. Só quero
saber para que diabos serve um pernilongo. Será para um homem poder provar a
si mesmo que é macho? Só pode ser! Como tolerar que perturbem esse sono ao
qual procuro sucumbir a tão duras penas, rolando por toda a eternidade nesta
cama de pregos imaginários? A! Se continuas a abusar, levanto duma vez, ergo
a mão em cima do guarda-roupa, apanho meu trinta-e-oito e te encho o rabo até
o último cartucho, maldita miniatura dedicada a se entupir de sangue.
Quando te escuto zunir, inclemente! me dou conta,
mesmo zonzo de sono, que já executaste tua macabra pilhagem. Se antes me
achava apenas enfastiado com meus próprios pensamentos, agora me vejo sobre
uma mesa de sacrifícios bestiais, indefeso sob as patas dum pernudo primevo
oriundo de insuspeita dimensão. Só te resta te coçares, hahahá! ris do meu
desespero.
E, despencando num precipício assombroso que se
abre sob meus lençóis, mergulho em blasfematórios delírios.
O Enola Gay enche os ares com seu ronco
justiceiro.
A excursão pelos límpidos céus do meu quarto é
mansa e certa, só perturbada vez por outra quando um pelicano ou albatroz é
apanhado numa das hélices de oito metros de passo. Mas subitamente, ao me
aproximar de Nilongshima, me dou conta de que a calma é enganosa. Insetos
kamikazes tentam atingir a medonha aeronave de todos os lados. Mesmo sendo
gigantesco meu B29, o troar das quatro turbinas é sufocado pelo intenso e
infernal zumbido de insanos pernilongos inimigos.
Olho para o lado e me reconforto vendo Little
Boy. Afago-lhe agradecidamente a sombria blindagem negra, antegozando o
estrago definitivo que produzirá na pernilonguesca cidade abaixo de mim.
Guri, give'em hell!, murmuro, como se a bomba
pudesse me compreender. E ela compreende, pois, com ar satisfeito de quem
sabe que o dever será cumprido, faz que sim com a cabeçorra funesta.
Após quinze minutos de vôo, nos aproximamos do
centro de Nagalongo.
Veja! exclamo, indicando com o dedo para Little
Boy. Ali. O pernilongueiro imperial!
O ninho onde reina o desgraçado. Que morra! Ele e
toda sua espécie.
Aperto o botão de disparo. Os dispositivos
mecânicos da Minha Bomba iniciam o procedimento de liberação. Abro a boca,
extasiado, sem poder desgrudar os olhos, antegozando o armagedão. O piso da
carlinga se abre. Little Boy parece querer voltar a cabeça para dar adeus.
Vou acompanhando a trajetória da Besta. De repente, a nuvem atômica toma
conta do quarto, derretendo a cama, as paredes, meu gato (que sempre dorme
comigo), eu e o pernilongo.
Toma, miserável! Safa-te desta.
Se a um pobre homem fosse dado realizar uma só
fantasia na vida, eu escolheria trocarmos de papéis. Tu ficarias aí deitadão,
satisfeito, no mais doce dos devaneios oníricos… até que... eis que surge um
homem alado, seringa em punho, disposto a te picar as dobras do joelho, os
nós dos dedos, a ponta do nariz, te sugar o sangue feito um vampiro arredio a
te buzinar nauseabunda cigarra na orelha. Só para ato contínuo escafeder-se
no breu da madrugada, zombando de ti enquanto estrebuchas, esbravejando
pândego de sono e sanha assassina.
A! Escalafobético folgazão. Não perdes por
esperar.
Queres dormir o sono dos justos? Pois toma esta
espetada! Sai uma cargazinha de veneno, que é pra que largues de ser bocó.
Está feito. Agora tenta te roçar.
A, zoófago tarado, tivesse a vida te suprido de
unhas, arranhar-te-ias até sangrar.
Enquanto ficas aí com teu martírio, vou dar um
giro pela noite. Logo encontrarei outros pernitontos para me divertir.
Ó longa noite pernilouca.
Se te pego te mato torturo te masso te capo
muleta.
Pe prego te tábua.
Te dou nós dois de perna.
Te empalo trombeto me sopro tua morte.
Te enfio me asas translúcida a goela.
A! Pernepanolengo.
Te ateio me aranho te caso lagarto me tixa te
pardo.
Te acorrento me couro te sapo.
T’azucro t’ouço te safo me mato.
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Perverso
Literalidades
Corpo
deitado, o olhar desliza para os lados buscando distração. Quem
dera alcançar o supremo milagre dos ansiosos: não pensar.
De
repente, uma das folhas da veneziana é empurrada pelo vento,
deixando o quarto ser invadido por um facho de luz que divide a
penumbra ao meio. O olhar promíscuo mas cansado, que não quer
enxergar mais, é arrastado contrafeito para o espetáculo
fotoelétrico.
Súbito
festival vespertino. (Sim, a tarde está na metade — o que não faz
diferença para os olhos, para a luz, para ninguém.)
Relutantemente
seletivo, ele, o olhar, perscruta a fita luminosa. Quer algo mórbido
que possa refletir, descobrir como familiar.
Desapontado,
inventa uma pradaria, vacas e bois aqui e ali, pingos alvos no verde
frágil. Talvez veja tolices suficientes para desistir.
Mas
ele insiste na dolorosa faina.
Insiste,
insiste, até avistar os minúsculos astros de pó que, ao contrário
dos planetas de verdade, viajam imprevisíveis em órbita irregular,
errando pelo iluminado firmamento hexagonal que atravessa o quarto.
