Me diga, como você pode abrir mão dum
poeta? Já teve um antes? Não, nunca. Pela sua cara, vê-se que não toleraria um.
Poetas dão trabalho. “Trabalho”? Essa é nova, poeta eufemista. Poetas são é
fardo. Afinal, pra que presta um sujeito com visão de mundo? Com visão
pessimista, desfocada, esquizóide, estapafúrdia de mundo? Visão de mundo é
coisa de astronauta, aquele do “a terra é azul”, que deus o tenha. Carinha
queria que fosse o quê? Rosa pinque? E essa minha dolorosa inquietação? Ah,
vejo um risinho aí no canto da sua boca, não é? De sarcasmo, bem sei. Okay,
tira a “inquietação”. Inquietação é pra poetaço daqueles de nobel. Não passo
dum atabalhoado. Não, atabalhoado ainda soa literário demais. Trapalhão, isso
sim. Mas, pombas, admita, vez ou outra cheguei a trapalhão lírico, não cheguei?
Digo, lembra aquela uma ou duas vezes que você riu duma tirada minha? Boutade,
você diria? Que nada. Nunca logrei boutade nenhuma, não. Não levo muito jeito
com as palavras. Estou ciente que, prum poeta, fica meio estranho. Fazer o quê? É só mais uma das minhas, com perdão do clichê, inconsistências.
Coisa de... Adivinhou: poeta. Trapalhão, mas poeta. Ou, se preferir, poeta, mas
trapalhão. E, falando em clichê, você acha que devemos fazer das tripas coração
para evitá-los? Digo, tem neguinho aí que não usa um clichê nem que a vaca
tussa. O resultado em geral fica meio estranho. Pra não dizer ilegível. Mas o
que importa é a originalidade, não é mesmo? Viu como é? Não levo jeito pra
poesia, muito menos pra boutade. Sempre morri de inveja do wilde. E do twain.
Quando moleque, tinha todas as melhores do oscar na ponta da língua. Não posso
negar que tentei. E ainda tento, às vezes. Nunca cheguei perto... Bom,
aquelazinha... Até que você gostava. Lembra? Eu declamava toda manhã quando
você abria os olhos e me via te observando. Deus meu, você me inspirava, moça!
Sabe qual era o meu maior medo? Não, não sabe, pois nunca lhe contei. E, se não
lhe contei, você não sabe. Você é assim, sem encucações. Você é simples. Não se
dá o trabalho de sacar o que não é explícito. Simples e previsível. No bom
sentido. Pois é, nem toda previsibilidade é ruim. Os aeronautas que o digam.
Ah, como invejo essa sua capacidade. Você sabe, me refiro a essa mania, essa
minha irritante mania de ficar pescando o, ugh, subliminar. Coisa mais chata,
seu. Meu maior medo, dizia, meu maior medo era um dia te perder e ficar sem
inspiração. Me dava calafrio. Toda manhã acordava de madrugada, ficava lá
quietinho te olhando pasmo, absorto e outros adjetivos subpoéticos mais,
brincando com a idéia de que um dia você ia me largar, eu curtia pacas a
brincadeira — tudo bem, pode me chamar de masô, já tô acostumado, todo poeta,
pretenso ou não, é masô, nasce pra levar ferro, tanta felicidade dando sopa por
aí, não é não? tanta dona gostosa pra comer, tanto chópin arretado pra passear
e torrar grana ao cair do crepúsculo... — aliás, por que será que crepúsculo
cai, tardinha cai, noitinha cai, — às vezes, no meu caso, até desaba como se
tivesse tropeçado nas minhas dores —, e o dia apenas nasce, raia e outros
quejandos edificantes do tipo? Engraçado como a gente acaba escolhendo que nome
dar às coisas, não é? — Bom, estava dizendo, me amarrava naquela brincadeira de
ficar te olhando imaginando te perdendo, então a angústia vinha, uma angústia
espinhenta, caroçuda, que eu não podia conter de tão insuportável, vinha só pra
se atenuar em seguida sob a saraivada de contrapensamentos que eu disparava
contra ela, até vencê-la e declará-la morta — morta pelo menos durante a próxima
meia-hora. A graça estava exatamente aí — em me penitenciar imaginariamente com
meus próprios terrores. Mas, hoje, vendo você ir embora assim de verdade, me
pergunto, de que serve minha imaginação se não me ajuda a te convencer a não
desistir de mim? Então sou obrigado a admitir — não sei se estávamos em guerra
— estávamos? —, se estávamos, você aparentemente ganhou, minhas graçolas
temperamentais não me valem de nada, não enchem barriga, no pitoresco
caipirismo da minha finada mãe, coitada da minha mãezinha, tanta esperança
nutria pelo guri que se mostrou um pamonha depois que cresceu — tudo bem,
admito, já era um pamonhinha quando criança — sabe aquele meu retrato em que
estou c'uma gravatinha borboleta que parece feita de palha de milho? — e se de fato
cresci, foi só em tamanho —, pensando em mamãe agora, vocês duas até que se
dariam bem, acredite, jamais haverá neste mundo outras duas mulheres tão
devotadas a massacrar os pífios pendores artísticos dum cristão, espezinhar o
natimorto talento com que o miserável nasceu pra uivar pra lua —, mas, pombas,
me explique uma coisa que nunca entendi, embora também nunca lhe tenha
