Momento cultural

Na peça ensaística “A Erudição de Mr. Huxley”, parte integrante de Ensaios reunidos, Otto Maria Carpeaux começa assim:
“Alguns leitores do meu livro Presenças escandalizaram-se com a irreverência com que eu tinha tratado a mundialmente famosa erudição do romancista Aldous Huxley. Como foi? Aldous Huxley — cuja leitura preferida é, conforme sua própria confissão, a Encyclopaedia Britannica — respondeu a uma enquête, dizendo alguma coisa sobre a bondade como fundamento da poesia e afirmando que um criminoso não pode ser bom poeta. Acontece que François Villon, considerado por muitos, e com boas razões, como o maior poeta de língua francesa, foi vagabundo, escroque, sacrílego e assassino. Concluí que Aldous Huxley ainda não tinha chegado, na leitura de seu livro preferido, até o volume XXIII, verbete Villon.”
Falar de Huxley no meado do século 20 era o mesmo que falar de... Quem mesmo? Não temos mais intelectuais de monta que nos conduzam em meio ao nevoeiro e à escuridão? Até a década de 1980 nosso firmamento cultural se recheava de estrelas-guia como Graham Greene, Iris Murdoch, Sartre, Simone Beauvoir (a intelectual francesa par excellence, cuspia pensamentos e impressões qual metralhadora, espantoso que se tenha deixado obscurecer pelo companheiro, a prosa ensaística dela é hipnótica), Gore Vidal, Susan Sontag, pegando o vácuo de batutas como Huxley, André Gide, Camus, Levi-Strauss, Lukács e uma batelada, para ficar nos medianos.
Semana passada ganhei As cem melhores crônicas brasileiras, comprado em sebo, bien sûr, hoje em dia só petista saqueador do Erário tem grana pra entrar na Cultura e sair cumas cinco ou treze sacolas estufadas dos meus amores. PQP, como curto comprar livro. O supracitado Ensaios de Carpeaux custou cem pilas na mesma Cultura há dois anos e meio, tá de graça, argumentei com meu presenteador, que enfiou logo outra meia-dúzia no cestinho pra não me escutar os choramingos. Também curto obrigar muquirana a torrar uma grana preta em livraria. Quem foi que ensinou esses carinhas a ler franceses e ingleses na primeira infância, afinal de contas? Compensou ou não compensou? me digam. O agradecimento vai à minha tia Geny, que aquele senhor que criou todas as coisas a tenha. Ninguém mais tirou proveito que minha mana, que já traçou a Recherche quatro vezes et comptant.
E a esbórnia de ver tanta gente sofisticada num mesmo volume. As cem melhores crônicas brasileiras incluem Rubem Braga, Antônio Maria, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, Ivan Lessa, Drummond, Rachel, Otto Lara, Sabino, Millôr, Mario, Gullar, Graciliano, Machado, tudo gente inteligente como a gente. Preciso da inteligência mais que ar. Não é facilmente encontrável dia a dia. Vejo pouco meus dois rebentos e o único momento que ainda faz tudo isso valer a pena é quando vamos a um diner pruns comes e bebes. Quer dizer, eles comem, eu bebo. Só puxaram o pai no QI, os pilantras. A esqualidez intelectual dos utilitaristas que me cercam e mandam no mundo me dá preguiça de sair da cama. Bon dieu, que falta faz a centelha da lucidez intelectual nas pupilas dos caras. São bonecos empalhados sempre às voltas com suas tarefas e seus “compromissos”. O olhar sonso e opaco e a máscara facial inexpressiva de quem logo cedo deixou a vida interior secar em troca do maldito conforto, maldito conforto pelo que se matam e adoecem, maldita tevê a cabo que lhes sugou a anima pelas pupupilas para cuspipi-las no lixão das almas, malditas viagens para “espairecer”, “que ninguém é de ferro”, “olha o coração”, “você precisa tirar umas férias, cara”, “já conhece as praias do Ceará?”. Se um dia for lá conhecer as praias do Ceará me afogo nas águas dos mares do Ceará, dizem que você chega à areia e é instantaneamente rodeado duma centena de pequenos zumbis encaveirados vendendo pedindo suplicando dando trocando e o “turista” eivado do imorredouro espírito turístico ainda é capaz de apreciar o horizonte azul e exalar de felicidade.
Estendo a mão, apanho As cem melhores, há um marcador mais ou menos no meio do livro, abro, olho, primeiro penso que é piada, olho meu presenteador
“Até que é boa” ri, tentando baixar minha guarda.
“Mas não são as cem melhores crônicas brasileiras?” releio o título imaginando que houve algum engano.
Ele faz “paciência” cum trejeito da testa e da boca e encolhe os ombros.
Meus lábios ainda estão desabrochados de espanto. Meu olhar continua colado no título da crônica e no nome do autor. A ipanemia. Caetano Veloso. Pulo pro índice, repasso, espeto, Um lugar ao sol, Chico Buarque. E Danuza Leão. E Marcelo Rubens Paiva. Xico Sá. Um tal de João Paulo Cuenca, epa, já vi esse nome entre os “colaboradores” da Folha, nunca tive coragem de ler. E, incontestemente, the good ol’ Verissimo sem acento.
Mas não eram as cem melhores? minha voz insiste, agora para as paredes, já fui abandonado. Só o Graciliano tem umas trintas melhores (e não encontro nenhuma delas). Machado, umas cinquenta. Nelson Rodrigues, vinte e sete. Já dava pra fazer as Mil melhores crônicas brasileiras, fora outras cinco mil que não couberam neste volume.
Tudo bem, Luís Fernando até que é legível, mas como engolir sabendo que o cara dá uma de joão-sem-braço ante o Grande Assalto Lulopetista ao Erário? E perto dos grandes Verissimo encolhe ao nanométrico.
Puta que ol’ pariu, merda de populismo que tem de se infiltrar em tudo. Você quer ler jornal, tá lá um tal de Fábio Porchato com sua fucinha de tarado analfabeto. Você tenta uma revista, dá de cara cum tal de Bruno Astuto que se anuncia assim: Notícias de moda, cultura e celebridades. Aí você apela pra Veja e acaba no blog dum tal de Felipe Moura Brasil que não sabe associar dois períodos de forma a disfarçar que se trata dum semiletrado.
Ah! Tem até o Jabor entre as cem melhores. Não podia faltar, claro. O Jabor pelo menos desce a lenha nos lullistas. Vou conferir. Primeira pessoa. Sobre o avô dele, Arnaldo Hess. Sem querer, liquido em dois minutos. Belíssima crônica. Me conformo. Nem tudo está perdido. Vou arrancar apenas a do Caetano e a do Chico. E a dum tal do Antonio Prato, filho do Mario. Eu me envergonharia dum rebento desses. Se passar um estilete com cuidado nem vai dar pra notar. Nunca mutilei um livro. Este merece. Sentir-me-ei consolado. Inda ia tratar dos dois cahiers de Camus com que me brindaram outro dia de que comecei a falar outra noite. Fica pr’outra hora.

Quando o mundo acabar só sobrarão os franceses

Acabo de assassinar uma crônica.
Não satisfeito, trucidei um poema.
Meu cérebro dá o caso por encerrado.
Mas meus dedos ainda guardam três ou quinze espasmos nervosos.
Como foi que aconteceu?
Mais ou menos assim:
Quebrei a cabeça. Primeiro erro fatal.
Arbitrei que o conserto era uma citação. Segundo.
Desatinado, concluí que uma segunda cairia bem. Terceiro.
E citei, padre. Citei uma carreira. Que em vez de me levar mais e mais longe, me perdia cada vez menos dentro.
A cabeça só quebrando.
Esgotadas as inesgotáveis citações, me vejo num campo.
Um campo branco. Não sei onde começa, não imagino onde termina.
Algo no campo me chama. Está querendo me seduzir. Aperto os olhos, desconfiado. Desde quando branco é sedutor?
Então me lembro da crônica falha. Pior: Paulo Mendes Campos.
Uma onda interior de verve passa vasquejando. Trepado na prancha, subo e desço. E emito uma sonora gargalhada muda, claro.
Fecho as pálpebras. Finjo dormir. Cutucão no baço.
Minha gargalhada muda ecoa janela afora pela noite conturbada de sono. A cidade acorda por dois segundos.
E deus desmaia. Não sem antes balbuciar “Dá um tempo, cara!”
Vou pensar.

