Cansaço

Que cansaço de fazer
Que não quero
Circular mariposo
Tonto em torno da luz
Que me serve
De nada exceto
Pular o
Presente
Lamento
Cansado de
Que não quero pensar
Que não quero pensar
Que cansei de querer
Voltar
Cansado de
Voltar
E voltar a ter que
Falar, não quero falar
Não quero sentir
Que não quero sentir
Tendo de correr para
Ter de parar
   Sem descansar

Mais almôndegas com pouco sal

Longa fila se estende pela calçada na tépida tarde de primavera.
Consiste de pacientes senhores já passando da meia-idade, talvez com os brios domados pela experiência, mocinhas com ares de quem aspira à nobre profissão de secretária, desanimadas e rechonchudas donas de casas que já criaram os filhos e hoje não têm mais que fazer, garotões irriquietos que relutam em aceitar a fatalidade da espera.


Estava de saída para viajar. Destino: Nova York.
Ao abrir a porta da frente, já com a mala na mão, lembra de algo.
Volta ao quarto. Fecha a porta. Definitivamente.


É noite. Dormem as árvores, os carros nas garagens, os pássaros, os trens, as namoradas que acenaram antes de ir embora, os motoristas de táxi, os jogadores de tênis, as crianças cegas — dormem todos. Exceto os pernilongos e os japoneses doutro lado do mundo. (Será?)
Antes de fechar a janela olho pela última vez o escuro lá fora, procuro uma estrela no céu sem estrelas, encosto as venezianas, desço a vidraça. Rumo cabisbaixo para a cama e deito e apago a luz e sem fechar os olhos inundados de negro atento os ouvidos para qualquer ruído que possa servir de sinal de vida.
Nada aqui dentro. Do lado de fora a calçada e os postes e os muros e as paredes das casas dormem, lá onde sempre estiveram e estarão, talvez para sempre, indiferentes a mim.


Nasceu xifópago de si mesmo.
Havia os que incomodavam fora. Havia o que incomodava dentro.
Havia o que incomodava dentro os que incomodavam fora.
Havia os que incomodavam fora o que incomodava dentro.
Quem mais o incomodava era o que estava dentro.
Até que, aos oito anos, por ninguém nos arredores mais suportar, a mãe o levou ao doutor.
Dupla personalidade, diagnosticou o doutor. E receitou choque.
A mãe e o pai ficaram felizes por Edson ter nascido e inventado a eletricidade.
No dia marcado, o doutor mandou deitar. Perguntou como chamava o amiguinho dele. Enquanto pensava na resposta, recebeu a anestesia.
Quando acordou, dorzinha chata na nuca, olhou dentro. O xifópago ainda estava ali. Ele, não.



— Diz. Quando é que você se viu derrotado?
— Não sei. Quando pensei que fosse perder tudo. Aos oito anos. Aos vinte e oito. Me achei numa iminência. Tive de engolir o veneno. Meu veneno. O mais amargo que há.
— Enquanto você consegue jogar a culpa sobre os outros, identificando neles um pecado que se sobreponha ao seu, tudo parece bem. Mas cedo ou tarde, de repente não é mais possível usar esse truque. Você tem de se encarar.
— Se essa hora chega, é porque teus pecados já foram longe demais. Estão além do teu controle. O dispositivo que todos nós temos que nos preserva mecanicamente do nosso próprio julgamento nessa hora já parou de funcionar. Ou por desgaste natural ou emperrado por falta de uso.
— Na prática, é a mesma coisa. Tuas salvaguardas de ti mesmo sumiram por alguma causa misteriosa que já não interessa investigar. Agora é mano a mano.
— As mentiras que você se acostumou a usar para consumo externo, mantendo a face, agora não valem nada. Para os outros, serviam porque eles não tinham como verificar a “tua” verdade. Para você, que sabe os caminhos falsos pelos quais trilham tuas mentiras, não há mais como sustentá-las.



João foi detido. Alguns acharam injusto. Outros, merecido. Outros ainda, bem-feito.
Na cela, João começou a ser torturado. Choque. Pau-de-arara. Afogamento. Supressão do sono. Terror psicológico.
Sob padecimento intolerável, João desejou que o tempo voasse.
Anos depois, embora traumatizado, estava razoavelmente feliz por a tortura hoje fazer parte do passado.


