Calçadas de Araraquara


As calçadas de Araraquara se inclinavam
numa suavidade a que eu não tinha direito em nenhuma outra esfera

As calçadas de Araraquara eram declives suaves
na ida
e não eram nada quando na volta eu não tinha aonde ir

As calçadas de Araraquara guardavam meus olhares que nas pedras róseas
buscavam segredos inexequíveis

A cidade e a multidão subindo e descendo suas ruas e
suas casas e as pessoas que estavam dentro delas
só esperavam minha presença para existir

Eu não sabia então, eu sei agora

Desfilando meus assombros pela rua três
Em frente à sorveteria do japonês
Onde aprendi a tomar um copo d'água sem gelo depois do sorvete na taça
Luxo imerecido para um solitário atávico
O trem parado na estação apitava
Enchendo de agonia o céu da rainha ferroviária
"Vou partir! Vou partir! Vou partir!"

Eu chegava muito cedo
eu sumia muito tarde
e o mundo era muito grande

(Nada a ver com Orides Fontela, ainda)

Canto dum sapo do pântano a besouros e borboletas hipnotizados por estrelas pífias

Até onde pode este fossorial habitante dos fundos dos mundos lhes dizer o que sente sem que o abalizado besouro e a alinhada borboleta queiram censurá-lo em nome das alturas que o mundo lhes ensinou a desejar, preservando-se das intempéries e pintando-se e decorando-se com florzinhas pink and green and blue e coraçõezinhos entrelaçados cor de sangue?

Não façam essa cara de espanto. Sim, a cortês borboleta e o esclarecido besouro são aspiradores das alturas. Aspiram, pintam, preservam e decoram alturas como todos os aspiradores das alturas que o mundo ensinou a aspirar às alturas.

Este tosco pulador sem rabo queria saber uma coisa: como é que se chega a um estado desses? Digo "estado" porque não sei que outro nome dar. Afinal, aspirar às alturas é o quê? Profissão? Pendor? Destino? Signo? Vocação? Inércia? Falta do que fazer?

Tem outra coisa que este nada olímpico saltador sem vara queria saber: aspirar às alturas requer coragem?

Porque, porra, fico pensando, e se eu começasse a aspirar às alturas? Mas como? fico pensando, como aspirar às alturas se tenho medo de aspirar às alturas?

Sim, meu garboso besouro, minha elegante borboleta, sou um anfíbio-banana. Me cago de medo de tudo. E não é de hoje. Girino, tinha medo de ir à escola, hoje tenho medo de ir trabalhar. Tinha medo de me juntar aos outros girininhos. Hoje tenho medo de me aproximar do lago. Tinha medo dos trovões, hoje temo rojões festivos. Tinha medo do claro, tenho medo do escuro. Tinha medo de tomar banho de sol, hoje não suporto a chuva.

Temia aspirar às alturas, hoje temo aspirar às alturas.

Então deduzo que todo mundo aspira às alturas porque todo mundo tem coragem e eu não aspiro porque me cago de medo.

Porque, porra, aspirar às alturas parece tão incrivelmente simples. Besourinhos e borboletinhas praticamente nascem sabendo. Um besouro gurizinho de um ano já se mostra um belo aspirador das alturas. Se soubesse falar, o bestinha podia me dar aula de como aspirar às alturas. Se já soubesse voar, o monstrinho podia abrir uma escola de aspiração das alturas para linguarudos cagões feito eu.

Porque eu não seria o único aluno, seria? Porque, porra, devem existir neste mundão aí fora, perdidos no meio das multidões de aspiradores das alturas, outros batráquios medrosos que não aprenderam a aspirar às alturas, não devem? Ou será, ó deus das poças d'água, que sou o único não aspirador das alturas em todo o universo?

Quem sabe eu não poderia abrir tal escola? Quem sabe eu até virasse professor em tal escola?

