Passeando



Quase nunca tenho motivo para sair
Sendo precavido como sempre fui
Guardo tudo que preciso ao alcance das minhas mãos

Quem me vê de longe certamente pensa que sou um homem caseiro
Mesmo contra meus princípios
Mesmo contra minha vontade

Tem dia em que manter clausura é impossível, naturalmente
E hoje foi um dia desses em que tive de deixar meus domínios
Dizem que até Dalton Trevisan se vê forçado a abandonar sua citadela às vezes
Será verdade?
Sei lá. Não é coisa que me preocupe
Em outros tempos, sim, era, e muito
Vivia encafifando com Dalton
Com R. Fonseca, Jerome David Salinger
E com qualquer escritor tido por recluso
Eu mesmo fantasiava que um dia seria um deles
E a imprensa cismaria com os meus motivos

A escritor não cheguei
E dentre os reclusos não sou dos mais convictos
E mesmo que ninguém se pergunte por quê
(sequer os que me vêm de longe)
Pelo menos cumpri, digamos, um terço da fantasia
O que me deixa até meio orgulhoso
(Tudo bem, a aritmética... Vamos deixar assim suspenso.)

Quando tenho de sair
Como tive hoje
O incômodo é tanto, que em geral acabo fazendo um poema
Como este aqui

Certo, botando em palavras agora
Sei que daquela perturbação sobrou pouco mais que o conceito
E da poesia não restou quase nada

Mas, veja, tenho uma justificativa a apresentar
Que, embora não explique minha má poesia
Pelo menos mostra que sou um aspirante a vate responsável

É que tudo numa rua me assoberba
Tudo numa rua me seduz
São tantas coisas a me chamar a atenção
Que até me esqueço de vislumbrar o céu

De tudo que tenho que cuidar
Meu maior zelo é onde piso
E avançando assim cabisbaixo
Cabisbaixo como já não se fazem homens hoje em dia
Ensimesmado avanço sem dar conta do olhar

Será que devo apreciar a fachada desta casa
Só para estimar em que ano foi construída?
Ou é melhor analisar o jardim da frente
Para ver se os donos são minimamente asseados?

E assim vou andando enquanto penso
E se cruzo c'uma mulher perfumada
Então paro e fecho os olhos
Pois não quero me perder
E, diferentemente do brasileiro médio
Não troco olhares com os que vêm em contrário
Rezando para que também sintam nojo
De trocar olhares c'um desconhecido na rua

Já voltando, paro na esquina esperando a passagem dos carros
E decido, mais ou menos à minha própria revelia
Que, se deus ou qualquer outro ser superior a mim
Me der a graça de evitar que as minhas palavras sequem, virando refugo metafísico
Este será meu primeiro poema c'um gerúndio no título

Então, só para provar a deus ou qualquer outro ser superior a mim
Que estou falando sério
Chego ao portão de casa rezando assim:

São Gerúndio, padroeiro dos semipoetas praticamente pseudorreclusos
Defensor dos vespertinos inúteis
Fazei com que este meu passeio nesta tarde abafada de dezembro não tenha sido em vão 

Pequeno incidente de percurso




Literalidades

Estou passando meio distraído quando escuto ─ ou penso escutar ─ um choramingo.
Paro apreensivo. Olho em volta. Não vejo ninguém.
Dando de ombros, me volto novamente para a direção em que seguia ─ ou penso que seguia. Meus sentidos vivem me enganando. Até parece que têm um certo prazer em me pregar peças.
Retomo a caminhada. Mal completo o segundo passo, outro choramingo. Agora mais agudo.
Dou meia-volta de supetão, tentando flagrar o engraçadinho.
Ninguém. De uns tempos para cá meus delírios parecem estar ficando incontroláveis. Tem horas que a confusão beira o insuportável. A idéia de procurar um médico torna a me afligir. Será tão sério assim? Quem devo procurar? Um psicólogo? Neurologista? Um calafrio me percorre a espinha. Uma cartomante?
─ Aqui! ─ alguém chama.
Saio a custo da minha reflexão mórbida e viro para o lado de onde a voz parece vir. Estreito os olhos. Ninguém. Olho em outras direções. Nada.
─ Estou aqui! Veja!.
Desta vez consigo identificar a direção. Debaixo. A voz vem debaixo. Será alguém caído? Ferido? À beira da morte?
Só há mato em volta ─ um mato ralo e rasteiro que dificilmente poderia ocultar um corpo. Ou ─ o mesmo calafrio me sobe novamente costas acima ─ um moribundo!
─ Aqui! Estou aqui. Olhe com atenção, que me verá. Bem abaixo de você. Perto dos seus pés.
Tento me concentrar. Curvo o pescoço para baixo. Aguço o olhar. Franzo a testa. Tudo que vejo é uma pedra. Está semi-encoberta por uns tuchos de grama silvestre
─ Isso mesmo! ─ a voz diz. ─ Finalmente me avistou.
Dobro os joelhos, me abaixo. Aproximo o rosto.
─ É você que está me chamando?
─ Hãhã ─ ela faz.
─ Qual é o problema? A solidão? As intempéries? Precisa de alguém pra trocar umas idéias?
─ Olha, não lamento muito minha condição, não. Posso suportar qualquer coisa. Menos a eternidade. Não quero existir para sempre.
─ Talvez o planeta não resista tanto ─ digo em voz meiga, apiedado de tão triste lamento. ─ Quem sabe quando houver a primeira guerra nuclear...
─ Não acredito ─ a pedra tem a voz ligeiramente esganiçada, como se procurasse conter um sentimento mais agudo. ─ E mesmo que as bombas atômicas fizessem tudo soçobrar, mesmo assim o máximo que poderia acontecer comigo seria me partir em milhares de pedacinhos. Isto, como deve estar evidente, certamente seria muito pior.
─ É verdade! ─ caio em mim. Só de pensar tenho outro calafrio. ─ E se eu te moesse, te convertesse em pó? ─ Começo a me angustiar com a situação da pobre pedra.
─ Ai! ─ ela emite um ganido fremente de dor moral. ─ E se cada um dos meus grãozinhos, por mais minúsculos que fossem, padecesse desta mesma aflição? Seríamos milhões, quem sabe bilhões de novos serzinhos condenados à eternidade!
─ Puxa, não tinha pensado nisso. ─ Engulo em seco.
Apanho a pedra, escondo-a dentro do punho. Me ponho de pé, olho as redondezas. A algumas dezenas de metros há uma lagoa de águas turvas. Reúno todas minhas forças e arremesso. A pedra desenha um arco contra o céu azul e, abrindo um buraco na superfície plana da água, mergulha. Posso ouvir vagamente o “tibum” breve, efêmero. Uns pequenos jorros d'água se erguem alguns centímetros e instantaneamente desaparecem. Talvez ali nas funduras da lagoa ela encontre uma saída.


