Guia

Felizmente para os outros e infelizmente para mim, pareço o que sou.

A inversão

Estou sozinho, mudo, imóvel em pé no meio do palco. Os holofotes todos sobre mim me iluminando feito um rojão no escuro do inferno, enquanto a plateia estonteada, em ensurdecedora algazarra, encena seus personagens-estátuas.

None but the lonely heart

Duns tempos para cá motoristas deram de entrar em rodovias na contramão.

É um absurdo, claro. Põem em risco sua própria segurança e a de terceiros.

As autoridades precisam agir quanto antes.

Se nada for feito, os contraventores poderão contagiar o lado salubre da sociedade. Com o tempo (deus sabe quão longo, ou curto) o indesejável modismo poderia crescer, crescer, crescer, até surgir uma verdadeira horda de infratores.

Com mais tempo, se nenhuma providência for tomada ASAP, a maioria dos motoristas aderiria à moda e o resultado não seria outro senão uma transgressão generalizada. As mãos terminariam por se inverter, levando aqueles que obedecem a lei a violá-la a contragosto. Alguns chegariam a sentir-se no Japão, na Inglaterra, ou, cruzes, na Austrália. Outros mais sensíveis a mudanças na certa se veriam personagens dum romance de Kafka.

Mas, em que pese minha revolta pessoal ante tal descalabro, acho que no fundo compreendo esses  contramãozistas. Chego mesmo a invejá-los quando leio num jornal online que um mais atrevido rodou 10 km no sentido contrário do tráfego, até dar de cara com outro automóvel, se matando e levando consigo para o além uma família de recalcitrantes que ainda teimavam em reconhecer que acidentes ocorrem não apenas nos telejornais mas também em nosso mundinho particular.

Sim, acho que entendo esses pobres coitados e sua índole indisciplinada. Afinal sempre andei na contramão da vida. E para mim a desobediência e suas consequentes trombadas, colisões e traumas é tão natural quanto a luz da noite.

Miséria transitória

Eu e Soninha temos infinidades como se fôssemos velhos amigos.

A Turing

Na (minha) vida
me penso pensando

No (meu) momento

me sinto sentindo

Na (minha) palavra
me escrevo escrevendo 
me penso sentindo
me sinto pensando 


(Puf)
O poema saiu pela culatra.
O que era para ser belo se quebrou.
Turing, não me culpe pela falha.
É que faço agora parte do Grande Jogo.
Preciso ser rápido no teclado, no clicado, no recado.
Como posso vencer?
Seja você mesmo, Turing diria.
Não posso ser eu mesmo
se o espelho não reconhece meu rosto
e não há mais paredes para ecoar minha voz.
 

Não

Não esqueci do mais importante
não esqueci de tudo
não lembro de nada

quando se lembra e esquece
dá-se o presente

será que tenho de estampar esta minha verdade num ímã na geladeira, puta merda?

Whatever



São tantas as agruras na vida de um artista, Sô.

Você é (muito) rancoroso.

Não sinto emoção quando ela me diz.

Silêncio absoluto de um minuto. Então completa: é inútil guardar (rancor).

Não exagero.

Na facul estão dando aulas de controle da raiva este mês.

Que foi que já aprendeu?