O beco resplende II

Meus quase três leitores e um quinto ainda não perceberam mas abri o campo de comentários já há alguns dias. Peço que comentem sem medo. O máximo que pode acontecer é um raio disparado por Zeus lhes passar raspando pela testa e chamuscar uma de suas elegantes sobrancelhas. Fiquem tranquilos, cuidarei para que o sempre enfezado gostosão do Olimpo continue ruim de mira. Levo umas manhas com o cara, provavelmente por consanguinidade. Ou afinidade poética. É claro que não comungo de todas as esquisitices do sujeito. Afinal ele é o reizão do incesto; e do filicídio; e do parricídio; do matricídio; fratricídio; e outras excentricidades mais. Comentem à vontade.
As tragédias gregas eram, como direi? trágicas por dois motivos. O primeiro compreende o enredo de desastres e os personagens desgraçados. O segundo, do qual deriva diretamente aquele e não parece tão na cara, só fica óbvio para quem se dá o trabalho de conhecer pelo menos três ou quatro peças. O segundo é que importa. É o aterrador. E o estarrecedor.
Shakespeare fez descer a tragédia do Céu para a Terra. Era ateu mas isso não tem nada a ver com o avanço, como poderia pensar um ou outro dentre meus leitores mais afoitos. Os deuses dos gregos foram substituídos por bruxos e feiticeiros nas peças do bardo. Segundo Harold Bloom, foi Shakespeare o inventor do monólogo da literatura, o que provavelmente significa que só homens e mulheres falam consigo mesmos e têm, portanto, uma dimensão psicológica. A violência de Macbeth é a mais irrespirável de toda a literatura ocidental. O cinema de hoje que escandaliza puritanos, pudicos e hipócritas em geral faria cócegas no general.
Este mundico hipertécnico e confortável a que nos habituamos nos roubou a perspectiva histórica, retomando o que comecei a dizer ontem. Não que haja alternativa ao progresso como ele se dá ou que tenhamos sido mais “felizes” em épocas passadas. Não sei se é só impressão mas a rapaziada de hoje tende a achar que a violência não faz parte do mundo. Gente primitiva que rouba e mata por um celular não pega bem com a “realidade” encharcada de fantasia pela interatividade. Esses caras só servem pra estragar a ficção. E tem a claque do outro lado, os que vivem lamuriando que “falta polícia na rua”. Esses pensam que o estado é onipotente e tem meios de botar dois peêmes em cada esquina duma cidade como Sampeia.
Os do segundo time em geral são tidos, e se consideram, de direita. São os mais fanáticos pela ideia de que um golpe militar seria solução pra zona que o lulopetismo instalou no Berção. Se são de direita, por que raios esperam que um braço do estado, os milicos, venham quebrar seu galho? O desastre lulopetista é uma encrenca civil e deve ser enfrentada pelos civis. Ou os caras vão choramingar pela intervenção manu militari toda vez que a situação ficar preta? (ou ruça, pros mais pecês). Esses sujeitos parecem almejar a viver num paraíso em que as regras democráticas nunca são violadas mas quando são... o paizão de uniforme de risca e bigodinho-escova pega seu belo cacetão em cima do armário e senta na moleira dos desordeiros. Esses caras nunca vão tentar andar com seus próprios pés? Nunca vão aceitar que a vida a construímos dia após dia, que não há receita pronta nem happy endings?
Os que sofrem da doença da ideologia — 97,47% da humanidade —, seja qual for, imaginam que o mundo pode ser controlado. Sim, é uma visão totalitária. E, lógico, absolutamente ingênua. Que, todas as vezes em que surge um salvador da pátria tentando aplicá-la, redunda em tragédia. Seja o Pixuleko ou Ernesto Geisel (que, diga-se de passagem, faz o País marcar passo por uma década com seu protecionismo retrógrado, ao lado de outros fósseis como Médici e Figueiredo). Os ditames que ideólogos dessa ou daquela linha tentam estabelecer por aí não passam de teorias que não têm aplicação prática em nenhum lugar do mundo. Não existe capitalismo puro nem nos EUA nem em nenhuma outra parte. Assim como não há nem jamais houve, obviamente, socialismo. Se trata apenas de “conceitos” criados e veiculados para facilitar a discussão, essa, sim, pródiga e prolífera. Os blogs da revista Veja se converteram em guetos ilegíveis porque minam o debate ao invés de estimulá-lo. Aposto com quem quiser: aqueles blogs fatalmente desaparecerão, ou perderão a relevância, depois que o lulopetismo for removido do Planalto.
Os totalitários da esquerda e da direita buscam a clareza, a limpeza, o equilíbrio. Para toda a eternidade. Se permitem fechar os olhos para a história da humanidade, toda ela feita de obscurantismo, sujeira e desequilíbrios. E sangue às toneladas. Vivem pelo “ideal”. Sonham com a “perfeição”. Projetam platonicamente um fim em que acabaremos todos fraternalmente iguais e solidários ou seres realizados individualmente segundo a capacidade de cada um. Querem esquecer que neste mundo que vivemos tudo é cíclico, desde os princípios biológicos elementares que regem nosso comportamento como o dia e a noite e as estações até nossos mais vagos e abstratos pensamentos que fantasiamos controlar mas na verdade se repetem ditatorialmente em nossos cérebros à nossa mais inacessível revelia.
O imprevisível, tão execrado pelos totalitários, parece depender do estágio civilizatório de cada país. Por aqui temos, e continuaremos a ter por séculos, 50 mil assassinatos e 50 mil mortes no trânsito anualmente (quero crer que cada um deles imprevisível como soem ser os assassinatos e os acidentes automobilísticos). Você vê alguém reclamando, fazendo greve na Previdência, criando boneco inflável, chamando rede nacional pra denunciar? Eu também não.
Nas terras do Uncle Sam a coisa tampouco anda soft, embora bem mais palatável. O carro lá mata gente pacas, não tanto quanto, mas os ajustes de contas mano a mano são bem mais escassos, em que pese os sempre escandalosos tiroteios em universidades e escritórios.
E a Old Europe, no achincalhe despeitado de Mr. Bush Jr. quando franceses e alemães se recusaram a entrar no embuste do Iraque, volta a tremer com a onda migratória dos sírios. A esta altura os europeus já devem estar se acostumando com as inconstâncias de existir, depois de 20 séculos de selvageria. O último alarme mais grave se deu em 2011 na Noruega, quando o lunático clínico Anders Behring Breivik liquidou 77 pessoas em nome duma salada de causas e ideologias.
O crente político e o crente religioso sofrem da mesma soberba: se acham especiais. Não falo do kamikaze que morre por uma causa. Falo do cidadão acima de qualquer suspeita que supõe ingenuamente que não há modo de vida e visão de mundo possível que não o seu.
Todos eles pensam que o natural é crer.
Mas por quê? venho me perguntando desde sei lá quando.
Duvidar me parece tão mais crível. E afeito à nossa natureza de seres inquietos. Ou à minha, pelo menos. O resto, fazer o quê...?

Sobras duma sexta à noite

Por quê? Que é que vai mudar? Não tenho mais nenhum herói, não tenho mais heroína nenhuma, o sentido está perdido, finalmente chafurdo no nada.
Até ontem ainda podia me socorrer da melancolia. A hora ia chegar de que não me bastaria, estava certo, e ontem chegou. E tantas outras horas chegaram. Poderiam bem vir todas duma só vez. Perfazendo minha epifânica sinfonia, executada monumental e silenciosamente pela minha orquestra de defuntos.
(Não se enoje. Poderia ter dito "cadáveres".)
Esta sexta à noite vou tirar para navegar pelas estrelas - minhas estrelas que ainda não perdi, que todas já as perdi.
Essa dorzinha indecente nos quadris vem me atormentando há duas semanas. Não tenho mais posição para sentar, não tenho mais posição para deitar. Quando ando quero me sentar, quando me sento quero dormir. Quando durmo quero dormir, e não durmo.
As centenas de noites de sexta que vivi se extinguiram como se extingue a luz. Uma época pensava em emigrar para o Canadá (ainda meu pergunto como teria sido). Outra, sonhava que meus passos ressoavam na madrugada do Madison Square Garden.
Nesta noite de sexta sou uma estátua (de gesso, de barro, de plástico) sentada diante duma tela cuja única habilidade que restou dum passado que não sabe se houve é tamborilar os dedos (de aluno, de aroma de vinho tinto, de caroços de pêssego cuspidos na terra úmida do quintal).
Boliche, joguei apenas uma vez em toda minha longa vida. E em minha longa vida joguei boliche muito cedo, aos nove anos. Você não imagina como uma bola de boliche pode ser pesada, os filmes não mentem. Enfiei meus dedinhos frágeis de guri de nove anos naqueles furos e olhei a pista. Lá no fundo vi sete garrafinhas (eles dizem pinos). Uma para cada noite da semana. Quero acertar só uma, me lembro tão claramente de ter pensado.
Olhei em volta e não vi ninguém. Sorri e chorei.
Não tinha ideia de que a tragédia dos 500 mortos no circo podia ser um alívio. Dormi bem aquela noite, que era de terça.
A compulsão a fugir perdeu o sentido e na hora não soube estabelecer relação entre um e outro. Ter de fazer sentido nunca fez muito sentido para mim.
Não pode ser que dos meus três aos meus nove anos nada tenha tido cheiro forte que não o ácido muriático que mamãe mandou comprar na farmácia do seu Joãozinho quando mudamos para a casa nova. Aquela noite queimei os pés e as palmas das mãos esfregando o chão da cozinha e do banheiro. E era uma noite de segunda.
E na noite de Natal papai comprava uma garrafa de sidra, de que me deixava sorver dois ou três goles no máximo.
Já sabia contar até cem, já ouvira falar dum lugar chamado Europa, aonde era impossível ir a pé.
E se ele tivesse me dito que podia, sim? Um dia? Uma noite?
Tudo teria sido diferentemente igual. Sei hoje.

