Pássaros do passado

Antes de tudo há de admitir que todos foram chamados ao salão de festas do prédio e antes da reunião pediu-se ao zelador que providenciasse uma boa faxina. Também aplicasse lustra-móveis na mesa e cadeiras e, sem querer abusar de sua paciência, limpasse o grande lustre de cristal que paira imponente sobre a mesa. Se possível, polisse os estofados.
O primeiro a chegar foi o investidor, como era de prever. Aproximando-se sem sorriso ou outro sinal de cordialidade, apertou mecanicamente a mão. Depois escolheu uma cadeira bem na metade da mesa.
Em seguida veio o poeta, que se limitou a puxar a boca para um lado à guisa de cumprimento.
Então chegaram, pela ordem, o quitandeiro, o farmacêutico, a tia em segundo grau, a costureira, o cliente, o contador.
E assim por diante.
Quando estavam todos acomodados, resolveu-se que os lugares deviam ser trocados. Algo parecia indescritivelmente errado.
Trocaram.
Trocaram e trocaram, várias vezes até que as cadeiras pareceram arranjadas da forma impotentemente menos insatisfatória.
Quando pareciam estar em estado de mínimo conforto em seus lugares, lhes foi proposto um bacanal arretado que elevasse a todos um tico que fosse acima deste sufocante cotidiano em que nunca acontece nada digno de nota e nos parece amarrar tolhendo braços e pernas como se estivéssemos metidos numa gigantesca cumbuca de angu.
Não precisa ser agora, explicou-se com receio de que não topassem. Se quiserem deixar para a semana que vem, sem problema.
Cada um se recusou.
Não sem razão.
Papai alegou que já estava morto, seria barra pesada ejacular um esperma gasoso e sentir sua etérea Rola numa Buceta Morna Encharcada de Vida.
Sancho Pança, à época do convite, estava meio enroscado numas barbeiragens das brabas em que se metera com a filha dum político e decidiu, acertadamente, declinar.
Waldirene pra variar perambulava pelas ruas de Sanca, entrando e saindo de nossas casas, mumunhando asnices a quem estivesse disposto a escutá-las – e, pasme-se infinitamente, sempre havia alguém –, preferiu-se não distraí-la (e ela certamente se revelaria um desastre no bacanal, levando todos a um tédio genocida se resolvesse abrir a bocarra para jorrar mais um dilúvio de falação sobre aqueles assuntos que nenhum de nós nunca entendia direito de que tratavam).
Sílvia, ver outros machos lhe traçando a Perinha Celestial nem pensar, introduzindo metade do dedo médio em seu angelical rabicó jamais, lambendo-lhe as tenras orelhinhas com linguaradas lentas e lascivas que a lavassem até largá-la lassa, lânguida e lívida de prazer em outros braços, nunca.
Silvinha, Tiaeva vetou, os agentes literários, o cliente e o investidor não seriam boa companhia para a menina.
A própria Tiaeva recusou dizendo que não suportaria ver brochar a Rola em outros braços que não os dela.
Marlene também estava descartada, não iria se Sílvia não fosse.
A última esperança era a engenheira Fátima. No sôfrego telefonema dado a ela, a engenheira Fátima lamentou, pedindo exageradas desculpas, alegando estar às voltas cuns complexos testes de componentes eletrônicos que não seria possível postergar, jurando que no próximo não faltaria.
Por fim concluiu-se pela limitação aos agentes literários da firma, ao contador, ao paraguaio ranzinza, ao sofredor superficial e ao matemático.
E assim cancelou-se o evento. Orgia só de homem, ugh.
Compadecido do desapontamento, Sancho Pança sugeriu:
– E se fossem convocados os pássaros do passado? – arqueando as sobrancelhas no gesto típico de animação que lhe emprestava uma expressão histriônica ao rosto balofo que em geral remetia à máscara hirta de Rosa.
Na hora o nariz se torceu mas, findos alguns momentos de reflexão, concluiu-se que talvez fosse uma boa. Fazia algum tempo vinha cozinhando a idéia dum reunion com os referidos pássaros, mais por falta do que fazer em certas noites, sob o aporrinhamento solitário no escritório, diante do computador, quebrando a cabeça para descobrir a senha do arquivo deixado de herança por papai.
Sem problemas.
E Sancho Pança ergueu ainda mais as sobrancelhas, excitado.
Mas você se encarrega de levantar os endereços. E mandar imprimir os convites. E pôr no correio.
– Sem problemas. Afinal, pra que serve um sancho-pança? – Ele se mostrou surpreso com a decisão.
Ficando resolvido assim.
– Mas em vez de reunio­n, chame-se de festival – propôs. – Esses estrangeirismos ficam meio pernósticos, mesmo no caso.
Chamasse do que fosse. Desde que viessem todos.
Alguns dias depois bateu à porta no escritório, pediu licença e tirou uma amostra dos bolsos do paletó, dizendo, manja só como ficou bacana.
Um polegar uniu-se a um indicador e, fazendo um cículo no ar sobre a mesa atulhada de papéis, pinçaram o convite, impresso em letras pretas discretas sobre em papel reciclado pardo, envelope também reciclado mas em outro tom mais sépia.
Os olhos leram:

Prezado(a)… no dia… às… à rua… terá início o Nosso Grande Festival, a realizar-se às… horas do dia… de… Como você certamente sabe, é em prol de boa causa, e tudo que humildemente pedimos é sua doce presença. Por favor, não falte. Você é profundamente importante para nós (todos). Queríamos poder fornecer mais informações a respeito, mas o papel, você sabe, anda escasso. Podemos adiantar, entretanto, que o festival será em homenagem própria. Celebraremos o mistério da nossa vida, que, como você igualmente sabe, não tem mistério algum.
Assinado…