O profe tem um lema: a raiva dói só em você, não na pessoa de quem sente raiva.
Meus dedos tremem, o estômago se contorce sob borrifos gelados de adrenalina.
Você tem de aprender a não ser juiz. Deus. Precisa entender que os outros têm problemas diferentes, só isso. Que todo mundo tem duas caras. É o único jeito de saber perdoar.
Me acho em vias de encetar um dos meus reality-shows literários nesta esplendorosa manhã de domingo em que vejo minha vidinha infame de pernas pro ar. Ainda bem que não existem aulas de glamur. Será?
Como são as aulas?
O profe te manda ficar diante da classe e contar alguma coisa bem pessoal, um sentimento que você esconde de todo mundo. Tem de ir falando até provocar uma gargalhada geral. Aí é que a coisa pega. Em vez de explodir, você simplesmente fica impassível até a turma se acalmar. É impressionante a energia que isso te dá.
Já li essa gororoba. Sô se sente digna. Imagino que seja bom. Meu pinto se erege a meio-pau. Nada mais importa.
Ele não passou nenhuma bibliografia?
Hã-hã. Aquela apostila. Mas não tive paciência de ler tudo.
Ela sorri. Olho encima da mesa. O tudo consiste dumas quatro páginas.
Só acho que devia ter uns personagens ilustrando as problemáticas.
Você pode ler a Busca do Tempo etc. Ou a Montanha mágica.
Como o tempo se perdeu afinal? Por que é que ela é mágica afinal?
Sou incapaz da preparação espírito-física. A empreitada não é batatinha, creia.
Me dá saudades de ver Sílvia, falar com ela, ouvir sua voz, espreitar a saliência bojuda formada sob as calças entre as virilhas, o racho do terremoto entre os grandes lábios. Ela me entenderia um tico. Me levaria a um médico, me daria colo.
Demora um pouco mais que dois cliques a esmo pela rede.
Você não jurou que não pensaria mais nela? Soninha chia.
Meu olhar de novo. Minhas viagens não programadas bandeirosas.
Tente conter o ciúme, benzinho. Não tem jeito. Leu os contos da Clarisse?
Não é Clarice?
Uns dois. Tem uns longes que não pude entender.
Sô devia ser crítica.
Também não entendo direito. Também fiquei nos dois.
Bobão.
Sô me dá as costas, fica de frente para a pia, esfrega uns copos com a esponja sem detergente.
Vou ver se trabalho um pouco.
Prometeu que ficaria comigo. Não gosto de te ver escrevendo. Fica (muito) distraído. Egoísta.
Você virou as costas. Pensei que estivesse dispensado.
Juntos nos momentos bons e ruins.
Prometo que limito a uns trinta parágrafos. Que tal?
Tem dia leva oito horas pra escrever um que seja.
Vinte então.
Só se estabelecermos uma quota diária.
Acabou de dizer que tem dia escrevo só um.
Com a quota você se obriga a não escrever pouco nem muito. Só o justo.
Sô podia escrever por mim. Incluiria o serviço na mesada.
Okay, vou parar por aqui.
O celular toca. Ela fecha a torneira, enxuga as mãos, pega o aparelho no bolso da frente das calças ultra-apertadas mostrando o cós do fio-dental e comprimindo ligeiramente as mais saborosas nádegas de maria-chuteira que já se formaram neste planeta, na frente delineando com nitidez o racho da buceta.
Alô? Diz timidamente num sussurro de telemarketing sexual.
Tchau.
Talvez possa enfrentar Sílvia de novo, poderia tentar que ela mude, trazê-la para o meu lado, atue, mesmo involuntariamente, a meu favor, me faça me sentir melhor.
Devo parar agora mesmo?
Sílvia, quase bondosamente, me declarava petulante, de, ó mãe, vida forçada.
Tenho certeza.
Se deixar que Sô me abandone agora nunca mais vou sair do meu buraco.
É a primeira e única pessoa judiciosa que já conheci.
Ela me fita inquirindo se não vou perguntar quem era.
Não.
Não vou fazer segredo nem para mim nem para você: estou saindo com o Ju.
O do buteco?
Hum-hum.
Aquele do táxi?
Hã-hã.
Piedosa, mesmo.
Não vai dar forrobodó com a mulher dele?
Quem vai contar?
Eu. Ele. Tem marido que curte se exibir pra esposa. Vai que é a tara dele?
Você é que não vai. É preguiçoso demais pra se meter na vida dos outros.
E já tem pose de crítica.
Tão desnorteada quanto eu, pobre. A uma altura da vida aprendi, para meu próprio espanto – e quando digo espanto quero dizer espanto – que há mesmo gente que estipula metas e objetivos, que não era mero delírio das minhas autossessões de lucidez. São, aprendi em seguida, as que ficam teimosas qual jegues na perseguição de suas metas e objetivos, não deixando margem para o que quer que lhe possa atrapalhar a jornada. E a teimosice para elas é, cruzes, uma de suas maiores qualidades. Que, obviamente, chamam de determinação, decisão e outros eufemismos. E, o que me espanta mais, elas conseguem e passam a se proclamar vencedoras.
Nossos diálogos telegráficos são a concretização do meu ideal. Por diferentes razões ela usa as palavras com parcimônia, não por desleixo ou indolência. Apenas filtra o excesso, provavelmente para simplificar. Se escrevesse teria um futuro promissor.
Não sei se quero deixar a raiva me controlar.
Mentira. Quero sim. Seria bom ter um controle. Qualquer que fosse.
Sempre que converso com Soninha tenho gana de lhe dizer obrigado pela atenção, pela bonomia, pela suavidade, o tom amistoso a paciência e a singeleza, a falta de esforço com que não taca sobre mim um veredito qualquer que não me devaste e como não menciona minhas ideias manquitolas tão bem refletidas na bisonhice do louco que delira se refugiar em seu sanatório mental.
A cordura dela combinada ao meu senso de humor fora de lugar produz grandes piadas involuntárias de que só eu sei rir.
Não sou rancoroso. Sou ressentido. É fácil confundir os dois. O primeiro talvez brote do segundo. Queria dizer que sou basicamente ressentido comigo mesmo mas seria apenas uma frase de efeito, vagabundice semântica de que tento me livrar em vão. Até poderia se fosse minimamente obstinado. O que é impossível – meus estados de espírito não perduram. Meu dia é um xadrez que sou forçado a jogar contra a vontade tentando retomar jogadas que de repente perdem o sentido e esqueço qual era minha intenção e uma outra se sobrepõe para se tornar sempre a primeira e o velho renascer feito novo.