Pernilongo



Literalidades

Tempo.
Sequer te devia dirigir a palavra. Mas não há saída. Agora estou cismado. Como a vida pode ser tão irrazoável? Engendrar tão vil insetozinho.
Vem me atacar, agora que estou com a bomba de flite nas mãos.
Vem! solerte narigudo de longuíssimas pernas. E aspargirei em tua volta a névoa de querosene que será a última nuvem que verás em tua inútil existência aérea.
Achava-me em meio à mais dramática das batalhas oníricas, peleando contra bárbaros monstros ávidos por me devorar a cabeça. De repente, pressinto o fiozinho indistinto, zuindo não sei onde, subindo, zuindo, subindo, até se configurar na mais palpável das torturas.
Sonambulamente atônito, agarro múltiplas e frenéticas vezes o ar, tentado surpreender o bandido.
Vem aporrinhar-me, sorrateiro notívago, pois agora estou – acho – desperto.
Covarde! Agredir um sujeito que, mais que deitado, está caído.
Um coitado, inerme, em permanente aporrinhação quando em estado de vigília, e agora, jogado neste leito, ora esticado, ora encolhido, ora dum lado, ora d’outro, atormentado pelos próprios suspiros, suando, perseguindo a única aspiração de dormir sem sobressaltos senão uma noite inteira (pois essa dádiva só os eleitos a merecem), pelos menos umas duas ou três horas a fio. Três horinhas, era tudo que eu almejava! Mas a aleivosia de certos seres deste mundo não mo permite.
Como te atreves, pérfido invertebrado! E no escuro, que é a arma que só usam os rasteiros. És pernilongo ou barata? Fosses e te espezinhava até de manhã.
Mas pior é a desfaçatez do teu pernóstico zumbido.
E me diz, pachorrento: para que serves? Não, não quero desvendar outros segredos dos indiscerníveis desígnios do teu criador. Tampouco intento descobrir a razão desta nossa tola existência. Só quero saber para que diabos serve um pernilongo. Será para um homem poder provar a si mesmo que é macho? Só pode ser! Como tolerar que perturbem esse sono ao qual procuro sucumbir a tão duras penas, rolando por toda a eternidade nesta cama de pregos imaginários? A! Se continuas a abusar, levanto duma vez, ergo a mão em cima do guarda-roupa, apanho meu trinta-e-oito e te encho o rabo até o último cartucho, maldita miniatura dedicada a se entupir de sangue.
Quando te escuto zunir, inclemente! me dou conta, mesmo zonzo de sono, que já executaste tua macabra pilhagem. Se antes me achava apenas enfastiado com meus próprios pensamentos, agora me vejo sobre uma mesa de sacrifícios bestiais, indefeso sob as patas dum pernudo primevo oriundo de insuspeita dimensão. Só te resta te coçares, hahahá! ris do meu desespero.
E, despencando num precipício assombroso que se abre sob meus lençóis, mergulho em blasfematórios delírios.
O Enola Gay enche os ares com seu ronco justiceiro.
A excursão pelos límpidos céus do meu quarto é mansa e certa, só perturbada vez por outra quando um pelicano ou albatroz é apanhado numa das hélices de oito metros de passo. Mas subitamente, ao me aproximar de Nilongshima, me dou conta de que a calma é enganosa. Insetos kamikazes tentam atingir a medonha aeronave de todos os lados. Mesmo sendo gigantesco meu B29, o troar das quatro turbinas é sufocado pelo intenso e infernal zumbido de insanos pernilongos inimigos.
Olho para o lado e me reconforto vendo Little Boy. Afago-lhe agradecidamente a sombria blindagem negra, antegozando o estrago definitivo que produzirá na pernilonguesca cidade abaixo de mim.
Guri, give'em hell!, murmuro, como se a bomba pudesse me compreender. E ela compreende, pois, com ar satisfeito de quem sabe que o dever será cumprido, faz que sim com a cabeçorra funesta. 
Após quinze minutos de vôo, nos aproximamos do centro de Nagalongo.
Veja! exclamo, indicando com o dedo para Little Boy. Ali. O pernilongueiro imperial!
O ninho onde reina o desgraçado. Que morra! Ele e toda sua espécie.
Aperto o botão de disparo. Os dispositivos mecânicos da Minha Bomba iniciam o procedimento de liberação. Abro a boca, extasiado, sem poder desgrudar os olhos, antegozando o armagedão. O piso da carlinga se abre. Little Boy parece querer voltar a cabeça para dar adeus. Vou acompanhando a trajetória da Besta. De repente, a nuvem atômica toma conta do quarto, derretendo a cama, as paredes, meu gato (que sempre dorme comigo), eu e o pernilongo.
Toma, miserável! Safa-te desta.
Se a um pobre homem fosse dado realizar uma só fantasia na vida, eu escolheria trocarmos de papéis. Tu ficarias aí deitadão, satisfeito, no mais doce dos devaneios oníricos… até que... eis que surge um homem alado, seringa em punho, disposto a te picar as dobras do joelho, os nós dos dedos, a ponta do nariz, te sugar o sangue feito um vampiro arredio a te buzinar nauseabunda cigarra na orelha. Só para ato contínuo escafeder-se no breu da madrugada, zombando de ti enquanto estrebuchas, esbravejando pândego de sono e sanha assassina.
A! Escalafobético folgazão. Não perdes por esperar.
Queres dormir o sono dos justos? Pois toma esta espetada! Sai uma cargazinha de veneno, que é pra que largues de ser bocó.
Está feito. Agora tenta te roçar.
A, zoófago tarado, tivesse a vida te suprido de unhas, arranhar-te-ias até sangrar.
Enquanto ficas aí com teu martírio, vou dar um giro pela noite. Logo encontrarei outros pernitontos para me divertir.
Ó longa noite pernilouca.
Se te pego te mato torturo te masso te capo muleta.
Pe prego te tábua.
Te dou nós dois de perna.
Te empalo trombeto me sopro tua morte.
Te enfio me asas translúcida a goela.
A! Pernepanolengo.
Te ateio me aranho te caso lagarto me tixa te pardo.
Te acorrento me couro te sapo.
T’azucro t’ouço te safo me mato.