Os mesmos dedos devolveram a amostra a Sancho Pança, a cabeça fez que sim, a boca recomendou:
Apareça para dar uma força, está ouvindo?
Ensaiando um muchocho, ele reclamou:
– Bem agora que queria tirar umas férias?
A única resposta que obteve à insolência foi um olhar incandescente de frio.
Chegado o dia acordou-se bem cedo, como sempre.
Determinaram-se os preparativos finais, deram-se os últimos telefonemas e sentou-se à poltrona marrom da sala, tendo antes as mãos (e os braços) fechado as cortinas para que o ambiente permanecesse em penumbra. Assim, solitariamente – também como sempre -, Com ansiedade mas ao mesmo tempo o coração tomado de surpreendente paz, esperou-se sentado, os olhos pousando aleatoriamente na silhueta indefinida de cada móvel, o espírito absorto em pensamentos igualmente vagos.
Até que a hora marcada finalmente chegou.
Os quadris levantaram-se, as pernas dirigiram-se ao salão de festas, os olhos diligentes inspecionaram alguns detalhes e a sombra postou-se ao portão principal para iniciar a recepção.
Vieram todos, convidados ou não. Muitos, talvez a maioria, pareciam estranhos, a memória não conseguia lembrar-se de onde ou em que circunstância foram conhecidos. De alguns recordou-se quando os olhos os avistaram – qual objetos velhos dentro dum armário no porão, estavam ainda esquecidos na lembrança à revelia da guarda inconstante da própria memória. Outros, foi possível identificar à custa de algum esforço dos neurônios e truques mnemônicos por meio de associação a terceiros ou a ocasiões ou lugares.
Todos chegavam e se punham nesta direção para que se lhes fizesse as honras da casa. A maioria trazia no rosto afável sorriso de boas intenções, evidenciando que vinham com espírito desarmado. Alguns eram apenas diplomaticamente formais, outros, diplomaticamente simpáticos, outros, indiferentes.
A melhor política do bom anfitrião é oferecer a todos os convidados exatamente a mesma deferência – fazer distinções é fatal para o sucesso do evento. Para não se deixar desorientar pelos sentimentos que se têm em relação a cada um deles, aferrou-se tenazmente a esse princípio à medida que a memória os identificava.
Ah, aquele ali é um velho conhecido de papai cujo nome nunca se soube e que servia apenas como mais um dos milhares de figurantes assíduos do teatro pessoal.
Aquela outra moça surgira de repente na classe para substituir a professora de Geografia que adoecera. 1968. Seu nome também passou sem registro, seu rosto existia mas não evocava nada, constituindo apenas mais um dos absurdos a que nos conformamos todos.
Aquela criança foi conhecida e odiada mortalmente num playground, a outra fazia ginástica na mesma classe, aquele é um garçom com quem que um dia discutiu-se por causa da conta do jantar, detentor de ódio descomunal por pelo menos uma noite de assoberbante embriaguês.
De cada um deles a mão apertou a mão, mas em nenhum, absolutamente nenhum instante os olhos se olharam nem se dirigiram ou balbuciaram palavras aos ouvidos, mesmo as defensivamente protocolares.
Os que chegavam acompanhados eram divididos e distribuídos em lugares separados no salão, incluindo os casais. Os que vinham sós eram unidos aos grupos que se iam formando sem critério distinto.
De todo modo, foi possível obter uma boa mistura.
Trabalhava o cérebro enquanto as pernas faziam uma ronda pelo salão. Todos conversavam sobre os mais variados tópicos, em geral interessantes como enfartes súbitos de conhecidos, revoluções em países distantes, quedas de aviões ou felizardos que haviam tirado a sorte grande na loteria, outros mesmo curiosos, como um vizinho que havia fugido com a empregada ou um primo flagrado depois da aula de Geografia com o professor.


Os não convidados eram os mais à-vontade – alguns mostravam-se até francamente entusiasmados. Os de fato convidados agiam – ou deixavam de agir – como se esperassem uma ordem.
Passados dez minutos verificou-se a lista, concluindo-se que estavam todos presentes. As pernas rumaram para o meio do salão, as mãos bateram delicadamente algumas palmas para chamar a atenção de todos e a voz anunciou com insuspeito tom solene:
– Senhores  e senhoras, sejam bem-vindos. É com imensa gratidão e entusiasmo que saudamos a presença de todos neste singelo festival. Dito isto, será dado início imediato aos festejos.
A cabeça fez um ligeiro aceno numa certa direção, em sinal cifrado para que a festa começasse. As portas foram abertas e solicitou-se a todos que se dirigissem ao pátio do jardim interno.
Sem interromper os assuntos com que se entretinham, eles se puseram em direção à porta.
Quando todos haviam encontrado um lugar no pátio, ouviu-se um baque seco e uma porta pesada se abriu. Todos os olhos se voltaram para a direção do ruído e viram Sancho Pança a bordo de um jipe willis 1951, motor dianteiro de 4 cilindros a gasolina refrigerado a ar com 90 cv, câmbio de 6 marchas para frente ou para trás, tração 4x4 e uma gigantesca metralhadora 7.67 mm, 300 tiros por segundo, com capacidade para perfurar chapas de até 20 mm.
Ato contínuo, a arma desandou a cuspir balas em saraivadas inescapáveis e num matraqueio seco e imperativo.
Um a um, dizimaram-se todos.
A cabeça acenou numa direção. Sancho Pança saltou do jipe e se dirigiu a uma cortina, que descerrou. Atrás dela havia uma enorme gaiola.
Ele abriu a portinhola e milhares de pássaros se lançaram rumo às alturas, para todas as direções, destino desconhecido. As mãos bateram palmas secas.


Aí está, leitor, por que temos um sancho-pança. E esse foi o fim da caça aos pássaros do passado.
Os pássaros do passado continuam a sobrevoar o horizonte. Não é sempre. Dias há, porém, em que velam a luz do sol e uma noite negra artificial encobre o mundo.



Nada está parado

Deixei a velha de 69 anos grávida na bacia do banheiro.

Ela jogava água acima da cabeça, enfiando uma das mãos entre as pernas e o sabonete na boca.

Soube das pessoas em meu quarto e não deitei por quatro noites.

As garrafas pegaram -- Não, o fogo queimou nas garrafas de conhaque, mantendo longe os insetos da minha -- não, desta casa.

E -- sim, e a amiga da família baixou as calças até os joelhos e ainda vou melhorar.

Trancou-se -- (trancou-se? como assim?) no banheiro da empregada (não tínhamos empregada) e meteu a cabeça no aparelho de anticoncepção e esfregou-se com a esponja de vidro ao som da (minha) batida.

Enquanto a paralítica quebrava com a bengala a cabeça da minha mãe, saindo à rua de camisola de babados, arrastando a bengala no meio das pernas.

Senti (um) nada ontem e tomei umas pílulas até (as três de) hoje.