Quando Sílvia me deixou Soninha se condoeu do desgraçado. Aquela sequer admitia que eu pudesse sofrer de verdade, que meus arroubos não eram mera gabolice. Esta tomou para si a missão de mudar a maneira como me sinto. Como me vejo.
Soninha tem dó de mim.
Quando chega e me encontra largado no sofá olhando para o teto com um copo vazio na mão, senta ao meu lado e me abraça e só me larga quando resolvo sair do estertor e sorrir como prova de que estou recuperado. No começo eu debochava, esse tipo de truque não funciona comigo. Até que me dei conta de que o nojo que tenho da esperança parecia estar refluindo.
Sílvia chegava e me mandava arrumar alguma coisa pra fazer.
Depois de falar ao celular ela liga a tevê, quer ver o Oscar.
E tem também o rosto. O de Sílvia é sóbrio, clássico, solene e belo. O de Soninha tem algo para mim imperfeito pelo sorriso quase constante de quem gosta de cativar e se você der mole, seduzir, uma indefinição algo suja criada pela mistura de sensualidade naturalmente ativa e ingenuidade desarmada.
São tantos da vida de artista os tormentos.
Ela tira um baseado enrolado do bolso da camiseta e acende com o isqueiro Bic. Dá um tapa e me passa.
Não me dou bem com maconha. Fico mais paranóico. Estou seco de inspiração, fôdasse. Me dou bem com a paranoia.
A ingenuidade pode te levar a alturas e baixezas nunca dantes experimentadas. Desço abaixo dum nível que parecia impossível aprofundar, estados inusitados mas nada confortáveis ou produtivos.
Esvazio o pulmão e trago até consumir metade do baseado.
O fumo que o canal da Soninha fornece é de primeira, sem batismos.
Também tô me relacionando, balbucio sem exalar.
Ela arregala os olhões, também segurando.
Solta e ri. Duvido.
Duvide. Finalmente exalo a fumaça e deixo que se foda.
Qual o nome dela? Ou dele?
Cátia .
Com cá?
Cê.
Sobrenome.
Necas de pitibiriba.
Ela sorri. Sei, igual a tal de Juliana Digital que você criou só pra me enciumar.
Sorrio.
Verdade mesmo?
Continuo sorrindo.
Não vou dizer que foi um golpe devastador porque ela não tem profundidade para tanto. Que delícia as mulheres rasas.
Antigamente teria remorso. Quando Sílvia começou a se afastar passei a morrer mais depressa.
Que se foda. Que é que ela faz?
Poeta.
Muito ligeiramente ela aperta os lábios. Acha que poetas sejam de outra dimensão como eu.
Te escreveu algum poema?
Hum-hum.
Deixa eu ver. Outro tapa. Me passa.
Trago, levanto, vou até a estante, pego um livro.
Tem livro publicado? E desse tamanho? Soninha se sobressalta.
Rio. É Freedom, de Franzen. Abro no meio e tiro uma folha de papel. Volto, sento, pego o baseado.
Quer que eu leia ou você?
Ela dá de ombros.
Leio.
Por um momento já não sabemos nada. Nos desfazemos das referências e objetivos, não queremos ser amados ou nos agarrarmos com unhas e dentes ao que estamos acostumados a ser. Soltar as mãos e cair já não parece tão horrível e a distinção entre o todo e o nada e o sempre e o nunca desaparece, diluindo o bebê, a criança, a moça e a velha para reaglutiná-los numa outra mulher. Para esta, os acontecimentos e as pessoas do passado deixaram de ser relíquias e a perspectiva do futuro não é mais a esperança. A obsessão pela profundidade perdeu o sentido, agora queremos apenas boiar na superfície, à deriva, indiferentes à direção em que a correnteza nos leva, às ondas reversas que avançam da praia para o mar, à probabilidade do afogamento. Por um momento a ideia da morte deixa de ser dolorosa e não morremos um pouco quando morrem os que vivem em nossas cercanias e o fim é apenas o reconhecimento de que acabamos. Já não há por que conjugar o verbo manter nem sentido em usar adjetivos como fantástico, terrível, maravilhoso e incompreensível. Estarmos no nosso próprio lugar ou no de outro não faz diferença, por um momento temos a percepção da doença das doutrinas, do conhecimento das coisas e que tanto faz aceitarmos ou rejeitarmos o bom e o mau e sermos capazes de distinguir consciente ou inconscientemente os sinais positivos e negativos da física e do dia. Por um momento a turbulência cessa e podemos por fim reconhecer em nós um espírito que tínhamos certeza não existir. O não deixa de ser o anterior, o sim não é mais o próximo. Por um momento não queremos elucidar os enigmas dos rostos porque nossos olhos não querem mais olhar, nossa inferioridade não quer mais admirar, nossa solidão não quer mais amar. Já não lateja em nós a compulsão animal a nos auto-iludirmos com a resignação de que a vida é assim e só nos cabe vivê-la em sua complexidade enquanto abaixamos a cabeça para a fragilidade e a impotência da condição humana. De repente as distâncias que pareciam longas e tortuosas para a escola e o trabalho e o barzinho e a padaria se encolhem para caber na palma da nossa mão, de repente não vociferamos mais que é foda, que se foda, é uma bosta, guardamos nosso rancor, esquecemos por que tínhamos tamanha vontade de ferir outros, não damos mais importância a nossas imperfeições, não nos perguntamos mais se estamos sendo nós mesmos, não queremos mais ser afetuosos e controladores, dar ou receber lições da vida ou da morte, ter ou deixar de ter medo de confiar em alguém, esquecer os ditos populares e os aforismos e os versos, pegar o pacote ou o documento ou o celular que sem querer deixamos encima de algum balcão, dar mais um passo à frente ou atrás para somente sonhar que estamos nos lançando dum rochedo em alto-mar sem deixar uma nota ou carta que comova quem quer que seja.
Que porcaria. Essa Cátia também faz curso de controle da raiva?
Porcaria? Estava mesmo escutando?
Ela tinha se enterrado nas fundezas abissais do Facebook.
Acho que essa mina devia procurar uma terapia. Deixa a pontinha.
Que será que vão fazer com essa montanha de lixo que a gente tá juntando dia a dia? Já imaginou daqui uns 40, 50 anos? Haja disco rígido.
Tantas dores, lágrimas e risos, tudo esquecido numa lixeira digital.
Afasto as mãos dela do teclado do notebook, fecho a tampa, levanto, vou até o som e boto Mild und leise wie er lächelt.
Quer outro bagulho? Essa gritaria me dá dor de cabeça.
Tampa as orelhas.
Que é que essa dona chora tanto?