Perverso


Literalidades


Corpo deitado, o olhar desliza para os lados buscando distração. Quem dera alcançar o supremo milagre dos ansiosos: não pensar.
De repente, uma das folhas da veneziana é empurrada pelo vento, deixando o quarto ser invadido por um facho de luz que divide a penumbra ao meio. O olhar promíscuo mas cansado, que não quer enxergar mais, é arrastado contrafeito para o espetáculo fotoelétrico.
Súbito festival vespertino. (Sim, a tarde está na metade — o que não faz diferença para os olhos, para a luz, para ninguém.)
Relutantemente seletivo, ele, o olhar, perscruta a fita luminosa. Quer algo mórbido que possa refletir, descobrir como familiar.
Desapontado, inventa uma pradaria, vacas e bois aqui e ali, pingos alvos no verde frágil. Talvez veja tolices suficientes para desistir.
Mas ele insiste na dolorosa faina.
Insiste, insiste, até avistar os minúsculos astros de pó que, ao contrário dos planetas de verdade, viajam imprevisíveis em órbita irregular, errando pelo iluminado firmamento hexagonal que atravessa o quarto.
Ele não perde tempo. Gruda eletrizado numa das partículas, cuidando para não perdê-la de vista. E em seguida começa a acompanhar também uma outra.
E forma par.
A voz quer protestar. Mas a cabeça põe-se a trabalhar obediente.
Num dos planetas, tomando o rumo do chão e girando tresloucado como se gritasse por socorro (predestinado à auto-extinção), estou eu, minha voz, meu olhar, minha cabeça, meus restos.
Noutro, mais garboso, nonchalant, desfilando autossuficiente em direção ao teto, está você. Inteira.
O agora desvairado olhar pula frenético entre as duas partículas, tentando monitorar seus cursos antípodas.
Ela, a cabeça malsã, deusa de todas as coisas, zeladora incansável da poeira que viaja inexorável neste quarto e em todos os quartos, põe-se a rodar em sua órbita desembestada.
Forças tentam-se reunir.
O fôlego quer estufar o peito, soprar redentora ventania sobre o infernal espetáculo em que me enfiaram.
Sugar firmamento. pó. eu. Você.







A incrível história do menininho

Bom, antes de entregarmos toda a trama já no título, façamos um... é... hã... retrospecto.
Era uma vez um menininho chamado Jorginho. Igualzinho a todos os priminhos, amiguinhos, coleguinhas, etc.
Igualzinho coisa e tal exceto num d... de... detalhe... um... digamos... fisiológico.
Mais que detalhe, era... era... uma... uma ca... ca... cara... característica!
Sim, uma verdadeira característica fisiológica. Mas que não era suficiente para atrair jornais sensacionalistas, gerentes de zoológicos determinados a aposentar o velho leão desdentado e raquítico que quando muito causava comiseração no público ou donos de circo ávidos por armar uma lona em torno da primeira aberração que pudesse chamar a atenção de meia dúzia de degenerados ou débeis mentais.
Nada disso, pessoal. Jorginho tinha apenas uma ligeira diferença com seus priminhos, amiguinhos, coleguinhas, etc. Tão ligeira, que quase passava desapercebida. Jorginho tinha um... um... Bem, não vamos revelar ainda a diferença, senão é capaz de estragar o... o... hã... suspense!
Agora que já dissemos que ele era um menininho diferente, precisamos retroceder ainda mais um pouco.
Bom, em vez de retroceder um pouco, voltemos tudo duma vez, até o dia em que o s... s... singular Jorginho nasceu.
O desgraçado nasceu feinho como nascemos todos nós seres... hã... humanos. Sabe como é: carinha de quem veio ao mundo já velho, com experiência de vida quase ancestral, cinismo atávico, olhos despropositadamente grandes e intrusivos, duma curiosidade onírica e ao mesmo tempo um quê de fantasmagórico, te olhando ominosamente como se adivinhasse teus segredos mais inconfessáveis, arzinho de quem chegou mas não queria ter chegado (e pior, sem bilhete de volta), jeitão de quem te trouxe uma mensagem dum mundo estranho e...
Bom, quem já viu um recém-nascido sabe como é.
Como todos os demais bebês daquela maternidade e de todas as maternidades do Brasil e talvez do mundo, Jorginho foi submetido a uma ba... hã... ba... bateria de exames. Os médicos examinaram tudo de tudo que era jeito, propósito e grau. E constataram que, apesar da carinha de mini-totem que todos nós etc. e tal, ele era... era... era...
Bem, antes de revelar o que Jorginho era, peço que tenham mais um pouco de paciência e me permitam um breve parêntese.
Jorginho, tendo nascido zi... zi... ...zinho como ele só, passara dois ou três dias na maternidade, sob cuidados de prestimosas e garbosas enfermeiras que, como todos vocês sabem, reinam imperiais na fantasia de muitos marmanjos sem-vergonha e doentios por aí.
Mas é bom ressalvar desde o início, para que depois não me acusem de sofista mau-caráter: quem está pensando que a aludida característica tem algo a ver com... com... hã... e que a diferença de Jorginho era tamanha, que... que... um... embora, também é bom que se diga desde já, algumas das mencionadas enfermeiras, no seu mais profundo íntimo, tivessem pensado “Oh!” e dois dos enfermeiros — homens feitos — até se entreolharam com cara de cumplicidade e exclamaram: “Ai! Ui!”, bom, quem estiver pensando isso ou qualquer outra coisa, que pense o que quiser, pois vivemos num país democrático em que todos temos direito ao livre arbítrio, se é que o amiguinho leitor e a amiguinha leitora me entendem.
Fechado o parêntese, continuemos.
Todos na família de Jorginho estavam felizes. O pai do... hã... Bem, o pai era um orgulho só. “Um varão, um varão!”, regozijava-se. (E antes que me acusem de desvirtuamento ideo/mercadológico, devo dizer que... um... ãn..., recomendando que vocês... hã... Bom, vocês sabem.)
A mãe... Bem, a mãe não cabia... hã... um... em si de... fe... felicidade.
Por alguns dias a rotina cedeu lugar ao inebriante espírito novidadeiro. A mãe, que antes não podia ver a sogra nem pintada de... um... o... ouro, agora deixava a velha trocar as fraldas do bebê; o pai e o sogro (do pai, não de Jorginho, que ainda não se casara), que antes... bem, nutriam ódio quase mortal um pelo outro, agora trocavam olhares enternecidos e até... hã... Resumindo: a família estava em festa, e mesmo parentes de quem não se ouvia falar havia décadas apareceram para dar boas-vindas ao guri.
Com o interminável entra-e-sai e a reviravolta na casa causada pela chegada do... um... recém-nascido, ninguém se deu conta de que... hã... um... sabe como é... tem coisas na vida que as pessoas custam a ver (e muitos, quando vêem, vêem mas não querem acreditar...).
Algumas semanas depois, o pai de Jorginho e o sogro do pai de Jorginho estavam na sala falando algumas dessas abobrinhas que todos estamos fadados a falar mais dia menos dia quando escutaram um... um... lan... lancinante berro vindo do banheiro. Puseram-se incontinenti em pé e correram para o... hã... banheiro. E o que viram ficaria marcado em suas mentes por to... todo o... o... se... sempre: depararam com a sogra da mãe de Jorginho encostada na parede do bóx cor-de-rosa, mãos tapando a boca, olhos arregalados fitando pas... pas... pas... pasma a criança que... que br... bri... brin... brincava na banheirinha plástica!
O pai e o avô (de Jorginho) olharam para a sogra (do pai) e mulher (do sogro) e exclamaram:
— Oh!
O avô, de tão desconcertado, deu um passo para trás, como se quisesse guardar distância segura. O pai, por sua vez (dele pai, não de você aí amiguinho leitor e cara, caríssima amiguinha leitora), deu um passo à frente, querendo olhar mais de perto. (O que prova, amiguinho leitor e bilolotinha do papai, que embora ambos tivessem exclamado “oh!”, fizeram-no levados por razões obviamente distintas e, ao que parece, mesmo antagônicas.)
A mãe de Jorginho, que estava no quarto lendo no jornal a última piada do Veríssimo (Veríssimo que, diga-se, era para a mãe de Jorginho o ideal literário de todas as mães do Brasil), e que já ficara de sobreaviso ao escutar o berro lan... lan... um... lancinante da avó de Jorginho, ficou decididamente alarmada com o “oh!” exclamado pelo pai e pelo avô de Jorginho e saiu desembestada pelo corredor do andar superior (pois, embora ainda não tenhamos tido a oportunidade de descrever a casa de Jorginho, tratava-se dum sobrado, localizado... hã... Bem, não vem ao caso no momento (afinal, pra que haveríamos de publicar o endereço do miserável? Só pra você, amiguinho leitor e curiosa lolitazinha, irem lá e acabarem com a raça do infeliz?))), perguntando aos gritos:
— Que foi? Que foi?
Avistando o sogro, que, recostado à parede do corredor, olhava atônito para dentro do banheiro, a mãe pôs as mãos no peito (que, cá pra nós, amiguinho leitor e deliciosa lolinha, não era de jogar fora, ainda mais com as mamas intumescidas que estavam de leite) e gemeu:
— Ai! Acho que vou desmaiar! (E olha que ela ainda nem tinha visto o que os demais tinham visto no Jorginho. Imaginem só quando visse!)
— Não é nada demais, benhê! — disse o marido, que saíra do banheiro ao escutá-la. — Está tudo oquêi. Sua mãe é que faz escândalo por nada...
Sem querer acreditar nas palavras do pai de Jorginho, ela correu para o banheiro e olhou. E olhou para a mãe, que continuava encostada na parede do bóx cor-de-rosa, ainda pasma, olhos ainda arregalados. E olhou novamente para a... a... criança. E pôs a mão sob o... hã... um... queixo, matutando.
Matutou, matutou, até que disse:
— Bem, até que não é tão mau assim.