Saí procurando um antigo e medíocre amigo, me deitando em seus sorrisos e retalhei o estômago com o copo normal e parei de gritar em meus ouvidos e alcei os cabelos e os toquei ao som de cânhamo e desembacei os vidros e não há alternativa (nenhuma).

(Toquei) (o fogo) (das mãos) (para perto do núcleo) (das coisas) e destruí as bonecas, os panfletos, as garrafas, as partituras e o lixo, as estátuas, as cordas de chumbo, o breu das velas, o aço dos pedestais, o plástico do cabo (dos punhais) e o corpo duma mulher-entidade.

O filho

Para um filho, de um filho



O filho
Quando nasceu ainda não sabia que era filho. Quando nasceu sabia que tudo era em vão, pois chegava a este mundo trazendo a experiência vazia do nada. O filho revirou os olhos mas não viu ao redor - não sabia ver para fora. Seu campo de vista não ultrapassava a escuridão e ele só enxergava seu próprio deserto devastado. Nos primeiros momentos ainda pôde alimentar a fria chama de esperança de que nem todos os pensamentos que a autocensura deixaria seu cérebro verter ao longo do resto de sua existência seriam consumidos unicamente na luta pela salvação.

A salvação
Ó meu bom Jesus
Que a todos conduz
Olhai as crianças do nosso Brasil

O filho podia perceber a presença de algumas pessoas nas proximidades (embora as proximidades fossem um nebuloso país longínquo habitado por filhos condenados a entoar o hino da redenção e a errar eternamente entre os cômodos da casa e o quintal iluminado pelo sol que nunca brilhava). Sim, havia pessoas por perto que pareciam não haver. Antes que as houvesse era preciso tê-las e isso ele não poderia, pois seu olhar atento e ao mesmo tempo desiludido e demasiadamente devassador não podia abarcá-las. Eram as pessoas transparentes (dos delírios de vidro acanalado, dos véus de seda da Índia onde ficava o reino da dor com cara humana, do plástico diáfano colhido das embalagens jogadas nas calçadas, das bolhas de sabão sopradas no ar de uma tarde de domingo que hoje jazia dobrada e oculta feito um cancro no desfile interminável dos seus dias), que iam e vinham e sumiam e apareciam e subiam e desciam e sob o olhar impaciente, que ainda não era metafísico, do filho intercalavam-se, amalgamavam-se, entrecruzavam-se, libertavam-se umas das outras formando entre si uns fios de borracha que se delgavam mais e mais à medida que se afastavam.

Essas pessoas elásticas cobertas por véus plúmbeos que se dedicavam a dançar diante do filho para que ele pudesse ao menos fingir que não sentia dor viraram um monumento de mármore e hoje estão expostas ao vento frio que sopra no vasto pátio que o filho mantém em seu passado. Os elásticos entoam de dentro de suas bocas eternamente abertas:

Serenô eu caio, eu caio
Serenô deixa cair,
Serenô da madrugada
não deixou meu bem dormir.

mas o filho não pode escutar: está ocupado em pagar com a vida o crime de ter nascido.

O aquário

Secretamente, o filho mantinha um aquário em que as pessoas que viviam no aquário encostavam o nariz para observá-lo no plasma em que ele existia. O aquário era a consciência. Do fundo do aquário brotavam visões cegas, ruídos surdos e sensações intácteis vindos do mundo que o filho não sabia existir dentro do aquário e que iam somar-se à dor onipresente em sua experiência vazia.

A viagem

Assim que nasceu, o filho viu que sua vida seria uma viagem entrecortada por infindáveis outras viagens sobrepostas umas às outras que partiam de todos os lugares e iam para todos os outros lugares. O filho viu também que nunca daria o primeiro passo para iniciar a viagem. Ao longo do caminho, colheria impressões – felizes e amenas e singelas e terríveis e agônicas. O filho partiu em sua viagem com saudades de onde não estivera. Deixava para trás todas as terríveis experiências que ainda teria na vida. Sabia. Nascera com algumas pepitas de ouro nas mãos, as quais largaria uma a uma pelo caminho e, quando olhasse para trás, veria que cada uma se transformaria em dourado e reluzente nada. No bolso direito das calças o filho guardava um mapa vazio com todas as estradas – arriscadas passagens que levavam ao ontem, ao amanhã, à sala, à Europa em cem passos, à escada que descia até o mais escuro dos negrumes, à sua própria insperscrutável solidão povoada de palavras sem sentido.

As palavras

O filho inventou as palavras e tentou usá-las. A sensação era dolorosamente estranha. Palavras que, quando pronunciadas quase que por um impulso arbitrário, cutucavam uma dor inerte em seu fundo sem fim e que então despertava e nascia. Cada palavra tinha sua própria dor com escuridão. Cada sílaba pronunciada pelo filho era um fio de uma teia selvagem por onde corria a medonha aranha, mestra das mestras, projetando sua sombra na terra vazia. Ele sabia porque esse era o eco que escutava.

A consciência

Você é tão sujo, que seu coração está com câncer
E seu cérebro, tão sadio quanto é duro seu coração

Pois

Me lembro de você quando vejo as pessoas
Tão livre quanto as cortinas descidas
Sobre sua cama, jejuando por dias
Esperando a morte

Mas as pessoas revelaram sua mente
Para lhe mostrar que a luz não é o que pensam

Gostariam de salvar sua vida
Lhe arrancando da fantasia
Lhe ensinando o significado de realidade
A salvo dos psicóticos
Cujos conflitos possam denunciar

Me lembro do dia da realidade
Com o descobrimento das ideias coordenadas
E o coração, limpo, relutando em aceitar o cérebro

Sim, sei da beleza inalcançada
Que pensam que brilha é agora
Quando muito refletem o que chamam sanidade

Ainda que minha mente tenha cintilado em fantasia
A impertubável impotência jorra e jorra sua luz cegante

Poderia

Quando apontar minha mão
Ela perguntará como sei de onde veio
E responderei:
Tive a percepção após a dor absoluta
Quando te vi no tempo teu, soube

Assistindo enquanto meu corpo se espremia
Algemado fora da ruína

Meu humano procedimento te deitaste
Observando
Até a vitória única nos concedermos

Em sentimentos se tornaram minhas súplicas
Para que me abatesse
À tua absorção me vejo a latejar