Barraco metafísico na noitinha que chega

Me diga, como você pode abrir mão dum poeta? Já teve um antes? Não, nunca. Pela sua cara, vê-se que não toleraria um. Poetas dão trabalho. “Trabalho”? Essa é nova, poeta eufemista. Poetas são é fardo. Afinal, pra que presta um sujeito com visão de mundo? Com visão pessimista, desfocada, esquizóide, estapafúrdia de mundo? Visão de mundo é coisa de astronauta, aquele do “a terra é azul”, que deus o tenha. Carinha queria que fosse o quê? Rosa pinque? E essa minha dolorosa inquietação? Ah, vejo um risinho aí no canto da sua boca, não é? De sarcasmo, bem sei. Okay, tira a “inquietação”. Inquietação é pra poetaço daqueles de nobel. Não passo dum atabalhoado. Não, atabalhoado ainda soa literário demais. Trapalhão, isso sim. Mas, pombas, admita, vez ou outra cheguei a trapalhão lírico, não cheguei? Digo, lembra aquela uma ou duas vezes que você riu duma tirada minha? Boutade, você diria? Que nada. Nunca logrei boutade nenhuma, não. Não levo muito jeito com as palavras. Estou ciente que, prum poeta, fica meio estranho. Fazer o quê? É só mais uma das minhas, com perdão do clichê, inconsistências. Coisa de... Adivinhou: poeta. Trapalhão, mas poeta. Ou, se preferir, poeta, mas trapalhão. E, falando em clichê, você acha que devemos fazer das tripas coração para evitá-los? Digo, tem neguinho aí que não usa um clichê nem que a vaca tussa. O resultado em geral fica meio estranho. Pra não dizer ilegível. Mas o que importa é a originalidade, não é mesmo? Viu como é? Não levo jeito pra poesia, muito menos pra boutade. Sempre morri de inveja do wilde. E do twain. Quando moleque, tinha todas as melhores do oscar na ponta da língua. Não posso negar que tentei. E ainda tento, às vezes. Nunca cheguei perto... Bom, aquelazinha... Até que você gostava. Lembra? Eu declamava toda manhã quando você abria os olhos e me via te observando. Deus meu, você me inspirava, moça! Sabe qual era o meu maior medo? Não, não sabe, pois nunca lhe contei. E, se não lhe contei, você não sabe. Você é assim, sem encucações. Você é simples. Não se dá o trabalho de sacar o que não é explícito. Simples e previsível. No bom sentido. Pois é, nem toda previsibilidade é ruim. Os aeronautas que o digam. Ah, como invejo essa sua capacidade. Você sabe, me refiro a essa mania, essa minha irritante mania de ficar pescando o, ugh, subliminar. Coisa mais chata, seu. Meu maior medo, dizia, meu maior medo era um dia te perder e ficar sem inspiração. Me dava calafrio. Toda manhã acordava de madrugada, ficava lá quietinho te olhando pasmo, absorto e outros adjetivos subpoéticos mais, brincando com a idéia de que um dia você ia me largar, eu curtia pacas a brincadeira — tudo bem, pode me chamar de masô, já tô acostumado, todo poeta, pretenso ou não, é masô, nasce pra levar ferro, tanta felicidade dando sopa por aí, não é não? tanta dona gostosa pra comer, tanto chópin arretado pra passear e torrar grana ao cair do crepúsculo... — aliás, por que será que crepúsculo cai, tardinha cai, noitinha cai, — às vezes, no meu caso, até desaba como se tivesse tropeçado nas minhas dores —, e o dia apenas nasce, raia e outros quejandos edificantes do tipo? Engraçado como a gente acaba escolhendo que nome dar às coisas, não é? — Bom, estava dizendo, me amarrava naquela brincadeira de ficar te olhando imaginando te perdendo, então a angústia vinha, uma angústia espinhenta, caroçuda, que eu não podia conter de tão insuportável, vinha só pra se atenuar em seguida sob a saraivada de contrapensamentos que eu disparava contra ela, até vencê-la e declará-la morta — morta pelo menos durante a próxima meia-hora. A graça estava exatamente aí — em me penitenciar imaginariamente com meus próprios terrores. Mas, hoje, vendo você ir embora assim de verdade, me pergunto, de que serve minha imaginação se não me ajuda a te convencer a não desistir de mim? Então sou obrigado a admitir — não sei se estávamos em guerra — estávamos? —, se estávamos, você aparentemente ganhou, minhas graçolas temperamentais não me valem de nada, não enchem barriga, no pitoresco caipirismo da minha finada mãe, coitada da minha mãezinha, tanta esperança nutria pelo guri que se mostrou um pamonha depois que cresceu — tudo bem, admito, já era um pamonhinha quando criança — sabe aquele meu retrato em que estou c'uma gravatinha borboleta que parece feita de palha de milho? — e se de fato cresci, foi só em tamanho —, pensando em mamãe agora, vocês duas até que se dariam bem, acredite, jamais haverá neste mundo outras duas mulheres tão devotadas a massacrar os pífios pendores artísticos dum cristão, espezinhar o natimorto talento com que o miserável nasceu pra uivar pra lua —, mas, pombas, me explique uma coisa que nunca entendi, embora também nunca lhe tenha perguntado, morria de medo de tocar no assunto, seria o mesmo que armar minha própria arapuca, mas agora que tudo acabou posso enfim abrir o coração, então aí vai, que foi que você viu em mim afinal de contas? Não, não é falsa modéstia coisa nenhuma, estou querendo saber honestamente, mais, estou me juntando aos senhores seus pais e parentes e amigos que desde o primeiro dia em que nos viram juntos abriram aquela boca do grito de munch, ojeriza, perplexidade, sei lá, estava escrito na cara de cada um deles, que foi que a nossa princesa viu nesse paspalho feio, taciturno, resmungão, vesgo, desajeitado, narigudo, jeitão de quem não é chegado a um banho, arrogante, perna torta, vozeirão mole e enjoado feito o arauto agonizante do fim do mundo, diga, minha deusa impiedosa, que foi que você viu em mim? Só não confesse, rogo, não confesse que teve pena, mesmo afeito ao melodramático eu não aguentaria tão medonha revelação, não sendo isso, pode se abrir, agora que não pertencemos mais um ao outro sejamos sinceros, eu pelo menos estou sendo, nada mais há a ganhar, a perder, bem, certas coisas não vale a pena desenterrar, afinal isto não é um ajuste de contas, eu só queria lhe perguntar, pombas, como você pode abrir mão dum poeta? trapalhão, vá lá, e, sim, poetas dão trabalho, mas olhe bem nos meus olhos e diga se não valeu a pena, diga, se tem coragem, posso não ser o vencedor que no fundo você sempre buscou, posso não saber ganhar a grana preta de que precisa pra comprar esses badulaques com que você emoldura essa tua vidinha reta sem acidentes de percurso, tudo bem, sei que é pra combinar com a área de arquitetura de interiores em que você trabalha, mas, pombas, deixe de ser durona, confesse que pelo menos umas três ou quatro vezes te fiz rir, provoquei uma gargalhada leve que te fez olhar pro céu com esses seus olhões sonhadores, não fiz? e pelo menos umas cinco ou seis vezes te fiz chorar, mesmo que tenham sido lágrimas de crocodila, mas, seja como for, sinais, que você não conseguiu esconder, de que eu tinha atingido algo aí dentro do seu coração de pedra e aço inoxidável, tudo bem, hoje confesso, confesso que faço essas coisas quase sem querer, ao acaso mesmo, mas, jesus, você sabe, sabe que tentei, e tentar significa alguma coisa, não significa? pois, você também sabe — afinal teve tantos homens em sua vida, é mulher experiente, mestra honoris causa em blefar no pôquer da vida —, você também sabe que a maioria por aí só anda atrás de rabo-de-saia, pode rir, sei que estou falando feito heroína de telenovela feminóide, rabo-de-saia, urgh, mas quantas vezes trocamos confidências qual duas maricotas, quantos segredos íntimos você me contou como se eu fosse sua comadre, lembra? Eu mal prestava atenção no que você dizia, me deixava encantar pelo brilho de cumplicidade nesses seus olhões de fada, diga, que outro homem poderia desempenhar com tamanha naturalidade sua porção feminina que não um poeta? Por isso, resolvi vir aqui te perguntar, diga, como você pode abrir mão dum poeta? trapalhão, reconheço, poetas são um fardo, os trapalhões mais ainda, mas, sendo um, mesmo de meia-tigela, um belo dum poeta de meia-tigela, não consigo imaginar. Imaginar uma razão, digo. E, olha, imaginação não me falta. Tudo bem, também sei que você não engole carinhas com imaginação. Pombas, imaginar o que, não é mesmo? Se você não estivesse com tanta pressa de ir embora, de cruzar pela derradeira vez esta porta de madeira compensada, eu poderia lhe dizer o quê. Fica pra próxima. Certo, não haverá próxima. Sendo assim, deixa pra lá. Sejamos honestos, imaginação em geral só atrapalha, não atrapalha? o mundão aí fora pra conhecer, a vida pra viver, tanto prazer pra fruir, porra, e carinha fica lá no escuro, introspectivo, falando sozinho, cozinhando e comendo os próprios sonhos como se estivesse numa padaria metafísica, parece doença, não parece? pombas, a gente tem é de ser feliz, lembra quantas vezes você me advertiu? eu fazia que sim, alheio, alheio pra variar, você torcia a boca de impaciência, sei que fui um pé no saco, imagino quanto te fiz sofrer, toda essa sua vitalidade animalesca, esse corpão pra dar e vender, e eu ensimesmado, às voltas com meus fantasmas, minhas quimeras, eternamente zonzo em luscos-fuscos existenciais, ególatra inebriado de cachaça e de mim mesmo, uau, olha, entendo, agora entendo, deus, como pude ser tão cego, essa minha falsa sensibilidade, gosh, sou uma besta, mas, olha, mesmo com o tico de imaginação que deus ou sei lá quem me deu, posso bem imaginar, posso bem imaginar quem vai me substituir ao seu... Óuffff! Veja só, quase digo “ao seu lado”. Me calei a tempo, graças. Me diga, alguma vez estive ao seu lado? Alguma vez você me deixou ficar ao seu lado? Não, não é a isso que me refiro, fisicamente, vejo agora, fisicamente quase não tem mais importância. Puxa, só me sentia de fato ao seu lado à noite na cama, enquanto você dormia. Ai que solidão, christ, como eu queria rezar, espremia a memória tentando lembrar o pai-nosso que estais onde? onde estás, afinal, paizão? estará atrás da porta escura onde às vezes penso — penso? — enxergar unhas vampíricas se estendendo em minha direção? estará sentado à mesa no escuro da cozinha enquanto todos dormimos, menos eu, que apenas finjo? ou estará simplesmente esquecido dentro duma gaveta do passado, as incontáveis gavetas da cômoda no quarto que guardavam meu mundo pra mim enquanto eu delirava de vazio com os olhos fixos nas trevas do teto, cruzes, pensar que em casa rezávamos o terço toda noite antes da novela das sete na tupi, eu era apaixonado por uma das marias, aquela manca, sabe?, não lembro se do pé direito ou do esquerdo, morria de pena da pobrezinha, era apaixonado pelas outras também, obviamente, posso não ser poeta stricto senso, mas coraçãozinho de manteiga, esse nunca me faltou, guardo toneladas de manteiga, ou, se preferir, margarina rançosa com muito sebo, na meia-tigela que me coube, veja, veja como transborda a metade da tigela que me coube, diga, peço, quem é que você vai amar agora? Por acaso será o engenheiro que projeta os próprios sonhos contando realizá-los, como se sonhos fossem pra ser realizados? Será o contador que calcula todo próximo passo que dará na vida? Já pensou? Já pensou como deve ser letalmente entediante um carinha que é previsível em cada palavra, em cada riso amarelo, em cada suspiro? Diga, by god! É por um defunto desses que vai me deixar? Ou será por um garçom cheio de dedos e salamaleques e com-licenças que adivinhe seus caprichos e lhe entregue tudo numa bandeja de prata e se afaste em silêncio numa mesura submissa, a encarnação da deferência que você sempre me exigiu e eu nunca soube lhe dar? Diga, por deus. É por esse, ó mãe, projeto-de-vida que vai me largar? Ou será... Sim! Como fui tão cego? Só pode ser. Apesar de viver no mundo da imaginação, agora está tudo claro. Finalmente. Ele tem pau grande. Não posso acreditar. Ser trocado por um caboclo fornicador. É tão... tão... anticlimático. Foi só isso que sobrou do nosso projeto metafísico? Gosh, e toda a filosofia que ousamos? E a nossa cosmologia? Que é que vou fazer agora com aquela nossa cosmologia que eu acalentava qual um filhotinho de labrador virtual? Tudo por uma rola tamanho família. Então era esse seu, com perdão da boçalidade, sonho de consumo? Quem diria. Eu, aqui maravilhado com meu suposto poder de imaginação, não imaginei. Maldito pendor às coisas do espírito! Praga de vocação para a intelectualidade! Senhor que estais no céu, fazei deste humilde servo um animal bem dotado pra reprodução da espécie! Quer dizer que tudo era uma questão de centímetros? Arre, maldição católica de menosprezar os desejos do corpo. Tinha nas minhas mãos frágeis de teórico da vida uma cadela prestes a se incendiar de volúpia carnal, tinha em minhas mãos e não vi! Mas, diga, meu anjo ninfomaníaco, um simples dildo de borracha não resolveria? Ó deus, podíamos ter usado a imaginação! Que tragédia por um pinto. Ora, direis, não se abandona um poeta por um pinto. A lei não permite. O presidente proibiu. Meu pai que jaz no túmulo há 30 anos não deixaria. Ou será...? Não! Isso não. Eu não deixo. Por um pinto, até aceito. Me conformo. Pensando bem, eu no seu lugar talvez fizesse o mesmo. Mas isso não. Jamais. Não pode. Não tem cabimento. Mulher alguma jamais fez isso. Jamais. É desumano. Cruel além da imaginação de deus. Seu sangue vai secar dentro das veias. É contra o universo. A terra vai girar ao contrário. Será o fim do equilíbrio quase tácito entre todas as coisas. Você não se atreveria. Por outro poeta, não. Não se troca um poeta por outro. O quê? Ele não é poeta? Ah, ah. Que trouxa sou. Foi uma piada. Ufa, veja, me encharquei de suor. Pra dizer a verdade, acho que mijei nas calças. Meu doce de coco, meu tesouro, olha, tem coisa que não se brinca. Jesus, poeta! Ah, não.