Ele
não perde tempo. Gruda eletrizado numa das partículas, cuidando
para não perdê-la de vista. E em seguida começa a acompanhar
também uma outra.
E
forma par.
A
voz quer protestar. Mas a cabeça põe-se a trabalhar obediente.
Num
dos planetas, tomando o rumo do chão e girando tresloucado como se
gritasse por socorro (predestinado à auto-extinção), estou eu,
minha voz, meu olhar, minha cabeça, meus restos.
Noutro,
mais garboso, nonchalant, desfilando autossuficiente em direção ao
teto, está você. Inteira.
O
agora desvairado olhar pula frenético entre as duas partículas,
tentando monitorar seus cursos antípodas.
Ela,
a cabeça malsã, deusa de todas as coisas, zeladora incansável da
poeira que viaja inexorável neste quarto e em todos os quartos,
põe-se a rodar em sua órbita desembestada.
Forças
tentam-se reunir.
O
fôlego quer estufar o peito, soprar redentora ventania sobre o
infernal espetáculo em que me enfiaram.
Sugar
firmamento. pó. eu. Você.
A incrível história do menininho
Bom, antes de entregarmos toda a trama já no
título, façamos um... é... hã... retrospecto.
Era uma vez um menininho chamado Jorginho.
Igualzinho a todos os priminhos, amiguinhos, coleguinhas, etc.
Igualzinho coisa e tal exceto num d... de...
detalhe... um... digamos... fisiológico.
Mais que detalhe, era... era... uma... uma ca...
ca... cara... característica!
Sim, uma verdadeira característica fisiológica.
Mas que não era suficiente para atrair jornais sensacionalistas, gerentes de
zoológicos determinados a aposentar o velho leão desdentado e raquítico que
quando muito causava comiseração no público ou donos de circo ávidos por
armar uma lona em torno da primeira aberração que pudesse chamar a atenção de
meia dúzia de degenerados ou débeis mentais.
Nada disso, pessoal. Jorginho tinha apenas uma
ligeira diferença com seus priminhos, amiguinhos, coleguinhas, etc. Tão
ligeira, que quase passava desapercebida. Jorginho tinha um... um... Bem, não
vamos revelar ainda a diferença, senão é capaz de estragar o... o... hã...
suspense!
Agora que já dissemos que ele era um menininho
diferente, precisamos retroceder ainda mais um pouco.
Bom, em vez de retroceder um pouco, voltemos tudo
duma vez, até o dia em que o s... s... singular Jorginho nasceu.
O desgraçado nasceu feinho como nascemos todos
nós seres... hã... humanos. Sabe como é: carinha de quem veio ao mundo já
velho, com experiência de vida quase ancestral, cinismo atávico, olhos
despropositadamente grandes e intrusivos, duma curiosidade onírica e ao mesmo
tempo um quê de fantasmagórico, te olhando ominosamente como se adivinhasse
teus segredos mais inconfessáveis, arzinho de quem chegou mas não queria ter
chegado (e pior, sem bilhete de volta), jeitão de quem te trouxe uma mensagem
dum mundo estranho e...
Bom, quem já viu um recém-nascido sabe como é.
Como todos os demais bebês daquela maternidade e
de todas as maternidades do Brasil e talvez do mundo, Jorginho foi submetido
a uma ba... hã... ba... bateria de exames. Os médicos examinaram tudo de tudo
que era jeito, propósito e grau. E constataram que, apesar da carinha de
mini-totem que todos nós etc. e tal, ele era... era... era...
Bem, antes de revelar o que Jorginho era, peço
que tenham mais um pouco de paciência e me permitam um breve parêntese.
Jorginho, tendo nascido zi... zi... ...zinho como
ele só, passara dois ou três dias na maternidade, sob cuidados de prestimosas
e garbosas enfermeiras que, como todos vocês sabem, reinam imperiais na
fantasia de muitos marmanjos sem-vergonha e doentios por aí.
Mas é bom ressalvar desde o início, para que
depois não me acusem de sofista mau-caráter: quem está pensando que a aludida
característica tem algo a ver com... com... hã... e que a diferença de
Jorginho era tamanha, que... que... um... embora, também é bom que se diga
desde já, algumas das mencionadas enfermeiras, no seu mais profundo íntimo,
tivessem pensado “Oh!” e dois dos enfermeiros — homens feitos — até se
entreolharam com cara de cumplicidade e exclamaram: “Ai! Ui!”, bom, quem
estiver pensando isso ou qualquer outra coisa, que pense o que quiser, pois
vivemos num país democrático em que todos temos direito ao livre arbítrio, se
é que o amiguinho leitor e a amiguinha leitora me entendem.
Fechado o parêntese, continuemos.
Todos na família de Jorginho estavam felizes. O
pai do... hã... Bem, o pai era um orgulho só. “Um varão, um varão!”,
regozijava-se. (E antes que me acusem de desvirtuamento ideo/mercadológico,
devo dizer que... um... ãn..., recomendando que vocês... hã... Bom, vocês
sabem.)
A mãe... Bem, a mãe não cabia... hã... um... em
si de... fe... felicidade.
Por alguns dias a rotina cedeu lugar ao
inebriante espírito novidadeiro. A mãe, que antes não podia ver a sogra nem
pintada de... um... o... ouro, agora deixava a velha trocar as fraldas do
bebê; o pai e o sogro (do pai, não de Jorginho, que ainda não se casara), que
antes... bem, nutriam ódio quase mortal um pelo outro, agora trocavam olhares
enternecidos e até... hã... Resumindo: a família estava em festa, e mesmo
parentes de quem não se ouvia falar havia décadas apareceram para dar
boas-vindas ao guri.