Ainda delirando, Tristão imagina Isolda vindo. Ele se agita ainda mais. No fundo, o pastor produz em sua flauta toca um assobio alegre. O navio de Isolda foi avistado e Tristão arranca as bandagens, transtornado de emoção. Quando Isolda chega, Tristão cai em seus braços, pronuncia o nome dela e morre.
Isolda tenta inutilmente fazer com que Tristão responda, até esmorecer sobre o corpo dele. Escuta-se um ruído na praia. O pastor informa Kurwenal que outro navio chegou. Kurwenal se prepara para defender a casa de seu patrão. O rei, Melot e Brangaene aparecem. Brangaene contou ao rei Marke sobre a poção e este veio para perdoar e unir os amantes. Kurwenal luta com Melot e o mata. Em seguida ataca outros na comitiva do rei e é ferido mortalmente. Ele cambaleia até próximo de Tristão e morre aos seus pés. O rei Marke fica transido de angústia e Brangaene reanima sua patroa.
Isolda parece ignorar sua presença. Com os olhos fixos em Tristão, imagina vê-lo sorrir e  tem início sua queda em seu próprio esquecimento. Canta "suave e terno ele está sorrindo” e então se atira sobre o corpo de Tristão, unindo-se misticamente com ele na morte. Assim os amantes encontram a paz.
Os atores de Wagner são órfãos dos seus respectivos personagens, suas vozes mudas em sua dor. Você escuta sabendo que vai chegar a um momento em que não restará nada a fazer.
Que pena.
Não devia ter aceitado o bagulho. Preciso de perdão. Agora.
Me perdoa, Sô.
Do quê?
De ser tão pessoal. Você, tão digital. Tão linda, gostosa, desejável, comível.
De precisar de livros. Escrever. Deitar falação. Sacumé.
Isso deve ser coisa de escritor, benzinho. Você precisa é de coisas sólidas. Dessa bucetinha úmida inchada de tesão. Ela passa a mão entre as pernas.
Meu pau sobe a meio-pinto.
Ela levanta e me apalpa.
No meio de Wo ich erwacht, weilt' ich nicht no way.
E se fôssemos ler um pouco?
Madelena?
Você já tá querendo fugir. Brocha.
Que tal um arrozinho-doce com bastante leite-condensado e canela?
Ela ri e vai para a cozinha. Tem mãos de fada quando vai para o fogão chapada. Preciso resistir. Está me deixando preguiçoso e incompetente.
É minha chance de “trabalhar”.
Não sei se bebo para escrever ou escrevo para beber.
Beber me é essencial para desligar meu espírito preventivo contra meu texto e minha (falta de) ideias.
Me falta experiência social. Já pude testemunhar inúmeras vezes o encantado criado pela proximidade e a conversação com as pessoas, a surpresa com os insights mútuos que vão surgindo à medida que a aproximação se estabelece, a sofreguidão com que tento registrar passo a passo minhas descobertas, o impulso quase irresistível de sair correndo para mergulhar no congraçamento com minha solidão e o descarrego, “desencanto” na hora de botar em palavras.
Experiência social é mesmo básica?
Deitada em sua poltrona, Bia está tentando me hipnotizar com seus olhões pretos de Big Sister ubíqua, profundamente enfadada, orelhões num meio-pau indeciso entre o conformismo e a excitação contida. É e, parece, sempre será meu maior contato com o mundo lá fora.
Sílvia me chamava de prolixo e eu respondia, qualé? ninguém mais lê Proust hoje em dia? Ninguém que eu conheça.
Você vive no passado, eu olho para o futuro.
Até quando vai encanar com esse papo de auto-aceitação?
Depois que o Dalton difundiu o miniconto no meio literário, neguinho acha que passou de 15 palavras é palavrório.
Você acha que devo retomar a terapia?
Enquanto não quiser ter um filho comigo.
Transmitir ao pobre-diabo tudo que tenho de errado?
É um medo (muito) legítimo que (muitos) homens sentem. Mulheres, não. Fora a ansiedade de pensar que posso ganhar um ente querido para perdê-lo debaixo de um carro, uma bala de revólver, um câncer na medula. Que vai crescer entre as paredes imundas deste presídio pintado de rosa e enfeitado para presente com lacinhos azuis e, se amadurecer, entrar para o culto às celebridades.
Não é, não.
Meu sonho é ser triste.
O que você precisa é de amizades, admoestava mamãe. Não pode ficar o dia inteiro trancado nesse quarto preto, com essas cortinas pretas, fumando, escutando essa música dos infernos, pensando e escrevendo bobagens.
Naqueles tempos eu não sabia chorar.
Hoje choro várias vezes por dia. Basta desarmar o etc.
Provavelmente é a única mudança. Ainda vivo sob o encarceramento e seus efeitos.
Pensava que era capaz de suprimir sentimentos da cabeça como suprimo adjetivos, o lugar simplesmente seria ocupado por um vazio, um vade mecum que se encaixaria em qualquer situação.
Eu não tenho perdão nenhum pra te dar, Soninha esganiça do fundo da garganta lá da pia da cozinha. Vai pedir pra sua amiguinha Cátia.
Literatura ainda se faz com palavras. Bastantes. E certos sentimentos podem ser expressados no grito sem maiores problemas.
De repente a pancada de algo se estatelando no chão seguida de forte tilintar de cacos de vidro melecados de (muito) arroz, leite-condensado e canela, que se espalham por todo lado, chegando até o sofá. Bia dá um pulo olímpico rumo ao quarto para se enfiar debaixo da cama.
Se abaixem, que aí vem chumbo.
Vou embora. Nunca mais quero ver tua fuça na minha frente. E vou deixar (toda) minha raiva e (todos) meus ressentimentos de presente pra você escrever essas bobagens que escreve e vou te esquecer (pra sempre) e ficar com o Ju.
Ela está parada à minha frente, punhos crispados, bufando, me fuzilando com seus olhões opaco-faiscantes.
Benzinho, vem cá, vamos dar (mais) uns tragos. Na moralzinha.
Ela pega a folha de papel com o poema da Cátia, amassa e atira na minha cara.
Tinha que ser logo uma poeta?
Ela só precisa dum público, bruxinha. Todo escritor precisa.
E só tem você pra isso por acaso?
Pode não acreditar mas só. Igual eu que só tenho minha bruxilda pra ler as bobagens que escrevo.
No mínimo, um escritor tem de ter a chance de provar a alguém que sabe escrever, porra.
Ela sai batendo a porta num estrondo que estremece as paredes.
Taí a chance de me inspirar. Vou falar sob e sobre atordoamento. E como é possível dominar o nossos sentimentos, mesmo os mais espontâneos, para fruir a existência da única maneira que renda bons frutos: pacatamente como o Verissimo.
Bem, só me resta desligar a prevenção e relaxar.