Com meus laterais braços e decadente semelhança
Me ressuscita ao pecado da tua atuação
Em terror
Naqueles que de seu céu desceram
Contra minha vontade
De os preservar em descanso eterno

Pois aqui, em desajeitadas posições,
Se judiam precipitadas em meu quarto
Extraindo da minha boca a inconsequente avalanche
De orações a ti, primitivo,
Enquanto, vulgar, evoco o mesmo

Me abro em folhagem pelo campo
Verde ramagem me contrastando a ti
Para, sobre ti, em negro silêncio postar-me em cruz
E aceitar o que ainda guardo em mim
Da mortífera vida

Então, carente de amor, carente de dor
Da tristeza das minhas lamúrias
Em ti, noite, me perderei te buscando
Para amar envolto em teus braços
Liberto das minhas vontades
A te dar meu sentido
Que só no azulado tempo poderia ferir

Eternos resquícios de Francis

Escrevendo neste mísero blog às vezes me sinto tão infantil, que me dá saudade do meu bico de borracha dos meus cinco anos.

No dia-a-dia desativo a presença do passado e finjo que não é comigo. O que se reflete no que escrevo, obviamente.

A infantilidade intelectual se espalha tão avassaladora blogoesfera afora, que chega uma hora fica virtualmente impossível manter tenência da minha "formação".

No mais, me engano que as porcarias que posto aqui pairam léguas acima da gororoba geral.

Argumento para mim mesmo que um escritor tem de se armar de certas defesas.

Contra-argumento para mim mesmo que nunca escreverei nada que preste enquanto não tiver peito para me livrar das minhas defesas.

Até sei lá quando me consolava pensando que todos somos filhos de deus e, sim, mereço o espaço que foi predestinado a todos os filhos de deus.

Hoje soa tão pífio. Tem horas, como neste exato momento, que simplesmente não posso dar um piparote numa noção que tenho e mantenho como das mais sagradas.

Sim, me reprovo, preciso preservar minha concepção do sacro.

Me envergonha que possam me ver apenas como mais um blogueiro simpático e vagabundo.

Para quem já sonhou em encontrar uma mensagem dentro duma garrafa à beira do mar

Quer dizer que você anda pelas praias à procura duma mensagem numa garrafa?

Então, provavelmente, também toma táxis esperando topar com uma valise estufada de grana no banco traseiro.

Ou talvez, sendo mais modesto, apenas siga pelas ruas olhando o chão na esperança de deparar com uma moeda de um real.

Ou quem sabe você é um ser estritamente digital e viva a vasculhar a rede atrás de algo que lhe seja de alguma serventia. Ou um perdido digital que também esteja em busca de outro perdido.

Ontem ou antes de ontem li em alguma página da internet o seguinte: "Eu amo o Gilberto!"

Era uma página toda em branco contendo apenas "Eu amo o Gilberto!" em letras não tão grandes. Não estava nem em negrito ou itálico. A única ênfase era o ponto de exclamação, que naquele momento considerei de eficácia duvidosa para que a mensagem alcançasse o destinatário. Era quase como se a ou o remetente enfiasse um bilhete numa garrafa e grifasse "Urgente!" no rótulo e a atirasse, a garrafa, nas ondas do Pacífico.

Quase como se a ou o remetente estivesse de antemão certo de que jamais lograria chamar a atenção do Gilberto.

Em qualquer um dos casos, é uma pena.

De minha parte, não ando nem nunca andei por praias à procura duma mensagem numa garrafa ou lata de sardinha.

Primeiro porque sei que tal noção de destino é absolutamente pueril. Gente que usa esse método para se comunicar só existiu em certos romances ultrarromânticos do século 19.

Segundo porque, se por acaso topasse com uma garrafa dessas, eu de certo me jogaria nas ondas do Pacífico tentando encontrar tão esperançoso ou esperançosa remetente.

Una furtiva lagrima


Reiteradamente incorremos em brutais fracassos e nem por isso desistimos. Aprendemos a duras penas a conviver com nossas dolorosas insuficiências perante os desafios. Sabemos que nascemos com defeitos insanáveis que nos afligem até o último dia de nossa existência. Guardamos em algum lugar dentro de nós algo sombrio com que não nos atrevemos a mexer, temerosos de despertar uma fera.