Com o interminável entra-e-sai e a reviravolta na
casa causada pela chegada do... um... recém-nascido, ninguém se deu conta de
que... hã... um... sabe como é... tem coisas na vida que as pessoas custam a
ver (e muitos, quando vêem, vêem mas não querem acreditar...).
Algumas semanas depois, o pai de Jorginho e o
sogro do pai de Jorginho estavam na sala falando algumas dessas abobrinhas
que todos estamos fadados a falar mais dia menos dia quando escutaram um...
um... lan... lancinante berro vindo do banheiro. Puseram-se incontinenti em
pé e correram para o... hã... banheiro. E o que viram ficaria marcado em suas
mentes por to... todo o... o... se... sempre: depararam com a sogra da mãe de
Jorginho encostada na parede do bóx cor-de-rosa, mãos tapando a boca, olhos
arregalados fitando pas... pas... pas... pasma a criança que... que br...
bri... brin... brincava na banheirinha plástica!
O pai e o avô (de Jorginho) olharam para a sogra
(do pai) e mulher (do sogro) e exclamaram:
— Oh!
O avô, de tão desconcertado, deu um passo para
trás, como se quisesse guardar distância segura. O pai, por sua vez (dele
pai, não de você aí amiguinho leitor e cara, caríssima amiguinha leitora),
deu um passo à frente, querendo olhar mais de perto. (O que prova, amiguinho
leitor e bilolotinha do papai, que embora ambos tivessem exclamado “oh!”,
fizeram-no levados por razões obviamente distintas e, ao que parece, mesmo
antagônicas.)
A mãe de Jorginho, que estava no quarto lendo no
jornal a última piada do Veríssimo (Veríssimo que, diga-se, era para a mãe de
Jorginho o ideal literário de todas as mães do Brasil), e que já ficara de
sobreaviso ao escutar o berro lan... lan... um... lancinante da avó de
Jorginho, ficou decididamente alarmada com o “oh!” exclamado pelo pai e pelo
avô de Jorginho e saiu desembestada pelo corredor do andar superior (pois,
embora ainda não tenhamos tido a oportunidade de descrever a casa de
Jorginho, tratava-se dum sobrado, localizado... hã... Bem, não vem ao caso no
momento (afinal, pra que haveríamos de publicar o endereço do miserável? Só
pra você, amiguinho leitor e curiosa lolitazinha, irem lá e acabarem com a
raça do infeliz?))), perguntando aos gritos:
— Que foi? Que foi?
Avistando o sogro, que, recostado à parede do
corredor, olhava atônito para dentro do banheiro, a mãe pôs as mãos no peito
(que, cá pra nós, amiguinho leitor e deliciosa lolinha, não era de jogar
fora, ainda mais com as mamas intumescidas que estavam de leite) e gemeu:
— Ai! Acho que vou desmaiar! (E olha que ela
ainda nem tinha visto o que os demais tinham visto no Jorginho. Imaginem só
quando visse!)
— Não é nada demais, benhê! — disse o marido, que
saíra do banheiro ao escutá-la. — Está tudo oquêi. Sua mãe é que faz
escândalo por nada...
Sem querer acreditar nas palavras do pai de
Jorginho, ela correu para o banheiro e olhou. E olhou para a mãe, que
continuava encostada na parede do bóx cor-de-rosa, ainda pasma, olhos ainda
arregalados. E olhou novamente para a... a... criança. E pôs a mão sob o...
hã... um... queixo, matutando.
Matutou, matutou, até que disse:
— Bem, até que não é tão mau assim.
Passaram-se alguns meses. (Sei que parece meio
rápido, mas, sacumé, Jorginho tá com pressa.)
Jorginho ficava cada vez mais um... hã... ca...
característico. Na família não se falava de outra co... hã... coisa.
Não demorou muito e virou o assunto um... pr...
pre... pred... predileto do bairro. Depois, coqueluche da cidade. Depois,
febre do país.
O bestinha (que ainda era bebê, e bebê deveras
chorão, mas que recebera o apelido de “bestinha” por mero acaso e não por ser
aleijado ou coisa assim) nem bem completara um ano e já ficara conhecido,
vejam só se pode, como Jorjão.
Vinha gente de longe ver. Desconhecidos se
aglomeravam na porta da casa. Alguns até a forçavam o portão. Outros pulavam
o muro (que o pai de Jorjão foi obrigado a levantar e guarnecer daquelas
lanças espanta-ladrão).
Todos queriam conhecer a criança diferente. O
jornacional dedicava quarenta minutos ao tema todas as noites. A notícia
corria o mundo. Choviam jornalistas de todas as partes. Carretas gigantescas
carregadas de toneladas de equipamentos televisivos estacionavam diante da
casa. O pai de Jorjão erguia cada dia mais os muros, que já atingiam vinte
metros de altura.
O avô, que sempre tivera queda por tirar proveito
do que quer que o destino lhe oferecesse e que não era muito chegado ao
trabalho duro, começou a dar entrevistas, cobrando três paus por cada uma. Em
apenas uma semana já não havia mais vaga em sua agenda pelos próximos três
anos. Contra ordens expressas do genro, que preferia aguardar que a febre
popular atingisse o zênite antes de revelar a criança para as câmaras de
tevê, o velho arrumou uma polaróide e às escondidas tirava fotografias de
Jorjão, vendendo cada uma por dez paus. Logo o espertalhão começou a pagar
cerveja para todo mundo na padaria e ensinar aos amigos como trilhar os
misteriosos caminhos da prosperidade.
A avó assistia a tudo e balançava a cabeça,
condenando em tom fatalista:
— Isso ainda vai acabar um... hã... mal! Muito
hã... mal!
