Antes de ler Genet

Ia à Praia Grande sabendo que ainda restava um lugar meu neste meu mundo sem nada meu.

Não me lembro se pisava descalço na areia e logo olhava o mar como qualquer ser humano faz. Só me lembro que a primeira sensação avassaladora era o cheiro do ar, sem igual alhures. A segunda, o murmúrio das ondas nos ouvidos. A terceira, a maciez da areia sob as solas dos pés. E a quarta, enfim: a imensidão das águas impossível de abarcar num vislumbre.

A improvável hierarquia de mim me escapava instantaneamente, restituindo de pronto meu caos interior à normalidade. Disso me lembro bem, pois só então me sentia parte do meu oceano deflagrado.

Tenho medo de virar fanático, Susan

Aos quatro anos a primeira pergunta da vida. Dúvida-falo. Deflorou irremediavelmente algumas raras e ralas ilusões-hímen que jamais se abrigaram aconchegantes em cérebros-bucetas. Por que nascer?

Ele crispou os lábios, desviando o olhar naquela expressão de animal atormentado e arisco de que os olhos viriam a ser testemunhas dia após dia na relação de progenitor desajeitado e inepto versus filho impaciente e intolerante, expondo um seu lado amargo e, intratável, e que, desempenha papel importante nesta incapacidade de encarar dores. Aguardou alguns segundos para fingir que estava pensando numa resposta, por dentro provavelmente implorando que a pergunta feita pela boca contorcida de raiva fosse apenas uma bobagem infantil, torcendo para que a cabecinha fantasiosa providenciasse rapidamente uma outra, agora amena, menos visceral, tipo pai, existem números depois de cem? mas, olhos olhando de soslaio com olhinhos desamparados - e então percebeu-se tudo que significa um olhar de soslaio, produzindo um conformismo covarde com a ideia de que enxergar de relance em meio à bruma dum padecimento amorfo é suficiente -, dando-se conta aflito de que nada mais escaparia da boquinha torta, pigarreou como sempre fazia em situações incômodas e sem nenhum outro gesto supérfluo saiu do quarto, deixando olhos olhando paredes atônitos e a certeza de que - hélas! - a mosca fora acertada.


Quem nunca olhou para o pai e tascou na bucha, por que você me fez nascer? Quando a pergunta é feita já não há resposta. A única opção é dar as costas e fugir ou balbuciar três sílabas incompreensíveis como se a clareza da resposta não fosse importante. Ou -única atitude conveniente - silenciar.


Atos e fatos prosseguiram normalmente por alguns dias e a memória tenta lembrar que papai sem mais nem por que pegou no colo o infante infame e jurou que nunca mais o largaria.


Muitos anos depois, já adulto, quando tocou no assunto, mamãe disse, você não saía do colo dele. Mesmo doente, quase cego, o velho te levava para cima e para baixo como que condenado a pagar um pecado. Quando você fez cinco anos comecei a tentar dissuadi-lo de deixar de te carregar feito um fardo. Ele não dava importância, dizia que te levaria até teus trinta anos se fosse preciso, te conduziria à escola na infância e quando crescesse, ao trabalho, ao cinema, ao futebol, peregrinaria dezenas de milhões de quilômetros por todo o país ou onde quer que fosse até você cansar ou morrer e se um dia você decidisse sair do colo dele espontaneamente, nesse dia ele abriria aquela garrafa de vinho que vinha guardando desde moço e os s fariam um brinde à tua maturidade, que he ain't heavy, he is my sooon, não ligava para o que os outros diziam, que dissessem, o problema era seu e dele, todos os pais querem fazer isso com os filhos mas não têm coragem, que o pai dele também teria feito por ele se tua avó tivesse deixado, mas o pai não sabia impor a vontade, deixava que tua avó tomasse as decisões por ele, eu devia respeitar a vontade dele, muito pai por aí fazia coisa bem pior, tinha filho depois desaparecia, tinha filho depois espancava, tinha filho depois massacrava, tinha filho e deixava se perder pelo mundo, se tivesse mais de um filho carregava também, e mais outro e outro, quantos fossem, feito macaca, que o ser humano não sabe cuidar da prole, só os animais, ninguém podia garantir que estivesse errado, você provavelmente se daria melhor que as outras crianças, teria mais autoconfiança e fé e obediência ao que cada um de nós tem de sagrado e consciência de suas forças e de suas fraquezas e equilíbrio e para atingir o conhecimento, se é papel da mãe incubar o filho durante a gestão cabe ao pai cercá-lo de cuidados e proteção enquanto ele não puder andar sozinho, filho dele - você - era tudo que ele possuía na vida, nada mais importava, o que é material sempre se pode obter de uma ou outra forma, mas um filho não, perderia o que fosse preciso para não te perder, que continuaria assim enquanto fosse necessário, só te abandonaria quando não tivesse mais forças, no último dia de sua existência, que se ficasse definitivamente cego, você seria seu guia e assim juntando forças poderiam ir aonde quisessem e sim estava ficando cansado mas não esmoreceria, afinal você não teria tantos lugares para ir e sim te levaria à tua lua de mel, à cama da tua amada na tua primeira noite, te levaria e nunca exigiria nada em troca, talvez apenas a primeira enrabada na tua esposa.


