Quero que a coerência, o comedimento, a harmonia, a
simetria, a honestidade, o equilíbrio, a ordem, a justiça, a dignidade, a verossimilhança, a humildade, a paz, a possibilidade, o método, a constância, a sobriedade, a
concórdia, a prudência, a esperança, a boa-fé, o raciocínio, o pudor, a concordância, a unidade, a consistência, a
eurritmia, a sinceridade, a simpatia, a honradez, a calma, a virtude, a identidade e, sobretudo, o sentido vão todos
pra puta que o paril iiiiiiilllllll iiiiiillllll iiiiilllll iiiiiiilllllll iiiillll
iiilll iill il il il i l
alicerces de palha
que gostoso não ter respostas nem explicações
que gostoso não saber o nome desta rua
nem aonde meus passos irão me levar
nem se minhas pernas terão força para dar
um próximo passo
que gostoso não ter nada a aprender
que gostoso não ter nada a ensinar
que gostoso não ter certezas
que gostoso não ter dúvidas
que gostoso não enxergar, não sentir
que gostoso não gritar
que gostoso não silenciar
que gostoso não querer
que gostoso não gostar
que gostoso não ir
que gostoso não voltar
que gostoso não morrer
que gostoso não viver
Incessantes silêncios
A chuva fria a abrir circunferências nas
poças
Chora a morte dos ecos nos vãos dos
tijolos do muro
As águas rumo ao esgoto marulham
escorrendo em trilhas industriosas
Todos a cantar hinos falsos do mundo
Rindo, olha, não abre tua boca, abaixa a
cabeça
Não passas dum hóspede
Te contenta com as bocas extintas que
beijaste
Te dá por satisfeito com a secura dos
olhos que te viram
És a casca que, descolando da árvore sob o aguaceiro
Te dás conta de que, por viveres grudado
ao caule
Anos a fio
Pensavas fazer parte da natureza
Agora que o Ciclo te apanhou
Teus passos, não importa aonde caminham
Sempre caminham do começo para o fim
Sim, lamentas, eles porém ecoam
Que diferença faz?
Toma, escreve tuas palavras na parede
Cinzela os vultos que fogem na noite
Enquanto os trens, aviões e automóveis zumbem distantes
E os que têm a dádiva do sono dormem
arrogantes
abi s mod om u nd o
Esta noite me sinto um tantinho menos
desamparado e reuni coragem para afirmar que mais uns meses – no máximo, alguns
anos -, seremos todos felizes.
Bem que gostaria de saber que estou um pouco
menos desesperançado que ontem mas, vocês todos sabem, não dou, nunca dei,
lhufas para o que deflagra – ou entorpece – meus sentimentos. Tudo que sei é
que sou movido por eles e isso me basta. Para a frente ou para trás, de manhã
ou depois do café da tarde que tomei a última vez com papai em 1969, nada disso
me interessa.
Há uns dias ando meio ressabiado com a cara sisuda
com que meu vira-lata Quico me olha às vezes. Não queria admitir – a mim mesmo,
ressalvo, aos outros nunca admito nada –, mas nessas vezes me dá meio que um
calafrio. O olhar dele se revela demasiada, extremamente intenso, como se me
censurasse... como se me condenasse... por existir! Não pode ser! me recrimino
em pensamento, refreando um sorriso íntimo, voltando o olhar para a minha amiga
mais íntima, a parede, me achando um pateta por deixar que um vira-lata me
intimide. Então tudo que não sei sobre mim mesmo e o pouco que sei de outros
homens e mulheres por meio da literatura me sobe ao cérebro (sobe ao cérebro?) como
se viesse me acudir e sinto o peito desofegar ruidoso em alívio e o terreno
desconhecido da humanidade vai lentamente reassumindo suas feições familiares. No
instante seguinte Quico escuta um cachorro latir algures na vizinhança e parte
em disparada, ladrando feroz mas disciplinadamente como se obedecesse a uma tábua
de mandamentos caninos. Arrematando o entrevero me ocorre lembrar duma definição
de Konstantinos Kaváfis: “os animais têm
sempre uma expressão séria”.
Mais uns meses, mais uns anos...
...mais umas conversas, umas reuniões,
uns entendimentos...
...seremos todos amigos.
Seremos todos inimigos.
Mais alguns instantes, alguns instantes
que nos tragam outros pensamentos e nos revelem outras realidades...
...e, se formos humildes o bastante para
enxergá-las...
...mas, você também sabe, esperar
humildade de nós mesmos depois que atravessamos uma vida inteira aprendendo a vestir
esta nossa intrincada máscara de autossuficiência, capacidade, diplomacia, inteligência,
sabedoria, perfeição, limpeza, maturidade...
