Amorokê na vila - Capítulo 003

O homem não nasceu para ser grande.
Nelson Rodrigues


Acordo, não tenho ideia da hora, não tenho relógio, nem celular, nem computador. Vejo pelas frestas irregulares da veneziana que está escuro lá fora, talvez seja o meio da madrugada, não é raro acordar no meio da madrugada. Acordo com as badaladas dum sino  de igreja, não há igreja nas cercanias, ligo o rádio, hora do Brasil, o que quer dizer que são três da manhã, uma voz feminina de robô fala dum projeto de lei dum deputado nordestino de nome sei-lá-o-quê Barbosa, depois dá o currículo do homem, ele dedicou a vida a obras para os pobres e à caridade e na tarde daquele dia tinha tirado as calças no plenário da Câmara e mostrado o pinto à tevê da Câmara e envergava no currículo dezoito assassinatos em vários cantos do Nordeste, por diversas razões e após a apresentação de seu projeto pelo robô-mulher, botam o Barbosa discursando, inflamado, histriônico, com tonalidades variando do contralto ao cavernoso, Barbosa chama o presidente da República de indecente, acusando-o duma longa lista de crimes, um mais grave que o outro, encerrando a peroração com algumas fofocas sobre o comportamento sexual do presidente, acusando-o, entre outras coisas, de pederasta, zoófilo e ateu. 
“Ateu” fisgou uma lembrança nas superfícies do meu ser-estar e lembrei que o sino que me acordou era o da igreja em que papai e mamãe me levaram até meus nove anos e a única graça que conseguia enxergar naquela ritual insensato e até então não desconfiava que logo depois me rebelaria quase patologicamente contra igrejas em geral e a católica em particular e religião seria um dos meus temas mais repelentes, em que pese ser constante no que digo e escrevo, sempre teimando em emergir à tona contra minha vontade.
Na última missa a que compareci, dei um jeito de enganar papai e mamãe pedindo que fossem na frente e prometendo que iria assim que terminasse Aventura no fundo do mar na TV Record.
Cumpri a promessa e cheguei um minuto antes do horário, trajando um vestido de minha irmã e maquiado feito uma puta.
Temos presidentes mulheres, negros, índios, gays et caterva. Mas ainda levaremos séculos para eleger um que se declare ateu.
Desligo o rádio, sem vontade de ler nem de pensar. Avisto no pé da cama o envelope que o tal de Fred me deu.
É um envelope tamanho A4 pesando uns seis ou sete quilos. Torço para que não seja só de papelada, desde ontem estou me arrependendo do compromisso, não sei por que me enfio nesse tipo de encrenca.
Apanho e abro e retiro a folha de cima, enfermo de tédio. E se perdesse de vez a vergonha na cara e partisse para uma dessas bobagens metalinguísticas, inventando que ali estava o livro totalmente datilografado e revisado que um dia há duas décadas esqueci no banco detrás dum táxi? A maioria dos que se dizem leitores se amarram em infantilidades que tais que não querem dizer absolutamente nada e de que eles dizem gostar pelo “lúdico”. É a mesma razão que alegam por idolatrarem Pessoa, Clarice e, sobretudo, Rosa.
Aperto os olhos e chacoalho a cachola, tentando espantar a piada do meu para-brisas mental.
Tomara que o escritor do tal de Fred não seja um desses caras que não apelam a um clichê nem que a vaca tussa e preferem ser confusos ou ilegíveis a repisar o pisado.