A mãe estava confusa. Pressentia que aquilo tudo
não estava certo. E pior: que nada daquilo não estava errado. Sua mãe (mãe
dela, etc.) talvez tivesse razão. Por outro lado, precisavam reformar a cada
da praia. Não que tivessem uma, mas sabia que teriam de reformá-la quando a
tivessem. E quando essa hora chegasse, que fariam sem dinheiro? E que dizer
das novas cortinas da sala, das viagens a Miami, das doces tardes que sempre
sonhara passar no chópingue igual às madames do bairro?
Quanto ao pai do porqueirinha, esse mirava o
futuro com olhar longo e manso de quem vê o navio da felicidade despontar no
horizonte, abarrotado de contêineres cheios de bufunfa, singrando celeremente
os mares rumo ao porto seguro da riqueza. O jornacional telefonava de manhã à
noite querendo filmar o bebê-sensação. To dia tevês, revistas, jornais do
mundo todo enviavam cartas, telegramas, emails às dezenas, às centenas, aos
milhares, às dezenas de milhares e assim por diante. Universidades
solicitavam testemunhos. Empresas ofereciam até vinte paus por palestras.
Políticos assediavam para que o dito-cujo se candidatasse a vereador,
deputado, etc.
Para lidar com tantos contatos, o pai contratou
uma secretária, que logo contratou outra, que contratou outra, que... bem...
contratou outra.
A sala de estar do sobrado converteu-se em
central de atendimento, com dezenas de funcionários se acotovelando em quinze
metros quadrados. Em poucos dias alguns deles tiveram de ser transferidos
para cima. Os avós foram obrigados a cair fora para ceder espaço aos
operadores de computador. O banheiro debaixo foi ocupado por motobóis. Quando
não havia mais um só centímetro disponível, o pai de Jorjão contratou uma
construtora e mandou erguer mais dois andares na casa.
A rua foi interditada pela prefeitura. Brotava
gente de todos os lugares, de todas as nacionalidades, de todos os costumes:
homens de saia, mulheres de burca, homens e/ou mulheres com longas túnicas de
seda, grupos trajando ternos negros feito as asas da graúna e uma multidão de
cu... um... hã... curiosos.
A polícia viu-se obrigada a ampliar a área
interditada. O secretário de segurança exigiu que os moradores do bairro
usassem crachás de identificação. Os vizinhos começaram a reclamar dos
transtornos — a gritaria, a correria chegavam a níveis quase insuportáveis.
A turba aglomerada diante da casa exigia aos
berros:
— Queremos ver Jorjão! Queremos ver Jorjão!
O pai era obrigado a sair à porta e pedir calma,
explicando:
— Ainda não chegou a hora! Dentro de alguns dias.
Esperem só mais um pouco!
Entrementes, Jorjão, que não tinha nem quarto,
nem berço, nem nada, continuava a brincar na banheirinha plástica.
Um dia o pai recebeu um visitante que
simplesmente não podia dispensar. Era um emissário do presidente da
república.
— Vamos entrando, doutor. Vamos entrando!
O homem, limitando-se a fazer um gesto seco com a
cabeça, preferiu adentrar em vez de entrar, pois que se tratava d’autoridade.
E sem se dar o trabalho de sentar na poltrona que o pai lhe indicara, meteu
na bucha:
— Ou o senhor revela o menino ou vamos resolver
na marra!
Atônito, o pai de Jorjão caiu sentado na poltrona
que oferecera ao emissário. Depois de meio minuto incapaz de reagir,
perguntou:
— Mas por quê? Ainda não... não...
— O presidente perdeu a paciência! Quer ver o
menino na tevê amanhã!
Dizendo isso, o emissário deu as costas e
retirou-se.
O pai de Jorjão subiu correndo as escadas e
chamou a mulher.
— E agora? — perguntou depois de contar o ocorrido.
– Agora é fazer o que disse o presidente — a
mulher recomendou, ponderada que era.
Vendo que de fato não tinha outra opção, o pai
chamou a secretária e ordenou:
— Ligue para o jornacional. É chegada a hora!
A secretária mal acabara de desligar o telefone
quando escutaram a colossal carreta da tevê roncando em frente a casa,
acelerando e jorrando fumaça quinze decassílabos de gás carbônico intoxicante
no ar feito um animal impaciente.
O porteiro abriu a porta para repórteres e
cinegrafistas.
— Onde ele está? — o chefe da equipe quis saber.
— Aqui em cima — o pai disse, surgindo no alto da
escada. — Venham!
Todos saíram em disparada escada acima, galgando
os degraus de dois em dois, três em três e quatro em quatro, dependendo do
tamanho das pernas.
E então, chegando ao bã... bã... banheiro...
Pois é, leitorzinho amigo e leitorzinha amiguinha
fofudinha. Você já pode adivinhar o que aconteceu. Infelizmente é assim que
as coisas são na vida real. Se isto fosse uma fábula fabulosa e não um mero
relato factual, poderíamos ter inventado um happy ending bem mais
happy. Mas sabe como é...
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Projeto para viver
Literalidades
(talvez nem tudo esteja perdido)
Alguns pensamentos, princípios e emoções que vimos guardando desde
quando acordamos na vida se assemelham àquele parafuso que ocasionalmente
achamos num canto qualquer da casa ou na rua e nos damos o trabalho de
agachar, apanhar e meter no bolso.
Quem sabe essa porcaria um dia vai me resolver um problemão numa hora
de aperto? pensamos meio a contragosto mas satisfeitos com nossa própria previdência.