Algumas semanas de depois de conhecer Zelda, então com 23 anos, Francis Scott Fitzgerald, primeiro tenente de infantaria e aspirante a escritor se casou com Zelda.  Em sua pequena cidade no Alabama, a ainda mocinha Zelda era conhecida como um furacão.
Em setembro de 1918 Scott anotou em seu diário:
“Me apaixonei no dia 7.”
Amigos relatam que Scott estava decidido a fasciná-la, telefonando quase todo dia e levando-a para sair regularmente.
Profundamente atraído por Zelda, ele partiu para Nova York em busca da riqueza e influência que o sucesso como romancista daria a ambos.
Scott, com dificuldades para fazer carreira em redação publicitária em Nova York, ficou perturbado quando Zelda rompeu o noivado em junho. Ela queria um casamento baseado na auto-confiança e no sucesso, não no fracasso e na pobreza.
Scott largou seu emprego na publicidade e voltou para sua casa em St. Paul, Minnesota, para reescrever seu primeiro romance, Este Lado do Paraíso. A Scribner aceitou o livro para publicação em setembro. Nos meses que se seguiram Scott visitou Zelda várias vezes. Ainda apaixonada por ele, Zelda aceitou retomar o noivado.
Se casaram na Catedral de St. Patrick's em Nova York em abril de 1920, um mês depois do lançamento de Este lado do Paraíso, que se tornou um sucesso de crítica e vendas. Na cidade só se falava sobre o glamuroso casal que personificava a vida elegante e descontraída da “Era do Jazz” da Nova York dos anos vinte. Ambos eram ainda jovens complexos e vulneráveis demais para exercer o papel que pretendiam assumir.
Em 1915 Scott abandonara Princeton para escrever. Era extremamente dedicado, com longos horários de trabalho e muita bebida para relaxar. Paradoxalmente, o sucesso recente ameaçava a solidão de que precisava para escrever. O papel de Zelda foi ainda mais complicado. Um amigo de Scott dos tempos de Princeton viria a descrevê-la como uma “beldade temperamental do interior sulista” que mascava chiclete e deixava os joelhos à mostra. Um ano depois o amigo mudaria de ideia, reconhecendo-a como “sem dúvida a mulher mais brilhante e mais bonita que já conheci.”
Scott contou a ele que aproveitava em grande medida as ideias de Zelda no romance que estava escrevendo, Os belos e malditos. Com efeito, Zelda tornara-se material de inspiração de Scott. Quase todos os livros dele continham variações de suas vidas juntos, às vezes incorporando trechos dos diários e cartas dela. Na época Zelda disse que “O plágio começa em casa.”
Logo as grandes bebedeiras e a intensa atividade social em Long Island começariam a afetar o casamento. Em janeiro de 1922, com um distanciamento clínico e ao mesmo tempo surpreendente, Scott escreveu ao crítico literário Edmund Wilson que o “total, requintado e entusiasmado egoísmo de Zelda, juntamente com seu alheamento gélido” influenciava enormemente sua escrita. Talvez o “egoísmo” ao qual Scott se referia fosse a luta de Zelda por ir além de se mera figurante na ficção de Scott. Logo ela começaria a escrever também.
Em 1924 partiram para a França na esperança de reorganizar suas vidas e encontrar um lugar para Scott escrever. Estabeleceram-se em St. Raphael, um pequeno resort na Riviera. Pouco depois fizeram amizade com um aviador francês chamado Edouard Jozan, por quem Zelda se apaixonou, para indignação e choque de Scott. Ela pediu divórcio. Em novembro, com Zelda recuperada de uma overdose de calmantes e Scott tendo concluído seu novo romance, O Grande Gatsby, viajaram juntos para a Itália. Em 1928 viajaram para Paris, onde Zelda passou a se dedicar compulsivamente ao balé, praticando por horas a fio.
Mas ela estava com 27 anos e velha demais para pretender um sucesso efetivo como dançarina. Começou a escrever para ter uma renda e pagar as aulas de balé e, sobretudo, não ter de depender do dinheiro de Scott. Essas pressões terminaram por estressá-la, até que em 1930 sofreu seu primeiro colapso nervoso. Depois disso se internou em várias clínicas na Europa e nos Estados Unidos, com breves períodos de frágil estabilidade em casa. Passava tempo cada vez maior longe do marido, embora mantivesse contato constante com ele. Muitas das cartas que ambos trocaram a partir desse período são afetuosas e nostálgicas, com Scott lembrando os velhos amigos e Zelda lhe agradecendo os presentes, flores, jóias e perfumes. Algumas cartas indicam que Scott temia pela recuperação da esposa. Considerava o trabalho literário de Zelda como a mais destrutiva de suas tentativas de se realizar. Zelda constituía matéria-prima sua e dela mesma e ele, sendo um profissional traquejado, poderia fazer melhor uso desse material que uma amadora confusa.
Scott insistia para que ela parasse de escrever ficção.
Mais tarde, após a morte de Scott, Zelda sonhou que ele a chamava, se lamentando “Perdi a mulher que pus em meu livro”.
Scott morreu de ataque cardíaco em 1940, quando Zelda ainda estava no hospital.
Na “dourada loucura” da Nova 'York dos anos vinte, eles tinham vivido coisas demais demasiado cedo. “Nada poderia ter resistido à nossa vida”, ela concluiu em 1939.