Há ocasiões em que precisamos dum lugar-comum para dar nome aos bois, tem hora que ditos populares são imprescindíveis, eu usaria apenas clichês não fosse a dificuldade que a empreitada implicaria em termos de qualidade, me pergunto por que esse medo de repetir o que já foi escrito, não pode ser só porque críticos órfãos de Dionísio baixaram decreto, escritor que é escritor tem uma luz-vigia que dispara sempre que o inconveniente, o deselegante, o supérfluo, o inútil ou o impróprio assoma na linha de visada do intelecto, o gostoso de escrever é que você aprende dia a dia com a sensação concreta de que pelo menos isso você pode fazer amadurecer dentro dessa tua cabeça dura de pedra, não há atividade mais íntima, técnicas de redação e estilo não têm importância, você simplesmente se solta até fazer sentido e quando faz sentido, depois de meses ou anos, dependendo do fervor e da necessidade, aí você pode se considerar escritor, ser escritor nada tem a ver com que rezam os cânones, com que batem os pés estridentes os compêndios, essa proclamação de independência é um terrível lugar-comum que vem sendo bradada há séculos mas, que fazer, verdadeira, não precisa ser escritor profissional desses que lançam um tijolaço por ano, embora possa vir a ser se escrever o que sente e só vai escrever o que sente se antes aprender a cultivar a coragem de mandar tudo e todos à merda, e pode até economizar uns trocados com o analista in der prozess, quando, no teu processo, teus pensamentos engrenam e você fecha os olhos e solta as mãos e desenrosca a palavra que até ontem não te passava pela garganta, então não há terapia ou reza, é apenas questão de se livrar do medo, do pudor e de outras travas que nos ensinaram a meter em nós mesmos, eu mesmo criei um exerciciozinho pro meu próprio gasto, desenvolvi a capacidade de querer cuspir quando leio certos "críticos", works like a charm, em pouco tempo o exercício aprendeu a se autoalimentar, assim espontaneamente por encanto, vê que maravilha? e agora o danado se dá em dois passos, quais sejam, a vontade de cuspir vem seguida duma vontade de escrever e quando me vejo caidão corro a ler uma daquelas perorações dos cadernos literários dos jornais, tiro e queda, inspiração instantânea, não chego muito longe, certo, afinal não sou um desses sujeitos glamurentos que contratam groupies para espalhar que eles usam máquina de escrever, mas dá para o meu gasto, que finalmente aprendi depois de décadas, que é o que me interessa, não terei direito a busto na praça, ninguém vai me indicar para a academia geriátrica das letras nem um bacharelzão da USP jamais deitará seu perscrutador olhar nas asneiras que engendro, que se há de fazer? fica para a próxima encarnação, quem garante que não venho me empenhando desde a Roma antiga, adquirindo relativa proficiência no caminho? mas como sou, mesmo que sofrível, escritor, e como um dos anelos de todo escritor é perpetuar a obra pra que homens e mulheres das futuras gerações vejam que já existiram masoquistas empedernidos antes deles, vou soltando a esmo meus craques pseudoliterários na modéstia e na irrelevância destas minhas anotações, quem sabe daqui uns dois séculos um aprendiz de pesquisador me descubra no porão das Faculdades São Judas Tadeu, quem sabe me tachem de embrionário, o que, convenhamos, não é pouca porcaria, afinal fico tentando imaginar aonde poderá chegar a garotada genuinamente nativa digital que vem por aí, mergulhada até o tutano na tralha interativa, quantos deles terão contato físico com um livro? o arcaico jeito de passar tudo pelo crivo da crítica não deverá durar mais duas gerações, quem tem certeza de onde está a genuína literatura hoje? conheço centenas de blogueiros talentosos em vários idiomas por aí, certamente existem aos milhares, logo serão milhões, o papel da crítica terá finalmente, deo gratia, chegado ao fim, a equação terá se invertido, seremos todos escritores, provavelmente em maior número que leitores, a internet sequer começou, estamos vivendo um, com perdão da euforia, momento histórico, os professores pasquales vão ficando supérfluos, a falta de regras e de estilo da molecada não cabe mais na gramática, dentro em pouco ninguém mais saberá qual é a norma culta, ninguém mais terá idéia de com quantos vocábulos se faz um vernáculo, liberdade absoluta de usar a simbologia que se queira em cada tribo e em cada gueto que se forma de segundo em segundo rede afora, padrões atropelados, paradigmas inconcebíveis, juízes emudecidos, a arte a reboque da tecnologia, a invenção de Gutenberg não será nem mais digna de nota, provavelmente mesmo a mania de fazer citações perderá o sentido, o instantâneo passará a reger, os robozinhos navegantes não darão pelota pro que passou há dois minutos, a história terá ainda menos importância do que tem hoje, o império do reality show de hoje se estenderá para a vidinha digital de cada um de nós, todos acabaremos por ceder às facilidades da conectividade imediata e assumiremos, mesmo os mais recalcitrantes, uma personalidade virtual pela qual poderemos concretizar cada um dos nossos sonhos e dar um pé em cada um dos nossos defeitos, Pessoa deixará de ser visto como gênio e modelo a imitar, já se pode encontrar um ou outro exemplo dos novos "artistas" do mundo, outro dia deparei cum sujeito que criou dezenas, centenas de páginas apenas dos captchas apresentados em seus logins, um tremendo barato, sendo o maior deles, baratos, a imprevisibilidade absoluta disso tudo, eu queria poder estar vivo daqui a cem anos, quem seria capaz de conceber em que teremos nos convertido então? o mundo certamente estará polarizado entre a rede onipresente e o Google onisciente e a Reserva dos Selvagens bem longe das vistas dos cibernautas, ao contrário dos infelizes de hoje que ainda são obrigados a encarar uma das cada vez mais onipresentes favelas, embora muitos de vocês aí, estou também certo, fecha os olhos e finge estar em Beverly Hills quando passa por uma.