Não, o rapaz da foto não é Jean Paul




Não, o rapaz da foto não é Jean Paul Sartre com uma prima da Simone, como muitos de vocês pensaram. Trata-se de Serge Gainsbourg. A moça é Jane Birkin. Juntos cantaram uma baladinha que nos meus tempos áureos de 1969 fez grande sucesso: Je t'aime.
Se a primeira sensação que você teve ao ver essa foto foi a de glamour escorrendo em camadas grossas e pingantes até solapar todos seus demais sentidos, tudo bem. A intenção era essa mesma.
Se sua segunda sensação foi a de sensualidade à beira da explosão, tudo bem idem. Gainsbourg era mestre nessas coisas.
Quem assistiu ao filme aquele sobre Gainsbourg, esqueça. Não me interessa sua fama de depravado, comedor, amante ou bebum. Me ligo apenas no poeta.
Gainsbourg devotou imensa energia a Birkin, sua musa. Fez de si mesmo uma fera, dela, a bela. De si, o fero, dela, a deusa.
Então o tempo passou e Birkin começou a envelhecer. Gainsbourg, ao que parece, não contava com tamanha traição. E quando o tempo passou, partiu para musas outras. Tem pecado que tem perdão, dependendo do pecador.

Postei o texto acima no blog há uns anos. Hoje tive a ideia de revisitar esse mágico cântico romântico-infantil no sempre, eternamente inacreditável utube.
Dieu, como Gainsbourg era feio. Lembrava, gulp, vejam lá, um sapo.
Que foi que a dríade Birkin viu no frog?
Talento.
A chispa imorredoura da arte.
Quando comecei a namorar a mulher que até hoje é minha mulher, e que é e sempre foi bela como Birkin, tive de comprovar mil vezes que era digno dela.
Primeiro, à família. O pai nunca se conformou. Planejava um príncipe. Como Birkin, ela optou por um sapo. A mãe e os irmãos também franziram a testa. E o nariz. E os amigos. E as amigas. Muitos, e muitas, nunca me dirigiram a palavra. Lhes sequestrei a princesa que até então estava destinada a rumar em segurança para o conto de fadas.
Foi, e é, uma caminhada de esplendor, gozo e percalços. Gainsbourg deu um pé em Birkin quando avistou a primeira ruga. Nós poetas ordinários levamos um pé atrás do outro quando nossa musa percebe que o gauchismo é pra valer.
Como Gainsbourg, sou talentoso. E feio.
Ao contrário de Gainsbourg, não tenho faro para o sucesso.
Muito menos para a grana.

Brasileiros de primeira e segunda classe

Vocês na certa se lembram duma tal de EPL, que é acróstico de Empresa de Planejamento e Logística. Há uns tempos escrevi sobre essa assombração em meu blog Delenda PT! (o ponto exclamativo pertence ao nome do blog, mais ou menos como Rede TV!, ai que chique).
A EPL foi criada em 2012 pelo Governo Federal como forma de concentrar o planejamento do trem-bala em uma só estatal.
Vocês na certa também se lembram que o famigerado trem-bala foi “esquecido” de fininho pela nossa valorosa Anta e seus cupinchas stalinistas. Não se falou mais no assunto (o que seria bom em outras circunstâncias).
Teria ficado mais ou menos por isso mesmo não fosse a nossa benfazeja EPL.
No annus horribilis de 2012 essa nova estatal foi fundada pela Gênia da Raça com, vejam só que modéstia, parcos 65 abnegados “servidores” públicos. Obviamente pensando nada mais, nada menos que no bem do País,.
Eis que, leio n’O Globo, com o projeto do trem-bala literalmente cancelado e a ideia de gastar incontáveis bilhões no trenzinho de brinquedo aposentada, a tal EPL hoje tem... Tchan tchan tchan... 161 barnabés! certamente dando o maior duro para ver se o Brasil desta vez deslancha. O jornalista d’O Globo ainda teve a paciência de comentar que o número de funcionários da EPL já chegou a 185, “mas foi reduzido pelo ajuste fiscal” au au au. E fez mais: foi pedir uma satisfação à EPL. E a empresa emitiu uma nota,  “explicando” que o aumento foi necessário para atender às demandas do Plano de Investimentos em Logística (conhecido por PiL, mas o acrônimo correto seria AI! AI! AI!).
Vocês também sabem que hoje dispomos de mais ou menos 600 mil incansáveis trabalhadores, encostados apenas na administração federal, dando o sangue pelos demais brasileiros. Não faço ideia de quantos cristãos temos em todas as repartições públicas sertão afora, incluindo as estaduais e municipais. Dois milhões? Cinco milhões? O chute é a serventia (epa!) da casa. Desses 600 mil, cerca de 144 mil foram adotados paternal e maternalmente de 2003 em diante, annus mirabilis da fantástica e triunfal entrada do lulopetismo no Palácio do Planalto.
Essa pequena quantidade de altruístas me comove às lágrimas. Trata-se de pessoas caridosas, filantropas mesmo, movidas tão-somente pelo ânimo de ajudar a família brasileira a galgar a pirambeira do progresso. Pois são esses benfeitores os responsáveis pelo Sistema Universal de Saúde, que finalmente atinge a absoluta perfeição depois de subir o estágio do “quase” definido pelo então presidente Lulla há alguns anos. Vocês todos estão cientes de que a ótima saúde do nosso povo hoje está nas mãos dos competentíssimos “médicos” cubanos – e nas garras dos igualmente piedosos hermanos Castros. E se ainda pouco fosse, Fidel e Raulzito nos cobram apenas dois bilhões de reais anualmente pelo empréstimo de sei lá quantos milhares de auxiliares de enfermagem, digo, profissionais da saúde. Bufunfa que a nossa presidAnta corre a pagar lampeira da vida. Essa é patriota ou não é?
Nossos nobres servidores públicos estão ainda encarregados da operacionalidade da máquina de fazer justiça deste país-continente, a qual, naturalmente, esbanja eficiência e rapidez. Tá certo que às vezes um ou outro processo pode demorar até 12 anos para ser julgado, sendo que a média deve pairar aí pelos seis, sete aninhos. Mas quem tá com pressa, afinal, não é mesmo? Olha que a afobação pode elevar a pressão sanguínea e você é bem capaz de ir parar lá no... SUS. É isso que ocê tá querendo, é? E esses carinhas enfiados no Sistema Judiciário, pobres, são verdadeiros operários de Têmis, a deusa grega da Justiça. Só pra ter uma ideia, veja você que alguns magistrados, já envergando o lustroso e listrado pijama da aposentadoria, embolsam parquíssimos 180 mil reais todo santo mês. INCLUSIVE OS APOSENTADOS COMPULSORIAMENTE por medida disciplinar por terem enfiado as finas mãozinhas no bolso alheio. É uma judiação ou não é? Esses os que já penduraram a chuteira. Pois os ainda na ativa, além do contracheque farto, recebem castos benefícios como auxílio-creche por filho de até 6 anos, auxílio-educação por filho de até 24 anos na faculdade, 180 dias de licença-maternidade, 90 de aleitamento, três a cinco salários mínimos por adoção até o filho ter 24 anos, reembolso de consultas particulares, passagens de avião para tratamento de dependentes, 10% do salário para custear a saúde, até R$ 15 mil por ano para livros jurídicos e materiais de informática, tudo isso sem necessidade de apresentar recibos fiscais (fala a verdade, essa gente é de confiança, precisa comprovar nada não), etecétera, etecéétera, etecééétera.
E pela ribanceira vai, que descer é mais maneiro que subir. Na Segurança Pública temos um exército de policiais civis e militares administrativos que colocam suas ilustres vidas em risco sob o ar-condicionado de seus frugais gabinetes que recebem incontáveis mamatas e se aposentam com faustosos salários. Contam as más línguas que até pouco tempo as filhas de militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica não se casavam de papel passado porque na condição de solteiras podiam levar uma ligeira pensão mensal até o fim de suas existências produtivas e úteis para o idolatrado Berção.
Na Educação alguns professores de universidades públicas faturam até cem salários mínimos e também vestem o pijama com provimentos nas nuvens. Até ontem a maioria saía correndo para assegurar a vida boa já aos quarenta e poucos anos.