Passaram-se alguns meses. (Sei que parece meio rápido, mas, sacumé, Jorginho tá com pressa.)
Jorginho ficava cada vez mais um... hã... ca... característico. Na família não se falava de outra co... hã... coisa.
Não demorou muito e virou o assunto um... pr... pre... pred... predileto do bairro. Depois, coqueluche da cidade. Depois, febre do país.
O bestinha (que ainda era bebê, e bebê deveras chorão, mas que recebera o apelido de “bestinha” por mero acaso e não por ser aleijado ou coisa assim) nem bem completara um ano e já ficara conhecido, vejam só se pode, como Jorjão.
Vinha gente de longe ver. Desconhecidos se aglomeravam na porta da casa. Alguns até a forçavam o portão. Outros pulavam o muro (que o pai de Jorjão foi obrigado a levantar e guarnecer daquelas lanças espanta-ladrão).
Todos queriam conhecer a criança diferente. O jornacional dedicava quarenta minutos ao tema todas as noites. A notícia corria o mundo. Choviam jornalistas de todas as partes. Carretas gigantescas carregadas de toneladas de equipamentos televisivos estacionavam diante da casa. O pai de Jorjão erguia cada dia mais os muros, que já atingiam vinte metros de altura.
O avô, que sempre tivera queda por tirar proveito do que quer que o destino lhe oferecesse e que não era muito chegado ao trabalho duro, começou a dar entrevistas, cobrando três paus por cada uma. Em apenas uma semana já não havia mais vaga em sua agenda pelos próximos três anos. Contra ordens expressas do genro, que preferia aguardar que a febre popular atingisse o zênite antes de revelar a criança para as câmaras de tevê, o velho arrumou uma polaróide e às escondidas tirava fotografias de Jorjão, vendendo cada uma por dez paus. Logo o espertalhão começou a pagar cerveja para todo mundo na padaria e ensinar aos amigos como trilhar os misteriosos caminhos da prosperidade.
A avó assistia a tudo e balançava a cabeça, condenando em tom fatalista:
— Isso ainda vai acabar um... hã... mal! Muito hã... mal!
A mãe estava confusa. Pressentia que aquilo tudo não estava certo. E pior: que nada daquilo não estava errado. Sua mãe (mãe dela, etc.) talvez tivesse razão. Por outro lado, precisavam reformar a cada da praia. Não que tivessem uma, mas sabia que teriam de reformá-la quando a tivessem. E quando essa hora chegasse, que fariam sem dinheiro? E que dizer das novas cortinas da sala, das viagens a Miami, das doces tardes que sempre sonhara passar no chópingue igual às madames do bairro?
Quanto ao pai do porqueirinha, esse mirava o futuro com olhar longo e manso de quem vê o navio da felicidade despontar no horizonte, abarrotado de contêineres cheios de bufunfa, singrando celeremente os mares rumo ao porto seguro da riqueza. O jornacional telefonava de manhã à noite querendo filmar o bebê-sensação. To dia tevês, revistas, jornais do mundo todo enviavam cartas, telegramas, emails às dezenas, às centenas, aos milhares, às dezenas de milhares e assim por diante. Universidades solicitavam testemunhos. Empresas ofereciam até vinte paus por palestras. Políticos assediavam para que o dito-cujo se candidatasse a vereador, deputado, etc.
Para lidar com tantos contatos, o pai contratou uma secretária, que logo contratou outra, que contratou outra, que... bem... contratou outra.
A sala de estar do sobrado converteu-se em central de atendimento, com dezenas de funcionários se acotovelando em quinze metros quadrados. Em poucos dias alguns deles tiveram de ser transferidos para cima. Os avós foram obrigados a cair fora para ceder espaço aos operadores de computador. O banheiro debaixo foi ocupado por motobóis. Quando não havia mais um só centímetro disponível, o pai de Jorjão contratou uma construtora e mandou erguer mais dois andares na casa.
A rua foi interditada pela prefeitura. Brotava gente de todos os lugares, de todas as nacionalidades, de todos os costumes: homens de saia, mulheres de burca, homens e/ou mulheres com longas túnicas de seda, grupos trajando ternos negros feito as asas da graúna e uma multidão de cu... um... hã... curiosos.
A polícia viu-se obrigada a ampliar a área interditada. O secretário de segurança exigiu que os moradores do bairro usassem crachás de identificação. Os vizinhos começaram a reclamar dos transtornos — a gritaria, a correria chegavam a níveis quase insuportáveis.
A turba aglomerada diante da casa exigia aos berros:
— Queremos ver Jorjão! Queremos ver Jorjão!
O pai era obrigado a sair à porta e pedir calma, explicando:
— Ainda não chegou a hora! Dentro de alguns dias. Esperem só mais um pouco!
Entrementes, Jorjão, que não tinha nem quarto, nem berço, nem nada, continuava a brincar na banheirinha plástica.
Um dia o pai recebeu um visitante que simplesmente não podia dispensar. Era um emissário do presidente da república.
— Vamos entrando, doutor. Vamos entrando!
O homem, limitando-se a fazer um gesto seco com a cabeça, preferiu adentrar em vez de entrar, pois que se tratava d’autoridade. E sem se dar o trabalho de sentar na poltrona que o pai lhe indicara, meteu na bucha:
— Ou o senhor revela o menino ou vamos resolver na marra!
Atônito, o pai de Jorjão caiu sentado na poltrona que oferecera ao emissário. Depois de meio minuto incapaz de reagir, perguntou:
— Mas por quê? Ainda não... não...
— O presidente perdeu a paciência! Quer ver o menino na tevê amanhã!
Dizendo isso, o emissário deu as costas e retirou-se.
O pai de Jorjão subiu correndo as escadas e chamou a mulher.
— E agora? — perguntou depois de contar o ocorrido.
– Agora é fazer o que disse o presidente — a mulher recomendou, ponderada que era.
Vendo que de fato não tinha outra opção, o pai chamou a secretária e ordenou:
— Ligue para o jornacional. É chegada a hora!
A secretária mal acabara de desligar o telefone quando escutaram a colossal carreta da tevê roncando em frente a casa, acelerando e jorrando fumaça quinze decassílabos de gás carbônico intoxicante no ar feito um animal impaciente.
O porteiro abriu a porta para repórteres e cinegrafistas.
— Onde ele está? — o chefe da equipe quis saber.
— Aqui em cima — o pai disse, surgindo no alto da escada. — Venham!
Todos saíram em disparada escada acima, galgando os degraus de dois em dois, três em três e quatro em quatro, dependendo do tamanho das pernas.
E então, chegando ao bã... bã... banheiro...
Pois é, leitorzinho amigo e leitorzinha amiguinha fofudinha. Você já pode adivinhar o que aconteceu. Infelizmente é assim que as coisas são na vida real. Se isto fosse uma fábula fabulosa e não um mero relato factual, poderíamos ter inventado um happy ending bem mais happy. Mas sabe como é...