Mais alguns instantes, compreenderemos as
sinfonias que se estenderem pelo céu da cidade assim que surgir a primeira luz
da manhã.
Talvez então, pela primeira vez em nossas
vidas, possamos aquilatar em sua plenitude o significado da palavra “humildade”.
E talvez então sejamos capazes de
aquilatar o significado da palavra “tolerância”.
E quem sabe um dia poderemos todos –
todos – aprender a rir do espetáculo em que os palhaços somos nós.
ab ism o d om und o
Esta noite sou um homem cansado, covarde e
nem um pouco sábio.
Não, apaga. Esta noite não sou nada.
Esta noite, sendo nada, posso ser
qualquer coisa. Quero ser qualquer coisa.
Esta noite sou este teclado que meus
dedos tamborilam mecânicos e que têm mais letras e números do que minha cabeça.
Sou esta tela que meus olhos olham
mortos.
Este copo de cerveja. Este prato onde há
um minuto havia uma esfirra de carne e outra de queijo. Esta lata de baygon,
vazia como meu cérebro e que, tendo liquidado até esta noite um batalhão de
pernilongos, se mostrou mais útil que meu cérebro.
Esta parede.
Nunca mais esqueci uma noite em que
adolescente, por dentro febril de gana de ser poeta ou ao menos escritor e tão
vazio quanto estou esta noite, me remoendo por ser incapaz de pensar em que
escrever que fizesse um mínimo de sentido, e convencido de que se não fosse
poeta ou ao menos escritor nunca poderia ser outra coisa, exausto de fuçar e
rebuscar os pensamentos infecundos, olhei a parede.
Olhei a parede e meus olhos mortos se
grudaram à parede e à tinta em cor pastel da parede e aos minúsculos calombos de
areia que ficaram por sob a tinta e meus olhos mortos e meu cérebro seco qual um
pedregulho lunar caíram em espera.
Duma certa maneira, espero até hoje. E esperarei
em vão até o fim.
Esta parede bem que podia me devolver as
vozes que um dia se pronunciaram neste quarto e as músicas que por anos escutei
aqui na adolescência.
Acho que aguardo o eco em todos os
lugares em que vou. Que são absurdamente poucos.
Acho que é por isso que quando caminho
pelas ruas indo aos poucos lugares em que vou meus olhos estão sempre baixos. Aguardando.
Minha adorada
Mesmo mudo hoje preciso cantarolar que
Em minha estranha existência de combates
vãos
Que travo só para no fim ver minhas
derrotas
Recompensadas por teus braços e em meus
Enevoados labirintos em que teimo dia a
dia
Em me enfiar só para que você me busque
E me encontre e me salve e nos acessos de
Raivosa indignação que me permito só para
Que você me aquiete e nas causas de vida
Ou morte em que tolamente teimo em
deixar-me
Absorver só para esperar que no fim você
mais
Uma vez fale mais alto e me defenda e me
Ressuscite e nos descaminhos e nos becos sem
Saída e nos apuros em que cego finjo que
enxergo,
Em que caído finjo que caio,
Rodopio, pesquiso, brinco com a morte,
desafio,
peroro, debato tolamente comigo mesmo,
neste
13 de maio de 2003, ainda sob forte
influência
da doçura com que tão ternamente me
embala
dia após dia teu olhar, ainda sob forte
influência
do calor do teu corpo ao meu lado na
cama, ainda
Sob forte influência dos sonhos bons que
ainda
Posso ter só porque tenho você, eu, que
tão
Tolamente teimo em me enrolar só para que
Você esclareça e em me iludir só para que
você
Me desimpeça e em amedrontar só para que
Você me desassombre, hoje acordei e sem
me
Dar conta pus-me a cantarolar com vontade
de
Viver e pus-me a viver com vontade de
cantarolar,
Cantarolar, cantarolar, cantarolar,
cantarolar,
Cantarolar que estou grato neste dia 13
de maio
E em todos os outros dias da minha vida
por ser
Capaz de te chamar meu amor
Am Ende
Allegro?
Gente, olha, estou tão desacorçoado, que resolvi deixar o aramaico de lado e proferir esta sentença no idioleto vagabundo atualmente em uso no berção.
Seguinte:
Cansei. Cansei de ver Meu Nome
enxovalhado, Minha Identidade continuamente questionada, Minha Existência tão
hereticamente colocada sob suspeição.
Resolvi intervir, pôr um fim na
pouca-vergonha. Não ralei seis dias fazendo o mundo para que serzinhos
petulantes fiquem duvidando do Meu Caráter.