Quando a questão é Previdência Social, o ônus recai quase todo sobre os ombros do trabalhador privado. Até onde sei, os funcionários públicos se aposentam com salário integral e os brasileiros de segunda classe, os que não têm estabilidade no emprego, os que vivem à mercê dos humores e chiliques do livre-mercado, esses, em sua imensa maioria, são contemplados com a estupenda pensão de um salário mínimo, mais, muito mais que suficiente para cobrir suas necessidades básicas e ainda guardar algum para um ônibus até o centro no fim do mês para levar a criançada conhecer o Viaduto do Chá.
Além da delícia de ter um emprego praticamente vitalício – o sujeito precisa cometer uma asneira muito das colossais para ir pro olho da rua –, conceitos como meritocracia, excelência, qualidade de trabalho, competência e eficiência em geral passam longe do ambiente das “repartições”. O servidor público parece habitar um mundo estranho em que não é preciso mostrar serviço. Isso de agradar o cliente – no caso, nós que pagamos os salários deles – tá por fora. No funcionalismo o cliente nunca tem razão. E vai reclamar do mau atendimento numa delegacia, numa unidade de saúde, numa escola. Tu leva uma bifa no meio das ideias, que é pra largar a mão de ser besta. Não é à toa que em muitas repartições eles pregam aquele aviso ominoso: OFENDER FUNCIONÁRIO PÚBLICO É CRIME.
Nós, clientes dos funcionários públicos, devemos aprender muito cedo em nossas vidinhas ordinárias que eles formam a casta que em última instância manda em tudo. E em todos.
Manda, primeiramente, nos políticos. Ou você já ouviu um deputado ou um senador declarar que ia cortar as benesses dos marajás? Collor bem que tentou, e só por isso merecia uma estátua, mas acabou nos dando nada mais que um baita prejuízo, pois tivemos de indenizar os servidores que o caçador daquilo roxo tinha despedido. Mesmo dos marajazinhos, os picuás que estão lá em baixo na pirâmide, sem aquele salário de ministro do Supremo, mesmo esses estão com a vida feita.
E a casta manda também nos jornalistas. Ou você já leu algum deles escrever que o funcionalismo no Brasil é uma classe privilegiada, com muitos direitos e poucos deveres, que recebe tratamento diferenciado, em detrimento de 95% da população? Inclusive jornalistas tidos por direitistas como Reinaldo Azevedo?
Claro que não. Ninguém, literalmente ninguém tem peito para enfrentar essa que é a quintessência do corporativismo. Os barnabés têm a força!
E vai perguntar se eles são contra ou a favor da privatização das estatais. Não teria nem graça, não é? Mais estatais, mais vagas, mais concursos, mais barnabés. Tudo no lombo do brasileiro da segunda divisão.
E sabe qual é o mais engraçado de tudo?
O mais engraçado de tudo é que esses autênticos humanitários vivem em greve. E se alguém na administração pública alega que não há verba disponível para aumentar seus salários, eles botam as bocarras no trombone, armam piquete, fazem cena diante dos fotógrafos, batem os pés no chão de tanta raiva, descontam no coitado da segunda classe que de repente fica sem metrô ou trem, sem hospital, sem polícia.
Por essas e outras uma nova legião despontou nos últimos anos no horizonte aprazível dos escravos do funcionalismo: os concurseiros. A máquina não pode parar, é claro. Os que se aposentam, adoecem ou morrem têm de ser substituídos. Mas depois que lulla inventou a lorota de que o estado deve ser maior que a nação, prestar concurso virou profissão. Todo mundo e seu professor de cursinho quer descolar uma boquinha. A gente também é de carne e osso, certo?
Quanto a mim, sou, de fato. Mas devo acrescentar, até mesmo para deixar claro que esta minha indignada invectiva não é algum tipo de acerto de contas particular, que há alguns anos passei em dois concursos para bancos federais e no fim optei por não preencher a vaga. Além disso, trabalhei dois anos em empresa estadual onde poderia ter me efetivado mas não o fiz. Não o fiz porque fiquei enojado das pessoas que lá trabalhavam, quase todas adeptas da preguiça institucionalizada, e dos esquemas praticados por cada departamento. Um desses esquemas era o seguinte: em outubro de cada ano o chefe verificava que a dotação orçamentária daquele ano não seria inteiramente gasta até o final de dezembro. Então nos reunia a todos e explicava, “Caras, se não gastarmos o orçamento integral agora, ano que vem eles reduzem a verba, estão entendendo? Precisamos resolver a situação”. Aí nos dava a cada um uma lista de fornecedores e um montante a despender, lembrando, “Não se esqueçam de pedir nota fiscal!” E lá se ia a grana do contribuinte pelo ralo.
A cultura brasileira se deixou inocular por essa estranha praga que leva o sujeito a pensar que o estado é um ente abstrato, que o estado fabrica riqueza, que o pagador de impostos tem infinita capacidade de ser taxado e taxado e taxado para levar no lombo esse devorador de verbas e impostos. E não é de agora. Os personagens dos romances do século 19 em grande parte têm empregos públicos. Pelas obras de Machado e de Lima Barreto, por exemplo, desfilam generais, coronéis, majores e milicos em geral, cônsules, embaixadores, juízes a dar co’ pau. Tudo levando aquilo que esse tipo de gente costuma pedir àquele ser onipotente. Até mesmo o beau monde da intelectuália dava preferência a uma sinecura estatal que permitisse ao doutor das letras aliviar o peso da cruz. Entre os poetas, romancistas, cronistas e intelecas que duma forma ou de outra arrancaram uma prebenda pública temos Drummond, Paulinho Mendes Campos, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Lima Barreto, Machado de Assis, Vinícius, Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Candido, Gregório de Matos, Mario de Andrade, Benedito Nunes, Ariano Suassuna, Celso Furtado, Euclides da Cunha, Manuel Bandeira, João Ubaldo Ribeiro, Murilo Mendes, Graciliano Ramos, ufa! E não ouse dar um pio que seja contra essa plêiade de barnabés. A própria crítica literária vê com muito bons olhos que essa gente arranje uma teta no estado para poder se dedicar a seus misteres artísticos na maciota. Em geral muito suor na testa atrapalha na hora de contar os decassílabos.
O grande arranca-rabo ideológico que toma conta da mídia e da imprensa e monopoliza a atenção de todos os brasileiros interessados nos rumos do País passa longe desta que é, para mim, a torcida de rabo da porca. Não avançaremos nas soluções das calamidades que nos assolam enquanto essa questão não for enfrentada. A recusa em discutir o papel – e o peso – do funcionalismo público no quadro econômico, político e social trava e continuará travando o debate. Lulopetistas e esquerdistas em geral têm os servidores como cúmplices, mais que simpatizantes. Eis mais uma razão por que a esquerda nunca, jamais será solução para nenhum dos nossos imensos problemas. E os ditos liberais, se é que o são de verdade, tremem de medo de botar o tema na mesa.
Resultado: parecem estar todos falando do sexo daquele serzinho alado que não tem sexo.
A elite à direita e à esquerda, ao lado do grande empresariado, da banca e dos políticos, é o funcionário público.
Na crise que ora atravessamos, das mais sérias das últimas décadas, milhões estão perdendo não apenas o emprego mas também bens básicos como suas próprias casas. Muitos perdem tanto o plano de saúde quanto a própria saúde. O barnabé, em contrapartida, apenas tem seus reajustes salariais postergados. E ainda choraminga.
E olha que a tal da EPL não tem nada de exceção não senhor. Parece ser é a regra. Dizem que atualmente nós pagadores de impostos labutamos mais de cinco meses a cada ano para carregar esse fardo nas costas. Os fanáticos agora querem ressuscitar a CPMF. Vê se tem algum barnabé fazendo passeata contra...