Mas de todas nossas imperfeições há uma que é a pior: não saber chorar. Trata-se de verdade elementar, que só estamos aptos a aprender após uma certa idade, quando já acumulamos experiência suficiente para saber que poder chorar é um dos únicos bálsamos que a natureza nos concedeu para tolerar nossas dores.
Aprender a chorar deveria fazer parte do currículo de todas as escolas de primeiro grau do país. E deveria ainda ser matéria classificatória, que reprovasse o aluno relapso. O exame mensal seria aplicado de surpresa.
– Zezinho! – convocaria o professor. – Prova de choro! Vamos à sala do soluço.
Sim, naturalmente, há uma sala especial para os exames – sala à prova de som e da curiosidade alheia, decorada com simplicidade, paredes em cores neutras, uma mesa, algumas cadeiras espalhadas com desleixo estudado.
Mas o professor não se limitaria a ordenar uma simulação de caretas crispadas e soluços de sofrimento, dizendo simplesmente, “dá um choro aí, menino!” Isso qualquer criança bem ensaiadinha é capaz de fazer. Não, o aluno teria de chorar de verdade, demonstrando dor genuína partindo do fundo da alma. Se tivesse dedicado os esforços necessários a entender a matéria durante o ano letivo, o gurizinho certamente não teria dificuldades em ser aprovado.
– Sente-se aí. – diria o professor. – Pode começar.
– Não tenho motivo para chorar hoje, professor.
– Está bem – compreenderia o magnânimo mestre. – De fato, se não há motivo para chorar, não choremos. Apelemos então para alguns estímulos externos. Vejamos… – O professor se lembra de que o Zezinho era vidrado na Soninha. Seu rosto se ilumina e ele dispara: - A Soninha não gosta de você!
O menino olha desconcertado o mestre, sem saber como digerir aquele impacto no peito.
“Ui!”, pensa, “essa doeu.” E se põe a chorar as lágrimas mais sentidas que jamais vertera. A vozinha se transmuda num fiozinho lamuriante que tartamudeia palavras desconexas, os olhinhos quase que se fecham entre as sobrancelhas franzidas e os pomos retesados. Zezinho é a encarnação do sofrimento amoroso. Seu rosto se transfigura numa careta de padecimento, olhos vermelhos e inchados, narinas dilatadas, rugas tão profundas na testa, que só a dor pode provocar.
Corta o coração vê-lo ali tão obediente, mortificando-se para atender aos sádicos mandos do mestre.
– Muito bem! – elogia o professor. – Nota dez. Devo confessar que você é meu melhor aluno, Zezinho. Ah, se todos os outros fossem bons assim. Pode retirar-se. E não se esqueça: vá se preparando para a prova final em dezembro.
Fôssemos um pouco mais sábios, exigiríamos que os governos instalassem choradouros em praças públicas, nos grandes supermercados, a cada quilômetro nas estradas.
Choradouros.
Nas esquinas, ao lado dos orelhões.
Os choradouros poderiam funcionar de acordo com as leis do mercado, com propaganda na TV, guerra de preços, etc. “Chore suas misérias n’O Chorão!”, talvez fosse um bom slogan, naturalmente encimado por um frondoso e verdejante (e choraminguante) salgueiro.
Poder-se-iam desenvolver cadeias de choradouros e sistema de merchadising, com os quais os americanos certamente espalhariam lojas de verter lágrimas por todo o planeta, os MacWeepers.
Para aproveitar a onda, os governos poderiam criar milhares e milhares de novos empregos, treinando especialistas para trabalhar nos choradouros, técnicos em induzir o choro. Poderiam chamar-se “lacrimeiros”, “choroindutores”, “encosta-no-meu-ombro”, ou coisa do tipo.
Talvez a ciência até mesmo pudesse vislumbrar um destino útil para as lágrimas, que poderiam ser recolhidas e armazenadas em tubos ou frascos de vidro. O produto lacrimal seria aproveitado na indústria químico-farmacêutica para a fabricação de produtos veterinários, fertilizantes, e assim por diante. A lágrima talvez tenha um insuspeito potencial tecnológico sobre o qual meus parcos conhecimentos acerca das propriedades das matérias não me permitem especular.
Outra utilização a ser inventada por esses incríveis cientistas com seus formidáveis cérebros de bilhões de neurônios a mais do que nós, simples chorões, encastelados nesses fabulosos laboratórios que tudo podem, seria um método científico, eficiente e simples de implantar os choradouros em cada lar do País.
Ou, simplificando ainda mais, poderiam inventar a pílula do choro. Tome ½ de manhã e ½ antes de deitar.
No começo seria meio difícil de vender, pois ninguém gosta de chorar. Mas logo se tornaria um campeão de vendas. Choro para todos (que possam comprar a pílula), a qualquer hora, em qualquer lugar. Choro para a madame, para o cavalheiro, para a guria, para o rapazinho. Choro à vontade.

A válvula da minha vida (I)


Morri no dia 9 de maio. Era noite. Voltava do trabalho para casa quando bati de frente com outro veículo. Cujo tipo nunca consegui saber. Ou a marca. Nem a cor.

Aquele dia tinha a cabeça cheia de problemas do escritório, gente que vivia me enchendo o saco, contas que não batiam, decisões que tinha de tomar mas não sabia como, fatos que queria esquecer mas que insistiam em desfilar doentiamente diante dos nossos olhos, tarefas, milhões de tarefas que começara e que nunca terminava, seres de todas as espécies pululando dentro do cérebro feito sapos humanos, entradas que devia tomar e não tomava, retornos que passavam sem me dar conta, placas com dizeres que não compreendia, saídas para Tóquio, Ontário, Nova York.
No fundo, sabia.
Minha experiência estava dando errado.
Mas é a minha experiência, pai, quero gritar. Tem de fazer sentido. Ou então não vou deixar vestígios. Não persistirei.
Há pessoas que escrevem diários. Registram o que fazem, locais onde passam, pessoas com quem falam, acidentes que sofrem, o calor das mãos que apertam, mágicas com que deliram. Informam-se a si mesmas de suas experiências. E de sua certeza na ciência. E sua crença na natureza. E sua compreensão da física. E por que são importantes. (Não só para si mas para os outros.) Não precisam duma guerra mundial para se perceberem ou perceberem o mundo.
Aquela noite me deixei ofuscar pelas luzes queimadas do meu passado, as figuras que me perseguiam finalmente me agarraram. Não quis resistir. Me deixei recrutar pelas forças do mundo, esse exército de peritos em viver.
Confie em mim, papai pedia, pedia, pedia. Simplesmente confie em mim. 
Quando cresci a mente se deu conta de que não estava disposto. Temos de praticar, pai. Não podemos fugir. As Máquinas são extremamente velozes e estão demasiadamente perto – Máquinas que já me avaliaram e pesquisaram e se apossaram de mim, tomaram minhas medidas, determinaram as cores do meu mundo e o palco dos meus dias, Máquinas que fazem parte do meu organismo e estudam minhas dúvidas e calculam minhas respostas e geram meus obstáculos e impedem meu avanço e me livram do meu colapso. Matematicamente imperfeitamente.
Tantos equívocos poderiam ter dado randomicamente certo, o acúmulo de todas minhas feiúras poderia ter resultado em minha beleza e a soma de todos os meus problemas químicos acidentais poderia ter desabrochado num avanço científico.
Mas chega. 
Bato de frente com um veículo que vem em sentido contrário, síntese dos meus princípios. 
Só posso dizer que tinha espantosa paixão pela vida. Que os computadores eram meu maior interesse. Que desejaria ter estudado astrofísica, para chegar à nossa origem, ao biguebangue. 
Que, sim, queria ter ido mais fundo. Ao útero milleriano. Sim, queria ter sido absoluto. E professor de geografia só para comer a deliciosinha Marina do quarto ano. 
E que tive um pai que me amou e me quis.