Projeto para viver

Literalidades

(talvez nem tudo esteja perdido)

Alguns pensamentos, princípios e emoções que vimos guardando desde quando acordamos na vida se assemelham àquele parafuso que ocasionalmente achamos num canto qualquer da casa ou na rua e nos damos o trabalho de agachar, apanhar e meter no bolso.
Quem sabe essa porcaria um dia vai me resolver um problemão numa hora de aperto? pensamos meio a contragosto mas satisfeitos com nossa própria previdência.
Então, levados pela inércia, durante alguns momentos acalentamos o que há de bom dentro de nós, acreditamos que vale a pena interferir no curso dos acontecimentos, nos convencemos da nossa própria viabilidade. A sensação é deveras rara e valiosa, precisamos alimentá-la para que não se esvaia feito um fio d'água deslizando na terra seca. E assim, tomados de repentino gosto pelos cálculos, começamos a somar crenças que não sabíamos existir, a limpar da cabeça um incômodo niilismo que em algum lugar persiste intocado. E por reles momentos nos orgulhamos da nossa própria sapiência, até com uma ponta de desprezo por pessoas que são menos precavidas do que nós.
Daí em diante, podemos escolher entre dois caminhos: 
a) continuamos a zanzar pelo nosso mundo de sempre, carregando no bolso o parafuso qual um vade mecum, meio esquecidos do motivo que nos levou a apanhá-lo. Um dia nos cansamos e o deitamos fora, irritados com a mania de nos apegarmos a objetos que, por terem cor, peso, cheiro, substância, por poderem ser recolhidos e sentidos dentro do nosso punho, servirão de contrapeso à arisca esperança que teima em desmilinguir, ou
b) na primeira oportunidade, o largamos distraidamente numa gaveta qualquer. Assim, damos continuidade ao ânimo que nos levara ao apanhá-lo do chão. Realimentamos a fugaz sensação de viabilidade que naquele momento tinha um lugar no projeto que fizemos de nós mesmos.
Se escolhemos a segunda opção podemos até mesmo celebrá-la como um segundo passo concreto em nosso projeto e então o cálculo recomeça: mais uma pá de fertilizante, outra abrangente mirada até nossos horizontes, mais outra espiada dolorosa em algum lugar dentro de nós. Talvez nem tudo esteja perdido.
Passado certo tempo, suficiente para nos esquecermos de que somos prevenidos, um dia abrimos a gaveta. Mais uma vez, estamos sozinhos com nossa solidão, exercendo nosso papel de procura. Dentro da gaveta vemos o caos — nosso caos particular —, formado das quinquilharias com que matamos o interminável tempo de que dispomos e do qual não sabemos o que fazer. Sempre que abrimos a gaveta nos dá vontade de dar fim naquela tralha, mas outra vez somos vencidos e fingimos enxergar um valor em cada caixinha, cada botão, cada clip, alfinete, resto de lápis, papelzinho dobrado... e o parafuso.
Ah, eis minha salvaguarda! pensamos aliviados, sentindo algo cutucar em algum lugar bem no fundo. É um vago sentimentozinho que sabemos estar ali mas que nunca identificamos claramente — mais um diamante de brilho opaco no tesouro que roubamos de nós mesmos.
Um dia ainda arranjo uma utilidade para essa porcaria!
E fechamos automaticamente a gaveta.
Engavetados, esses pensamentos, princípios e emoções são nossa reserva. Guardam a origem do que somos e do que queremos ser, nos habitam invisíveis, intrusos e ausentes, reinando insuspeitos e acalentados em nossa cabeça, totens inteiros a nos provar que somos incompletos, bica de esperança não sabemos de quê.