O digno besouro e a preclara borboleta vão estranhar, obviamente. Como é que eu, potencial aluno da escola de aspirar às alturas, poderia abrir uma escola de aspirar às alturas e dar aula numa escola de aspirar às alturas se não tenho a mínima ideia de como aspirar às alturas?

Seria o cúmulo do absurdo, não seria?

Seria mais ou menos o mesmo caso daquele homem que sabia javanês, não é mesmo?

Mas o professor de javanês ensinava javanês com tanta facilidade, quem sabe eu não me daria tão bem quanto ele?

Qual seria o primeiro requisito para me tornar professor de aspiração das alturas?

Vejamos.

Acho que o primeiro requisito seria tomar as precauções necessárias. Pois já percebi que, senão todos, pelo menos a maioria dos aspiradores das alturas tomam as precauções necessárias. Alguns chegam a tomar mesmo as desnecessárias. Os que se formam neste primeiro estágio recebem a designação de Aspiradores das Alturas Tomadores das Precauções Necessárias (Ou Não).

Uma vez tomadas as necessárias precauções, o segundo requisito talvez fosse ficar no meu lugar. Pois outra característica que já notei nos aspiradores das alturas é que todos eles sabem ficar direitinho nos seus devidos lugares, embora desejem ardentemente estar em outro. Os que não aprendem a ficar em seu lugar pumba! desabam lá de cima e se esfacelam legal, deixando-os c'uma puta cara de tacho.

Uma vez tomadas as necessárias precauções e ficado direitinho no meu devido lugar, o terceiro requisito seria saber me proteger. Do que é que os aspiradores das alturas precisam se proteger? Ora, aspiradores das alturas dignos do nome jamais fazem perguntas desse tipo.

A próxima lição provavelmente seria não brincar com fogo. Fogo durante o voo é um perigo. Imagine só se a fachada se incendeia? O aspirador das alturas teria de fazer outra. Para mim, seria um absurdo, pois não tenho ideia de como fazer uma fachada, que dirá refazer.

E imagino que se a ilustre borboleta e o respeitável besouro não podem brincar com fogo, talvez não seja possível também brincar com água. Mas, vejam bem (vejam bem, a vida também me ensinou a dizer "vejam bem"), eu disse "talvez". Não tenho certeza. O que pode ser destruído pelo fogo pode ser destruído pela água? Ou a fachada dos aspiradores das alturas não funciona tão mecanicamente assim como imagino que esses tipos de coisa devam funcionar? E se a sua notável fachada sujar? O compenetrado besouro e a ardilosa borboleta vão lavar com quê?

E não se esqueçam do grande risco -- o risco de que todas as alturas se queimassem, pondo às escâncaras a medonha feiúra do que elas ocultam. Talvez bem naquele dia faltasse água. Sem brincadeira, seria o fim do mundo.

Sem falar do maior risco de todos -- o de o destemido besouro e a insigne borboleta toparem c'um destruidor de alturas. Que é que a cautelosa borboleta e o escolado besouro fariam? Me digam. Sei que o ladino besouro e a esmerada borboleta nem imaginam. Afinal nunca lhes aconteceu. Mas, só por um segundo, tentem -- que é que o esplêndido besouro e a magnificente borboleta fariam se um dia topasse c'um destruidor de alturas?

(Calma, é só um exercício. Provavelmente nunca vai acontecer.)

Mas, pensando bem, sei lá, eu no seu lugar, eu no seu lugar ficaria co'a pulga atrás das orelhas. C'um pé atrás. Co's dedos cruzados dentro dos bolsos.

Oquêi, talvez não seja motivo para preocupação. Pode ser exagero de minha parte. Pra que sofrer à toa?