Tendo em vista o retrorreferido,
determino, neste ato, a suspensão imediata deste monturo putrefato
maliciosamente denominado blogue. A dita suspensão permanecerá em
vigor por tempo indeterminado, só transitando em julgado se e quando o safado
do autor retirar cada uma das aleivosias que tem assacado contra Meu Santo
Nome. E, claro, depois de pagar a devida penitência indo três vezes/mês, pelo
período de um decênio, à Basílica de Aparecida, em cujo confessionário deverá
relatar — detalhadamente, diga-se — o conteúdo de sua alma degenerada ao
padre Marcelo elo elo.
Amém.
a) Deus. (Eu existo, porra!)
Nem zoando numa fria tarde de outubro II
Allegro poco mosso
Não tenho a quem escrever, vim escrever pra você. Esse impulso me leva e traz sempre que escuto a música. Meu refúgio. Efêmera trégua nas badaladas surdas da tarde. Você pensava que um cara feito eu não era dado a refúgios? Eu também. Sinal de que estou esmorecendo, talvez. Ou sinal de nada. Não sou dado a sinais. Ou não era. Sinal de que estou esmorecendo. Cirandinha, vem, me envolve e me roda. Vê a facilidade com que caio prisioneiro de refúgios e outras facilidades dos tempos. Qual pião, pião sem adjetivo nem cheiro ou história, quero rodopiar rodopiando até cair. Sem perceber que estou tonto. Nem me dar conta de que sou zonzo. Vim aqui te escrever porque preciso sustentar teu olhar expectante enquanto executo minha ciranda. É meu espetáculo, digamos. Pactuemos. Você espera que eu te escreva a verdade, provavelmente. Como, se a verdade reside só em teus olhos? Quer uma prova? Ei-la: noite de julho de 198... (Você sabe quando.) Cenário: Z. (Não tenho coragem de ser explícito a esse ponto — por isso estou fadado à sentença: você jamais me perguntará o que tenho a te dizer.) Personagens: você, eu e expectadores vários. (O mundo é sempre pródigo em expectadores. Eu, de todos, sou o maior.)
Tema: teu olhar.
Vim aqui te escrever hoje porque decidi
encerrar o assunto “minha Dor”. Também resolvi matar meus fantasmas. Rasgar
minhas fantasias. Vaporizar meus delírios, a choque. Deletar minhas lembranças.
Embaraçar meus caminhos. E apagar meu passado, do qual neste ato abdico e me
liberto.
Julho, eu disse? Não há, nunca houve
julhos em minha vida. Nasci em dezembro, perto do natal, interregno das férias
escolares (não sei sentir senão quando me sinto um ser humano em férias). Desde
que nasci nunca avancei além de março. Sendo veronil, o sol é minha égide, só
tenho vida enquanto afundo as solas dos pés na areia da praia, me fazendo homem
de palha o restante do tempo. Meu auge vital é o solstício de verão em algum
dia no meado de janeiro. Essa data, e poucos dias antes e depois dela, comemoro
bebendo desesperado, o que houver pra ser bebido. Nos demais dias do ano me
embebedo tentando adormecer e hibernar pra só retomar a vigília na volta do
verão. Por isso, naquela noite de julho, naquela gélida noite de julho em que
alguém sentado ao meu lado no balcão comentou que fazia oito graus, não me
achava exatamente no comando dos meus sentidos. (Faz de conta que não mencionei
o comando dos meus sentidos.)
Ébrio, estava. Mesmo quando durmo, estou.
Naquela noite flutuava distraído entre nuvens de isopor. Sentado à tua frente.
Copo de steinhäger esquecido entre os dedos no balcão. O vozerio produzido
pelas poucas dezenas de expectadores reverberando em pastilhas mnemônicas ora
dentro ora fora de mim. Vultos, personagens de outra dimensão — mas não
fantasmagóricos como depois daquela noite aprendi a enxergar vultos -,
deslizavam alheios à nossa volta. Enquanto isso, você falava, lembra? Que pena,
não sei, não aprendi a prestar atenção no que dizem enquanto durmo. Teus lábios
se mexiam, magnéticos como em todas as situações em que já os vi se mexer,
forjando, imagino, melífluas sentenças e períodos desprovidos de vírgulas,
pontos finais, interrogações e de qualquer outra pontuação. Tua fala é meu
paraíso, eu diria se fosse então capaz do diálogo. (Me diga, já dialogamos
algum dia? Duvido. Meu saber é patético ante a tua beleza, e costumo me calar
quando não sei que dizer.)
