O homem não nasceu
para ser grande.
Nelson Rodrigues
Acordo, não tenho ideia da hora, não tenho relógio, nem
celular, nem computador. Vejo pelas frestas irregulares da veneziana que está
escuro lá fora, talvez seja o meio da madrugada, não é raro acordar no meio da
madrugada. Acordo com as badaladas dum sino de igreja, não há igreja nas
cercanias, ligo o rádio, hora do Brasil, o que quer dizer que são três da
manhã, uma voz feminina de robô fala dum projeto de lei dum deputado nordestino
de nome sei-lá-o-quê Barbosa, depois dá o currículo do homem, ele dedicou a
vida a obras para os pobres e à caridade e na tarde daquele dia tinha
tirado as calças no plenário da Câmara e mostrado o pinto à tevê da Câmara e
envergava no currículo dezoito assassinatos em vários cantos do Nordeste, por
diversas razões e após a apresentação de seu projeto pelo robô-mulher, botam o
Barbosa discursando, inflamado, histriônico, com tonalidades variando do
contralto ao cavernoso, Barbosa chama o presidente da República de indecente,
acusando-o duma longa lista de crimes, um mais grave que o outro, encerrando a
peroração com algumas fofocas sobre o comportamento sexual do presidente,
acusando-o, entre outras coisas, de pederasta, zoófilo e ateu.
“Ateu” fisgou uma lembrança nas superfícies do meu
ser-estar e lembrei que o sino que me acordou era o da igreja em que papai e
mamãe me levaram até meus nove anos e a única graça que conseguia enxergar
naquela ritual insensato e até então não desconfiava que logo depois me
rebelaria quase patologicamente contra igrejas em geral e a católica em
particular e religião seria um dos meus temas mais repelentes, em que pese ser
constante no que digo e escrevo, sempre teimando em emergir à tona contra minha
vontade.
Na última missa a que compareci, dei um jeito de enganar
papai e mamãe pedindo que fossem na frente e prometendo que iria assim que
terminasse Aventura no fundo do mar na TV Record.
Cumpri a promessa e cheguei um minuto antes do horário,
trajando um vestido de minha irmã e maquiado feito uma puta.
Temos presidentes mulheres, negros, índios, gays et
caterva. Mas ainda levaremos séculos para eleger um que se declare ateu.
Desligo o rádio, sem vontade de ler nem de pensar.
Avisto no pé da cama o envelope que o tal de Fred me deu.
É um envelope tamanho A4 pesando uns seis ou sete
quilos. Torço para que não seja só de papelada, desde ontem estou me
arrependendo do compromisso, não sei por que me enfio nesse tipo de encrenca.
Apanho e abro e retiro a folha de cima, enfermo de
tédio. E se perdesse de vez a vergonha na cara e partisse para uma dessas
bobagens metalinguísticas, inventando que ali estava o livro totalmente
datilografado e revisado que um dia há duas décadas esqueci no banco detrás dum
táxi? A maioria dos que se dizem leitores se amarram em infantilidades que tais
que não querem dizer absolutamente nada e de que eles dizem gostar pelo
“lúdico”. É a mesma razão que alegam por idolatrarem Pessoa, Clarice e,
sobretudo, Rosa.
Aperto os olhos e chacoalho a cachola, tentando espantar
a piada do meu para-brisas mental.
Tomara que o escritor do tal de Fred não seja um desses
caras que não apelam a um clichê nem que a vaca tussa e preferem ser confusos
ou ilegíveis a repisar o pisado.