Vou escapar da minha indolência, me forçar (ainda mais), arrebentar a apatia das aparências, estuprar as superfícies virginais.
O parágrafo inaugural do meu novo contículo romperá com estas minhas obsessões opressoras, minhas idiossincrasias, o jugo das minhas neuroses.
Narrará na terceira pessoa. Sufocará por fim minha voz como imperatriz divina dos meus desmandos. Desencaminhará meus leitores.
Prescindirei da minha ex-mulher, da minha mulher atual, dos meus amigos e de mim.
Terá umas trinta páginas.
A história se passará em não mais e não menos que três dias.
E será escrita em um.
A manhã para o primeiro, a tarde para o segundo, a noite para o terceiro.
Talvez essa sincronia fajuta me ajude. A única sincronia legítima é a das grandes engrenagens. Nunca agi sincronamente com nada. E mesmo assíncrono nato, me afasto sempre, num movimento viciado. Isonomia, pra que serves senão figurar no dicionário alheia à minha realidade?
Pisarei em terreno inusitado. Sem medo do que ele, inusitado, me reserva. Inusitados reservam o que quer que seja a alguém? Depende do alguém. Até hoje me limitei a enfiar o rabo entre as pernas e correr assustado para longe.
Bebendo para encarar o famigerado. Provavelmente reforçando assim meus cadeados, atirando para todo o sempre a chave longe do meu alcance, me anestesiando igualzinho aos tantos covardes anestesiados que tanto execro.
Não, não vou beber.
Me declararei abstêmio de nascença e pronto. Refratário ao efeito do álcool. A embriaguez me será inescrutável tanto quanto é para um trapista.
Nem uma gota? Não, nem uma. É mais aconselhável.
Um cheiro ao menos.
Neca.
A garrafa à vista ao menos.
Sim. Por que não? O bálsamo inatingível. Tão perto e tão longe como Soninha e seu isoporífero amor desprendendo bolotas branquinhas à medida que se desmancha em neve de araque.
Se conseguir, será minha liberdade. Será, sim. A desgramada me desmecaniza para me mecanizar.
Estou doente dos teus truques, Sô.
Faz um despacho cum galo preto na esquina, libera minha alforria para a morte.
Outro item do plano: chupar 15 mexiricas de manhã, 15 à tarde e 10 à noite.
Sim, vou pedir a Soninha me trazer uma sacola de mexiricas da feira. Ela adora coquetear com os feirantes, fazendo esposas e noivas subir pelos paus das barracas.
Quem sabe ela me traz uma xepeira que tope ser minha escrava assumindo todos os deveres implícitos no cargo?
Agora entendo por que Soninha estava tão carinhosa ultimamente. Sim, entendo alguma coisa, afinal. Foram dias de carregamento constante de elogios, adulações e poeminhas ensanguentados de adoração.
E que foi que aconteceu?
Aconteceu que quanto mais escrevia para ela mais ela se apaixonava pelo Ju, na mais autêntica transferência amorosa de que já tive notícia.
Sim, consegui entender alguma coisa. A primeira em minha vida vidona vidinha sanfonera. Joguei ela nos braços do meu rival feito a mais grotesca vaca cupideira do Rosa. Sou um gênio invertido.
Einstein saberia calcular quantos machos já comeram a buceta duma catadora de lixo da feira?
Bom, não posso ser muito preciso. Diria, algumas centenas. Milhares, será? Como a Bruna Surfistinha batendo recorde de bilheteria?
Me pergunto, depois de transar com mil, dois mil caras diferentes ao longo de anos uma mulher se daria por satisfeita sexualmente e, por consequência, espiritual, vivencialmente?
Porque todos queremos sexo, não queremos? Por milhões de razões diferentes, mas, sim, queremos. Excluir poderosos como o papa não vale, esses sublimam o tesão que deveriam sentir no poderzão que deveras exercem. Talvez comer rabos metaforicamente seja tão orgástico quanto.
E quantos mais parceiros, melhor. Você deve aprender não apenas traquejo de mãos, pernas e genitália mas também, principalmente, não sei, um conhecimento básico, libertário da nossa animalidade.
Precisamos de promiscuidade. Nos livrar dos pruridos idiotas que nos metem medo dos perfumes e sabores das nossas prolíferas vísceras.
Preciso ler “esse” poema que vi não lembro onde.
Acho que foi.
Ligo pra Soninha.
O google dá dezoito mil e quinhentos hits. Deve ser fácil descobrir de quem é. Mas desconfio que você já sabe, bobalhão.
Sô, você tá com o Ju jumento?
Ele pelo menos é carinhoso. Ouve o que eu falo sem rir. Não me esnoba. Sabe o que ele me diz? Não deixa ninguém te tirar uma, tá entendendo? NINGUÉM.
Na minha opinião, isso é que é uma declaração arretada de amor incondicional, uma entrega visceral, animal e espiritual de alguém a outro alguém. E que eu gostaria de ter feito se fosse capaz. E que eu gostaria de ter recebido de alguém se alguém fosse capaz e o Ju não fosse um inveterado jumento.
Eu numa hora dessas diria a mim mesmo, cara, você está bloqueado estranhamente a estranhos. Cara, você é estranho, sempre será e tem raiva de quem não é, seus íntimos são estranhos, você é estranho para seus intimamente íntimos, só ama quando o nó é enlaçado para se desfazer e as probabilidades de que tudo dê certo seja imensamente erradas.
Calculo quantas dezenas de homens Soninha já deu para em sua vidinha curta de mosca do esgoto.
A grande maioria não se importou em lhe confidenciar – sim, confidenciar – que ela é uma bonequinha linda.
"Todos eles?" ela diz.
Eu mesmo, dependendo do meu (des)ânimo, da pressa com que geralmente cisco por todo teu corpo provavelmente também não disse como deveria.