perguntado, morria de medo de tocar no assunto, seria o mesmo que armar minha
própria arapuca, mas agora que tudo acabou posso enfim abrir o coração, então
aí vai, que foi que você viu em mim afinal de contas? Não, não é falsa modéstia
coisa nenhuma, estou querendo saber honestamente, mais, estou me juntando aos
senhores seus pais e parentes e amigos que desde o primeiro dia em que nos
viram juntos abriram aquela boca do grito de munch, ojeriza, perplexidade, sei
lá, estava escrito na cara de cada um deles, que foi que a nossa princesa viu
nesse paspalho feio, taciturno, resmungão, vesgo, desajeitado, narigudo, jeitão
de quem não é chegado a um banho, arrogante, perna torta, vozeirão mole e
enjoado feito o arauto agonizante do fim do mundo, diga, minha deusa impiedosa,
que foi que você viu em mim? Só não confesse, rogo, não confesse que teve pena,
mesmo afeito ao melodramático eu não aguentaria tão medonha revelação, não
sendo isso, pode se abrir, agora que não pertencemos mais um ao outro sejamos
sinceros, eu pelo menos estou sendo, nada mais há a ganhar, a perder, bem,
certas coisas não vale a pena desenterrar, afinal isto não é um ajuste de
contas, eu só queria lhe perguntar, pombas, como você pode abrir mão dum poeta?
trapalhão, vá lá, e, sim, poetas dão trabalho, mas olhe bem nos meus olhos e
diga se não valeu a pena, diga, se tem coragem, posso não ser o vencedor que no
fundo você sempre buscou, posso não saber ganhar a grana preta de que precisa
pra comprar esses badulaques com que você emoldura essa tua vidinha reta sem
acidentes de percurso, tudo bem, sei que é pra combinar com a área de
arquitetura de interiores em que você trabalha, mas, pombas, deixe de ser
durona, confesse que pelo menos umas três ou quatro vezes te fiz rir, provoquei
uma gargalhada leve que te fez olhar pro céu com esses seus olhões sonhadores,
não fiz? e pelo menos umas cinco ou seis vezes te fiz chorar, mesmo que tenham
sido lágrimas de crocodila, mas, seja como for, sinais, que você não conseguiu
esconder, de que eu tinha atingido algo aí dentro do seu coração de pedra e aço
inoxidável, tudo bem, hoje confesso, confesso que faço essas coisas quase sem
querer, ao acaso mesmo, mas, jesus, você sabe, sabe que tentei, e tentar
significa alguma coisa, não significa? pois, você também sabe — afinal teve
tantos homens em sua vida, é mulher experiente, mestra honoris causa em blefar
no pôquer da vida —, você também sabe que a maioria por aí só anda atrás de
rabo-de-saia, pode rir, sei que estou falando feito heroína de telenovela
feminóide, rabo-de-saia, urgh, mas quantas vezes trocamos confidências qual
duas maricotas, quantos segredos íntimos você me contou como se eu fosse sua
comadre, lembra? Eu mal prestava atenção no que você dizia, me deixava encantar
pelo brilho de cumplicidade nesses seus olhões de fada, diga, que outro homem
poderia desempenhar com tamanha naturalidade sua porção feminina que não um
poeta? Por isso, resolvi vir aqui te perguntar, diga, como você pode abrir mão
dum poeta? trapalhão, reconheço, poetas são um fardo, os trapalhões mais ainda,
mas, sendo um, mesmo de meia-tigela, um belo dum poeta de meia-tigela, não
consigo imaginar. Imaginar uma razão, digo. E, olha, imaginação não me falta.
Tudo bem, também sei que você não engole carinhas com imaginação. Pombas,
imaginar o que, não é mesmo? Se você não estivesse com tanta pressa de ir
embora, de cruzar pela derradeira vez esta porta de madeira compensada, eu
poderia lhe dizer o quê. Fica pra próxima. Certo, não haverá próxima. Sendo
assim, deixa pra lá. Sejamos honestos, imaginação em geral só atrapalha, não
atrapalha? o mundão aí fora pra conhecer, a vida pra viver, tanto prazer pra
fruir, porra, e carinha fica lá no escuro, introspectivo, falando sozinho,
cozinhando e comendo os próprios sonhos como se estivesse numa padaria
metafísica, parece doença, não parece? pombas, a gente tem é de ser feliz,
lembra quantas vezes você me advertiu? eu fazia que sim, alheio, alheio pra
variar, você torcia a boca de impaciência, sei que fui um pé no saco, imagino
quanto te fiz sofrer, toda essa sua vitalidade animalesca, esse corpão pra dar
e vender, e eu ensimesmado, às voltas com meus fantasmas, minhas quimeras,
eternamente zonzo em luscos-fuscos existenciais, ególatra inebriado de cachaça
e de mim mesmo, uau, olha, entendo, agora entendo, deus, como pude ser tão
cego, essa minha falsa sensibilidade, gosh, sou uma besta, mas, olha, mesmo com
o tico de imaginação que deus ou sei lá quem me deu, posso bem imaginar, posso
bem imaginar quem vai me substituir ao seu... Óuffff! Veja só, quase digo “ao
seu lado”. Me calei a tempo, graças. Me diga, alguma vez estive ao seu lado?
