Parem as máquinas

Seus mais belos, íntimos sentimentos
Enfie-os no magnífico liquidificador
(Que seus ouvidos e olhos desconhecem sem saber)
Durante este exato momento
E em todos os momentos já pulsados unicamente a seu favor
Atiçando o fogo apagado do seu coração.

Despeje seu licor no recipiente trancado nos porões
Transborde
Se melecando dos fluidos furta-cor
Do sangue impuro e gosmento em suas veias
Do visco da esporra congelada no banco de esperma.

Plante as patas neste chão
Que seus pais teimaram em evitar
Pise nas poças que seus pés saltam impacientes.

E beba, mergulhe, se afogue, celebre
Pondo onírico seus ovos
Trocando sua casca
Furando seus olhos.

Pare as máquinas
Voe com os ventos
Caia e apodreça
Para enfim inocular o estéril deserto.

Que nasçam fabulosos, malucos internautas
Raras avis rarae no zoológico de cadáveres
E chacoalhem, e derrubem
Com sua divina e nativa inquietude
Os podres frutos a jazer em secos galhos de árvore tombada.

Que venham agitadores orkuteros
Libertem de sob as lajes acres fedores
Represados nos túmulos fantasticamente vazios
E asfixiem os zumbis ao alívio das fragrâncias habituados.

Venham, venham os párias todos
Profanos, inconformados
Com a ultrajante insolência
Dos que não fingem honradez.

Chamem os mal-criados, rudes violentos
Decididos a virar todas as mesas, espatificar os cristais
Cuspir nos convivas
A se banquetear da insossa papa que levam
No mais assombroso dos banho-marias.

Tragam, ó indesvirginável virgem, vos suplico
Tragam irreverentes
Que desmascarem os corolas da boa-fé
E berrem estridentes suplantando
O ciciar dos macios cochichos na sacra nave
Que no auge da infecunda manhã nos ensurdecem.

Venham hackers
Disseminem seus vírus
Invadam os virtuais santuários
Derrubem os sistemas, travem as CPUs
Programem a aranha-rainha, definitiva senhora das redes
Em que nos emaranhamos os mosquitos da liberdade.

E, vos rogo, parem as máquinas.

Aproximem-se saltimbancos bobos da ridícula corte
Onde nobres farsantes engolem carniça e arrotam crème brûlée à la framboise
Façam que os reais fanfarrões, o duque e a baronesa de si mesmos debochem
Pois poucos há mais risíveis que o palhaço acidental.

Acorram encrenqueiros
Perturbem do convento o sepulcro silêncio
Imposto pelos autobeatificados santos
Que desde a construção do egípcio calendário
Roubaram do mundo a imortal mágica
De sonhar o sonho sob o aguardente doce
Para dormir o sono do leite choco
Sem nunca acordar da ressaca eterna
A embalar-se por maricas profetas
E salvar-se pelo soporífero veneno dos curandeiros.

Reúnam-se incendiários
E façam dos templos e palácios fictícios
A fogueira derradeira
Que aqueça os extremistas, inconformistas
Rebeldes
Amotinados, subversivos
Que tomarão seus lugares
Na entusiasmada moderação das comunidades
Na tresloucada direção das empresas
Na embriagada reitoria universitária
Para enfim instituir a justiça.

Venham todos
Homens, mulheres em carne e osso
A desafiar os vaticínios da mesmice
Adivinhos que invariavelmente omitem as emboscadas
Bruxos da paz
Iluminados das toupeiras
Traidores dos traidores.

Uivem, uivem todos
Loucos lobos
Contra o coro das vacas a pastar
Gabolas, parlapatonas na campina seca do presépio.

Ataquem já bárbaros, selvagens, brutos
Emporcalhem a brancura dos puros castos
Limpem com as túnicas dos anjos o excremento das calçadas da Av. São João
Deflorem a sacralidade dos cabaços
Estraçalhem a integridade dos caráteres
Submetam à lingulectomia os demagogos
E riam da ingenuidade dos currículos.

De embusteiros, farsantes e outras autoridades

Pare de se encher de vitaminas.
Você não ficará mais forte ou mais saudável do que já é.

Pare de se encher de remédios.
Você não está doente.
E quem não está doente não tem cura.
E quem não tem cura não está doente.

Habitue-se a tomar veneno.
Ao contrário do que prescrevem médicos, feiticeiros, publicitários e charlatães em geral,
Veneno na dose certa não mata.

E se o seu acabou,
Tome aqui o meu.

Donde sugamos tanta frescura?