Não é nada disso, mãe, ele quis me tirar do colo aquele dia em que viu as meninas rindo quando chegamos ao jardim da infância. Esperneando, me leva, me leva, os braços agarraram o pescoço dele. Ele segurou firme, soltou, procurando armar um sorriso encorajador, repetindo, ande sozinho. E volte sozinho para casa. As pernas tentaram, não conseguiram vencer nem a metade do caminho. Numa esquina, a bunda sentou na beira da calçada e o corpo ficou lá horas esperando ele ir buscar.


No dia seguinte ele chegou em casa com uma cadeira de rodas, que delícia. Dois meses depois, muletas. Não é fácil andar de muletas. Quem vê e pensa que é está enganado. Precisa treinar. Paciente, ele aprendeu primeiro para poder ensinar, repetindo tudo tem jeito. Seis meses se passaram assim.


Papai tentou ser escritor, se metia ora secreta ora ostensivamente em empreitadas literárias mas nunca avançou além duns cadernos que guardava zelosamente na primeira gaveta do guarda-roupa e a que não se deu muita importância até o dia em que se decidiu ser escritor, não apenas para consumo doméstico feito ele mas um de verdade, com obra publicada, discutida na imprensa, aplicada nas escolas, com entrevistas na tevê e palestras em encontros literários, correspondência com outros grandes escritores do país e d'além-mar e tradutores que verteriam os romances para dezenas de idiomas esdrúxulos (e pedir-se-ia aos editores que dessem um exemplar de cada um deles para depois se espantar com as peripécias gravadas em caracteres exóticos), o povo carregando nos ombros pelas ruas do Rio até a sede da AML, afugentando os guardas com seus cães ferozes, derrubando os carcomidos e enferrujados portões do velho prédio, acuando os acadêmicos que relutavam em aceitar a supremacia da obra sobre a biografia do autor e entronizando triunfalmente na sagrada cadeira de Machado, repórteres assediando em busca de depoimentos solenes sempre que se avizinhasse uma complexa crise política ou econômica ou se abatesse sobre o país inesperada tragédia natural, furacão que varresse do mapa milhares de casas dizimando milhares de pessoas, enchente que inundasse centenas de cidades e também dizimasse milhares de pessoas, cada depoimento repercutindo na imprensa semanas a fio, se extinguindo vaga, silenciosa e paulatinamente até que novo fato momentoso viesse a suplantá-lo, exigindo novo depoimento emoldurado em pessoalíssima visão lírica do mundo e suas tolas mas indefectíveis idiossincrasias mais ou menos além da capacidade humana de compreender. Adulto, sacou-se que ele nos usava para se inspirar. O resultado foi nojo e confusão.


Para ele havia os de índole humilde, cientes de sua pequenez, que chegam e de cara aceitam o mundo como é, sabem aproveitar o que já foi feito, não aspiram a inventar a pólvora, não pretendem incorrer nos mesmos erros de seus antepassados; e havia os arrogantes, para quem nada nunca está bom, o mundo é um grande equívoco e deve ser corrigido quanto antes, se possível por cabeções feito eles, gente disposta a padecer o que for para enfrentar a empreitada descomunal. Logo a alma saponácea viu que ele era da segunda turma. Quanto a si, procurou-se não tomar partido.