Então, levados pela inércia, durante alguns momentos acalentamos o que
há de bom dentro de nós, acreditamos que vale a pena interferir no curso dos
acontecimentos, nos convencemos da nossa própria viabilidade. A sensação é
deveras rara e valiosa, precisamos alimentá-la para que não se esvaia feito
um fio d'água deslizando na terra seca. E assim, tomados de repentino gosto
pelos cálculos, começamos a somar crenças que não sabíamos existir, a limpar
da cabeça um incômodo niilismo que em algum lugar persiste intocado. E por
reles momentos nos orgulhamos da nossa própria sapiência, até com uma ponta
de desprezo por pessoas que são menos precavidas do que nós.
Daí em diante, podemos escolher entre dois caminhos:
a) continuamos a zanzar pelo nosso mundo de sempre, carregando no
bolso o parafuso qual um vade mecum, meio esquecidos do motivo que nos levou
a apanhá-lo. Um dia nos cansamos e o deitamos fora, irritados com a mania de
nos apegarmos a objetos que, por terem cor, peso, cheiro, substância, por
poderem ser recolhidos e sentidos dentro do nosso punho, servirão de
contrapeso à arisca esperança que teima em desmilinguir, ou
b) na primeira oportunidade, o largamos distraidamente numa gaveta
qualquer. Assim, damos continuidade ao ânimo que nos levara ao apanhá-lo do
chão. Realimentamos a fugaz sensação de viabilidade que naquele momento tinha
um lugar no projeto que fizemos de nós mesmos.
Se escolhemos a segunda opção podemos até mesmo celebrá-la como um
segundo passo concreto em nosso projeto e então o cálculo recomeça: mais uma
pá de fertilizante, outra abrangente mirada até nossos horizontes, mais outra
espiada dolorosa em algum lugar dentro de nós. Talvez nem tudo esteja
perdido.
Passado certo tempo, suficiente para nos esquecermos de que somos
prevenidos, um dia abrimos a gaveta. Mais uma vez, estamos sozinhos com nossa
solidão, exercendo nosso papel de procura. Dentro da gaveta vemos o caos —
nosso caos particular —, formado das quinquilharias com que matamos o
interminável tempo de que dispomos e do qual não sabemos o que fazer. Sempre
que abrimos a gaveta nos dá vontade de dar fim naquela tralha, mas outra vez
somos vencidos e fingimos enxergar um valor em cada caixinha, cada botão,
cada clip, alfinete, resto de lápis, papelzinho dobrado... e o parafuso.
Ah, eis minha salvaguarda! pensamos aliviados, sentindo algo cutucar
em algum lugar bem no fundo. É um vago sentimentozinho que sabemos
estar ali mas que nunca identificamos claramente — mais um diamante de
brilho opaco no tesouro que roubamos de nós mesmos.
Um dia ainda arranjo uma utilidade para essa porcaria!
E fechamos automaticamente a gaveta.
Engavetados, esses pensamentos, princípios e emoções são nossa
reserva. Guardam a origem do que somos e do que queremos ser, nos habitam
invisíveis, intrusos e ausentes, reinando insuspeitos e acalentados em nossa
cabeça, totens inteiros a nos provar que somos incompletos, bica de esperança
não sabemos de quê.
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Pré-paraíso
Literalidades
De repente algo estranho. Aguço os ouvidos, atento às imorredouras
manifestações do ambiente. Carros ainda passam na rua. Crianças na vizinhança
ainda fazem o habitual alarido. Aviões ainda cruzam o céu. Alguém ainda
escuta música sertaneja ao longe. Bem-te-vis assobiam tecendo a manhã nesta
bela masmorra.
Os sons estão todos no lugar.
Olho o quarto – paredes encardidas como o são há anos, as coisinhas
miúdas com que me entretenho dia a dia cada qual no lugar errado como sempre
estiveram, as folhas das venezianas misteriosamente manipuladas pelo vento
que teima em tê-las entreabertas. E lá fora também tudo parece estar como
sempre esteve. E o mundo também continua parado fazendo de conta que gira.
Então olho para dentro. Espanto! Não há nada aqui. Onde estão minhas
aflições? Olho de novo, com mais vagar. Cadê aquelas sensasõesinhas
intangíveis que me mantinham permanentemente alerta sem saber contra o que,
as fieiras de sirenes e luzinhas alarmantes desfilando incessantes – dentro
deste familiar pavilhão? Cadê os sinais de atenção, cuidado,
não-baixe-a-guarda?
Atento mais demoradamente. Dou por outras ausências. Minhas dores –
cadê minhas dores? Onde está a infalível solidão que fazia parte de mim tanto
quanto estes braços pálidos, estas pernas tíbias, e sem a qual não posso
viver? E o árido sentimento de abandono que me acompanha desde que existo? E
todas aquelas imagens variegadas de terror que sobrevoavam os negros céus da
minha imaginação às que, de ominosas, nunca ousei dar formas ou cores nem chamar
pelo nome?
Noto ainda outras faltas. Os medos. Onde estão Eles? Todos aqueles…
aqueles… aquilo que fazia de mim permanente refugiado de lanças invisíveis,
exilado em inefáveis ilhas sem margens nem horas, fugitivo de assassinos sem
rosto obcecados por matar o que sempre foi morto, ladrões encapuzados ávidos
por roubar o que nunca foi meu, temores que me tornavam eterno
persona-non-grata das minhas assombrações, desterrado em minha terra,
perseguido em meu esconderijo?
E as velhas tentações intoleravelmente extravagantes de cometer o mais
hediondo dos crimes para pôr um fim definitivo à angústia de ser livre?