Na infância, meu barato era abrir presentes.

Começava do instante em que segurava o barbante até a caixa se abrir.

Era nesse ínterim que o tempo deixava de existir. E, deixando de existir, deixava de me escravizar.

Não, porra. Não quero ser escravo do tempo. Nunca quis.

Quero é abrir o presente, segurar o barbante, puxar, arrancar as folhas de papel de seda, meter meus dedinhos na aba da caixa, prender a respiração.

Daqui até lá serei feliz e serei uno e serei eu e nada me ameaçará e nada me importará e não mais serei o ser eternamente a almejar o que não lhe cabe.

Seremos tão-somente eu (eu, porra!) e o que me cabe.

O que me resta.

Não há depois. Quero que o depois se foda. Aboli o tempo, estraçalhei meu algoz.

Incompleto e com rasuras

De onde venho a miséria é transitória. Não é por isso, todavia, que tenho atributos humanos ou meus vocábulos sejam grifados.

Proclamo, por meio deste, minha impérfida renúncia aos amores perdidos. Em tréguas de guerras, em paz interior, aos homens desaparecidos.

Se não pertenço hoje a mim, se não pertenci ontem a mim, a quem pertenço hoje, a quem pertenci ontem?

Eis-me nascido enfim. Eis em minhas mãos a salvação, em meus pensamentos, a correção de todos os pais que, de todos nós, são ilusórios.

Me responda, me complete, meu caminho transitório.

Uma vez nascido, o inferno?
Seres carentes,
místicos cadentes
De ignorantes de Milton ao Eros do Dia

Me estenda sua mão nojenta
e nunca suscite a velha sedenta horripilante
ou o moço doente
Me dê, ajuda, patético caos
depois, a crença

[rasurável]
Renuncio por meio desta à solicitude com que meu passado regressa trazendo suas desgraças
Ante meus olhos acabrunhados e hipócritas
Mas não renuncio a vocês nem à sobrevivência imunda

Medíocres eu os chamo e conclamo

No dia me lavo em lágrimas e os batizo com rochas extintas famintas de fogo e me sento neste caule da minha árvore tombada e gritando acalmo as chamas que me incineram

Antologia

Arioso dolente

Na antologia do que não fiz
Passou teu vulto ao meu lado

"Claro", pensei. Foi tua sombra
Sombras também existem

Pensando bem
Na antologia do que não fiz

Navegava uma nuvem
Nave do nada
De súbito saída da frente da luz solar
Banindo num segundo
Todas as sombras do mundo

Trapezista morto

Con alcune licenze


Quem me vê assim calado
Taciturno, simulado
Pensa, que sujeito insosso
Que pamonha esse moço
Ou não pensa nada

Não sabe que
Devoro corações, solitários ou não
Devasto impérios
Dizimo povos inteiros
Torturo, dilacero e enforco meus inimigos
Estupro crianças
Esgano velhos
Empalo aleijados
Dos devassos arcanjos
Sou o mais obsceno
O mais sádico
De insuspeitos marmanjos

Quem me vê assim civilizado
Prudente, grave, meio letárgico
Não desconfia que sou o mais triste dos homens
Que mal olha para não ver os brilhos trágicos a tomar forma nas copas das árvores golpeadas pelos ventos
E mal escuta para não ouvir o significado do farfalhar das folhas, que, descobri afinal, não tem significado algum

Mal respira, mal anda, mal sente
Mal vive para não saber para quê 

Sono

 

Nesta noite zonza me deito

Pulgas grudadas à minha pele, está aberta a sessão: se estufem do meu sangue enjoativo
Enquanto
Tiro as luvas que pelo avesso roçaram seios imaginários
E jogo longe os sapatos que pisaram chão proibido
E arranco os óculos que enxergaram o supérfluo invisível
E tampo os ouvidos que escutaram as razões alheias
E proscrevo a cabeça que imaginou o estômago engolindo a cabeça que imaginou o estômago
E estendo as pernas da carapuça
E cruzo os braços da carapaça
E calo quanto à alma, de que não há que dizer nesta zonza noite inútil ou em outras zonzas inúteis noites
Mas vos posso assegurar, pulgas grudadas à minha pele, roubando de mim vosso néctar envenenado
Que meu passado se reafirma a cada novo instante
E, sendo tudo que me resta
Entôo esta prece:
Do peso dos meus ombros me livrai
E fazei leve e de tão leve permiti que ao me deitar
Etereamente zanze por este quarto sepulcral
Por esta casa fatídica
Por estas ruas desaparecidas
Por este céu irrespirável
Sem onde poder cair
Nem como ressuscitar