Blues paulistano


Comandante

Antes que eu baixe a cabeça
Fita meus olhos vazios
São, julgo, cabal e suficiente prova
De que enfim posso pedir:

Me liberta da âncora
Me liberta das amarras
Me liberta dos ventos
Me liberta, Comandante, destes vagalhões

Comandante, meu Comandante
Assino de bom-grado a confissão
Sim, ousei viver a fábula do fósforo
Que incendeia a própria cabeça
Para avivar a efêmera chama
Que talvez inflame o pavio da vela

Por isso, rogo mais uma vez:
Me liberta, Comandante
Me liberta, Comandante
Me liberta, Comandante
Me liberta, Comandante

Comandante, meu judicioso Comandante
A escuridão vem chegando
E, como sabes, como sabes
No fundo do teu coração
Da noite não posso cair prisioneiro

Por isso, ouso apelar a tua generosidade
Agora que a chama da vela bruxuleia
Prestes a sumir
Me liberta, Comandante
Me liberta do meu porto

Biodesagradável


Rapaz, tu tá por cima. Tá!

Consciência halterofilista,
Fortão
E um mau instinto para sobreviver
Corpão de borracha – que resiliência!
Disciplinadamente moldado a golpes de sódio e aminoácidos
Espírito de ferro encomendado diretamente à América
Com elevado grau de customização
Cem por cento isento de culpa e defeitos moralizantes
Suplementado com doses cientificamente medidas de cálcio insaturado de indignação

Vais longe, cumpade – agora que inventaram a paciência à prova de intempéries

Mas teu ponto forte, xará!, é essa consciência de chumbo
Última novidade em plumbiscência flutuante incólume à lei da gravidade
que eleva o enlevado freguês ao estratosférico nível dos remorsos rarefeitos
Que ausência de massa, chapa!
E não é só
Tua alma plástica resistirá pelo menos 500 anos antes de se degradar no Lixão dos Céus
Se minimizaste ao máximo, mermão
Nada vale ouro como tu

Ao pai


Pai.
Vem!
Te perdoo.
Sufocando o automatismo
Dos gestos
Me deixa limpar tuas fezes
Esfregando teu corpo doente
Enxugar teu sêmen
Costurando tuas rugas sem fundo
Te reger
Cantando esta música
Te gerar
Cantando esta música
Te conceber
Filho

Ao pó, ao pai

Eis o filho da guerra que travaste contra ti mesmo

Negro fumo erguido das tuas batalhas asfixiantes,
Cegueira do meu olhar
Corda com que amarraste teus próprios cacos,
Algema dos meus pulsos

Hoje, quando te rompes
Aqui recolho tuas partes
Espalhadas pelas estradas intactas
Que constituíram cada uma das noites
Condensadas em cada segundo do dia

Dos milhões que foste durante os milhões de séculos que vivo
Legaste um que nunca consegui conhecer

Lembra quando me soltaste dos teus braços para pegar o morteiro
que mais uma vez precisavas mirar contra teu coração?
Tens travado na garganta
O grito que não deste
Tenho ecoando nos ouvidos
O grito que não escutei

As paredes estão cobertas de sangue?

Desempenhando o papel insuficiente de filho de Deus
No palco dos nossos dias
Não te ensinei a ensinar-me a viver
Pois ensina-me agora a morrer

Piazzola e seus Tres minutos con la realidad

Uma dose de uísque.
Mil doses de tédio.
Um acorde, maestro.
Alguém acabe com os ecos do mundo.
Se Borges me convidasse neste momento a dançar um tango, eu aceitaria.

Antes de eu nascer

Minhas mãos não sentiam a água molhada
Meus pés não andavam a esmo
Do quarto à sala da sala à cozinha da cozinha
Ao quarto
Meus olhos não viam o céu azul nem
Os ossos das minhas costelas no raio-X que
Tirei aos oito anos quando o médico disse
que eu estava com bronquite.