E as indefectíveis vontades de amor, de boceta, de doce, de dinheiro,
de ser bacana, de ser picasso, presidente, piloto, de dizer mãe, eu estou aqui?
E os pesos do passado? Que fim deram os grilhões a me acorrentar ao
ontem infinito? E as escassas alegrias descascando do espírito feito gesso do
teto, as partidas de futebol em que eu era a bola?
E os filmes em branco? Onde estão todos aqueles filmes em branco que
assisti na infância?
Sacudo a cabeça, tudo volta ao velho estado de normalidade
premeditada. Em seguida atento novamente. Como se tivesse entre os dedos um
botão de sintonia fina, experimento para um lado: nada. Para o outro: nada.
Todas minhas velhas aflições estão extintas.
Por um segundo me passa um frio no estômago, penso no pior. Me
sintonizo de novo. Não, estou bem. Ufa. Estou bem.
Ter perdido os lastros das minhas dores me deixa leve. Parece que vou
flutuar. Não, já estou flutuando. Se amolecer posso sair voando pela janela.
Algo no fundo fala "realidade". Não me enche o saco, é só o que
peço.
Os alarmes não vão disparar. Está decidido. Não permito. Estou no
comando agora. Pelo menos alguns minutos vou flanar, velejar, esquiar, tudo
que sempre quis fazer e nunca fiz.
Então isso que é plenitude? A ausência da noção do tempo. A percepção
repentina e esmagadora de que não necessito andar. Para quê? Coisa besta.
Para que corrigir, reformar, apagar os incêndios, buscar abrigo dos raios?
Para que perguntar? Não quero mais castigos e festas. Para que falar?
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Qasim, Murtaza, Laith
...e Johnny e outras coisinhas exóticas
Terça à tarde, Humam, pai de Sadiq, chegou assustado do mercado e se
atirou no sofá. Arquejava. Escapara por um triz. Saiu do mercado alguns
segundos antes que uma bomba fizesse a velha edificação em pedaços. Sadiq
ouviu aterrado, tentando engolir em seco. Não tinha mais saliva. Abriu a
boca, pôs a língua fora, procurando umedecê-la. O ar exterior parecia querer
consumi-lo. Sadiq olhava em torno buscando algo ou alguém que lhe desse um
refresco. "Trégua", pensou. "Por Alá, trégua".
Quando o susto passou, Humam começou a falar estranho. Se pôs a contar
uma história que a princípio parecia não ter pé nem cabeça para Sadiq. Humam
disse que quando Haythim, o filho de Salah, nasceu há 13 anos, ele, Salah,
saiu na rua aos berros, dizendo que estava com vontade de tocar um gongo,
como se quisesse anunciar a Alá e ao mundo o nascimento do filho. Queria que
tudo em volta reverberasse tal como ele estava vibrando por dentro. Era muito
forte. Precisava partilhar com os outros. Naquela manhã o casebre de Salah
virou escombros. Salah, Haythim, a mulher e outros filhos estavam mortos. Por
pouco a granada que atingiu a casa dos vizinhos não destruiu também o casebre
de Sadiq. Enquanto pensava em Haythim, seu amigo, e escutava a história
estranha contada por Humam, Sadiq pensava que só queria chorar. Mal conseguia
se lembrar do choro e de como era chorar. Estreitava os olhos ─ as lágrimas
não vinham.
Johnny não vê a hora de atingir a idade legal mínima, se alistar,
botar as garras no volante dum Abrams. Sempre foi fissurado por tanques de
guerra. Se orgulha do bom conhecimento que tem deles. Sabe, por exemplo, que
o melhor da Segunda Guerra foi o soviético T34. Certo, há controvérsias. Para
Bobby, seu colega de escola mais chegado, o melhor foi o alemão Panther. Nada
a ver, Johnny ri quando Bobby diz isso. O Panther não era páreo para o T34 em
termos de mobilidade, poder de fogo, blindagem, confiabilidade e, acima de
tudo, velocidade. É só comparar. E o Panther tinha um calcanhar de Aquiles: a
complexidade de projeto. Assim como na área automobilística e na naval, a
engenharia alemã sempre foi incapaz de desenvolver produtos simples, de fácil
manutenção. Não é à toa que um Mercedes da década de sessenta incluía nada
mais, nada menos que 15 mil peças, ao passo que um Chevy americano, apenas 5
mil. Tudo que alemão faz é complicado. Basta ver a filosofia. Mas esse é
outro papo. O que interessa hoje em dia é o rei do pedaço, o M1A1 Abrams ─ joia
da tecnologia descomplicada e eficiente de Tio Sam. Simplesmente perfeito. Se
fosse fabricado nos anos quarenta a Segunda Guerra teria acabado 3 anos mais
cedo.
O M1A1 Abrams é construído em blindagem de urânio empobrecido
revestida de aço laminado. O urânio empobrecido é dos materiais mais
eficientes em termos de proteção contra os armamentos desenvolvidos
especificamente para destruir esses veículos. Só um míssil antitanque pode
tirar o Abrams de combate. Não há projétil leve ou médio capaz de perfurar ou
sequer danificar esse colosso de 70 toneladas. Isso mesmo ─ 70 toneladas, 25
a mais do que um Panther. E o bichão conta ainda com defesas contra ataques
nucleares, biológicos e químicos. As gloriosas batalhas entre veículos
blindados da Segunda Guerra provavelmente não teriam tido graça com os Abrams
no pedaço. Onze pés de largura por 26 de comprimento, o sonnabitch é uma
autêntica fortaleza, o mais formidável canhão móvel que já rodou suas enormes
lagartas por este planeta. Foi batizado em homenagem ao general Creighton
Abrams, ex-Army Chief of Staff e comandante do 37º batalhão blindado dos EUA.