Dessa o Big Guy me livrou

Acabei de ver Boy Interrupted e, claro, fiquei profundamente perturbado, uma miríade de sentimentos confusos me assoberbando a cada instante, tentando em vão comer a pipoca de todas as tardes, primeiro compaixão pelo guri Evan Perry, mãe, pai, o tio que se matou c'um tiro 20 anos antes pela mesma doença, transtorno bipolar, provavelmente o mais terrível dos castigos a que está sujeita essa nossa defeituosa, acidental raça humana buscando uma saída no cosmos sem saída, depois impotência e revolta e raiva pela impossibilidade de cura e, claro, vontade de cair no berreiro por sentir na pele o padecimento daquele menino que nasceu para pagar todos os pecados do mundo até enfim se render, aos 15 anos, idade insuportável pelas alterações hormonais bruscas e desconcertantes, a hipersensibilidade, o desamparo, a solidão abissal, ao suicídio que o seduzia desde a infância conduzido pelo sopro da dor invencível e que atrai a todos nós incapazes de enxergar muito sentido no que quer que seja. A canção que Evan compôs com apenas sete anos, apresentada no filme, é estarrecedoramente trágica, prenúncio cristalino de que ele não poderia jamais se safar do seu predestino. Bem-aventurados os que nunca receberam a visita dos demônios da depressão mórbida. (Depressão a que em Darkness Visible William Styron reclama dos especialistas um nome mais representativo de todo seu horror. Quem nunca sentiu não faz a mais ínfima ideia. Me admira que certos depressivos bipolares consigam chegar à idade adulta sem lograr a bendita interrupção a que se refere o título do filme.)

E então o aturdimento ao me dar conta de que o Boy Interrupted, produzido e dirigido pela própria mãe de Evan, cobre absolutamente toda sua vida, desde o parto até o enterro, cada etapa importante, em abundantes, às vezes excessivos detalhes, como se, caras-de-pau ávidos por sangue e bisbilhoteiros sem-vergonha que somos, espiássemos por um buraco na parede sem dar ao miserável do guri o direito de proteger a própria intimidade.

Assisti o filme ontem e ainda estou atordoado. Com meu próprio voyeurismo inaceitado, me sentindo meio cafajeste. Com o, sei lá, descaramento da mãe em "fazer das tripas coração" (acho que nunca vou conseguir aplicar esse clichê com tamanha propriedade) para passar pelos anos de filmagem no que deve ter sido a mais pesada das cruzes. E, não sei se sobretudo, com a descoberta de que toda nossa "experiência" hoje em dia é registrável por qualquer celular de 10 dólares e amanhã nossos esgares de dor podem estar passando nas salas de visita do mundo todo e, claro, sei lá, nenhum romance ou poesia ou hieróglifo já não tenha razão de ser. 

Versificação a meu favor, em teu louvor

É um erro esperar dum escritor leis, princípios, fórmulas, magias ou pérolas.
Se for bom, ele te dará só o que não esperas.
Se for bom, te forçará a olhar o que nunca te deste o trabalho de olhar.

Te levará por um caminho em que nunca andaste, para que dês os passos que nunca deste.
Te levará por um caminho em que nunca andaste sem precisar te puxar pelo braço.

E se tu, por tua vez, fores bom, saberás reconhecer e apreciar, com teu novo olhar, um novo mundo de imprevistas cores, volumes, formas, sons.
Quem sabe sintas então fome, ou saudade, de quitutes jamais provados.
Quem sabe tenhas gana de fragrâncias nunca aspiradas.

Poderás aí optar pelo perfume.
Ou pelo fedor.
Pois terás conquistado teu direito.

No interior do tubo não passeiam lagartixas

Você aí que lê estas palavras que escrevi para você, não leia estas palavras que escrevi para você como se eu as tivesse escrito para outro.

Estas minhas palavras dependem especificamente dos seus olhos para terem o sentido que planejei para elas.

Você pode esquecê-las -- como de certo o fará --, mas não desprezá-las.

Estas minhas palavras que escrevi para você não são de mais ninguém.

São suas.

Não são suas.

Foram minhas.

A partir de agora, não são minhas.

Entretanto, não se apresse a concluir que são nossas.

Palavras, afinal, não são -- nem devem ser -- de ninguém.

Palavras não se prestam à possessividade qual mesas ou arrependimentos.

Palavras não se prestam a nada. Absolutamente nada.