Árvore, a ti

o que leva a vida toda para explodir
o que leva o dia todo para cair
o que leva a noite toda para passar
o que leva toda a manhã para cantar

vestias o vestido bege de tafetá que não existia
te sentavas na relva do parque aonde nunca foste
me prometendo tua escassa, humilde mitologia
dos que desde a madrugada se pensam livres

sabiá devorador do tempo
de que te proclamas quando te esqueço?
Por que te repetes tão imprevisivelmente
Na anarquia das horas milenares, me
Fazendo palhaço dos palhaços?

Te odiei

Podia ter tomado meus caminhos batidos
Absorto sob a noite indecisa, como sempre
Cativo assombrado dos pensamentos
Olhos voltados para baixo, mãos enfiadas nos bolsos
Pés e pernas seguindo resolutos para lugar algum
Pisando em borboletas e fezes, minas explosivas
Sob as passadeiras de polipropileno e as
Ervas daninhas

Mas parei
Abri os olhos e, combatente do meu
Sossego, olhei em tua direção e
Te odiei
Quando a todos pago com indiferença
Te dando motivo para gargalhar
E então gargalhaste

Tendo te odiado, tornei à minha abulia
Tive um vislumbre do futuro
Te vi diante de sombrias barreiras
Te consumias sem saída
Percebendo-as derradeiras
Insuperáveis qual a morte
Inadiável fim do tempo
Enlouquecedora sideral solidão
A que nascemos todos predestinados
E em meu vislumbre não mais te odiei