Fabricado em três versões. O M1A1, a mais recente, é equipado com Thermal
Imaging, navegação GPS e comunicação digital.
Johnny delira. Não há páreo no mundo para o Abrams. Whew, 26 pés de
comprimento quando a torre do canhão está apontada avante, 50 toneladas
métricas. Para pôr esse titã em movimento é preciso uma força que seja tão
colossal quanto ele próprio. Para isso o Abrams é dotado dum propulsor de
1500 cavalos de força, turbinado a gás. Essa fantástica máquina confere ao
veículo potência para atingir até 70 km/h. Acelera de 0-32 km/h em parcos 7
segundos. E tem autonomia de 440 quilômetros. Fe-no-me-nal.
O armamento principal do mother-fucker é um canhão de 120 mm capaz de
disparar diferentes tipos de granadas, incluindo cápsulas penetrantes também
feitas de urânio empobrecido. Uau, Johnny quase não se contém de excitação. O
urânio empobrecido é 2,5 vezes mais denso que o aço ─ um dos materiais de
mais baixa penetrabilidade já desenvolvidos. O M1A1 é ainda equipado com
várias metralhadoras e lançadores de granada de fumaça. Pode superar
obstáculos de um metro de altura e cruzar valas de 3 metros de profundidade.
Para efetivar todo esse poder de destruição e botar pra quebrar, o Abrams
conta com uma tripulação de 4 membros: comandante, armador, carregador e
piloto, todos protegidos por roupas e máscaras próprias para suportar
substâncias radiativas, biológicas e químicas. Dos 1955 M1A1 usados em
combate na Guerra do Golfo, apenas 18 sofreram danos suficientemente sérios
para tirá-los de ação. E não houve sequer uma baixa entre todas as
tripulações.
A belezinha custa apenas 4 milhões de dólares, uma pechincha frente a
montanha de grana que os americanos torram com armamentos todos os anos.
Esses são os pensamentos que vagam pela mente de Johnny enquanto ele
assiste alheio ao noticiário da tevê através do monitorzinho do seu celular,
mastigando enfastiado um enorme biguemaque respingando rios de ketchup com
mostarda e engolindo roboticamente os 2 litros de coca com muito gelo.
Enquanto come quase sem vontade, Johnny tenta afastar dos pensamentos as
implicações que ingerir toda aquela carga calórica trarão para a sua nada
esbelta silhueta. Como a maioria de seus conterrâneos, Johnny é obeso feito
uma porca.
Assistindo às mesmas notícias ao vivo através de sua janela sem
moldura nem parapeito nem vidraça, Sadiq mal consegue abominar aquela gente
estranha que está invadindo seu país. Sadiq tem ódio aos invasores mais por
treinamento que, ó, forças das circunstâncias.
No meio da noite um Abrams apareceu do nada, magnânimo, ominoso,
rugindo a força avassaladora do demônio. Veio solerte e desdenhoso,
atropelando o casebre de Sadiq, dizimando o jogo de sofá e o sofá onde horas
antes Humam tinha contado a estranha história de Haythim e que fora herdado pela
mãe de Sadiq de sua mãe e as cadeiras na cozinha ganhas do primo Manaf e o
guarda-roupa que ele agora não lembra de onde veio. O monstro veio assim,
brincando, indiferente aos estalos da mesa sendo espatifada e dos ossos de
Sajida e Jasim e Bashar quebrando em dois, três, mil pedacinhos, veio se
exibindo como para um desfile, encarnação metálica da imponência, agora
avançando contra os casebres vizinhos, fazendo paçoca sunita de Zaid, Laith,
Feras, Mutaz, Jafar e outros amigos e/ou conhecidos de Sadiq sob sua
gigantesca carcaça de urânio empobrecido, fruto da mais elevada, da mais
fascinante tecnologia espacial, reduzindo, VRUMMMM, a refugo cada utensílio,
item, peça, ferramenta engendrada pela tosca civilização mulçumana e,
VRUMMMM, a escombros o grupelho de casebres quase flutuando perdido nas ondas
de areia do deserto e, VRUMMMM, a cadáveres desfigurados os moradores sob o
peso de suas lagartas gemendo com a lubrificação eternamente escassa no
inferno de 40 graus das proximidades de Badgá.
Quando avistou o conjunto de casebres mal enfileirados no meio do
vasto descampado desértico, Johnny não pôde resistir. Não tinha ordens para
destruir habitações nem atacar a população civil de qualquer maneira que
fosse. Mas as casinhas estavam tão convidativas ─ pareciam estar à espera
daquela ocasião especial, praticamente suplicando que o Abrams as violasse
qual um invencível estuprador cor da areia do deserto. Antes de acachapar os
casebres, Johnny ainda considerou a alternativa de arrasá-los com um
canhonaço à queima-roupa. Mas logo optou novamente pela ideia original de
simplesmente reduzi-los a pó sob as poderosas lagartas do tanque ─ seria um
massacre mais "humano", um toque de "intimidade" com suas
vítimas desconhecidas. O kick de brincar com o destino das pessoas como se
fossem bonecos não tem igual. Dá o maior barato.
Johnny calculou a trajetória. Enquadrou os casebres na mira do
veículo. Acelerou até 60 km/h. Dois segundos e o trabalho estava feito.
Johnny ficou meio desapontado. Não avistou ninguém, não escutou um grito, não
viu uma gota de sangue, nada. Olhou pelo retrovisor de plasma. Havia apenas
um vazio no lugar onde estavam os casebres. Da próxima vez vou usar o canhão,
lamentou, frustrado com a falta de feedback dos motherfuckers iraquianos.