São apenas transmissoras da minha impotência.

A última gota

Ei, você aí!
Sim, você.
Aí sentado de mouse na mão, olhando a tela do computador.
Clicando por páginas, links, tópicos.
Pulando meio indiferente, meio distraído, impaciente, sem saber se lê ou segue adiante, sem saber o que pensar ou dizer.
Tentando extrair algum sentido de algo, assim mecanicamente, movido pelo impensado impulso de deixar ao menos uma marquinha de sua passagem pelo planeta.

Você aí conformado com as injunções da existência mas desde sempre movendo céus e terras para nunca levar no lombo um balde de água fria.
Você, incapaz de disfarçar o temor de que a última gota finalmente pingue.
Rezando, entre dentes esbranquiçados quimicamente, da forma mais dissimulada de que é capaz, para que as dores venham.
Mas não no atacado.
Não à última gota.
E, queira deus, não engendrem a grande conspiração para desabar sobre este país abençoado qual um tsunami japonês.

Você aí que não se sente cúmplice ou conspiratório.
E que sabe aplicar ao substantivo o mais apropriado qualificativo e apreciar a beleza das rimas ricas.

Você aí que classifica os outros pelo signo astrológico.
Que é um cavalheiro e uma dama.
E não se estressa por bobagens.
E faz de conta que não é com você.

Você aí que nunca se mete em encrenca!
Sempre rindo, também meio disfarçadamente, dos que vivem em permanente estado de espanto.

Pois você aí nunca se espanta com o céu, o ganido dos cães ao longe, a sua cara no espelho, a maravilha dos mais recentes acrônimos técnico-científicos, o cheiro dos grilos à noitinha substituído pela sedutora cintilação dos letreiros em néon pink nas ruas da cidade.

Você aí, supergirl, superboy, superman.
Quero ser seu ursinho de pelúcia.

Se Maomé não vai à montanha, a poesia vem à caça

Baudelaire tirou seu vasinho de ervas daninhas da sombra, adubou-as com as fezes do diabo pela manhã e regou-as com mijo de anjo à noite

Colheu as flores do mal

Que exalam o perfume branco e absurdo de ir vivendo rumo ao roxo excesso da morte

E seu perfume que embriaga os que são excêntricos pra começo de conversa

Adultísicos metaféricos

ATENÇÃO: não existem pistas de pouso para cabeças voadoras.

Microconto: microliteratura para microleitores.

O ralo da memória é o único que jamais entope.

Os frutos mais difíceis de colher são os da imperfeição. Pois dão numa árvore que você não quer enxergar, precisamente por pretendê-la perfeita. Só aos perfeitamente imperfeitos é dada a graça da colheita.

Seja sutil, mas não tanto que achem que você não tem a mínima sutileza.

Náufrago no meio de 200 milhões de náufragos num continente deserto à deriva, sempre levo meu Robinson Crusoe mas fico com hoje, Sexta-Feira.

Despretensioso, até distraído, posso comentar que "acontecem coisas fantásticas neste mundo". Ou, com um pouco de atenção, escutar um avião passando em algum lugar lá em cima, roncando os motores no mesmo tom da música que toca sem parar em meus ouvidos, e me unir ao céu e voar aonde quer que ele me leve. E, sempre magnânimo, ele obedece. E eu voo e vou seguindo o ronco que é só meu.

Metafísicos adultérios

A poesia mais elevada é aquela que atinge a profundeza do antipoético.

Escrever é botar uma escada no meio da sala, subir uns degraus, desenroscar a lâmpada, descer, sentar-se no sofá e ficar no escuro até que a luz própria se acenda. Pode levar minutos ou anos. O importante é não ter medo do escuro nem da espera nem do desespero que em geral a acompanha. Escrever não é fabricar uma maquininha de entretenimento para alimentar a imaginação morta e corrupta dos que se condenam a crer em mentiras sedutoras.

Hoje de manhãzinha enquanto um Nescafé eu fazia minha cabeça fez uma poesia e o café saiu fraquinho.

De que é que os escritores tanto escrevem, afinal de contas? Muitos, da vida. Alguns, da morte. Outros, de nada -- o mais fascinante de todos os assuntos.

Me desculpem os estruturalistas mas você pode até entender a poesia -- o difícil é entender o poeta. Da poesia, você sabe o que quer; do poeta, nem ele.

Há dois tipos de pessoas neste mundo: as que perdem guarda-chuvas e as que acham. E que continuam assim divididas mesmo quando não chove.