Perseguição

É confissão sim, doutor. E sem arrependimento. Agora, em retrospectiva, a imaginação imagina por que deveria estar? Veio de repente uma paz funda, espanto, o corpo está doente? A mão pousou na testa, mania que tem de medir o malestar da alma pela quentura do lombo. Um pouco de febre. Nada que mereça espanto ou suicídio. Feito Rebel. Não, Abel não. Aquele cujo estado normal era o febril. Vivia no que Giraldi chamaria de sobreexcitação permanente. Somos mais menos assim. A mente não nos acha grandes escritores, naturalmente. As mãos escrevem uns garranchos. Só pra consumo interno, o senhor entende. Não, não podemos nos considerar escritor. Muito menos grande. No mais, apenas introspectivo. Ser introspectivo é profissão? Hehehe, quiçá. O senhor sabe, voltado para as dores do espírito. Metafísico. Por isso cometemos o ato ensandecido? Talvez sim. Talvez não. A metafísica é uma ciência? Pode-se dizer que seja. Mas pode-se dizer que não. Se refletir com calma, sopesando, vai ver tudo depende do ponto de vista. Fulcral: manter a isenção. Falar é fácil. Quando é pra julgar o outro todo mundo se acha isento. Não passa de delírio naturalmente. Mais um na nossa coleção de sentimentos desfigurados e emoções torpes. Se existem verdades verdadeiras? Concordo. Talvez esteja se referindo à verdade absoluta? Os instintos podem ser considerados verdade? Só se forem os bárbaros. Hehehe. A esse respeito podemos recomendar Preciado. Conhecemos pessoalmente? Pode-se dizer. São parentes? Não, quiçá. Pequeno. É, essa confusão que todos fazemos entre o que é real e o que não é. Pode-se ler em algumas horas. Se lemos muito? Olha, já lemos mais. Hoje não lemos nada. Nem jornal. Não, não foi de decisão tomada. Veio naturalmente com a idade. Perdemos o interesse por experiências alheias. Para alguém feito nós essa alienação não é contraditória? Pode-se dizer que sim. Em termos lógicos. Claro. Afinal, que importância tem a lógica? Tirante os que lucram com ela. Quem é que lucra com lógica? Os que mandam no mundo: políticos, capos, chefes do tráfico, rentistas, grandes empresários, donos de tevê. Com a imprescindível cooperação de cientistas, artistas e pensadores em geral. Essa logicazinha besta que permite calcular o trajeto duma espaçonave até a lua. Precisa duma baita duma lógica pra calcular isso, concorda? De que serve pra maioria de nós seres terrestres tocando viola de papo pro ar? Mas no que deixa embasbacados os terrestres enluados passa a fazer parte da Grande Lógica. A lógica de Darwin, que é a única digna do nome. Grande comendo pequeno, forte trucidando fraco. O homem enraba a mulher a vida inteira, mas quem morre mais cedo? Deu pra entender a nossa lógica? Não se trata de equilíbrio, elas por elas, ensinamentos bíblicos, baboseiras. Estamos dizendo é que temos de parar de imitar os outros e perseguir a nossa própria verdade. Traçar o nosso próprio caminho. Soa lugar-comum. E daí? Não foi o Ari o pai do lugar-comum?  Uma das razões que nos fizeram parar de ler. Até o Rádega parou de ler, por que não podemos parar? Sim. O que temos contra os paraguayos? Nada. Quiçá. Tirando músicos, claro. Se o senhor quer nos irritar basta falar em Pablo, Ramón, Gonzales. Especialmente esse trio. Fazem parte da Grande Lógica. Sustentáculos. A noção hierárquica que prescreve que devemos comparar nossa experiência com aquela anterior de terceiros: a fonte da sinuca em que nos metemos. Se duvidamos dos avanços científicos? Absolutamente não. Os cinco por cento da população do planeta que estão por cima têm é de tomar champanhe mesmo. Se os outros cento e trinta por cento virassem a mesa, a vida deles ficaria pior? Não a dos seus filhos. Sobreviria a terra arrasada, fim dos princípios espúrios que regem nossa civilização. O caos restaurador, destruição criativa. Recomeço. Mas até que o forte finalmente voltasse a sobrepujar o fraco vigoraria, aí sim, o equilíbrio. Banho de sangue penitente purificante expiador. Não somos loucos a ponto de aplicar essa maluquice em nossa vida pessoal, claro. Ou não éramos até cometermos o ato ensandecido. Agora que cometemos, paciência. O xis da questão. Refreamos nossa vontade e daí abolimos a mudança. Os que matam e roubam, que tachamos de delinqüentes, esses os verdadeiros corajosos. Peito de não aceitar as migalhas que os poderosos derrubam do Feérico Banquetão. Não ficam abanando o rabo ao lado da mesa esperando o dono deixar displicentemente cair um osso de frango. Não inventam frescura pra fugir da luta. Sublimação é coisa de judeu-paraguayo viado bom de lábia. Sublimar pra quê? Perpetrar um poeminha calhorda que ninguém que tenha alguma importância vai ler e os que lêem vão deitar falação que nunca chega a lugar nenhum? É por isso que hoje em dia qualquer sonata em fá maior de Mozart nos dá nos nervos. Chopin me faz arrancar os cabelos. Wagner ainda vá lá. Mas só até o ponto em que ele se envolveu na Grande Sintonia com o Adolfo. Precisamos parar com essa frescura de “beleza”. O escrito é o que está pronto, o que já foi, o passado, a tradição, as paredes de concreto que nos aprisionam nos presídios