Assim que o Abrams se afastou, Sadiq ouviu um choro de criança. Mesmo
no escuro da noite sem estrelas pôde identificar a silhueta dum menino a uns
15 metros dali, onde ficava a casinha de Salah. Era Basheer, o caçula do
vizinho. Basheer e Sadiq eram os únicos sobreviventes. Mortificado, Sadiq
aguardou quase paciente enquanto um pensamento homicida longínquo, quase
imperceptível, quase sonho, se insinuava por seu cérebro aconselhando-o a
pegar uma pedra, ir até Basheer e interromper o padecimento da criança. Como que
fazendo um exercício de imaginação, Sadiq olhou em torno. Pedra era o que não
faltava naquele areial desolado de restos e fragmentos em que se transformara
seu mundo. Um segundo depois o lamento de Basheer já não o incomodava. Era
apenas mais uma flor negra do demônio na dor da paisagem.
Sadiq não sabe que ficou obsoleto. Tornou-se tão imprestável hoje
quanto um daqueles indiozinhos kaiowás que se veem encaçapados num dos
interregnos que fatalmente se formam entre o mundo ocidental e sua ideologia
de progresso acima de tudo e avanço tecnológico a qualquer preço e conforto
absoluto obtido não importa como e felicidade garantida ou seu dinheiro de
volta e bem-estar permanente como se fora o estado natural do homem desde há
cinco mil anos de civilização, kaiowás mortalmente angustiados, sem saber
como voltar para as tradições de sua tribo dizimada pelo alcoolismo e o vazio
que restou de seu politeísmo caduco nem decidir se vale a pena vagar como
fantoches indigentes e dormir em bancos de praça onde podem fazer o papel de
judas fora de lugar incinerados por boizinhos enfastiados filhos de juízes e
funcionários públicos e morar sob viadutos numa cidade qualquer, se
enforcando no galho mais baixo duma das poucas árvores que ainda restam no
entorno mal chegam à puberdade, exterminadora inclemente de todos os sonhos
infantis.
Sadiq vale menos que um mico dourado. Micos dourados e araras azuis e
tigres em extinção ainda têm valor como animais exóticos, podem servir como
troféus em zoos, como pets bizarros em algum apartamento dum bando de
americanos ou europeus dispostos a gastar dez mil dólares numa mesa de
madeira de lei extraída inteiriça duma árvore amazônica de 200 anos, que
obviamente nasceu e existe para ornar a saleta smart do flat de johnnies e
bobbies e susans.
Quando finalmente Johnny cumprir sua missão e voltar para o seu quarto
arretado de paredes recobertas de cartazes de ídolos do rock e montes de
tralhas tecnológicas espalhados por todo lugar, mamãe Maggie vai comprar uma
jiboia da Amazônia para o pobre filhote assim que ele chegar todo
estressadinho da terra das Mil e Uma Noites e seus bárbaros aladins que vagam
tontos pelas areias do deserto sobre trilhões de barris de óleo enquanto oram
por Alá e maltratam suas mulheres.
Mas mamãe Maggie sabe que Johnny logo se cansará do novo pet. O
rapazola é tão inconstante. Ainda não se decidiu na vida. E em dois meses
será impossível manter no apartamento um monstrengo do tamanho duma jiboia.
Johnny certamente vai abandoná-lo num bosque periférico de Springfield.
Talvez alguém ache o bicho e o leve para casa. Talvez cães o trucidem.
Whatever.
|
Que é?
É ter um segredo pra contar.
Ter mas na maior parte do tempo não saber. Às vezes
lembrar ter. Mas quando lembrar ter, lembrar ter muito raramente demais.
Na maior parte das vezes, lembrar ter mas não saber
onde está.
Quando lembrar ter sem saber onde está, lembrar ter
muito vagamente demais.
Quase uma sensação. Dorzinha domingueira de tão
infinda e insentida.
Pulguinha infecta no sapato.
Pedrinha insondável atrás da orelha.
Mas um dia lembrando ter mais que vagamente e
sabendo onde está, não interessar mais.
Pois que cansa. Como não haveria de cansar?
Saber permanentemente não lembrar ter e quando
lembrar ter não saber onde está e quando saber onde está não querer mais saber?
Mas em algumas ocasiões raras, raras de rir, de
querer desistir duma vez, vir tudo de supetão, com clareza totalitária de não
esquecer nunca.
Na maioria das vezes clareza remota que atordoa e
abre caminho de volta para o estado normal de fantasma sem pátria.
Mas outras vezes em que lembrar ter e saber onde
está e for importante saber e a lembrança não devastar as pequenas sombras que
todos – todos – temos e temos de ter, nessas mais que raríssimas vezes ali
está: o segredo pra contar.
Segredo pra contar que na maior parte das vezes em que
lembrar ter e saber onde está e for importante saber e a luz não devastar as
pequenas sombras não há como abrir.
Segredo pra contar que nessas vezes parece portátil – quase
que dá para roubar e sair correndo feito saci pererê... não fosse dum chumbo
especial mais pesado que o braço lasso na barriga cansado de bracejar.
Câmara de outras lembranças sem frente, traseira
nem lados ecoando na minha Via Láctea. Esmagadora mas invisível – a me
assombrar nesta terra em que tudo me assombra.
Mas em todas as vezes – repitamos –
todas as vezes, sem porta.
Então descobrir que tudo se resumia a lembrar ter e
saber onde está e ser importante saber e a lembrança não te devastar tuas
pequenas sombras.
Isto é escrever.
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