Ivaneide esguichou na pia do banheiro todo o conteúdo do colírio de dona Paula, encheu de ácido sulfúrico, botou de volta no lugar e pediu a conta.

Ao meu companheiro imaginário Cortázar
Nos mudamos. Em uma semana ela foi embora. Depois de um ano saí eu. E deixamos nossa casa vazia ocupada.

Tentando me enganar? Sou viciado em enganos. 
Nos enganamos imaginando que somos capazes de evitar enganos. A única forma de se livrar de enganos é cultivá-los como se cultiva uma floreira de ervas daninhas.

Não me sigam. Também estou perdido

Pois que te sigo porque estás perdido
Te obedeço em tua falta de senso
Me enumei da tarde de domingo
Naturalmente, jamais houve uma Era da Razão
Que me desse o bálsamo de me dissolver no breu da noite
Para abraçar minha loucura

Fui ensinado que o pensamento não passa de um bom-senso
Menos que abstrato
Há toda lógica na covardia
De viver a morte
Por afogamento semanal nos dois copos rasos de cerveja
Do rito da pizza da muzzarela mórbida e repelente
Assassina do frescor dos cheiros nunca sentidos

Chuvisco

d'uma fria noitinha de julho caída no meio de 15 de fevereiro


pensamento quebrado
boia de cacos sob as nuvens
a reluzir o que é uma existência
arrebanhada em quebra-cabeças impossível

números do bilhete que ontem você
comprou
para enfim nos redimir
sopa de grão-de-bico

(me furto a
explorar a potencialidade do mais poético
dos cereais)

a esperar por mim
toda tarde depois do futebol
na vilinha do Roberto

poça de cacos ondula sem cessar
sob o chuvisco que farfalha lá fora
molha os ouvidos nascidos moucos
dá voz aos cadáveres ruminantes
e libera os vagalumes mnemônicos
que formam não meu cemitério mas
o monolito abstrato que roubei para
o abandono

enfeita um a um com a fita rosa
em torno do diploma que minha irmã
ganhou no terceiro ano, a melhor
aluna da escola num grotesco lacinho final
capturado eternamente
por quem nunca entendeu
a serventia dos enfeites

Aula de um cínico

 À tarde desço à adega. Examino
 os numerosos tonéis de vinho. Cada qual
 de distinto sabor, procedência, idade, buquê
 cor, corpo e travo. Todas as tardes (todas as
 tardes invariavelmente; a única em que faltei
  foi aquela em que morreu meu pai), desço e apanho
um cálice grande o bastante para me embriagar
 e despejo um dedo de cada um dos tonéis que
 guardo na adega. Então sozinho brindo não
 à vida, não à morte, não à própria tarde.
 Apenas levo o cálice aos lábios e engulo
 disciplinad
amente
a
taça
duma

golfada
pois
não
 sei
 sorver
 senão duma vez

Neste mundo de iPods, violinos elétricos, britadeiras...

...só me ocorre perguntar: por que nos carros ingleses o porta-luvas fica do lado esquerdo?

Camus tinha nojo de sentimentos. Eu entendo. Também tenho. De mostrá-los. De que possam me compreender. De que possam saber de mim mais do que sei.

Mas se não sei nada.

Vejo agora que passei toda minha vida tentando não me compreender.

É repulsa difícil de explicar.

Você de certo poderá compreender por quê. Você que passou a vida toda pensando que compreende algo.

Não, não é nada disso.

Ninguém pode ter nojo dos próprios sentimentos. Nojo é sentimento.

E Camus era um aprendiz de aprendiz perto de Freud.

Sigismundo interpretaria cristalinamente que ter nojo do que se sente significa simplesmente que você não teve seus sentimentos aceitos na época certa.

Mas Camus é mais artista. Meursault é mais fácil de aquilatar.

Basta?

Eu mataria por causa da luz do sol.

Eu mataria por qualquer motivo, se o motivo me fosse bastante.

E os tenho. Às dezenas.

Sim, dezenas bastam. Algumas poucas. Menos de cem. Nesta era de incógnitos prefixos gregos para quantidades intergalácticas.

Mesmo nesta era de -

Do que mesmo é esta era?

Mas que interessa?

Não sou desta era.

Se sou, não quero ser.

Entreouvido no balcão do meu buteco

Pessoa:
Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero de não poder confessar num tom de grito, num último grito austero meu coração a sangrar!