Os chips de batata frita estalam daquela forma para a gente ficar com vontade de comer

Sabe quando te levavam ao aeroporto da cidade ver aviões aterrissando e decolando, e ficava boquiaberto com o milagre do teu testemunho, teu pensamento longe, mais longe que os aviões que te levavam mais longe do que tudo, deflagrando um bombardeio de delírios que se autodevoravam, remexendo o que parecia impossível existir, como é que esses bichos tão grandes e pesados conseguem tirar as rodas do chão, de repente estão lá em cima feito pardais, só faltam bater as asas, piar, aquela aldeiazinha caipira interior que você secretamente acalentava e defendia contra tudo e contra todos de repente perdem o sentido, teus sentimentos tornam-se suspeitos, para que sirvo, para que serve nosso mundo, confuso ante a grandiosidade daquele boeing inexplicável, se fosse gigante pegava um na mão e saía pela calçada brincando de piloto, todos os amigos de olhos arregalados hipnotizados morrendo de inveja, altura três mil pés, vôo 345 para torre, então você dá uma colher de chá para o Geraldinho, vem ser nosso copiloto, pilota aí enquanto vamos tratar de umas coisinhas com a comissária de bordo Silvinha, torre para vôo 345, nevoeiro latitude 123, câmbio entendido câmbio, outro boeing liga os motores, um estrondo surpreendente te enche os ouvidos, você está no céu sem tirar os pés do chão, a eletricidade tomou conta de tudo, sensações colidem na tela do radar, gráficos de ondas mentais se duplicamplicamplicam,  está sendo submetido a uma experiência inusitada, explica teu cientista interior, é abril e  está livre dos suplícios diários, eis o momento revolucionário finalmente, cristalinamente falso, que fazes neste campo de pouso desconhecido, torre minha alma precisa de mais informações, a cabeça não sabe como devemos me portar, torre.

De repente você avista um grupo de turistas chegando para embarcar, todos carregando malas e mais malas, que é que carregam tanto? estão prestes a ingressar – fisicamente.

Como doi a dor da inveja.

Naquelas aves de sonho e você só existe para assistir, vão entrar dentro do teu sonho esses seres de outra dimensão, não é possível que haja gente que entre em aviões, foram feitos  para olhar, gente de outro planeta, que distância intransponível, você ali meramente sonhando, eles fantasticamente vivendo.

Tudo tem algo

O que vou dizer parecerá brincadeira
Ou bobagem
Frivolidade
Ou falta do que fazer.
De tão idiota, na precisará introdução
Nem justificativa.

Seguinte:
Quero me desfazer do mundo.

Não me pergunte "como assim?"
Pois não tenho ideia.

Não se trata apenas de me livrar deste zumbido em meus ouvidos
Ou das cores que brigam entre si pela atenção dos meus olhos
Do gosto da tragada do cigarro, da queimação do gole de uísque.

Simplesmente quero me livrar do mundo.

Não estou certo se com tal liberdade me veria liberto dos meus sentidos.
Se isso for possível, então mais um bom motivo.
Senão, estaria igualmente bem.
Desde que me livrasse do mundo.

Desconfio que, me livrando do mundo, me livrarei do meu pensar e do meu sentir.
Não que assim me livrasse de pensar e sentir.
Talvez apenas ganhasse o consolo, ou a recompensa, de outro pensamento.
E outro sentimento.

Sim, se não houvesse outro, talvez fosse pior.
Admito: correria um grande risco
De me livrar deste e ficar sem nenhum.

Mas tudo bem. Já me livrei do mundo antes.
Várias vezes.
E nunca vi a diferença.

Limites do inacontecido nada

Neste momento sou um poeta que já escreveu todos os poemas
O borracheiro que já reparou todos os pneus
O cozinheiro que já cozeu todas as iguarias
O pinguço que já bebeu todas as cachaças
O engenheiro que já projetou todos os esquemas
A mina que já saciou todas as sedes
O ansioso que já aguardou todas as esperas
O velho que já atingiu todas as velhices
O morto que já morreu todas as mortes
O ônibus que já transportou todos os passageiros
O coveiro que já enterrou todos os defuntos
O coveiro que já andou em todos os ônibus
O passageiro que já morreu em todos os desastres
A morte que já levou todos os velhos
A espera que já aguardou todas as carnes
A sede que já atormentou todos os engenheiros
O esquema que já espantou todos os pinguços
A cachaça que já embebedou todos os cozinheiros
A iguaria que já tentou todos os borracheiros
O pneu que já inspirou todos os poetas
O Beethoven, já surdo, que escreveu todos os abstratos quartetos
Esquecido do que é ser a prostituta que já sofreu todas as humilhações