Amor sem afeto

Quando o assunto fica sem mim, dou uma... assuntada nos jornais e revistas pra ver se ele me reencontra. Sempre enfatizando que, apesar da recaída, continuo fiel ao princípio de Drummond, e meu, de que nós serzinhos especiais dotados desta incômoda alergia de viver devemos nutrir desdém exemplar pelos acontecimentos.
Leio numa revista online aí que em breve uma carta enviada por Darwin a um advogado de sua terra irá a leilão em Nova York. Com 71 invernos, Charles finalmente se decide a responder a uma pergunta que lhe faziam insistentemente: do you believe in god, Darwin? (nunca sei se deixo god em minúscula ou maiúscula). A resposta se constitui de três meras linhazinhas e em suma diz que não, o autor d’A origem das espécies does not believe no, thank you. Estima-se que a folha com as três linhas possa alcançar 90 mil dólares.
Desde meus cinco anos e meio me encafifo com pessoas que creem nesse serzão fantástico que seria tudo que dizem ser e faria tudo que juram fazer. Naturalmente é noção nascida, junto com a civilização, da nossa cabecinha fantasiosa necessitada dum mínimo de significação existencial e compreensão do mundo. E que adotamos por herança, pois além de fantasistas, somos preguiçosos e damos preferência ao que nossos antepassados próximos e distantes já mastigaram por nós. Aí se inclui não apenas a ideia de deus mas tudo, ou quase, que pensamos de tudo. Por que, exatamente? Acho que porque, além de fantasistas e preguiçosos, ou por isso mesmo, somos tradicionalistas.
E por que somos tradicionalistas?
Estamos acostumados a favelas e indigentes e esfaimados e às dezenas de milhares de assassinatos impunes cometidos anualmente no Brasil e ficamos entorpecidos ante a selvageria em que vivemos. Nos tornamos tão letárgicos, que sequer a notamos. Até que de repente a mesmice leva um chacoalhão e nos lembramos pela enésima de que vivemos sob o império da violência.
O chacoalhão da vez é esse trágico êxodo rumo à Europa dos sírios em fuga da barbárie que desde sempre impera naquela região da Ásia. Assistindo às cenas de pais e mães com suas pequenas trouxas de roupa e crianças às costas em confronto com a polícia húngara na tentativa de chegar ao paraíso da Europa Ocidental, dispostos a abandonar tudo que tinham e se submeter a uma nova cultura e uma nova língua, o primeiro pensamento agoniado que me ocorreu foi até que ponto devemos nos subjugar à tradição para não nos reduzir a meros batalhadores pela subsistência e pela sobrevivência. Esse povo em fuga deixa para trás não apenas seus móveis, suas casas, suas cidades, seu país mas, sobretudo, o trabalho e o sangue de incontáveis gerações que o antecederam. Juntamente com a morte das pessoas amadas, o êxodo provavelmente é a ruptura mais dramática e dolorosa que pode ocorrer na vida de alguém. A quebra da continuidade deixa de ser um exercício acadêmico, como este que agora empreendo, ou uma possibilidade remota para quem, como nós classes médias brasileiras hoje, não tem muito com que se preocupar afora o que vai sobrando do lulopetismo e suas tentativas de nos transformar a quase todos, salvo banqueiros e grandes empresários, numa imensa Venezuela, onde facínoras como Chávez e bananões como Maduro aviltaram o Judiciário e o Legislativo a empórios do governo. Por isso não hesito em qualificar classes médias que andaram flertando com petistas totalitários de suicidas. Alguns, cheguei a torcer para que nunca mais pudessem comprar papel higiênico.
Não fosse a civilização moderna ocidental, esta que conquistamos e ora vivenciamos, propiciada, entre outros fatores, pela tradição, os costumes e a herança, nós brasileiros triviais que almejamos a progredir em todas as dimensões pessoais e sociais possíveis não poderíamos vislumbrar nossos próprios potenciais e talentos para concretizá-los. Essa afirmação não significa que nós relativamente bem de vida optamos pela indiferença em relação aos milhões de brasileiros que econômica e socialmente ainda se acham no século 18 – embora providos de celulares, tevês de plasma, linha branca e, uns poucos, carros populares que estão sendo retomados pelos amigos do Levy. Nada disso. Significa que somos responsáveis – sabemos que só nos resta trabalhar arduamente para mudar a realidade – e  humildes – estamos cientes de que não dispomos de ferramenta para mudar as coisas que não o voto, ao contrário dos aventureiros que neste momento estão em vias de bater em retirada depois de tentarem ressuscitar o delírio do stalinismo.
Que no ano de 2015 ainda exista quem acredite – ou diz acreditar – num regime que não deu certo em absolutamente nenhum lugar da Terra, é de cair o queixo.
A mesma maioria de viventes banais curte adoidado a tradição, embora não tenha lá grande consciência disso. A maioria dessa maioria até se dá o luxo de torcer o narigão para o passado ou coisas que o evoquem. Chegam a se idealizar os primeiros habitantes do planeta – e os últimos, sem antes, sem depois. Fico observando a molecada de agora, os ditos nativos digitais, e tento imaginar até onde a revolução da informação e da comunicação vai virar suas frágeis cabecinhas do avesso. Digo, no futuro. Dias desses O Globo – atualmente o melhor jornal do Pais – trouxe um artigo sobre um tal de Zygmunt Bauman, sociólogo polonês de que eu nunca ouvira falar (esses meus malditos poetas malditos nunca me dão um break, maledetos). Vou ver, vejo que é considerado “um dos maiores nomes da intelectualidade contemporânea”. Pinço uma citação de Bauman: “O pensamento está sendo influenciado pela tecnologia. Há uma crise de atenção, por exemplo. Isso se aplica aos jovens, em grande parte. Os professores reclamam que não conseguem lidar com isso. Até mesmo um artigo que você peça para a próxima aula eles não conseguem ler. Buscam citações, passagens, pedaços. Quando era jovem, passava muito tempo na biblioteca tentando ler cem livros para encontrar um pedacinho de informação de que precisava. Agora, basta pedir ao Google.”
E o jornalista conclui o texto assim: “Mesmo após toda essa lista de desafios, a mensagem que o dono de uma das mais influentes mentes no mundo deixou para o auditório na noite de ontem foi de pura esperança: — Educar, senhoras e senhores, é fazer um investimento nos próximos cem anos.”
Pura esperança? me assombro. Esses caras da mídia não perdem a chance de tentar injetar otimismo no coração arregado de seus leitores e telespectadores. Sabem como é, pessimismo pega mal e atrapalha o consumo desvairado sob o bombardeiro propagandístico que a própria mídia impinge sobre a molecada. Eis aí uma das agudas contradições atuais que talvez Bauman disseque em sua obra. Vou pedir um livro qualquer dele a um dos meus dois presenteadores semanais de livros. [Cheio de novidades pra contar, aliás. Montão de livrinhos novos.]
Muitos pretendem execrar a tradição e o tradicionalismo mas se confrontados confessariam que não dispensam a deliciosa sensação de home sweet home que nos ajuda a aceitar o calvário. Para a maioria, mais uma vez, a vida é um teatro de horrores. Os providos de relativa segurança física e psíquica e dum mínimo de conforto ainda são proporcionalmente poucos no mundo. A maior parte da Ásia e quase toda a África são infernos na Terra. A grande luta é, e sempre foi, levar a esses lugares a civilização moderna ocidental e suas benesses, tendo como maiores obstáculos o tribalismo que ainda reina naquelas plagas e o incansável populismo esquerdista para o qual o eterno satã continuam sendo – pasme-se – os EUA.
Sem a tradição e o tradicionalismo seria insuportável acordar cada manhã e ver que não sobrou quase nada da batalha de ontem. Mais ou menos como estão se sentindo os milhares de emigrantes sírios neste momento. Tudo que herdamos – digo, nós classes médias – e juntamos ao longo da existência, material, cultural e espiritualmente, enxergamos no dia a dia como um reconfortante sinal duma das nossas mais importantes dimensões, também fruto da tradição: a continuidade.
Virtualmente todos nós queremos e gostamos dela. Digo “virtualmente” porque incluo aqui bilionários e trilhardários como Bill Gates e o dono do face e aquele mexicano cujo nome não lembro e o lulla e meia dúzia de nababos mais.
Foquemos por um minuto, em benefício da ilustração, o olhar em nosso pequeno – no sentido de medíocre e desprezível – torneiro mecânico que, fugido da caatinga também como emigrante, veio a se tornar um homem incalculavelmente (na exata acepção) abastado, provavelmente o sujeito mais rico do Brasil. Quanto bilhões o boçal pilhou do Erário, ninguém imagina, claro. A título de exercício, chuto aí uns trinta bilhões. Pra cima.