Pré-paraíso

Literalidades

De repente algo estranho. Aguço os ouvidos, atento às imorredouras manifestações do ambiente. Carros ainda passam na rua. Crianças na vizinhança ainda fazem o habitual alarido. Aviões ainda cruzam o céu. Alguém ainda escuta música sertaneja ao longe. Bem-te-vis assobiam tecendo a manhã nesta bela masmorra.
Os sons estão todos no lugar. 
Olho o quarto – paredes encardidas como o são há anos, as coisinhas miúdas com que me entretenho dia a dia cada qual no lugar errado como sempre estiveram, as folhas das venezianas misteriosamente manipuladas pelo vento que teima em tê-las entreabertas. E lá fora também tudo parece estar como sempre esteve. E o mundo também continua parado fazendo de conta que gira.
Então olho para dentro. Espanto! Não há nada aqui. Onde estão minhas aflições? Olho de novo, com mais vagar. Cadê aquelas sensasõesinhas intangíveis que me mantinham permanentemente alerta sem saber contra o que, as fieiras de sirenes e luzinhas alarmantes desfilando incessantes – dentro deste familiar pavilhão? Cadê os sinais de atenção, cuidado, não-baixe-a-guarda?
Atento mais demoradamente. Dou por outras ausências. Minhas dores – cadê minhas dores? Onde está a infalível solidão que fazia parte de mim tanto quanto estes braços pálidos, estas pernas tíbias, e sem a qual não posso viver? E o árido sentimento de abandono que me acompanha desde que existo? E todas aquelas imagens variegadas de terror que sobrevoavam os negros céus da minha imaginação às que, de ominosas, nunca ousei dar formas ou cores nem chamar pelo nome? 
Noto ainda outras faltas. Os medos. Onde estão Eles? Todos aqueles… aqueles… aquilo que fazia de mim permanente refugiado de lanças invisíveis, exilado em inefáveis ilhas sem margens nem horas, fugitivo de assassinos sem rosto obcecados por matar o que sempre foi morto, ladrões encapuzados ávidos por roubar o que nunca foi meu, temores que me tornavam eterno persona-non-grata das minhas assombrações, desterrado em minha terra, perseguido em meu esconderijo?
E as velhas tentações intoleravelmente extravagantes de cometer o mais hediondo dos crimes para pôr um fim definitivo à angústia de ser livre?
E as indefectíveis vontades de amor, de boceta, de doce, de dinheiro, de ser bacana, de ser picasso, presidente, piloto, de dizer mãe, eu estou aqui?
E os pesos do passado? Que fim deram os grilhões a me acorrentar ao ontem infinito? E as escassas alegrias descascando do espírito feito gesso do teto, as partidas de futebol em que eu era a bola?
E os filmes em branco? Onde estão todos aqueles filmes em branco que assisti na infância?
Sacudo a cabeça, tudo volta ao velho estado de normalidade premeditada. Em seguida atento novamente. Como se tivesse entre os dedos um botão de sintonia fina, experimento para um lado: nada. Para o outro: nada. Todas minhas velhas aflições estão extintas.
Por um segundo me passa um frio no estômago, penso no pior. Me sintonizo de novo. Não, estou bem. Ufa. Estou bem.
Ter perdido os lastros das minhas dores me deixa leve. Parece que vou flutuar. Não, já estou flutuando. Se amolecer posso sair voando pela janela. Algo no fundo fala "realidade". Não me enche o saco, é só o que peço.
Os alarmes não vão disparar. Está decidido. Não permito. Estou no comando agora. Pelo menos alguns minutos vou flanar, velejar, esquiar, tudo que sempre quis fazer e nunca fiz.
Então isso que é plenitude? A ausência da noção do tempo. A percepção repentina e esmagadora de que não necessito andar. Para quê? Coisa besta. Para que corrigir, reformar, apagar os incêndios, buscar abrigo dos raios? Para que perguntar? Não quero mais castigos e festas. Para que falar?