Bernhard:
Quando olhamos para as pessoas só vemos mutilados, por fora ou por dentro, disse-nos uma vez o Glenn, ou mutilados por dentro e por fora, não há senão gente assim, pensava eu. Quanto mais tempo olhamos para alguém tanto mais mutilado nos parece, porque é mais mutilado ainda do que nós podemos admitir, mas é essa a realidade. O mundo está cheio de mutilados. Andamos na rua e só encontramos mutilados.

Celan:
Leite negro da aurora nós o bebemos ao crepúsculo, nós o bebemos ao meio-dia e pela manhã nós o bebemos à noite, bebemos e bebemos, cavamos uma sepultura nos ares lá não se fica apertado, um homem mora na casa brinca com as serpentes escreve, escreve quando escurece na Alemanha teus cabelos de ouro Margarete, ele escreve isso aparece diante da casa e as estrelas cintilam ele - chama sua matilha, chama seus judeus manda cavarem na terra uma sepultura, ele nos ordena ponham-se a tocar agora para a dança

Pavese:
Virá a morte e terá os teus olhos, esta morte que nos acompanha da manhã à noite, insone, surda, como um velho remorso ou um vício absurdo.

Reach out to me

Dona Aranha passou a noite inteira paradinha à espera do pernilongo.
Até que, VUPT!
A lagartixa a engoliu.

Amaldiçoado Juninho que não me deixa

A aranha estendia ora uma, ora outra perna. Quantas pernas tem uma aranha? Não sei contar. São tantas. Me dá vontade de chorar. Quem me dera ter paciência para contar as pernas duma aranha, esperando que a noite acabe e volte a esperar.

A aranha deixava seu canto escuro na parede, atrás da caixa de força, e vinha bailar diante dos meus olhos. Por que bailas, dona aranha? Não sabes que a dança me deixa tonto? Queres troçar de mim? Ou não queres nada?

A aranha não respondia. Só bailava, daqui ali, dali aqui, de manhã cedo, logo depois do almoço, na tardezinha que lá fora engendrava um lusco-fusco.

Quando tudo começou, pensei que seria capaz de não tomar conhecimento. Agora rio. Como sou idiota. Por acaso há algo neste mundo que eu não queira saber? Sou o mais curioso dos curiosos das aranhas e de qualquer outro bicho que exista neste mundo.

Então fingi. Ó santa mãe, como fingi. Olhava para o outro lado. Fazia que não era comigo. Saía, esperando que ela não estivesse mais lá quando eu voltasse. Fechava os olhos, tornava a abrir. Até rezar rezei.

A aranha não me dava paz.

Hoje cedo cheguei, vi a aranha bailando na parede, minha parede, à minha frente, decidi acabar com a brincadeira. Taquei-lhe um, dois, três jatos decididos de Raid. (Na embalagem está escrito "Mata Moscas e Mosquitos", assim, em maiúsculas e minúsculas. Aranhas não estão incluídas. Talvez não deva matar aranhas.)

Agora a aranha jaz morta na minha parede, miseravelmente pendurada na teia que todas as manhãs armava e rearmava. As mil pernas estão recolhidas. Às vezes uma ou outra se estende e se recolhe num espamo, balançando a teia.

Me diz uma coisa, dona aranha. Armavas tua teia para apanhar insetos ou não havia insetos apropriados à tua teia?

(Esquece a pergunta. Não quero saber. Nem da tua teia nem de nada.)

(E estás morta. Não me interessam respostas de aranhas mortas.)

Se eu fosse o Veríssimo, poderia dar a esta história uma conclusão de fábula, introduzindo nela um distraído pernilongo que acabava enredado na teia da aranha morta. Seria um fim intrigante. Imagine você quantas "morais" poderíamos extrair duma coisa dessas.

Mas não sou o Veríssimo. Não gosto da ligeireza esperta do Veríssimo. Na minha história não apareceu pernilongo nenhum. A aranha simplesmente ficou lá pendurada a troco de nada.

O prêmio

Não estou em minha floresta
onde está a caverna onde me
abrigo na noite clara sem
tempestade nem mistério e as
árvores que não nasceram
onde subo buscando refúgio
durante o dia que não nasce.

Meu couro não tem listras
ou nódoas que confundam
o olhar não assustado
da minha caça e o olhar
não ávido do meu predador
se recobre de lâmpadas
chinesas, atraindo sobre
mim o olhar desinteressado
daquele que me deseja, o
olhar compreensivo daquele
a quem anseio
ao invés de confundir-me no
meio da clara noite no seio
da floresta em que não
persigo meu predador
sem a benção de morrer
nem fujo da minha caça
sem a chance de matar