Há
ocasiões em que precisamos dum lugar-comum para dar nome aos bois, tem hora que
ditos populares são imprescindíveis, eu usaria apenas clichês não fosse a
dificuldade que a empreitada implicaria em termos de qualidade, me pergunto por
que esse medo de repetir o que já foi escrito, não pode ser só porque críticos
órfãos de Dionísio baixaram decreto, escritor que é escritor tem uma luz-vigia
que dispara sempre que o inconveniente, o deselegante, o supérfluo, o inútil ou
o impróprio assoma na linha de visada do intelecto, o gostoso de escrever é que
você aprende dia a dia com a sensação concreta de que pelo menos isso você pode
fazer amadurecer dentro dessa tua cabeça dura de pedra, não há atividade mais
íntima, técnicas de redação e estilo não têm importância, você simplesmente se
solta até fazer sentido e quando faz sentido, depois de meses ou anos,
dependendo do fervor e da necessidade, aí você pode se considerar escritor, ser
escritor nada tem a ver com que rezam os cânones, com que batem os pés
estridentes os compêndios, essa proclamação de independência é um terrível
lugar-comum que vem sendo bradada há séculos mas, que fazer, verdadeira, não
precisa ser escritor profissional desses que lançam um tijolaço por ano, embora
possa vir a ser se escrever o que sente e só vai escrever o que sente se antes
aprender a cultivar a coragem de mandar tudo e todos à merda, e pode até
economizar uns trocados com o analista in der prozess, quando, no teu processo,
teus pensamentos engrenam e você fecha os olhos e solta as mãos e desenrosca a
palavra que até ontem não te passava pela garganta, então não há terapia ou
reza, é apenas questão de se livrar do medo, do pudor e de outras travas que
nos ensinaram a meter em nós mesmos, eu mesmo criei um exerciciozinho pro meu
próprio gasto, desenvolvi a capacidade de querer cuspir quando leio certos
"críticos", works like a charm, em pouco tempo o exercício aprendeu a
se autoalimentar, assim espontaneamente por encanto, vê que maravilha? e agora
o danado se dá em dois passos, quais sejam, a vontade de cuspir vem seguida
duma vontade de escrever e quando me vejo caidão corro a ler uma daquelas
perorações dos cadernos literários dos jornais, tiro e queda, inspiração
instantânea, não chego muito longe, certo, afinal não sou um desses sujeitos
glamurentos que contratam groupies para espalhar que eles usam máquina de
escrever, mas dá para o meu gasto, que finalmente aprendi depois de décadas,
que é o que me interessa, não terei direito a busto na praça, ninguém vai me
indicar para a academia geriátrica das letras nem um bacharelzão da USP jamais
deitará seu perscrutador olhar nas asneiras que engendro, que se há de fazer? fica
para a próxima encarnação, quem garante que não venho me empenhando desde a
Roma antiga, adquirindo relativa proficiência no caminho? mas como sou, mesmo
que sofrível, escritor, e como um dos anelos de todo escritor é perpetuar a
obra pra que homens e mulheres das futuras gerações vejam que já existiram
masoquistas empedernidos antes deles, vou soltando a esmo meus craques
pseudoliterários na modéstia e na irrelevância destas minhas anotações, quem
sabe daqui uns dois séculos um aprendiz de pesquisador me descubra no porão das
Faculdades São Judas Tadeu, quem sabe me tachem de embrionário, o que,
convenhamos, não é pouca porcaria, afinal fico tentando imaginar aonde poderá
chegar a garotada genuinamente nativa digital que vem por aí, mergulhada até o
tutano na tralha interativa, quantos deles terão contato físico com um livro? o
arcaico jeito de passar tudo pelo crivo da crítica não deverá durar mais duas
gerações, quem tem certeza de onde está a genuína literatura hoje? conheço
centenas de blogueiros talentosos em vários idiomas por aí, certamente existem
aos milhares, logo serão milhões, o papel da crítica terá finalmente, deo
gratia, chegado ao fim, a equação terá se invertido, seremos todos escritores,
provavelmente em maior número que leitores, a internet sequer começou, estamos
vivendo um, com perdão da euforia, momento histórico, os professores pasquales
vão ficando supérfluos, a falta de regras e de estilo da molecada não cabe mais
na gramática, dentro em pouco ninguém mais saberá qual é a norma culta, ninguém
mais terá idéia de com quantos vocábulos se faz um vernáculo, liberdade
absoluta de usar a simbologia que se queira em cada tribo e em cada gueto que
se forma de segundo em segundo rede afora, padrões atropelados, paradigmas
inconcebíveis, juízes emudecidos, a arte a reboque da tecnologia, a invenção de
Gutenberg não será nem mais digna de nota, provavelmente mesmo a mania de fazer
citações perderá o sentido, o instantâneo passará a reger, os robozinhos
navegantes não darão pelota pro que passou há dois minutos, a história terá
ainda menos importância do que tem hoje, o império do reality show de hoje se
estenderá para a vidinha digital de cada um de nós, todos acabaremos por ceder
às facilidades da conectividade imediata e assumiremos, mesmo os mais
recalcitrantes, uma personalidade virtual pela qual poderemos concretizar cada
um dos nossos sonhos e dar um pé em cada um dos nossos defeitos, Pessoa deixará
de ser visto como gênio e modelo a imitar, já se pode encontrar um ou outro
exemplo dos novos "artistas" do mundo, outro dia deparei cum sujeito
que criou dezenas, centenas de páginas apenas dos captchas apresentados em seus
logins, um tremendo barato, sendo o maior deles, baratos, a imprevisibilidade
absoluta disso tudo, eu queria poder estar vivo daqui a cem anos, quem seria
capaz de conceber em que teremos nos convertido então? o mundo certamente
estará polarizado entre a rede onipresente e o Google onisciente e a Reserva
dos Selvagens bem longe das vistas dos cibernautas, ao contrário dos infelizes
de hoje que ainda são obrigados a encarar uma das cada vez mais onipresentes
favelas, embora muitos de vocês aí, estou também certo, fecha os olhos e finge
estar em Beverly Hills quando passa por uma.