desse mundo que foi construído em nosso nome mas não por nós, sacralizado aos que nos antecederam e que por isso mesmo não nos serve. Olha doutor, teve época que líamos três jornais todo santo dia. Devorávamos linha a linha. Nos metíamos em tudo quanto era área, sabíamos de cor e salteado a coloração política de cada filho da puta da câmara e do senado, o nome de cada ministro, nos achávamos engajados, falávamos em dispositivos da constituição que precisavam ser mudados, ríamos da ingenuidade dos comunistas, compreendíamos de que forma os coronéis nordestinos mantinham o monopólio do poder. Éramos deslumbrados. Nos dizíamos sensíveis aos problemas sociais. Acreditávamos. Eis onde a demolição deve começar – solapando as bases do Máximo Sustentáculo, o sistema político formal. Olha doutor, precisamos pôr um fim nessa gente de boa reputação. Acabar com os defensores da liberdade e todos esses conceitos que formam a Suprema Empulhação sob a qual brincamos feito micos amestrados, a qual remedamos qual papagaios enlouquecidos. Doutor, pensemos junto: se déssemos ácido a cada um desses fedepês que nos governam o senhor acha que faria diferença? Faria diferença pra nós aqui embaixo, nossas vidinhas de baratas de esgoto mortas de medo das botas dos donos do poder? Nem a mais vaga. Seria a nossa ressurreição. Veríamos que o estado hostil é o único que nos cabe. Os poderosos nos têm como inimigos. Quando muito, escravos. Somos usados enquanto temos força de produzir, depois nos largam na fila dum hospital público ou nos abatem com sua gendarmerie. Não, não é esnobação. Desculpe. Simplesmente o germinal. Não, doutor. Era apenas um rapazola. Nem eles mesmos acreditam no que escrevem. Se somos niilista? Como assim, somos niilista? Somos todos niilistas. Quando optamos por matar o outro para preservar nossa própria pele, somos niilistas. O pintor que usa o pretexto da arte pra vender suas bugigangas pro banqueiro é niilista. O cientista que desenvolve cura do câncer enquanto fecha os olhos pros que morrem de sarampo é niilista. Desculpe. Não, o senhor está absolutamente certo. Nos empolgamos e não sabemos parar. Faz tanto tempo que não temos quem nos escute. Nem lembrávamos mais como é gostoso ter plateia. Mesmo que duma pessoa só. No caso, o senhor. Se tivemos educação muito rígida? Olha doutor, na verdade, não. Mamãe era vendedora. Quase não parava em casa. Papai, bancário. Vivia falando em certificados de depósito, seguros, liquidações. Interesses? Sabe que não sabemos? Estranho pensar nisso agora. O senhor acha possível criança sem interesse algum? Inclusive subconscientemente? Não é da sua área? Mesmo assim. Opinião de leigo. Sim, criança desinteressada de tudo. Sem vontades. Sem paixão. Nunca nos apaixonamos, o senhor acredita? Quando lemos o jovem Werther, tínhamos ouvido falar mil vezes daquele sentimento arrasador, o suicídio. Sabia que houve uma onda de suicídios na Alemanha quando publicaram o livro? Não só, mas por toda a Europa. Napoleão carregava o livro por onde fosse durante a campanha francesa no Egito. Foi quando ele mandou atirar no nariz da esfinge. Werther amava Brunhilde que não queria papo com ele. Charlote? Dois tês? A palavra que nos vem à mente quando pensamos na infância? Francamente, é... é... sórdido. Sórdido o quê? Que ideia. “Sórdido”, sim. Mas não “sordidez”. Sujeira nos faz mal. Qualquer tipo de sujeira. Nós que fomos indescupavelmente sujo. Irrespondivelmente parasita. Podemos suportar qualquer adversidade. Se tivéssemos de nos hospedar na casa de alguém e esse alguém nos cuspisse no rosto três vezes, de manhã, à tarde e à noite, suportaríamos. Olha doutor. Humilhação toleramos qualquer uma. Sujeira não. Bom, estávamos com uns nove anos. Chegaram as férias. Janeiro. Fomos deixado numa fazenda. Não, sem memória de quem. Parente. Não, sem mentir. A mulher que cozinhava não nos saiu mais da cabeça. Pensamos nela todo dia. Cozinha enorme, mesa enorme, mulher enorme, mãos enormes, ancas enormes, uma leitoa, chafurdava em frente ao fogão a lenha, levantando grandes feixes de lenha, alimentando as labaredas, entoando distraída um cântico-ladainha, enorme colher de pau na mão, chafurdando na pocilga imunda, no ar cheiro de sangue porcino, névoa hemoavermelhada, corremos para fora, varanda enorme, estávamos perdido, um mês em estado de choque, aquela paisajem bucólica desolada. Que Marx disse sobre a vida rural? Até hoje não suporto mato, árvore, capim, colina, curral, vaca que olha com cara z-o-m-b-e-t-e-i-r-a. Desculpe. Não, não estamos zombando. Sabe-se que fomos crescendo e cansando. Viu? Crescendo e cansando, crescendo e cansando, cansando, cansando. Um dia nos caiu nas mãos Ascenção e Queda do Terceiro Reich. O melhor título que já se inventou. Quatro volumes. Um pra ascenção, três pra queda. Assimétrico como tudo deve ser na vida. A necessidade simétrica é a pior coisa que podia ter acontecido a nós seres humanos. Ilude. Depois cega. Faz viver outra dimensão em que o certo é o avesso e o ponta-cabeça. Daí todos nossos males. Obcecados pela lei do equilíbrio. O errado tem de ser corrigido. O