— Veja. O pai foi o primeiro. Depois a menina. Então o menino. Por último, a mãe.
— A mais corajosa, como sempre.
— Ele, o mais covarde. Como sempre.
— Se fosse você, como faria?
— Igual, acho. É insuportável, seja como for.
— Alguma semelhança com o caso da Aclimação?
— Bastante. Só o número de filhos difere. Lá eram quatro.
— A mãe por último...
— É...
— Com esse já são oito. Será que continua?
— Pelo jeito, sim. Vai longe.
— Como será que eles conseguem o...?
— Pois é. Tem alguém muito esperto...
— Muito...
— Bom. Té manhã.
— Até. Onde será a próxima?
— Zona Norte, talvez. Tatuapé...


Dava um duro danado pra ganhar a vida.
Escravo do trabalho, nunca se queixava.
Certo dia começou a olhar os aviões no céu.
Ficava ali parado, boca semiaberta, meio absorto, meio esquecido de tudo.
Foi olhando, olhando, ficou assim.
E nunca mais fez mais nada.


A amante do prefeito tinha tetas tão generosas, que a cada munícipe foi outorgado o direito a uma chupada semanal, mensal ou anual, de acordo com a volúpia (desde que não fosse alérgico, naturalmente).
Em compensação,  a esposa do prefeito tinha tetas tão egoístas, mas tão egoístas, que os sindicatos (de quase todas as categorias) organizaram uma manifestação domingo cedo, dizendo “assim não é possível, mon amour”.

Almôndegas com pouco sal 9

A longa fila dobra a esquina. Depois a outra e a outra. Quase dá volta no quarteirão.
Homens, mulheres, moças e garotões trocam de pé de apoio, abrem e fecham os punhos, bocejam, resmungam, torcem o nariz, fazem as mais variadas caretas.
À medida que, lentamente, se aproximam da porta do modesto sobrado malcuidado e de paredes descascadas, vão lendo demoradamente a placa pendurada sobre a soleira:
“FECHAMOS OLHOS. TAMPAMOS OUVIDOS. CALAMOS BOCAS. ABAFAMOS VIDAS.”

Pego na rede

Acordo, me ergo e preciso
E espremo esponjas inchadas de passado
Não revelo o que guarda tua barriga prenha
Tomo fôlego
Afundo a cabeça no travesseiro
Peço que ponhas o vestido de algodão
Com mão trêmula, levo o copo aos lábios
E o largo no ar antes que o veneno entorne

Adoça de riso esta manhã que infecta o futuro
Antes que me cale, antes que me deite

Ensurdecer

Não quero música
Enganar meus ouvidos com notas
Forjadas
Primitivas
Devastadoras
Fugidas de instrumentos
encantados
Simulacros do preciso
Preciso, sim, do som
Estridente
Rancoroso
Arranhando os ouvidos do mundo
Desfeito
desnascido
em mim

Doido

Leis há contra as quais ninguém pode ousar pecar.
Idiossincrasias, você proporia?
Nem tais leis se deixam abalar por circunstâncias fugazes.
Me dirijo a mim mesmo, o doido sou eu.
Das doidices por aí, todas tão light — o obsessivo por comandar a festa, a maníaca por alguém que a reconheça talentosa — eu sou o mais encanado.
Você quer — me parece certo — você quer a prova de sangue.
Esta nunca houve, pelo que eu saiba.
Talvez prefira ver o quintal tinto de carmim?
Não posso me negar a reconhecer, ficaria bonito.
Deitados, assistiríamos cada lajota de ardósia se recobrindo do vinho azedo que mofa em nossas veias.
Até finalmente descobrirmos para onde podem correr os fios líquidos das nossas vidas.

Ao pó, ao pai

Eis o filho da guerra que travaste contra ti mesmo
Negro fumo erguido das tuas batalhas asfixiantes,
Cegueira do meu olhar
Corda com que amarraste teus próprios cacos,
Algema dos meus pulsos

Hoje, quando te rompes
Aqui recolho tuas partes
Espalhadas pelas estradas intactas
Que constituíram cada uma das noites
Condensadas em cada segundo do dia

Dos milhões que foste durante os milhões de séculos que vivo
Legaste um que nunca consegui conhecer

Lembra quando me soltaste dos teus braços para pegar o morteiro
que mais uma vez precisavas mirar contra teu coração?
Tens travado na garganta
O grito que não deste
Tenho ecoando nos ouvidos
O grito que não escutei

As paredes estão cobertas de sangue?