Amorokê na vila - Capítulo 002

A quem desejam arruinar, os deuses primeiro enlouquecem.
Eurípedes (da edição em 10 volumes publicada em Pádua em 1743-53).

Lembro que estava, ou pensava estar, inspirado ontem à noite a caminho aqui do buteco do Lacerda, que frequento todas as tardes e noites para uns uísques combinados a steinhäger bem gelado. Me ajuda a arrefecer as chamas amarelas do fogo. Quando estou apaixonado sou uma esponja. As chamas se azulam, o fogo vira incêndio, só mesmo um aluvião etílico para a minha alma não evaporar em fuligem.
Estava sentado sozinho na minha mesa no canto mais afastado da área externa quando o tal Fred apareceu.
Digo “minha” porque venho ao Lacerda há anos, já fiz por merecer uma mesa cativa.
Me apego facilmente às coisas. Como me apego facilmente às coisas, raramente me desfaço de algo ou alguém que por alguma insondável razão passe por esta minha vida besta.
Lembro também que, assim que me instalei, o Lacerda veio silencioso e depositou discretamente um copinho de stein sobre a mesa, sem produzir um estalido. Embora o buteco seja um chiqueiro, com pilhas de caixas de cerveja apoiadas contra as paredes, chão pegajoso em que sinto as solas dos sapatos grudar, balcão asqueroso, o Lacerda enverga uma figura asseada, quase digna, beirando, nas noites mais movimentadas, o solene. Nem mesmo o pano imundo e permanentemente úmido que sempre traz jogado sobre o ombro esquerdo feito um loro moribundo é suficiente para causar repulsa nos fregueses. Até que combina com seu semblante de cafuzo esclarecido. Além disso, o Lacerda é de um profissionalismo no trato com a clientela que me emociona. Se daria bem como um desses garçons empolados dos restaurantes chiques de Sampa que gostam de nos intimidar — bem, a mim ao menos intimidam, assustadiço e ansioso que sou — com seu ar nobiliárquico como se vivessem em eterna câmara-lenta. Certa vez perguntei ao Lacerda por que ele não arrumava uma boca no Bassi ou no Bracia Parrilla. Ele se limitou a dar de ombros, desdenhando das casas internacionais e mumunhando, mais para si mesmo do que para mim, que seu buteco era uma pocilga mas ele era feliz assim. Então daí passei a nutrir um respeito sincero pelo cara. Homens autênticos são avis rara no mercado. E não posso deixar de mencionar o bife com cebola desta joça, o melhor do bairro. Sempre que possível — quando não me vejo forçado a levar um cliente do interior para conhecer a noite paulistana —, venho aqui me empanturrar de uísque e stein entremeados de bife com cebola. Como se fosse pouco, o Lacerda tem uma erudição invejável para um homem semiletrado que não concluiu o primeiro grau. Quando não termino a noite desmaiado nesta minha mesa, varamos a madrugada engajados num papo animado sobre Kafka, Pessoa, Brecht, Pavese e outros cobras. Só que nos últimos tempos ele está deixando que meus elogios lhe subam à cabeça — não larga Der Damon und Fraulein Prym, que lê ciscando enquanto atende um freguês e outro e que deixa guardado numa estantezinha diante da privada no banheiro. Quando bebe além da conta, vem sentar-se à minha mesa e desata a recitar trechos. Em alemão piauiense.
– Que é que você acha do sotaque? — pergunta, me fitando ansioso por um parecer. Até hoje não sei que resposta lhe dou, pois em geral estou completamente ébrio a essa altura. Mas deduzo que seja uma resposta animadora, caso contrário ele já teria desistido há muito tempo de perguntar.
Então o Lacerda me serviu e, como sempre faz, se afastou c'uma mesura — ligeira e sutil de modo a não caracterizar deferência. Me vendo sozinho com as minhas mágoas, empunhei o copinho de stein e com a outra mão apoiei o queixo para a cabeça não pender demasiadamente. Senão amanhã acordo com torcicolo.