Mini-odes à solidão perdida

Quando ela foi embora, fiquei 2 dias cheirando as calças do pijama que ela deixou cair atrás da cama, misto de mijo e buceta, ausência e presença, tudo e nada, vida e morte, luz e escuridão, um plenipotenciário eu, uma espectrosa ela.
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Ela me olhou sem saber que eu não era eu.
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Ela me olhou fingindo não saber que eu não era eu.
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Os cientistas estão inventando o plástico degradável. Bem que podiam ser imitados por religiosos e filósofos inúteis, que inventariam a alma degradável. Imagino minha alma jogada no lixão das almas, apodrecendo ao sol enquanto abutres a destrincham, não sei se sinto nojo ou what.
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Indo para a escola, não sabíamos que nossos caminhos estavam traçados, nossos destinos, decididos. Os inteligentes e disciplinados estavam fadados à diretorias de empresas. Os inteligentes e indiscipliandos, à tragédia. As meninas de rosto angelical e gostosas, a derreter corações de homens frustrados.   Quanto a mim, saía a toda hora do meu caminho para pisar no dos outros, preantecipando a miríade de destinos que nunca soube aceitar – sou por demais ambicioso.
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Estou sempre isolado em algum lugar do tempo porque perdi aquele dia em minha vida e não posso mais me compatibilizar com os outros
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Descobri que morro de nojo de mim, tenho auto-repulsa, não posso me olhar no espelho, não suporto esta minha cara de chorão sacana.
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Sou covarde. Sou mentiroso. Quero escrever um livro mas não tenho a mínima condição. Você pode achar que me inspirei na introdução dos cadernos do subterrâneo para escrever isto. Sim. Se é que se pode chamar isto de inspiração. Não tenho inspiração nem talento. Nem ler sei. Sabe quantas páginas de Proust li? Examente 87. Faz 25 anos. De lá pra cá todo santo dia me xingo dizendo que preciso retomar a leitura. Ulisses, li inteiro, pulando de 10 em 10 páginas. Como escrever desse jeito? Você pensa que descendo de espanhóis cruéis que dizimaram nações indígenas inteiras, ou portugueses que desbravaram este país quase até o sopé dos Andes? Nada disso. Sou apenas um filhote de carcamano com os sentidos embotados de carnaval e embriagado de pinga envenenada.
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Quer experimentar a sensação de uma passada em Auschwitz? Quanto tempo? 1 minuto, 1 hora, 1 dia, o resto da vida?
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A merda de usar isqueiro é que não dá pra coçar o ouvido.
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Sou mais feio que barata de perfil. Mais complicado que abrir pacote de bolacha pelo fiozinho. Mais difícil que publicitário virar bom escritor. Mais cara de pau que dentista quando dá orçamento.
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Só consigo dormir ouvindo uma rádio chinesa, qualquer língua que não compreenda, enlevado pelo fluxo bestial das palavras sem sentido.
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Quero psicografar Plath. Faremos o maior poema jamais versejado. Preciso dum terno escuro. Ela vai respondendo através dos seus versos. A vida não tem undo. Forno a gás não tem undo.
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Quero escrever um livro que vire road movie. Minha road é meu caminho para o buteco. Você não imagina quão insondável o destino de cada viagem pode ser.
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Por que nossos escritores são tão insignificantes? Sempre fugindo da luta contra o mal para cair numa metafísica infantil e estéril? Metafísica sem espelho não rende. A “nossa” metafísica é a que nos é imposta. Não podemos simplesmente forjá-la só para provar que somos diferentes, que temos alma. Que graça tem o escritor que vira ermitão para se dedicar a escrever? Soará tão falso quanto aquele que se muda para Paris para escrever às margens do Sena sob o formidável peso da história europeia. Ascese não é sinônimo de consciência. Escritor é quem não foge do dia a dia. Se enfurnar numa biblioteca em meio aos grandes não vai abrir as portas mágicas da percepção.
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Cada um de nós cedo ou tarde chega àquela hora em que temos certeza de que nunca mais seremos capazes de escrever um parágrafo sequer?
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O mundo parece dormir. Não me resta ninguém a quem acordar.
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O fumo contém arsênico, que, vejo na embalagem, compõe a fumaça que aspiro tão sofregamente para dentro dos meus podres pulmões? Guardam meus pulmões em suas profundezas um tumor maligno que aguarda seu melhor momento para dar o ar de sua graça e enfim me aniquilar? Ou se resumirá o segredo da longevidade a simplesmente manter nossos fanstasmas em seu sono profundo?
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Nada mais chato que alguém com pretensões poéticas querendo parecer louco.
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Voltei a fumar. Depois de 15 anos, que fracasso. A secura pela nicotina adormecida dentro de mim todo esse tempo. Deus, quantos seres tenho adormecidos aqui dentro? Quem são? Que são? Será que posso despertá-los como se meramente dormissem?
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Passeio pelas ruas escuras procurando um bom lugar pra cometer o suicídio. Minha preferência oscila: ora almejo a um cenário especial, digno de sua tragédia, talvez um marco histórico, ora penso em uma esquina banal numa das ruas do centro, onde camelôs vendem eletrônicos do Paraguai e melancia fatiada.
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Não nasci para o mundo das conversões. Sou inconversível. Não sei calcular volume em metros, distância em quilos, calor em peso. Isso exigiria uma certa promiscuidade. Mas nasci para ser puro. Já vi gente se convertendo de palmereinse em corintiano, de engenheiro a astrólogo e de poeta a investidor. Conversões acontecem ao meu redor de manhã à noite, sempre surpreendentes, às vezes, estonteantes, outras, estarrecedoras. Todos vão se abrindo e fechando, gritando e emudecendo, rindo e chorando com toda naturalidade, ante meu horror. Acho que minha maior inconversibilidade se deu entre a infância e a idade adulta. Fiquei para trás. Estou lá, olhando tudo com meus olhinhos de criança inundados de perplexidade opaca.
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Acordo, vou para a porta da cozinha, olho o céu, vejo um beija-flor empoleirado no cabo do telefone, peço para ele salvar minha vida.
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Que estejamos todos separados no espaço, me parece razoavelmente aceitável. Mas que estejamos todos isolados no espaço e no tempo, é insuportável.
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Vou voltar a fumar mais dia menos dia. Sei que então não terei mais desculpas, será minha sentença de morte. Sempre tive a certeza de que cedo ou tarde acabaria decretando minha própria pena. Todo dia dançando frívolo minha ciranda em torno do meu totem sacrificado. Percebo – só agora – que evitava a todo custo olhar nos olhos dele (era aquele vazio que não conseguia definir com precisão). Que falta me faz aquela frivolidade.
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Você sabe que acabou quando até o passado deixa de ser um refúgio válido. Mesmo aquele teu passado secreto, de uso pessoal, construído das tuas fantasias mais dolorosas e impossíveis. É o adeus, tão longamente procrastinado, a elas, fantasias. O vazio que deixam é impreenchível – impreenchível por qualquer outra coisa senão a morte. Vamos lá, entregue-se. Não pode ser pior que ser essa impossibilidade que você sempre foi.
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Enfim construí minha prisão. Tudo conforme meu projeto inicial – sem luz, sem janela, sem porta, sem chave, sem saída, sem fim.