Se me perdoar desta vez, não será em vão, juro.
Sei que ela não se liga nos meus antirraciocínios. Os acha simplesmente absurdos, não se dá o trabalho de considerá-los.
Perfeitamente compreensível. (A MAIS ENSURDECEDORA GARGALHADA JAMAIS OUVIDA ECOANDO PELAS ENCOSTAS DAS PLANÍCIES.)
Vai ver aquela vaga no Mac pra mim?
O diretor regional foi meu cliente e cometi a asneira de contar a ela.
Um parágrafo por dia, me basta. (Pai.)
Tem de fazer treinamento antes, benzinho. Uma semana. Ter disciplina. Não xavecar o gerente. Acha que consegue?
Escuta, da pletora de livros verdadeiramente literários por aí, quantos você acha que ainda precisa ler?
Sô, não suporto te ouvir tão distante. Que dizer do resto?
Dio mio, não entenda essa!
Tá me fazendo de tapa-buraco?
Benzinho, se te dissesse que você é um dos meus estudos, ficaria muito brava? Todos, todos os buracos da minha vida estão por tapar. Serei viciado em vazios?
Não quero mais ser estudada, porra. Não sou pernilongo.
Tá certo, fofinha. Me comportei mal. E se viesse fazer aquele seu arroz tropeiro de dar inveja aos deuses?
Agora tenho visita.
Está estranhamente lacônica.
Tô com medo da Bia, minha esperança. Tá me olhando com aquele olhar estranho de novo.
Se judiar dela nunca mais me vê na vida.
Judiar não. Só vou jogar a desgraça debaixo dum ônibus.
Riso nervoso. Ela me acha capaz. Me sinto forte e másculo e bravo.
Tento reter a lufada fresca de sensações agradáveis. Dura dez segundos.
Por que não estuda a Bia?
Mas se não faço outra coisa. Depois de você, é minha maior inspiração.
Não estou mentindo. A cachorra é elétrica, hiperativa, ansiosa feito eu. É meu clone canino. Me vejo como se olhasse um espelho sem rabo. (Nem ela nem eu temos.)
Descobri um jeito fácil de me aquilatar sem ter de estudar a mim próprio. Odeio pensar em mim.
Sô, estou pedindo de joelhos.
Não acredito.
Quero ver. Manda uma foto.
Agora? Acho que a máquina tá sem pilha.
Quem tá sem pilha é você.
Tô, certo. Há bom tempo. Provavelmente efeito do meu bode à comunhão humana que é o grande barato que liga os bípedes racionais em geral.
Ainda não estou pronto.
Só mais uma briguinha parte dos nossos desacordos TÁCITOS não-faço-mais-o-que-fiz-se-você-não-fizer-mais-o-que-fez.
Você é (muito) caidão. Ranzinzão. (Muito) encanado. Preciso dum homem que sinta (muita) alegria de viver. Não se ache em perigo o tempo inteiro. E (muito) avarento. Preciso ter minhas coisinhas, né?
Sim. Quando iniciamos nosso casinho tudo isso estava incluso implicitamente.
Mas benzinho, lembra aquele nosso papo sobre o sexo dos anjos?
Os excelsos do balcão?
O Ju tá me ensinando uns exercícios pra endurecer os seios.
Seios? Os dois?
Nunca vai me pedir pra comentar a obra duma velha chata dando lição de moral.
Que...
Neném, você cresceu no interior de Minas, entenda, é questão de perspectiva.
Petulância. O Ju tá descobrindo um caroço no meu seio direito.
Não tem caroço nenhum, esperança.
Quer ter uma filha chamada Patrícia. Gostei do nome.
Esse cara é um pervertido. Mulherengo. Tá te passando a conversa. Sai fora. Vou comprar aquele coelhinho que você gostou. Vamos passear no shopping todo fim de tarde.
Diminui a escrevinhação?
Um mês. Tá bom?
Dois. Coelhinho. Shopping. Minha vaga no Mac.
Quero ver o Jumento encarar essa.
Sem me comparar mais com a ex-patroa.
(Não sou mágico.)
Se tivesse ficado aqui, o arroz tropeiro já estaria pronto.
(Não vou nem me dar o trabalho, pois, segundo nossos desacordos TÁTICOS, não vou, evidentemente.)
Puta merda, não aguento mais esse porra do Ju apalpando minhas tetas.
Tetas. Enfim. Salvo, por ora.
Meu sonho de moleque era ser herege.
Meu outro sonho de moleque era ser agitador cultural. Me desencantei com a ideia quando li em algum lugar que o dono da Livraria Cultura se dizia ser um.
Ontem tomei umas com Julinho no buteco e ele disse que estava pegando uma mina gostosérrima que não podia falar quem era.
Olhei para a cara dele, me deu pena da moça. O sujeito é um neandertal. Não admira, taxista tendo de aturar o trânsito.
Como todo neandertal, cafajestão, se gabando da sem-vergonhice da fulaninha que o deixava exausto por uma hora e saco doendo depois de dar três e virava de bruços depois de ele ter comido na frente.
Tinha filmado as transas escondido, quis me mostrar, começou a puxar o celular do bolso.
Vamos sentar ali na sua mesa.
Caí na gargalhada e dispensei, outra hora qualquer. Minhas heresias são outras. Hilda Hilst deve ser mais interessante.
Minha mesa reservo para meus amigos do peito, Fred e Afonso. Todo mundo no buteco sabe disso, porra. Cara espaçoso.
Os bebuns no salão tagarelam o que disseram a sicrano e o que escutaram de beltrano e quem viram com quem tal dia a tal, tal, tal hora, eu assentindo, claro, pena que a mãe da patroa morreu, tive de viajar, quatro dias fora com (toda) a família, quando voltei a mina já tava dando pra outro.
Cê num vai acreditar quem.
Quem?
O Ademir. Vê se pode.
Que porra de Ademir?
Na hora não dei bola.
O carinha da padaria, porra.
O vozerio da bebunzada é minha ordem e paz.
O Piauí?
Assim praticamente se resumiu e agora naturalmente não há dúvida: que eu ouse reler Hilda Hilst, não ouse falar do atrevido que se pretende escritor.
E que.