A última coisa que lembro é que à minha frente na mesa estava sentado um rapaz, que imagino fosse o tal Fred, e que ele me entregou um envelope branco, que apanhei às apalpadelas para aquilatar o volume. Era polpudo.

Amorokê na vila - Capítulo 001

A ficção é obrigada a se apegar às possibilidades. A verdade, não.
Mark Twain


Recebo um telefonema dum tal de Fred. Quer conversar.
Sobre o quê?
Assunto do meu interesse.
Como arrumou meu número? Não está na lista. Se tenho celular? Claro que não.
Do meu interesse?
Posso ficar tranquilo.
Por que que não ficaria?
Onde podemos bater um papo? Fora o boteco do Lacerda, não me ocorre outro lugar. Endereço? Bem em frente à minha casa, sabe onde fica?
Sabe.
Às nove está bom? Pode ser às onze? Às nove reticências.
Da minha mesa vejo um rapaz entrar. Tem a cabeça um pouco grande demais, dá para ver pelos olhos perdidos no meio do rosto. Seria bonito não fosse a jaca sobre o pescoço desmilinguido. Olhando em volta se dirige ao balcão. Não há ninguém para atender, aguarda, ausculta, evitando olhar para o meu lado. Sabe que sou eu. Sei que é ele mas fico na minha. Alguns minutos depois, que ele parece passar apagado feito um ursinho sem pilha, a Soninha, filha do Lacerda, sai lá de dentro e pergunta pois não? O rapaz diz algo em voz baixa e a Soninha aponta para cá. Ele engata um meio-sorriso polido e vem.
Boa noite. Como vai? Sou o Fred.
Ele estende a mão de unhas longas e pontiagudas. E extraordinariamente fortes, tipo Baden Powell, boas para tocar violão. Aperto e indico a cadeira à minha frente.
Vai tomar o quê?
Uma coca, por favor.
Não prefere algo mais reticências?
Ergo o braço para a Soninha e faço CO...CA...MI...NHA...GOS...TO...SA... com os lábios bem abertos, sem voz, imitando aqueles sujeitos que dizem eu-te-amo de longe às namoradinhas loiras nos filmes se afastando na janelinha do trem.
Olho Fred e aguardo. Ele sustenta meu olhar por uns segundos e então explica.
Um amigo acabou de falecer, deixando um amontoado de anotações literárias. Pretendia botar tudo num livro, não deu tempo. Derrame fulminante, coitado.
Fred faz uma pausa para ver se digo algo. Não digo nada. Ele prossegue.
Era bom escritor esse seu amigo. Mas, como tantos milhares que existem por aí, não teve tempo de “compilar” a obra.
O tempo é sempre o grande problema, não é mesmo? Ele pergunta e me olha expectante.
Espremo os lábios e franzo a testa e estreito os olhos numa careta à la DeNiro, incerto se devo concordar ou não.
Quer saber se me encarrego da tarefa. 
Quanto ganho?
Dinheiro, não tem. Mas pode botar no teu nome. 
Tô duro, preciso de grana. Anotações, tenho as minhas. Trinta anos delas. Duas a três bíblias. Juntar  é fácil. Um cheiro da infância, uma linha, um trago, outra linha, uma lembrança, mais uma. O foda é articular.