Qasim, Murtaza, Laith


...e Johnny e outras coisinhas exóticas
Terça à tarde, Humam, pai de Sadiq, chegou assustado do mercado e se atirou no sofá. Arquejava. Escapara por um triz. Saiu do mercado alguns segundos antes que uma bomba fizesse a velha edificação em pedaços. Sadiq ouviu aterrado, tentando engolir em seco. Não tinha mais saliva. Abriu a boca, pôs a língua fora, procurando umedecê-la. O ar exterior parecia querer consumi-lo. Sadiq olhava em torno buscando algo ou alguém que lhe desse um refresco. "Trégua", pensou. "Por Alá, trégua".
Quando o susto passou, Humam começou a falar estranho. Se pôs a contar uma história que a princípio parecia não ter pé nem cabeça para Sadiq. Humam disse que quando Haythim, o filho de Salah, nasceu há 13 anos, ele, Salah, saiu na rua aos berros, dizendo que estava com vontade de tocar um gongo, como se quisesse anunciar a Alá e ao mundo o nascimento do filho. Queria que tudo em volta reverberasse tal como ele estava vibrando por dentro. Era muito forte. Precisava partilhar com os outros. Naquela manhã o casebre de Salah virou escombros. Salah, Haythim, a mulher e outros filhos estavam mortos. Por pouco a granada que atingiu a casa dos vizinhos não destruiu também o casebre de Sadiq. Enquanto pensava em Haythim, seu amigo, e escutava a história estranha contada por Humam, Sadiq pensava que só queria chorar. Mal conseguia se lembrar do choro e de como era chorar. Estreitava os olhos ─ as lágrimas não vinham.
Johnny não vê a hora de atingir a idade legal mínima, se alistar, botar as garras no volante dum Abrams. Sempre foi fissurado por tanques de guerra. Se orgulha do bom conhecimento que tem deles. Sabe, por exemplo, que o melhor da Segunda Guerra foi o soviético T34. Certo, há controvérsias. Para Bobby, seu colega de escola mais chegado, o melhor foi o alemão Panther. Nada a ver, Johnny ri quando Bobby diz isso. O Panther não era páreo para o T34 em termos de mobilidade, poder de fogo, blindagem, confiabilidade e, acima de tudo, velocidade. É só comparar. E o Panther tinha um calcanhar de Aquiles: a complexidade de projeto. Assim como na área automobilística e na naval, a engenharia alemã sempre foi incapaz de desenvolver produtos simples, de fácil manutenção. Não é à toa que um Mercedes da década de sessenta incluía nada mais, nada menos que 15 mil peças, ao passo que um Chevy americano, apenas 5 mil. Tudo que alemão faz é complicado. Basta ver a filosofia. Mas esse é outro papo. O que interessa hoje em dia é o rei do pedaço, o M1A1 Abrams ─ joia da tecnologia descomplicada e eficiente de Tio Sam. Simplesmente perfeito. Se fosse fabricado nos anos quarenta a Segunda Guerra teria acabado 3 anos mais cedo.
O M1A1 Abrams é construído em blindagem de urânio empobrecido revestida de aço laminado. O urânio empobrecido é dos materiais mais eficientes em termos de proteção contra os armamentos desenvolvidos especificamente para destruir esses veículos. Só um míssil antitanque pode tirar o Abrams de combate. Não há projétil leve ou médio capaz de perfurar ou sequer danificar esse colosso de 70 toneladas. Isso mesmo ─ 70 toneladas, 25 a mais do que um Panther. E o bichão conta ainda com defesas contra ataques nucleares, biológicos e químicos. As gloriosas batalhas entre veículos blindados da Segunda Guerra provavelmente não teriam tido graça com os Abrams no pedaço. Onze pés de largura por 26 de comprimento, o sonnabitch é uma autêntica fortaleza, o mais formidável canhão móvel que já rodou suas enormes lagartas por este planeta. Foi batizado em homenagem ao general Creighton Abrams, ex-Army Chief of Staff e comandante do 37º batalhão blindado dos EUA. Fabricado em três versões. O M1A1, a mais recente, é equipado com Thermal Imaging, navegação GPS e comunicação digital.
Johnny delira. Não há páreo no mundo para o Abrams. Whew, 26 pés de comprimento quando a torre do canhão está apontada avante, 50 toneladas métricas. Para pôr esse titã em movimento é preciso uma força que seja tão colossal quanto ele próprio. Para isso o Abrams é dotado dum propulsor de 1500 cavalos de força, turbinado a gás. Essa fantástica máquina confere ao veículo potência para atingir até 70 km/h. Acelera de 0-32 km/h em parcos 7 segundos. E tem autonomia de 440 quilômetros. Fe-no-me-nal. 
O armamento principal do mother-fucker é um canhão de 120 mm capaz de disparar diferentes tipos de granadas, incluindo cápsulas penetrantes também feitas de urânio empobrecido. Uau, Johnny quase não se contém de excitação. O urânio empobrecido é 2,5 vezes mais denso que o aço ─ um dos materiais de mais baixa penetrabilidade já desenvolvidos. O M1A1 é ainda equipado com várias metralhadoras e lançadores de granada de fumaça. Pode superar obstáculos de um metro de altura e cruzar valas de 3 metros de profundidade. Para efetivar todo esse poder de destruição e botar pra quebrar, o Abrams conta com uma tripulação de 4 membros: comandante, armador, carregador e piloto, todos protegidos por roupas e máscaras próprias para suportar substâncias radiativas, biológicas e químicas. Dos 1955 M1A1 usados em combate na Guerra do Golfo, apenas 18 sofreram danos suficientemente sérios para tirá-los de ação. E não houve sequer uma baixa entre todas as tripulações. 
A belezinha custa apenas 4 milhões de dólares, uma pechincha frente a montanha de grana que os americanos torram com armamentos todos os anos.
Esses são os pensamentos que vagam pela mente de Johnny enquanto ele assiste alheio ao noticiário da tevê através do monitorzinho do seu celular, mastigando enfastiado um enorme biguemaque respingando rios de ketchup com mostarda e engolindo roboticamente os 2 litros de coca com muito gelo. Enquanto come quase sem vontade, Johnny tenta afastar dos pensamentos as implicações que ingerir toda aquela carga calórica trarão para a sua nada esbelta silhueta. Como a maioria de seus conterrâneos, Johnny é obeso feito uma porca.
Assistindo às mesmas notícias ao vivo através de sua janela sem moldura nem parapeito nem vidraça, Sadiq mal consegue abominar aquela gente estranha que está invadindo seu país. Sadiq tem ódio aos invasores mais por treinamento que, ó, forças das circunstâncias.
No meio da noite um Abrams apareceu do nada, magnânimo, ominoso, rugindo a força avassaladora do demônio. Veio solerte e desdenhoso, atropelando o casebre de Sadiq, dizimando o jogo de sofá e o sofá onde horas antes Humam tinha contado a estranha história de Haythim e que fora herdado pela mãe de Sadiq de sua mãe e as cadeiras na cozinha ganhas do primo Manaf e o guarda-roupa que ele agora não lembra de onde veio. O monstro veio assim, brincando, indiferente aos estalos da mesa sendo espatifada e dos ossos de Sajida e Jasim e Bashar quebrando em dois, três, mil pedacinhos, veio se exibindo como para um desfile, encarnação metálica da imponência, agora avançando contra os casebres vizinhos, fazendo paçoca sunita de Zaid, Laith, Feras, Mutaz, Jafar e outros amigos e/ou conhecidos de Sadiq sob sua gigantesca carcaça de urânio empobrecido, fruto da mais elevada, da mais fascinante tecnologia espacial, reduzindo, VRUMMMM, a refugo cada utensílio, item, peça, ferramenta engendrada pela tosca civilização mulçumana e, VRUMMMM, a escombros o grupelho de casebres quase flutuando perdido nas ondas de areia do deserto e, VRUMMMM, a cadáveres desfigurados os moradores sob o peso de suas lagartas gemendo com a lubrificação eternamente escassa no inferno de 40 graus das proximidades de Badgá.
Quando avistou o conjunto de casebres mal enfileirados no meio do vasto descampado desértico, Johnny não pôde resistir. Não tinha ordens para destruir habitações nem atacar a população civil de qualquer maneira que fosse. Mas as casinhas estavam tão convidativas ─ pareciam estar à espera daquela ocasião especial, praticamente suplicando que o Abrams as violasse qual um invencível estuprador cor da areia do deserto. Antes de acachapar os casebres, Johnny ainda considerou a alternativa de arrasá-los com um canhonaço à queima-roupa. Mas logo optou novamente pela ideia original de simplesmente reduzi-los a pó sob as poderosas lagartas do tanque ─ seria um massacre mais "humano", um toque de "intimidade" com suas vítimas desconhecidas. O kick de brincar com o destino das pessoas como se fossem bonecos não tem igual. Dá o maior barato.
Johnny calculou a trajetória. Enquadrou os casebres na mira do veículo. Acelerou até 60 km/h. Dois segundos e o trabalho estava feito. Johnny ficou meio desapontado. Não avistou ninguém, não escutou um grito, não viu uma gota de sangue, nada. Olhou pelo retrovisor de plasma. Havia apenas um vazio no lugar onde estavam os casebres. Da próxima vez vou usar o canhão, lamentou, frustrado com a falta de feedback dos motherfuckers iraquianos.
Assim que o Abrams se afastou, Sadiq ouviu um choro de criança. Mesmo no escuro da noite sem estrelas pôde identificar a silhueta dum menino a uns 15 metros dali, onde ficava a casinha de Salah. Era Basheer, o caçula do vizinho. Basheer e Sadiq eram os únicos sobreviventes. Mortificado, Sadiq aguardou quase paciente enquanto um pensamento homicida longínquo, quase imperceptível, quase sonho, se insinuava por seu cérebro aconselhando-o a pegar uma pedra, ir até Basheer e interromper o padecimento da criança. Como que fazendo um exercício de imaginação, Sadiq olhou em torno. Pedra era o que não faltava naquele areial desolado de restos e fragmentos em que se transformara seu mundo. Um segundo depois o lamento de Basheer já não o incomodava. Era apenas mais uma flor negra do demônio na dor da paisagem.
Sadiq não sabe que ficou obsoleto. Tornou-se tão imprestável hoje quanto um daqueles indiozinhos kaiowás que se veem encaçapados num dos interregnos que fatalmente se formam entre o mundo ocidental e sua ideologia de progresso acima de tudo e avanço tecnológico a qualquer preço e conforto absoluto obtido não importa como e felicidade garantida ou seu dinheiro de volta e bem-estar permanente como se fora o estado natural do homem desde há cinco mil anos de civilização, kaiowás mortalmente angustiados, sem saber como voltar para as tradições de sua tribo dizimada pelo alcoolismo e o vazio que restou de seu politeísmo caduco nem decidir se vale a pena vagar como fantoches indigentes e dormir em bancos de praça onde podem fazer o papel de judas fora de lugar incinerados por boizinhos enfastiados filhos de juízes e funcionários públicos e morar sob viadutos numa cidade qualquer, se enforcando no galho mais baixo duma das poucas árvores que ainda restam no entorno mal chegam à puberdade, exterminadora inclemente de todos os sonhos infantis.
Sadiq vale menos que um mico dourado. Micos dourados e araras azuis e tigres em extinção ainda têm valor como animais exóticos, podem servir como troféus em zoos, como pets bizarros em algum apartamento dum bando de americanos ou europeus dispostos a gastar dez mil dólares numa mesa de madeira de lei extraída inteiriça duma árvore amazônica de 200 anos, que obviamente nasceu e existe para ornar a saleta smart do flat de johnnies e bobbies e susans.
Quando finalmente Johnny cumprir sua missão e voltar para o seu quarto arretado de paredes recobertas de cartazes de ídolos do rock e montes de tralhas tecnológicas espalhados por todo lugar, mamãe Maggie vai comprar uma jiboia da Amazônia para o pobre filhote assim que ele chegar todo estressadinho da terra das Mil e Uma Noites e seus bárbaros aladins que vagam tontos pelas areias do deserto sobre trilhões de barris de óleo enquanto oram por Alá e maltratam suas mulheres.
Mas mamãe Maggie sabe que Johnny logo se cansará do novo pet. O rapazola é tão inconstante. Ainda não se decidiu na vida. E em dois meses será impossível manter no apartamento um monstrengo do tamanho duma jiboia. Johnny certamente vai abandoná-lo num bosque periférico de Springfield. Talvez alguém ache o bicho e o leve para casa. Talvez cães o trucidem. Whatever.