Pois bem. Que é que impede um cara com essa bufunfa indecente no cofre de dar um espetacular fôdasse ao mundo e ir morar em Las Vegas onde poderia viver a babar pelas bailarinas dançando can-can ao lado de tigres e cangurus e araras sequestradas na Amazônia e manter uma, duas, três dúzias de amásias em suítes de hotel, forjando o conto das mil e uma noites do agreste que deve cultivar em seus delírios mais baixos de ser primitivo? Por que é que o primário insiste em manter aparências em que ninguém acredita, desfilando de mãos dadas com a esposa que corneou incontáveis vezes, dando espetáculos deploráveis em discursos ensandecidos e patéticos, se fazendo de palhaço diante duma nação inteira, sendo achincalhado de ladrão por onde passa, a ponto de ter se queixado dia desses de não poder mais ir a um restaurante?
Há um paradoxo nesse papo de continuidade. Mas apenas na aparência. Que é o seguinte: se nos limitarmos a continuar, não evoluiremos. Isso parece auto-evidente. Aqui também falo da maioria. Essa tá se lixando se evoluímos ou não. Por isso um rudimentar feito lulla é capaz de virar ídolo. A maioria simplesmente herda e dá continuidade na banguela ao que vem detrás. Em todas as dimensões humanas.
Graças a deus, vira e mexe aparece um empiastro no seio da família mundial pra bagunçar o coreto. E o aparecimento dessas ovelhas negras é tão providencial, que até parece desígnio daquele serzão onipotente oniciente onipresente. São os que por um motivo ou outro, por um objetivo ou outro, interrompem o suave – embora não tão suave quanto gostaríamos – passeio do homem e da mulher rumo ao paraíso. Uns empiastros vêm meramente azucrinar e causar sofrimento – os adolfs, os josephs, os luízes inácios. Outros, pra dar – ou tentar – uma força a nós sísifos crentes num deus que nunca nos livra dos diversos demônios disponíveis na praça. As ovelhas negras do bem são, bidu, os inventores, descobridores, cientistas e pensadores que nesses cinco mil e tantos anos de civilização vêm mitigando – ou tentando – o fardo que castiga nosso lombo de mulas fervorosas, robusto por natureza que é pra suportar quase todo tipo de tranco.
Um dos meus prediletos entre esses estraga-prazeres se chama Friedrich Nietzsche.
Se já houve neste planeta um sujeito revolucionário na acepção da palavra, foi Friedrich. Nietzsche não deixou – ou pelo menos tentou – uma pedra sobre a outra. Os que se espantam com os olhares singulares que, por exemplo, poetas lançam sobre o mundo certamente ficariam estarrecidos com o pensamento de Nietzsche. “Radical” não descreve nem de longe o furacão que ele representa no pensamento moderno. Os miolos-moles do politicamente correto de hoje, de todos os matizes ideológicos, teriam uma síncope se tentassem ler, e soubessem compreender, sua prosa. Nietzsche foi um moralista, não no sentido freudiano vulgarizado de quem condena no outro o que é e sim um homem que estipulou para si e seus semelhantes um código de conduta absolutamente rígido que deveria ser seguido com rigidez absoluta. Nietzsche foi implacável. Debocharia de conceitos como “margem de tolerância”, tudo bem, você é cristão mas que mal tem dar uma escapadinha vez ou outra, se deixar seduzir por um ou outro pequeno deslize, que mal faz cometer uma transgressãozinha que não vai prejudicar ninguém afinal? E se sentir desconforto demais com o pecado cometido, uma passadinha no confessionário e o problema tá resolvido. Ao contrário da maldita maioria desavisadamente tradicionalista, a manada (conceito caro para ele) que marcha para lá ou para cá sem saber por que, Nietzsche sabia duma coisa igualmente revolucionária: a pureza – de pensamento, de caráter, de espírito – é possível. E podemos atingi-la se quisermos. Acho que este seria um esboço razoavelmente correto de sua ideia de super-homem. Que seguidores nazistas e leigos vulgarizam a ponto do desvirtuamento para propósitos políticos ou falso-moralistas. Como aprendemos com lulla, dilma e haddad, a propaganda é alma daquela coisa que nem alma tem.
Não que pessoalmente me sinta à altura da super-humanidade. Seria o menos apto candidato a. Deixarei Nietzsche simplesmente como uma referência sólida no oceano de caos que inunda minha cabeça, como tantos outros pensadores, escritores e poetas.
O único livro de Nietzsche que li de cabo a rabo foi O anticristo. Como dizia o filósofo John Searle, Nietzsche deve ser lido como se beberica conhaque – um golinho parcimonioso de cada vez, tomando-se o cuidado de não enxugar a garrafa inteira.
Nietzsche teve colossal desprezo pelo conceito religioso – principalmente cristão – de que o homem está aqui apenas cumprindo escala, ou se preparando, para a verdadeira vida, aquela que vem depois desta. Para ele essa redução do nosso calvário a uma travessia (dilma terá razão?) terminou por fazer de nós escravos morais e nos impediu de alcançar a liberdade, a independência e a felicidade. E então me ponho a imaginar quão criativos poderíamos vir a ser e como poderíamos empregar nosso cérebro para encontrar nosso caminho verdadeiro rumo à evolução efetiva.
À medida que o império da tecnologia miraculosa, do horizonte sob o qual tudo parece possível, do conforto quase absoluto vai nos acachapando, a velha noção dum criador do universo vai perdendo força.
Chegamos a este ponto em nossa evolução por obra e culpa de cientistas geniais como Darwin e pensadores transcendentais qual Nietzsche. Eles ajudaram de alguma forma e em algum ponto da nossa caminhada a criar o wi-fi e as gerações destituídas de noção histórica. Eles sabem – e nós sabemos – que não se pode controlar tudo, ao contrário dos esquerdistas demagógicos que dizem querer mudar o mundo para embolsar a grana do gado choramingando no meio da manada. De minha parte sei que posso controlar a mim, e muitas vezes o controle me foge daquilo de que o controle adora fugir.
A declaração de Bauman aos professores, “Educar, senhoras e senhores, é fazer um investimento nos próximos cem anos,” não sei se a entendo. Talvez por não acreditar na educação. Ou melhor, em educadores. Estou errado, reconheço. Mas tudo – virtualmente – que sei, e pouquíssimo sei, aprendi sozinho. A tal maioria, claro, não teve oportunidade de desenvolver essa capacidade.
A garotada vem que vem quente. Tenho para mim muitíssimo claramente que pretender adivinhar o futuro é exercício acadêmico. Exercício acadêmico demagógico e, como toda demagogia, irresponsável e frívolo.
Cabral e Colombo partiram rumo a terras desconhecidas mesmo imaginando que o oceano abrigava monstros marinhos que podiam afundar as naus e em certas regiões não permitia a navegação porque a água fervia. E não desprezavam a hipótese do fim do “mundo”, onde navegantes tinham caído para nunca mais voltar.
A classe explodiu numa gargalhada de escárnio quando a professora acabou de falar. Inclusive este cético que hoje tá com a macaca perorante. Que jumentos! Que atraso!
A rapaziada tem de ter calma. Encetamos nossa viagem civilizatória há apenas cinco milênios. Segundo os homens que estudam as estrelas, o Sol vai se apagar daqui a dez milhões, cem milhões de anos? Até lá ninguém mais se recordará do conceito do Chefe pairando lá em cima a cuidar de tudo e de todos. Teremos cruzado pelo caminho com incontáveis darwins e nietzsches e ante as novidades com que esses inumeráveis gênios do futuro brindarão a moçada de então nossa internetezinha capenga não merecerá nem mesmo chacota.
Uma vez tive um vizinho. Ainda tenho, mas estes não vêm ao caso. Aquele vizinho era espírita. Um dia sua mãe morreu. Subsequentemente comecei a escutar uns ruídos estranhos vindos da casa dele no meio da madrugada. Soube depois que os ruídos eram causados por um rádio fora de sintonia. Era o cara passando noites tentando se comunicar com a mãe no outro mundo.
Doutra vez tive um amigo que desdenhava do meu ceticismo dizendo que eu só acreditava no que via. A segunda intenção era clara – ele se achava um privilegiado. Ou, se preferirem, um predestinado. Se quisesse – e de fato queria –, era capaz de crer no que aparentemente não existia. Eu que me estrepasse com meu pobre pragmatismo espiritual.
Crentes desse tipo fingem ser humildes quando na verdade são presunçosos. Mil vezes este desprezível descrente teve de sustentar seus olhares de superioridade. E em sua arrogância pretensiosa, não se conformam. Querem pelejar. Te passar uma lição. É por causa de empiastros feito eu que a catástrofe se abateu sobre a humanidade.
Dar curso à essencial continuidade não é tão simples quanto pode parecer. O que é bom continua e o que é ruim também. Cabral não teria se perdido no meio do caminho rumo às Índias se soubesse.
A verossimilhança espiritual da existência dum ser supremo se extinguirá cedo ou tarde. Supérfluo acrescentar que é óbvio. Se a função da ideia de deus é, para Nietzsche, nos manter reprimidos e oprimidos, não será o deus da internet que nos libertará dessa vocação a aceitar tudo que veio antes de nós acriticamente.
Queria dar continuidade a este post até depois de amanhã, mas agora quero escrever um poema. Um poema, pra variar, pagão.
Fiquem com deus. Amém.