Desempenhando o papel insuficiente de filho de Deus
No palco dos nossos dias
Não te ensinei a ensinar-me a viver
Pois ensina-me agora a morrer

Oração

Para não me perder
Sigo a avenida desconhecida.
Chegando à beira dos trilhos,
vejo passar o trem que nunca
para nesta estação
Deixando no ar restos de ruídos
dum quando sem onde

Se estivesse no trem, mesmo
de língua arrancada, rezaria
a súplica que todos
escutam quando dormem.

Volto.
Para não me perder
Neste dia sem amanhã
Trilho o caminho que jamais trilhei.

Espera

Viro solto
Envolto passo
Em mero traço
Resto e ergo
Posso e canso
Em mim
Toco a cara
Renasço rei
Troco predo
Pro alto cuspo
Mordo traio
Domingo arrulho
Sonífero fardo
(Pois agora que perdi tanto tempo já não tenho o que esperar)

Almôndegas com pouco sal 11

Eu a vi novamente no meu sonho esta noite. Estava linda com seus cabelos castanhos lisos sobre os ombros, sinfônica harmoniosa a lhe proteger a cabeça numa auréola sonora.
Eu a vi de longe, do meu planeta, perdido pelas ruas, como sempre.
Ela sorriu e estendeu a mão como se dissesse “Vem! Vem, que te salvo!”
Tentei. Desamparado, olhei para os lados.
Ir como, meu anjo? Como?
Ela brandia o braço com mais vigor, “Vem! Vem!”
Meu amor, minha querida ninfa, os insetos não deixam, chorei.
“Vem!” ela repetia. E na mais doce e melíflua voz que jamais ouvi, completou: “Estou disposta a te ajudar. Mas primeiro você tem de...”
Tenho de fazer o que, minha linda? Me diga o que tenho de fazer? Então ela se calou, olhando em volta, receosa.

Vazamento

Com o mais revelador pensamento na ponta da língua
Que enfim expressava
Toda minha revolta
E raiva
E o gosto amargo que me sobe do estômago
Sempre morrendo na garganta
Acordei, alta madrugada
Suado e triunfal
Estava ali, tão acessível
Bastava pegar a caneta e registrar no papel
O pensamento na forma que, sei lá, desde meus oito anos
Traço e refaço, faço e desfaço, ponho e tiro
Odeio e afago
A forma que desde que nasci
Vou escarafunchando com dores pontiagudas na alma
E tateando cego névoa adentro
Alma afora
Estava ali agora
Tão simples
Como não pensara nisso antes?
Que fácil! veio assim no meio do sono
Num bem-acabado bloco
De palavras justas
De versos tesos
De conceitos sólidos
De horizontes limpos
Agora ela veria
Todos veriam
Que por dentro este mané
Sempre meio trôpego
De gestos inseguros
Fala enrolada e taciturno
Abriga um fero vingador de si mesmo
Porta-voz definitivo dos que ocultam outros dentro de outros
Então, peguei a caneta e o papel que sempre deixo no criado-mudo
E na penumbra do quarto pus-me a garatujar na minha letra aflita
Rápido! pensei, rápido antes que desapareça a tão rarefeita esporádica inspiração
E me deixe mais uma vez fuçando a palavra fugidia
Rápido! pensei, antes que venha o tédio
Antes que eu desperte de novo para o mundo vazio

Vamos e voltamos na balança
 bêbados e cegos
 Meu pai passa o braço, grosso braço de lavrador
 Em torno da minha cintura
 me segurando festeiro e tênue
 e então eu te seguro filho enquanto deslizamos
 cachoeira abaixo.

 A alegria em nossos rostos é franca:
 nos recusamos ao afogamento sob o oceano do
 dinheiro, ante a
 derrota da
 última semana

 Com o movimento nos debatemos
 carnavalescos
 soltos das regras
 da autoridade
 das respostas.

 A balança vai e
 quando retorna, nos separamos
 e cada qual amadurece num sistema autônomo
 de dor

 Vamos nos separando sob a sina da substituição

 Vê?

Amanhã

Amanhã, antes de sair
 (terei coragem?)
 ou assim que chegar
 enquanto me recupero do cansaço no sofá da sala
 tendo na mão direita uma xícara de café
 e o olhar perdido em algum ponto da parede à minha frente
 fazendo o possível para me concentrar em amenidades

 Só me façam perguntas que eu saiba responder
 sobre minhas coisas, meus medos, pensamentos
 segredos e paixões
 e linhas que li em algum livro na infância e que decorei sem saber por quê
 então responderei de boca cheia
 serei, pela primeira vez, eloquente
 como nunca imaginei pudesse ser