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Abro sôfrego minhas anotações de ontem, que escrevi sob o êxtase alucinado e patológico da depressão, certo de que irei encontrar as mais raras pedras preciosas. Vou me decepcionando à medida que leio, só me restando lamber, autocomiserativo,  palavra por palavra como se cada uma delas fosse uma gota do meu sangue gotejada duma xícara que se estilhaçou no tempo.
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Renuncio como se entrasse trancando a porta e deixando a chave no lado de fora.
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Você não precisa se matar espetacularmente. O primeiro a fazer é se livrar dessa fantasia de querer esfregar tuas verdades na cara dos teus familiares ou amigos. Você pode se matar aos poucos, silenciosamente, uma morte recatada e digna, como se fora doença incurável. Há várias maneiras de se envenenar sem chamar a atenção alheia. O principal é evitar bandeiras como arsênico e outros venenos que, em dando na vista, podem pôr teu plano a perder...
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A correção política totalitária que nos escraviza hoje nos impede a nós suicidas discretos de concretizar nosso pacto de morte autoimposto. Não nos permitem mais sequer que fumemos. O fumo é a arma que escolhi para dar cabo de mim mesmo. é meu único prazer. Com o fumo vivo e morro ao mesmo tempo, num ritual que celebro trinta, quarenta vezes todo santo dia e que é só meu e de mais ninguém e de que ninguém precisa ficar sabendo.
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Que vazio reconfortante.
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A vida não é doce e a morte não é doce – só têm um gosto que não sabemos.
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Decifraria o mistério da aranha condenada a cair presa de sua própria teia até ter de optar entre devorar-se a si mesma ou conformar-se à morte pela inanição de amor.
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Os melhores cheiros que senti foram os que senti sozinho.
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De repente me vejo ante uma missão impossível – como separar no lixo uma salada de berinjela dum cinzeiro de bitucas de cigarro.
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Dificilmente haverá experiência mais dessaborosa que ler Veja bebendo uísque.
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É um sufoco ter de preterir um adjetivo. Ai que gana de qualificar. Haverá casal mais perfeito que um sólido substantivo acompanhado dum eficiente e/ou providencial adjetivo? Em geral é tão triste, na hora de escrever, abandonar um substantivo à própria sorte. E se o leitor se identificar com a solidão do coitado? Certamente jogará a culpa toda ou em parte nas costas do incompetente autor. Ora, é muito fácil para o autor ficar longe de riscos que tais. Basta apelar à fartura. Descarrega uma batelada de qualificativos e pronto – assunto resolvido. Quem sabe o atento leitor pode até usar este texto como guia para identificar textos fartos por aí cujos becos sem saída seus autores resolveram lançando mão a torto e a direito de adjetivos mil. Senhores e senhoras, não nos avexemos. Mais importante que um texto enxuto, preciso e/ou bem escrito é o conforto do autor, sem o qual, afinal não haveria nem texto, nem substantivos, nem adjetivos nem nada.
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Lembro o dia quando descobri que as portas também serviam para quebrar nozes.
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Então você foi ficando pequeno, homenzinho minúsculo, boneco andando na rua, e eu fui ficando sozinho, mais que desesperado e então pensei em correr até a porta e te chamar e, se não fosse suficiente, te abraçar e, se não fosse suficiente, te amar, e então, mais pequeno do que já sou, me vi  impossibilitado de reagir, me limitando a olhar e a escutar e a respirar e a existir esta minha existência insolúvel em que ninguém chega e todos vão embora me levando a cada ida e quem chega é demais, é de menos, ontem eu sabia me conformar e dizer coisas para mim mesmo e dizia, tudo vai dar certo, nesta letra de balada folk que me martela o cérebro desde que nasci, as coisas mudaram na tradução, everything is gonna be alright, everything is gonna be okay, depois de todas aquelas guerras medonhas do século 20 era o mais certo a fazer, que mais nos restava além de recomendar a paz e praticar o amor? se eu soubesse que chegaria a este estado nunca teria lido um livro sequer, nem aprendido a ler, não tenho mais forças para fazer minhas razzias por aí, feneci, meu tempo passou e para compreender que meu tempo passou não preciso que ninguém me diga, tudo me conspurca, preciso me esvaziar de você e de tudo e não posso, a inocência se incrustou dentro de mim, cancro sonoro de áspero.
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Um livro é minha última esperança de ser alguém na vida. Já não tenho parentes próximos, amigos nunca fiz, não tenho a quem provar meu valor. Só me restam os desconhecidos. Não sei exatamente como provar meu valor a desconhecidos faria alguma diferença.
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Sonhei que estava vivo. Quase tão gostoso quanto buceta molhada de mar.
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Se você sujasse as mãos de sangue e tivesse apenas um pedacinho de papel higiênico para limpá-las, que faria: limparia ambas homogeneamente ou tentaria limpar apenas uma o máximo possível?
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Ontem assisti um documentário em que ricaços americanos compram trailers de 1,5 milhão de dólares que estacionam em vagas de 500 mil dólares num resort qualquer na Costa Oeste e vivem no mais absoluto sibaritismo com outros sibaritas de igual calibre. Peço piedade pela raça humana. Que fragilidade, PQP! Quantas esperanças, quantas idas e vindas, quantos eternos recomeços. Que uma raça assim exista para o único fim de padecer só pode ser obra do mais medonho, do mais vingativo dos seres, um ser concreto, decidido a infligir as mais terríveis dores. Sim, agora creio em deus.
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Na minha casa morta na garagem o carro morto, na cozinha a mesa morta, no quarto a cama morta, só eu ainda reluto em sucumbir, depois que ela foi embora.
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Se naquele momento ela se aproximasse de mim e confessasse que tinha vindo de Marte, eu não estranharia. Aquele dia eu estava de bigode e me sentia incessantemente estranho, como se fosse outro. Naquela época eu considerava aceitável a desculpa que eu tinha para mim mesmo.
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Posso ficar horas assistindo à dança da morte dum pernilongo. Fiquei craque em espirrar o spray de inseticida no desgramado apenas o suficiente para que ele tombe sobre minha mesa sem falecer duma vez. Tenho de tomar cuidado para não cobri-lo de inseticida, senão ele morrerá sufocado. Nem enxarcá-lo, caso contrário cairá na mesa grudando as asinhas irrecorrivelmente. O ideal é quando logro tirar-lhe apenas o dom de voar mas preservando sua capacidade de esperneamento e locomoção. Então ele dança bonito, saracoteando zonzo, aflito, angustiado, desesperado e, espero, perplexo. Quem dera a mesma perplexidade com que saracoteio em câmara-lenta pelo meu mundo em escala cinza.
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Nosso mundo hipertecnológico vai remoldando nossas cabecinhas duma forma que ainda é impossível determinar. As coisas hoje se reorganizam dum modo que para os nativos digitais parece absolutamente normal, mas que para nós pré-internet nunca abandona um travo de esquisitice. Vamos perdendo nossas noções de espaço físico e proximidade humana, trocados por um horizonte que se descortina numa tela, acessível a golpes de mouse. Talvez em décadas não tenhamos mais ideia da natureza original que nos cria a todos. Olho uma mata com sua infinita diversidade de formas, cores e mistérios e já não sei mais o que significa. Há nela uma ordem estranha ao meu senso digital de ordenação. A organicidade do mundo, que aparentemente um dia refletiu meu próprio cérebro orgânico, está além da minha percepção.