Alguma vez você me deixou ficar ao seu lado? Não, não é a isso que me refiro,
fisicamente, vejo agora, fisicamente quase não tem mais importância. Puxa, só
me sentia de fato ao seu lado à noite na cama, enquanto você dormia. Ai que
solidão, christ, como eu queria rezar, espremia a memória tentando lembrar o
pai-nosso que estais onde? onde estás, afinal, paizão? estará atrás da porta
escura onde às vezes penso — penso? — enxergar unhas vampíricas se estendendo
em minha direção? estará sentado à mesa no escuro da cozinha enquanto todos
dormimos, menos eu, que apenas finjo? ou estará simplesmente esquecido dentro
duma gaveta do passado, as incontáveis gavetas da cômoda no quarto que
guardavam meu mundo pra mim enquanto eu delirava de vazio com os olhos fixos
nas trevas do teto, cruzes, pensar que em casa rezávamos o terço toda noite
antes da novela das sete na tupi, eu era apaixonado por uma das marias, aquela
manca, sabe?, não lembro se do pé direito ou do esquerdo, morria de pena da
pobrezinha, era apaixonado pelas outras também, obviamente, posso não ser poeta
stricto senso, mas coraçãozinho de manteiga, esse nunca me faltou, guardo
toneladas de manteiga, ou, se preferir, margarina rançosa com muito sebo, na
meia-tigela que me coube, veja, veja como transborda a metade da tigela que me
coube, diga, peço, quem é que você vai amar agora? Por acaso será o engenheiro
que projeta os próprios sonhos contando realizá-los, como se sonhos fossem pra
ser realizados? Será o contador que calcula todo próximo passo que dará na
vida? Já pensou? Já pensou como deve ser letalmente entediante um carinha que é
previsível em cada palavra, em cada riso amarelo, em cada suspiro? Diga, by
god! É por um defunto desses que vai me deixar? Ou será por um garçom cheio de
dedos e salamaleques e com-licenças que adivinhe seus caprichos e lhe entregue
tudo numa bandeja de prata e se afaste em silêncio numa mesura submissa, a
encarnação da deferência que você sempre me exigiu e eu nunca soube lhe dar?
Diga, por deus. É por esse, ó mãe, projeto-de-vida que vai me largar? Ou será...
Sim! Como fui tão cego? Só pode ser. Apesar de viver no mundo da imaginação,
agora está tudo claro. Finalmente. Ele tem pau grande. Não posso acreditar. Ser
trocado por um caboclo fornicador. É tão... tão... anticlimático. Foi só isso
que sobrou do nosso projeto metafísico? Gosh, e toda a filosofia que ousamos? E
a nossa cosmologia? Que é que vou fazer agora com aquela nossa cosmologia que
eu acalentava qual um filhotinho de labrador virtual? Tudo por uma rola tamanho
família. Então era esse seu, com perdão da boçalidade, sonho de consumo? Quem
diria. Eu, aqui maravilhado com meu suposto poder de imaginação, não imaginei.
Maldito pendor às coisas do espírito! Praga de vocação para a intelectualidade!
Senhor que estais no céu, fazei deste humilde servo um animal bem dotado pra
reprodução da espécie! Quer dizer que tudo era uma questão de centímetros?
Arre, maldição católica de menosprezar os desejos do corpo. Tinha nas minhas
mãos frágeis de teórico da vida uma cadela prestes a se incendiar de volúpia
carnal, tinha em minhas mãos e não vi! Mas, diga, meu anjo ninfomaníaco, um
simples dildo de borracha não resolveria? Ó deus, podíamos ter usado a
imaginação! Que tragédia por um pinto. Ora, direis, não se abandona um poeta
por um pinto. A lei não permite. O presidente proibiu. Meu pai que jaz no
túmulo há 30 anos não deixaria. Ou será...? Não! Isso não. Eu não deixo. Por um
pinto, até aceito. Me conformo. Pensando bem, eu no seu lugar talvez fizesse o
mesmo. Mas isso não. Jamais. Não pode. Não tem cabimento. Mulher alguma jamais
fez isso. Jamais. É desumano. Cruel além da imaginação de deus. Seu sangue vai
secar dentro das veias. É contra o universo. A terra vai girar ao contrário.
Será o fim do equilíbrio quase tácito entre todas as coisas. Você não se
atreveria. Por outro poeta, não. Não se troca um poeta por outro. O quê? Ele
não é poeta? Ah, ah. Que trouxa sou. Foi uma piada. Ufa, veja, me encharquei de
suor. Pra dizer a verdade, acho que mijei nas calças. Meu doce de coco, meu
tesouro, olha, tem coisa que não se brinca. Jesus, poeta! Ah, não.
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