insuficiente tem de ser compensado. O escuro, iluminado. O mal, erradicado. Sabe a passagem que mais nos marcou? A daquela mulher do oficial nazista que fazia abajures com as peles dos judeus vindas das câmaras de gás. Pensamos na hora: precisamos ter um. Depois disso ficávamos olhando as pessoas e pensando como é que a pele de cada uma ficaria num abajur no nosso criado-mudo. Que um dia fugiu com a nossa secretária eletrônica. Hehehe. Essa é dum publicitário poeta. Tudo zonzo filho da puta, poeta e publicitário. Se eu fosse o Adolfo hoje acabava com essas duas raças. Queimava todos os livros de poesia já escritos neste inferno em que demos o azar de nascer. Os publicitários, esses mandava injetar dez litros de cocacola na veia de cada um. Queria ver o desgraçado me mandar tomar. O efeito do gás no sangue. Cloaca hemorrágica. Injete coca, ejete cola, cogite cocô. Sim doutor, tentaram nos ensinar. Me mostraram a diferença entre certo e errado. O melhor. O pior. De que adianta? Sabe o que é ficar eternamente face a face com o senhor mesmo? Mas não nos preocupamos. Muito. A questão é não admitir publicamente. Não admitir. Admitir seria devastador. Donde ele era? Salvador. Bahia. De todos os santos. Tinha fugido da miséria. Se cortamos a garganta dele à toa? Bom, depende do ponto de vista. Choramos feito cabrito. Por que não bezerro desmamado? Porque cabrito chora mais dolorido. Era investidor. Resignado. Tinha passagem pela polícia em três estados. Quando conhecemos, recém-saído da cadeia. Naquela época trabalhava de revisor num jornal. Emprego sólido. Estava construindo uma casa em Jundiaí. Com ajuda dele. Sim doutor, sabíamos que ele vivia de prostituta. No começo achamos o máximo. Ficávamos excitado. Era o que vinha procurando sem saber. Sabe quando o senhor procura algo mas não sabe o que é? Pior: procura mas não sabe nem que está procurando? Aquele poeminha que brinca com lou-cura? Gostamos de brincar com pro-cura. M-a-l-e-a-b-i-l-i-d-a-d-e. Novo em nossa secreta opinião. Então ele nos contou que tinha dois milhões guardados. Não acreditamos. Dois milhões é muita grana. Ninguém tem tanto. Só os grandes ladrões que nos governam a todos. Tiramos de empréstimo, brincava. Mas logo vimos, não era o único que conhecia o segredo. Não sabia ficar calado. Taí o erro. Tem que se defender. Não se deixar descobrir. Nem a própria esposa deve saber. A vida dupla ficará bem protegida se você não tentar se esconder. Pode-se ser duas pessoas diferentes sendo um só. Então três semanas, desapareceu. Fomos atrás. Checamos no último endereço. Mansão num bairro dos Jardins. Quando encontramos, rastejou, implorando perdão. Sabe doutor. Nessas horas o rosto adquire uma rigidez muscular que as pessoas pensam que estamos morto. Feito agora. Espia só. Viu? Puxamos a peixeira. Olhou impassível. Algumas áreas dos Jardins são mais perigosas que outras. Viemos pagar o que devemos. Viramos esse brasilsão do avesso. Foi removido. Pelo menos da Terra. O corpo fica postado em frente à casa um tempão. Àquela altura já tinha a paciência desistido de se perder. Não adianta – tem coisas que só vêm com a idade. Querer escapar da vida pequeno-burguesa é quebrar a cara na certa. Sabe doutor – nossa vida é um amontoado de chavões. Dane-se. Para não apelar logo de cara e usar aquela interjeição que todo mundo adora usar. Fôdasse. Não tem acento doutor? Fôdasse. Teve tempo em que usava fôdasse a cada três palavras que resmungava. Vivia a fim de escandalizar. Antiburguês. Depois a alma saponácea viu que era coisa de criança pequeno-burguesa. Conversa-fiada que o João Paulo e a turma dele peroravam com solenidade esperta como se fosse papo sério. Chapa, quando você não mora em Paris, não tem um queí que te abra magicamente caminho na vida e ganhe para você todas as mulhas que quiser dedar, não pode ficar bebericando num daqueles cafés que todo metido a besta sabe o nome, aqueles vinhos que todo intelectualóide também conhece o nome, cagando dissertação escolar pro mundo inteiro enquanto uma cacetada de puxa-sacos pega no batente por você. Não, nosso comunistinha-bibelô. Quando você “amadurece”, não dá mais pra ficar sentado. E tem outra: isso de “viver” aventuras literárias é coisa lá deles. Não pro nosso bico. Por uns tempos tentamos. Quem não? Toda vez que dizíamos a si mesmo, amanhã vamos parar de beber, abria a mão um livro do Hemingway e não só não parava como entornava até o talo e mais um pouco. Que cara sensível. E a história deles está cheia desses caras que comprovam na prática o que botam no papel. Aqui com a gente a coisa fica mais no gabinete. Terra de maior número de escritores-barnabés do planeta. Já imaginou o Ême de Andrade dizendo num livro que o Oswald certa feita lhe confidenciara que a mulher dele Oswald dissera que ele Oswald tinha pau pequeno? Quiçá essa vocação politicamente revolucionária de fazer guerra civil e matar metade da população, enfrentar o papa quando o papa era o manda-chuva, guilhotinar as cabeças da corte, esse peito todo vem desses pequenos detalhes. Aqui se bobear os caras formam um sindicato pra pleitear –  verbinho