Seja como for, com caras como Julinho não tem cadê o currículo? Fugi há décadas do convívio com os adeptos do princípio.
Quero misturas surpreendentes que me reensinem o sentido real do mundo exterior.
Neófito? Fim da fila.
Uma vez eu pensei que Julinho fosse meu amigo mas se revelou uma decepção.
Ficou de me levar até a clínica do dr. E pela metade do preço sem taxímetro. É o tipo de coisa que amigos fazem para amigos. Dois meses depois peguei o táxi do Juraci e vi que o jumento filho da puta tinha me cobrado o dobro da corrida.
Afinal, de que outro jeito poderíamos reconhecer a amizade? Não tem carimbo de procedência, cruz credo.
Soninha está dançando com um ajudante de pedreiro no salão de jogo.
Meu cérebro faz poesia em estado bruto. Deus o livre.
A peãzada olhando a bunda dela com os cantos das bocarras caídos prontos para babar.
Puta merda, paro justamente antes das conclusões definitivas, pesadas e reveladoras que há um segundo estava prestes a tirar. (EU SEI, PORRA. ESTOU INDO A UMA DISTÂNCIA SUFICIENTE APENAS PARA OUVIR ENQUANTO TENTO APENAS CHORAR E RIR, MAS DEUS ESSES CARAS SÃO MALUCOS E ME DIVERTEM, DÂNESSE, NÃO VOU SENÃO CURTIR.)
Nessas horas não costumo botar o rabo entre as pernas. (O que nunca é útil. Rabos não são apenas ornamentais.) Tô velho. Os bebuns voando diante do balcão são anjos aterrisados materializados no antidrama.) E se eu desse uma hienazinha?
Onde será que vende?
Uma ratazaninha.
Outro dia apareceu uma na privada aqui de casa. Fiquei com medo, abaixei a tampa, não usei mais o banheiro. Abri uma semana depois, o bicho estava morto. Afogado, pobre. Fiquei triste como Bernhard.
É isso que você merece. Como pode fazer essas coisas comigo?
Faço o que gosto de fazer, balançar o coreto. E não me julgue, moralista de merda.
Função, entre outras, do escritor.
O jogo pode ficar ainda mais aberto. Estou até grato. Males que vêm pro bem.
Mais uma oportunidade de encaçapar uma experiência fundamental e tirar uns pensamentozinhos dela e escrever uns parágrafos a partir desses pensamentos.
Mas aprendi uma coisa, acho: sabedoria e vivência, nada a ver.
Aprendi outra coisa, acho, que é conhecer um tico as potencialidades infinitas depois de viver tanto tempo assoberbado.
Uma das vantagens da maturidade é que você por fim se dá conta de que não pode mudar nada nem ninguém. Se tiver sorte, talvez possa contribuir para algo ou alguém melhorar. Meio solene demais mas verdade.
De qualquer forma, ainda me assombro. Antes tinha como uma das minhas poucas qualidades. Espero que daqui em diante meu assombro cesse a tempo.
A Sara, filha da Mara, foi sequestrada. Estruparam, depois cortaram a garganta.
Soninha de novo entalada no maldito Twitter.
Será que nunca não vai ter fim?
Quer que eu abra uma conta. Sou muito desconfiado, fico com o pé atrás, não sei me portar direito, dizem que você tem de tratar bem os “outros” Não duraria uma tarde.
Daquela loja de móveis dos judeus lá na esquina? Outro dia vi um conjunto de mesa e cadeira giratória para computador (muito) confortável, mas um pouco baixa demais pros meus joelhos, deu vontade de comprar mas tenho medo do judeu ancestral carrancudo que passa o dia dormindo numa poltrona nos fundos.
A Aninha tá dizendo que salgou muito o salmão. A Iarinha comprou meias de linho branco estilo alemão, tá na última.
Põe sal a mão no salmão, põe o pé na meia do alemão. Será Mara filha de Sara?
Vão dizer que foi crime racista.
 Okay, te perdoo.
Por quê?
Ter me traído com essa Cátia burralda. E tô sendo bonzinha, ainda gosto de você.
Te traí coisa nenhuma, florzinha amarga. Trocamos uns poemas, nada mais. Isso não é traição.
Ela bate a tampa do note e me encara enfezada feito brasileiro consciente pagador de impostos.
Não atira no chão, que não dou outro.
Ela se detém no meio do gesto. Sou um burro.
Trocaram poemas! Tem traição maior? Fizeram... Fizeram... Como é mesmo aquela palavrona besta que vive dizendo?
Congrassamento.
Congrassamento!
Se não é trair, o que é então?
Tenho a sensação de que fiz algo errado.
Nada a ver, batatinha doce. (Muito) pelo contrário.
Contrário bosta nenhuma. Ficam se amando pelas palavras. Deve ser... Ser...
Sublime.
Filho duma puta. Ela dá um pulo do sofá.
É agora, rezo.
Joga o note no meu colo em vez de arremessar no chão. Bezerra.
Por que não troca poesia comigo?
(Uma troca não requer pelo menos dois lados?)
Se ela tivesse a mais ínfima do que eu e Cátia trocamos, (muito) certamente me esquartejaria com o cutelo de destrinchar frango do Lacerda.
(É você nosso assunto, essência.)
A poeta e eu nos separaramos, poetas são igual gato e rato, olha, queria mesmo não ter feito isso, não posso estragar nossa amizade.
De que cometi uma espécie de heresia.
Ela resplandece. Pediu a deus. Vai me levar no templo para agradecer a benção. Tem de ter audácia. Nosso primeiro dever é servir ao Pai.
Ela vai superar a traição, eu, neres.
Os nobres dedinhos acostumados a divagar sobre todas as anatomias não alcançam o Olimpo. Sou um zé-ninguém mas tenho indignidade, digo, dignidade.
Soninha logo aprenderá a professar seu verdadeiro ofício.
Não se ponha no meu lugar, anjinho da porra.
Vou botar um Rachmaninov no CD e desmaiar. Não durmo há um momento que já dura duas noites.
Meu contículo de trinta páginas em três dias em um dia caminha para o fim. Vou sonhar, que ganho mais.