Dê uma olhada pelo menos. Vale a pena. Está tudo muito disperso mas tem qualidade. Fred tira um CD. Ou DVD. Não sei a diferença.
Não tenho computador.
Ele ri com seus olhinhos perdidos. 
Ergo as sobrancelhas.
E se eu imprimir?
Faço tanto-faz com os ombros. Sem compromisso. Eu mesmo estou em extinção. Provavelmente não duro uns dois anos. Se algum zoológico reticências.
Ele se levanta. Trago amanhã impresso. Aqui, mesma hora?
Me aperta a mão e se afasta sem tocar na coca. Podia ao menos ter pago. Se aceitar a empreitada, boto na conta. Ia dizer que pretendo comprar um celular algum dia, fiquei com preguiça.
Quem sabe me desse um de presente?
Tenho vergonha de pedir.
Enfio dois dedos no bolso da camisa, tiro uma folhinha do meu bloco de notas. Está escrito “Algaravia” em letrinhas espremidas no meu garrancho de matuto semianalfabeto, no canto superior esquerdo, bem perto das margens, como se eu antevisse uma torrente inspirada, economizando o máximo de espaço para as palavras inexprimidas ainda se atropelando dentro da minha cabeça ávidas por vir a lume. A inspiração abortada me dá um azedo no fundo da boca, que tento lavar cum gole de stein. Foi essa porcaria de nove letras que passei a noite escrevendo? Estava contando com pelo menos uns dois capítulos razoavelmente arrematados do livro que comecei há uns 20 anos cujos rumos retorço erraticamente de hora em hora e cujos personagens mato e ressuscito e rebatizo e mudo de sexo a cada semana qual cirurgião plástico ensandecido e cujo novo título celebro comigo mesmo agora só para cuspir enojado da minha própria inanidade amanhã.
“Algaravia”. Por que é que vira e mexe cismo com essa desgraça? Não existem algaravias, são delírios dos almeidas-garrets. Deus, me sinto um adolescente encurralado pelas atrozes beldades do vernáculo. Algaravia é um trauma da infância que preciso superar se pretendo um dia escrever algo que preste. Que turbilhão de ideias poderia advir dessa pobreza? Minhas abstrações me sufocam.
Essas anotações são um amontoado de algaravias em permanente pré-estágio para poesias infantis.
De repente me ocorre, e se eu juntasse meus escritos aos do falecido amigo do tal Fred? Pior do que estava não podia ficar. E sempre me seduziram os caminhos e descaminhos da aleatoriedade. Quem sabe esse Fred, que parece crânio em informática, pudesse juntar num programa de computador todas as nossas anotações e tirar algo aproveitável dessa horrenda, dessa monumental, dessa estrambótica gororoba? Afinal não é o que todo mundo que se diz escritor faz hoje em dia? Tem gente que até ganha concurso literário com o truque.