que eles adoram – creche pros filhos fora do casamento. Ufa. Ele saiu. Quatro horas e quinze minutos de espera. Até que enfim. I, os olhos dele olham pro nosso lado. A, fazem que não vêem. Dificilmente. Temos o dom de adquirir a cor da parede que nem camaleão. Agora para. Os olhos dele olham para os dois lados da rua, ponderando. As pernas tomam uma direção e começam a andar. Eu também. Sempre fomos bom nisso. Rabear é conosco. Acompanhamos o freguês dias, semanas, meses e o cara não faz ideia. Se quisermos mostramos que estamos seguindo. Se quisermos mostramos por quê. Existem várias razões pra seguir um sujeito. As clássicas manjadas. E as especiais. De terceiros e/ou nossas. Às vezes o resultado não interessa. Ou interessa mas não é o mais importante, melhor dizendo. Da nossa parte é o que sabemos fazer, o que gostamos de fazer, o que fazemos desde rapaz. Nesse mundo da perseguição – ou no nosso mundo da perseguição, se o senhor prefere -, nada do que as pessoas normais estão acostumadas conta muito. Com o tempo aprendemos a deixar de lado bobagens como voracidade pelo poder, necessidade da compreensão das pessoas que amávamos, consciência de direitos e deveres, essas porcarias que achávamos básicas e que com o tempo aprendemos a desprezar. No nosso métier o senhor tem de ser mais pragmático. Chuva, por exemplo. Uma das primeiras coisas é aprender a aceitar a chuva. Ter prazer em ficar encharcado. Reconhecê-la aliada, deixar de vê-la conveniente para a agricultura. Seguir alguém na chuva é moleza. Mas hoje ficou fácil demais e não damos bola. Nem pegamos mais gripe. Ele entra numa locadora. Paramos e as costas se recostam num poste do outro lado da rua. Marcamos a hora no relógio: doze para as quatro. Ele sai e os olhos olham o relógio: quatro e seis. Tem uma sacola na mão. Fica parado ali no meio da calçada como se não tivesse que fazer nesta vida. De repente entra na lanchonete ao lado da locadora. Então a memória lembra de que o estômago está em jejum. Sentimos a boca encher d’água. A mão direita aperta com força o estômago tentando enganar a mente. Esta cogita ir. Desistimos. Ainda não é hora. Sabe-se lá por que pensamos em algumas revoluções ocorridas no mundo: a reação termidoriana após a morte de Robespierre, a Primavera de Praga, a frustrada tentativa de golpe por Hitler contra o governo da Bavária em 23, a Revolta do Forte de Copacabana em 22, a revolução liberal na França em 1830. Será que nessas horas os caras pensam “ainda não chegou a hora”? Os olhos começam a olhar os transeuntes e a mente imagina se cada um deles deixasse na rua seu rastro indelével e distinto, sempre distinto, dos demais. Passa uma garota de bicicleta pedalando com facilidade e indiferença. Tem uns vinte anos, beleza suave, tenra. O corpo fica apaixonado, ao cérebro ocorre a existência dum pinto como sempre ocorre. Nos apaixonamos dez, quinze vezes por dia. Perdidamente. A mente tenta imaginar como seria a cara dum filho se o pinto ficasse duro e entrasse na Bucetinha dela e ejaculasse a maldita gosma farta e o útero dela se deixasse fertilizar para que um descendente nascesse. Não consegue. A cara assombra a cabeça, a cara de criança tirada nos retratos no álbum da mamãe. A cara com que sempre os víamos criança era uma que saíra nos jornais quando papai fora preso. Estávamos com ele na hora e saímos na fotografia, boca de grito, olhos marejados. Os olhos nunca mais o viram. Às vezes as mãos põem no toca-discos as músicas que ele gostava e os ouvidos ficam ouvindo duas, sete horas sem parar, tentando sentir o que ele devia sentir. Ele sai para a rua. Sigo. Nos viu, notamos. Anda meio mole, a esmo, esbarrando nas árvores, nos postes, às vezes dando encontrões tão rudes nas pessoas que algumas se viram e erguem o braço fazendo de menção de revidar. Mas não é por mal, dá para ver. Desligado, só isso. Atravessa as ruas sem olhar para os lados. Essa gente meio doida que faz essas coisas tem um dom quase miraculoso para se safar de acidentes. Cruzava a rua sem olhar, os carros vinham, buzinavam, paravam, desviavam e ele seguia em frente nem notando. Seguindo-o, muitas vezes tivemos de nos arriscar a ser atropelado para não perdê-lo de vista. Quando ficávamos no mesmo quarteirão, nos aproximávamos tanto, que podíamos tocá-lo se quiséssemos. Ocasionalmente ele parava numa banca e ficava quinze minutos lendo jornais e nos víamos obrigado a comprar uma revista e ler até que ele decidisse prosseguir. Enquanto lia ele dava umas olhadelas de esguelha mas a ideia não sabe se era para nós ou não. Se era não parecia interessado. Ficávamos pensando se era só para ver se tínhamos ido embora. Será? A mente acha que não. Do jeito que ele se deixava distrair por qualquer coisa na rua, qualquer coisa literalmente. Nunca vimos sujeito mais exposto a estímulos externos. Tudo lhe chamava a atenção: um cartaz grudado num poste estampando a cabeça careca dum político em campanha, as seções dos classificados penduradas do lado de fora das bancas, um caminhão do correio parado numa esquina. Esse ele parou, encostou num muro e ficou lá um tempão, os olhos