Cada um dos meus sentidos me puxava pr'um
lado e todos me puxavam pra você. Dividido em dez, quinze pedaços, eu era tua plateia.
Cada um deles, pedaços, estava atento ao palco da Z. à sua maneira. Se foi
assim de fato, por que me lembro só dos meus olhos? (Sou escravo do olhar, qual
fotógrafo sem energia para a música nem gana de saciar o apetite.)
Vou me dividindo geometricamente à medida
que tento descrever tua figura sentada à minha frente no balcão. Qual sentido
devo usar agora? Meus olhos não desgrudam do teu rosto, imobilizando consigo
meus pensamentos e minha lembrança. (Pergunto: seria uma dádiva a capacidade de
esquecer por livre arbítrio?) Meus ouvidos estão ocupados do burburinho dos
bebuns em volta, atingindo ocasionalmente picos distorcidos, quando, bem ao meu
lado, um deles pede “mais uma cerveja” ao balconista, que berra “mais uma
cerveja?” de volta. Dentro da minha boca, muda na efêmera noite de julho que
hoje não estou certo se ocorreu de fato, o steinhäger não deixa espaço sequer
pro gosto de mim mesmo. (De que não sei se gosto.) Meu olfato, mesmo tomado dos
odores peculiares de álcool, suor, sanduíche de queijo e mortadela, estava
saturado do cheiro que teria tua buceta em minha imaginação. E minha mão,
aquela que não segurava o copo, delirava com a textura da tua pele e minha
língua se enchia d'água ávida por lamber a tua.
A noite veio passando longa feito a
eternidade e desvaneceu curta qual um instante. De repente você diz, “preciso
ir”, despenco, cheiro, escuto, imagino, engulo o steinhäger de gelo. Vejo teu
olhar. Anti-sol que obscurece minhas noites.
No meio do breu você, lâmpada fantástica,
brilha à cegueira, espargindo um halo não luminoso, de raios negros, corroendo
minha claridade à tua volta, me atraindo ao teu campo de beleza inatingível e
me condenando à escuridão que aprendi a habitar. Eu, mariposa trajada em
fantasia de seda puída, destituído da cabeça que um dia arranquei tentando
estancar a mina de pensamentos que borbotavam e borbotavam para o vácuo que
ficou no teu lugar, me arrasto em círculos incessantes em torno de não sei
exatamente o quê. Terá a luz se apagado e eu, mariposa decapitada, nem me dado
conta?
Eu disse que não ia falar da Dor, eu sei.
Acho mesmo que tinha prometido nunca mais citá-la em dê maiúsculo. Afinal não é
nome próprio. E nem de país ou feriado. Não faz diferença, provavelmente.
Tampouco faz falar ou deixar de falar. Mas se tenho algo a dizer — tenho? -, o
que tenho a dizer é pra você. Se não te falasse dela, maiúscula ou minúscula,
falaria de quê? A única alternativa seria o vácuo.
A música, aquela, nunca mais escutei.
Tudo que consigo é pensar nela, como se fosse uma abstração. Agora terminou.
Não é possível que torne a tocar outra vez.
Descompressão
Perdendosi
Minha nave se chama solidão
Embarco munido dos meus apetrechos
dolorosamente diários
A nave levanta voo, destino mais que
certo
Saio do meu lugar ao sol e rumo para a
porta
Como se meu avião se chamasse ave,
Salto
O sutiã azul-marinho que trago dobrado às
costas se abre,
As duas copas me sustentando
miraculosamente no ar
É como se eu mergulhasse para a morte e
ao mesmo tempo continuasse voando, entende?
Admirável corpo novo
En
retenant
Nos meus tempos de moleque discutia-se
quem era mais “realista”: o Orwell de 1984 ou o Huxley de Admirável
mundo novo. Na época — não sei se por juventude e ingenuidade ou porque ainda
não tínhamos posto de ponta-cabeça nossas vidas de ponta-cabeça —, a dúvida
tinha a ver, não era a perda de tempo que parece ser hoje. Mas tendemos a achar
nossos antepassados e nós mesmos no passado demasiado ingênuos para os tempos atuais. Pensamos que não
sabíamos ver então o que vemos hoje. Não vimos o suficiente — como se enxergar “com os olhos” fosse o único método garantido de identificar a realidade neste nosso mundo de imagens.
A festa não acaba nunca
Canzonetta: andante moderato
Todo santo dia
você senta e
senta
senta
senta
à espera que
esta Terra
a girar lenta
arrastando
um segundo
enfim traga
na noite benta
a doce
fedorenta
alegria
de me ver
morto
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