Fico tão entusiasmado com a solução, que me admiro comigo mesmo. Até sinto um meio-sorriso me fazer cócegas nos lábios. Há quanto tempo um ânimo desses não visitava os labirintos sombrios que tomaram o lugar dos meus pensamentos? No mínimo, desde que Sílvia me deixou. Foi há... Cinco anos! Não, não posso ter sobrevivido todo esse tempo. Foi há cinco minutos. Foi há cinco séculos.

ij046hv

Pelamordedios, 
alguém cale a boca 
do Leandro Karnal.

iwjj012 really

Olho em volta
Me é tudo familiar
Parece que chego
Enfim ao lugar que
Embora seja estranho
Tem jeito de ser meu

Era aqui que queria
Ter nascido
Era aqui que queria
Ter vivido
É aqui que haverei de 
Morrer

Nesta terra em que
Nos dias sem chuva
E nas noites em que
Não ameaça ventar
As pessoas se ensimesmam
Perdem no céu o olhar
E ficam sem assunto

iwjj012 ou Teus sapatos

Entro no quarto distraído, dou com teus objetos pessoais amontoados num canto, tuas roupas largadas na cadeira.
Dos teus objetos e de tuas roupas, teus sapatos são os mais tristes.
Os mais reveladores.
(Serão também os meus? Os de todos nós?)
Ao contrário da tua camisa. E da tua blusa. Estas registram, quando muito, apenas as gotas de café que deixaste pingar enquanto falavas desses assuntos de que falas todos os dias.
(E quantos são os assuntos de que tens de falar todos os dias.)
Ou nas horas de ansiedade em que esperavas que uma notícia finalmente boa viesse te afastar do teu destino.
Tua blusa exibe alguns fios caídos do teu cabelo escasso.
A camisa, furtivos, brancos flocos de caspa.
(Mas não a neve furtiva e branca que, vejo pela janela do quarto, não cai lá fora.)
Também ao contrário das tuas calças.
Nelas, deixaste as marcas de suor das tuas mãos nervosas, eternamente a esfregar uma sujeira inexistente que pensavas indelével.
Os fundilhos quase se esgarçaram, tantas foram as cadeiras em que cumpriste as esperas que te couberam. Tantos foram os bancos que disciplinadamente te obrigaste a ocupar enquanto não passasse o nervosismo, a ansiedade com que insistes em viver.
Tantas foram as poltronas em que teu corpo cansado, sob domínio da tua amarga impaciência, repousou depois dos frenéticos exercícios com que tentavas vencer tua inocência. Tantos foram os sofás em que te estiraste na penumbra, dando-se o luxo de permanecer longos minutos em estado de absorção, matutando os mistérios que forjaste para afetar uma profundidade que, sabias (sempre soubeste), nunca foi verdadeira.
Os muros em que trepaste na infância, aprendiz que tinhas sido (desde o berço, talvez) do homem inquieto por excelência, desta e todas as épocas. As sarjetas em que nas madrugadas, depois de tomar teus definitivos, ritualísticos, messiânicos porres, teu corpo, rendido sob o peso de sonhos etílicos, buscou o conforto do leito perdido, desgovernado por tua cabeça em que rondava (agora sabes, se é que já não sabias) a palavra-fantasma que passou a te assombrar o espírito desde o instante em que tomaste ciência de sua presença (que a partir de então foi tua única constante).
Também ao contrário dos teus livros.
Uns quase intactos, que, sabias (como sempre soubeste), ensinamento algum guardavam para ti. Outros tendo a capa gasta por teu manuseio, ostentando na lombada abcessos e estrias feitas pelas unhas dos teus dedos que sofregamente saltavam as páginas, devoradas por teu olhar faminto – faminto do desconhecido, faminto da vida.
(E esperançoso de que a próxima linha, a palavra vindoura finalmente trouxesse a verdade que, sabias, sempre soubeste, te fora reservada por teu fátuo deus – cujo maior deleite e único propósito era brincar contigo de existir.)
Ao contrário, ainda, dos teus escritos, tão obsessiva, monotonamente centrados nos temas que, pensavas, eram teus votos sacerdotais.
Ao contrário, ainda, das coisas supérfluas que sonhavas eliminar do mundo.
Coisas supérfluas como chicotes de domadores de tigres, xícaras de porcelana chinesa, cupons de concursos de carros e casas que caíam de revistas e que, em tua incurável preguiça, tua niilista preguiça, assistias perderem-se sob a cômoda enquanto te conformavas pensando, "lá se vai mais uma vez minha sorte", castanholas que certa feita ouviras estalar nas mãos duma vizinha castelhana que, sonhavas, viera da Andaluzia.
De tudo isso, são teus sapatos os mais reveladores.
Díspares, parecem não formar o mesmo par.
No esquerdo o salto por pouco não se consumiu de todo.
No direito, está quase todo inteiro.
Isso demonstra...
(Prova cabal, prova de todas as provas de que todos ao redor de ti precisávamos! Para fazer o balanço dos teus dias. O levantamento das tuas derrotas. O resumo dos teus rumos.)
...que, além de andares tortamente, andas dando voltas.
Um, amarrotado, sulcado de estrias, desbotado.
(Sinal claro de que não te empenhas suficientemente em te desviar dos teus obstáculos ou evitar teus tropeções.)
O outro, quase novo – cromo praticamente incólume.
(Eis outra evidência: certamente não dás todos os passos que te compete dar em tuas andanças.)
Acima de tudo revelam que ao longo de tua vida cada um dos teus pés tem te levado por caminhos, não errados, apenas antagônicos.