olhando enquanto os funcionários do correio saíam da agência com carrinhos e carrinhos com malotes lotados de correspondência. Não desgrudava os olhos vendo sabe-se lá o quê. Então um envelope cai de um dos malotes que estava meio aberto e ficou lá no meio da calçada. É um envelope bojudo e nutrido, contém algo volumoso. Mas cai quase sem fazer barulho. Ninguém vê caído, só ele. Nós também, claro, pois é nossa função. Os olhos dele olham o envelope e parecem abstrair-se de absolutamente tudo. Depois de alguns minutos os funcionários fecham o baú do caminhão, montam no bicho e vão embora. O envelope contina lá sem que ninguém note. Só ele. Olhar tão perdido na porra do envelope, que começamos a pensar se haveria algo por trás daquilo. Claro que não, nos recriminamos nos achando um asno por duvidar do que nossos próprios olhos tinham visto. O envelope caiu do malote por um desses trilhões de fenômenos acidentais que acontecem no mundo a cada minuto. É dessas coisas que o senhor não tem como medir mas tem como saber se são possíveis ou não através desse sentido indefinível que nos permitem aquilatar as coisas físicas. O malote estava entreaberto e com o movimento do carrinho o envelope de cima tinha recebido um golpe de vento ou então o funcionário tinha tombado um pouco mais o malote, sabe-se lá. Só sabe-se que fora acidente e ponto final. Depois de tê-lo seguido por mais de três horas, estávamos seco que algo providencial ocorresse. É essa tendência romântica que todos nós temos um pouco. Você pode se achar o mais durão dos realistas mas não tem jeito – sempre tem uma hora em que você sucumbe e começa a fantasiar. Os caras que sabem enriquecer na vida são os menos propensos a esses acessos de delírio. Mas todos temos um pouquinho. Seja como for foi sinal de que estávamos fraquejando. E nesse sentido foi providencial. Porra acontece. Raramente mas acontece. O segredo é não se deixar levar e começar a achar que virou uma lei natural na tua vida. Isso também acontece. E com a maioria dos homens e mulheres que vivem nesta merda de planeta. Essa é a origem da religião, descobrimos. Descobrimos bem cedo. O pensamento encantado é tão comum, tão frequente, que chega uma hora – que varia de acordo com o freguês – mas s-e-m-p-r-e chega uma hora que o senhor acaba enxergando algo mágico no fundo das coisas. É tão inevitável quanto motim em cadeia pública. Ou conta telefônica. Ou que a África será o túmulo da humanidade. Ou tudo isso junto e nada disso, sabe-se lá. Detestamos quando começamos a descobrir o sentido das coisas. Que é outra coisa que mais hora menos hora todos acabamos fazendo. Todos viramos filósofos assim que os olhos veem a mesma coisa ocorrer duas vezes. “Testemunhamos”. Aconteceu duas vezes, pronto. Vira lei da natureza. E como lei se aplica a tudo e a todos. E dependendo da conveniência dessa lei se aplica ou não a nós mesmos. Já que a lei é nossa, temos esse poder. Vai negar que o senhor tem aí dentro escondidinho umas dezenas ou até centenas de leis que aplica como e quando e a quem lhe dá na telha? Retomando o fio da meada, de repente sem mais nem menos ele pareceu cansado do envelope (aproximadamente depois de uns vinte minutos) e retomou o caminho. Se é que tinha um. Às vezes andava mais resoluto como se tivesse mesmo um destino e nós nos convencíamos que sim. Outras, que já explicamos, não. Parecia não perdido mas peripatético. Viciado em vagabundear. Nessa hora em que retomou o caminho parecia tão decidido, que nem tivemos tempo de apanhar a porra do envelope que infelizmente ficou lá na calçada. Logo alguém veria e entregaria a um funcionário dos correios que o recolocaria no itinerário original. Não que eu tivesse curiosidade em ler o que continha aquela merda. Para quê? Uma porção de asneiras íntimas ou particulares de um desconhecido para outro, coisas que alimentam a fantasia de tarados e pseudoartistas. Não. O que lamentamos foi que alguém não deixaria de receber o que quer que fosse que o envelope contivesse e o mundo desse alguém prosseguiria no caminho que lhe fora traçado como que regido pelo princípio do destino. E se for uma notícia de que um parente morreu e deixou uma herança ao destinatário? Pensamos nos remoendo. Cartas desse tipo deveriam todas ser interceptadas pela Agência Celestial dos Correios. Ele retomou o caminho e seguimos atrás. Vez por outra nos olhava de soslaio mas continuava não dando bola. Como é que pode? nos perguntávamos encafifado. Porra, se tivesse alguém nos seguindo no mínimo pegávamos o bestalhão pela goela e perguntávamos qual é, chapa? Perdeu alguma coisa? E se a resposta não fosse convincente, arrebentávamos os ossos do desgraçado. E mais, se achássemos que a perseguição fosse parte de algo realmente sério, deixaríamos uma avenida na garganta do cretino. Mas ele não dava a mínima. Não tentava correr. Despistar. Parecia até contar com a caça como se fosse uma distração, ajudasse a matar o tempo. A vida, o dia, a noite, o tempo, o furacão esperam que não esteja nos enrolando, começamos a pensar meio puto. De repente ele começou a correr. Ahá é agora. Estávamos