Que é?

É ter um segredo pra contar.
Ter mas na maior parte do tempo não saber. Às vezes lembrar ter. Mas quando lembrar ter, lembrar ter muito raramente demais.
Na maior parte das vezes, lembrar ter mas não saber onde está.
Quando lembrar ter sem saber onde está, lembrar ter muito vagamente demais.
Quase uma sensação. Dorzinha domingueira de tão infinda e insentida.
Pulguinha infecta no sapato.
Pedrinha insondável atrás da orelha.
Mas um dia lembrando ter mais que vagamente e sabendo onde está, não interessar mais.
Pois que cansa. Como não haveria de cansar?
Saber permanentemente não lembrar ter e quando lembrar ter não saber onde está e quando saber onde está não querer mais saber?
Mas em algumas ocasiões raras, raras de rir, de querer desistir duma vez, vir tudo de supetão, com clareza totalitária de não esquecer nunca.
Na maioria das vezes clareza remota que atordoa e abre caminho de volta para o estado normal de fantasma sem pátria.
Mas outras vezes em que lembrar ter e saber onde está e for importante saber e a lembrança não devastar as pequenas sombras que todos – todos – temos e temos de ter, nessas mais que raríssimas vezes ali está: o segredo pra contar.
Segredo pra contar que na maior parte das vezes em que lembrar ter e saber onde está e for importante saber e a luz não devastar as pequenas sombras não há como abrir.
Segredo pra contar que nessas vezes parece portátil – quase que dá para roubar e sair correndo feito saci pererê... não fosse dum chumbo especial mais pesado que o braço lasso na barriga cansado de bracejar.
Câmara de outras lembranças sem frente, traseira nem lados ecoando na minha Via Láctea. Esmagadora mas invisível – a me assombrar nesta terra em que tudo me assombra.
Mas em todas as vezes – repitamos – todas as vezes, sem porta.
Então descobrir que tudo se resumia a lembrar ter e saber onde está e ser importante saber e a lembrança não te devastar tuas pequenas sombras.
Isto é escrever.