numa avenida movimentada, carros passavam a toda. Naquele jeitão desligado ele atravessou a avenida sem dar lhufas para os carros e entrou num boteco no outro lado. Tentamos seguir atrás dele mas não teve como. Era suicídio na certa. O corpo fica avançando até o meio da rua e recuando mordendo os lábios de raiva. Ele já tivera tempo de sumir do mapa. Devemos ter levado uns seis ou sete minutos até conseguir atravessar. Entramos no boteco certo de que não íamos vê-lo mas lá estava sentado no balcão, cafezinho entre os braços que seguravam a cabeça, olhar perdido no balconista que servia a freguesia. Sentamos no balcão oposto ao dele e pedimos um café. Cansados da correria eixamos o café esfriando e seguramos a cabeça com as mãos. Os olhos olham firme para a cara dele. Ele olha de volta mas logo desvia distraído por outra coisa. Procurou-se impaciente algo que também pudesse nos distrair naquela porra. Nada. Nada conseguia. Só ele. Tomara que engula de vez essa merda de café e saia de novo. Precisamos segui-lo. Enquanto ele viajava com as maluquices lá dele dávamos umas olhadelas no canto do balcão onde estavam as bebidas. Vimos uma garrafa de rum. Lembramos dos porres letais que tomávamos com rum. Lembramos de que o que mais gostávamos era que a primeira coisa que nos chamava a atenção que estava sempre embotada e que reluzia feito o holofote do juízo final quando o primeiro gole tocava na boca, o líquido ainda em torno da língua, não era a queimação do álcool, que vinha depois, já na garganta, mas o açucarado perfumado. Era uma sensação rudimentar, básica, que Catso, a mais sedutora do mundo. Então com a garganta e o esôfago ardendo como se tivesse ingerido um fel expiatório, a Porra caía no estômago, o doce ainda na língua, no fundo da boca gostamos de insaciabilidade e plenitude juntas, em dez segundos um outro nascia por milagre. O milagre da cana te dá o poder de sair do teu próprio inferno, virar outro magicamente. Depois que deixamos de viver em aldeias, é precisamos. Nos vilarejos de duzentos anos atrás o senhor sabia quem era, onde estava e por quê. Sim, por quê. É só olhar em volta as pessoas que conhece mais ou menos bem. Ou então ler um livro contemporâneo. Pode fazer o teste. Todo mundo cagando de medo de perguntar por quê. É muito manjado, doutor. Só cafona pergunta por quê. E não é só nos livros não. No dia a dia também, na cama no quarto, diante da tevê, no cinema, na sala de jantar aos domingos. Se é que ainda existe. No nosso tempo existia. Copa, cozinha, dois ou três quartos e sala de jantar, o santuário da casa. É claro que hoje seria intolerável você sair na rua, na rua em que vive e viveu desde o berço, e dar de cara com as eternas mesmas pessoas com mais conhecimento de você do que você mesmo. No nosso tempo era possível escutar impassível um vizinho dizer, pô, te carreguei no colo, pô, fomos nós que levou tua mãe pro hospital quando você nasceu, pô, você não era tão revoltado aquela época. Imagina alguém se apossando da tua história hoje. Você é capaz de cuspir na cara, dar porrada, debochar. É a mesma coisa que quando alguém diz “nossa esposa” e o senhor tem vontade de cair na gargalhada. Às vezes nos deixa de pau meio duro. Porra os antigos sabiam das coisas. O cara vivia a vida inteira de pau meio duro pensando na esposa do vizinho, pensamentos indistintos, claro, mas aí é que tava o barato. A percepção aguda com olhar aguçado de visão cegantemente límpida é coisa desse mundo devasso de hoje. Antigamente o cara vivia inebriado de confusão, medo de deus, os mistérios do sexo e da hierarquia. Hoje você se Fode porque pensa que sabe.  Não, ao contrário. Se Fode porque se sabe ignorante. Teu avô não tinha essa desfaçatez. Doutor, se é impossível se dar bem, pra que saber, me diga. Aí tua esposa, tua gostosuda esposita toda Embocetadinha só esperando nosso vergalhão meio mole no rabo, uma meia-bitola cada vez maior, bem, benzinho, potranca sem-vergonha, aí tua esposuda vê a pontinha duma estrela prateada no firmamento poluído e te pede correndo a máquina fotográfica. Cerimônia agora não, você reclama mentalmente, mas já era – tua rola despenca. O Cristófo tinha razão, a câmara fotográfica foi a invenção mais asnática já encasquetada pelos cabeça-de-urubu. Ele levantou do balcão, pagou o cafezinho, nos lançou um olhar distraído (premeditado?) e saiu. Esperamos dez segundos, pagamos o nosso e saímos atrás.



Então percebemos que tem alguém nos seguindo.

Meu outro ideal

Cliente ensandecido mata dentista a dentadas

Forjar uma escrita que não se denuncie forjada. Libertar a palavra de seu papel de mensageira para enfim lograr sua autonomia, concretizando o delírio de pureza absoluta do Apolo de Rilke. Extirpar de mim mesmo meu papel de atravessador para que meus sentidos sobrepujem meus sentimentos e possam finalmente ver-se refletidos no espelho d'água que os seduz ao irrecorrível mergulho. Só assim serei capaz de aprisionar o vulto do leitor em permanente espreita às minhas costas, senhor das minhas vontades e antecipador das minhas esquivas, zombando do meu vão esforço para me escrever.