Não me passava pela cabeça que a Regina
E o Jorge marcaram um encontro 
Às sete da noite
Na esquina da rua Tupi com a rua Constituição
(nem que a a Tupi e a Constituição pudessem
se cruzar em algum ponto da Terra) 
Duma quarta-feira de junho e que o Jorge
Não foi porque sempre se atrapalhava com datas
E pensou que o encontro fosse na quinta e a
Regina não foi porque pouco antes uma amiga, 
amiga antiga, amiga de infância, telefonou de surpresa
e ficaram trocando reminiscências
E a Regina acabou se esquecendo do encontro
E no dia seguinte se esqueceu do próprio Jorge
Que custou algumas semanas para esquecer
A Regina, às vezes cogitando se, para poder
Ganhar o bálsamo do olvido, o melhor seria
O suicídio ou escrever versos secretos.

Antes de nascer eu não sabia que as amebas
Não têm sexo e que antigamente as donas-de-casa
Usavam um pau-de-macarrão pra sovar a massa
Dos bolos e que somos seres que riem da mais
Singela piada e coram pelas mais tolas vergonhas.

Naquele tempo antes de nascer eu não imaginava
Que certo dia, sem mais nem menos, eu passaria a
Engolir um grito contra tudo que me atoleima
Custando acreditar que engolir um grito teria
Importância quase tão vital quanto saber que
Houve um dia antes de eu nascer.

Amanhã

Amanhã, antes de sair
(terei coragem?)
Amanhã, assim que chegar
enquanto me recupero do cansaço 

no sofá da sala
tendo na mão direita uma 

xícara de café
o olhar perdido em algum ponto da parede 

à minha frente
fazendo o possível para me concentrar 

em amenidades

Só me façam perguntas que eu saiba responder
sobre minhas coisas, meus medos, pensamentos
segredos e paixões
e linhas que li em algum livro na infância e que decorei 

sem saber por quê
então, pela primeira vez, eloquente
como nunca imaginei que pudesse ser

responderei de boca cheia

Quando não me passava pela cabeça aterrissar

Quem terá a coragem de me dar livre passagem?
Quem, ao passar, me verá vagar doente e
lamuriante a dormir?

E quem pensará duas vezes antes de correr a mim?

Quem evitará que eu saia esta noite a navegar
por barcos retornando ao porto derradeiramente?

E quem cavalgará o saltitante cavalo de unidos, contentes cascos
Ao longo do caminho em cujo fim aguarda o povo que planejei para minha pátria?

Devo alertar:

Repudio os símbolos da vida
Sou tão único quanto é novo o amanhã
Sucumbe o artista sob o mito
Acalma-se sob a transcendência o filósofo
Sem decidir-se o mundo pelo próprio nome
Não duvidarei da minha existência

Eu adoraria

Já imaginou o que acontece dentro dum aquário enquanto você e seus pensamentos tentam vagamente extrair um sentido de tudo?

Desavisadamente escrevendo em alemão

Se mirando nem sempre no espelho
É, de poucos, que de um pouco sabem
Sem nunca de suas faces descobrir o além

Familiarizando-se com a própria imagem desde os tempos em que assim não podia ser

Ei-la pronta a comandar o espelho a bel prazer
De súbito encorajada (wirkilich)

Irá arrastá-lo a cada canto
A empalidecê-lo de cima abaixo?

Por tudo vive ela realista e por isso vive ela submissa

No fim, inteiramente despedaçada, mesmo a vida
Intocada por bondade ou carência
Não mudará, renascerá, regredirá (!)

Nada se vai
Ninguém
(bedauere)
Altruísta

Sem observar o movimento na rua

Apresentam o silêncio as trombetas
E, carentes do estável suplício, perguntam:
Se assim for?

Feito um pós-nato, magoo-me
Hábil presa

Eis a impossibilidade de evitar:
Antes por um pouco, não faz preocupar
A infinita tristeza

Agora do andar apressado
Que cadencia de momentos
Meus estranhos diálogos

Que jamais me tocam nem rodeiam tampouco

Distinto

Me apaixonam uma vez no dia
À hora de não viver
Pela tristeza infinita

Quando perco a vida, o mundo
Calando a ciência da realidade
Faltando aos meus encontros
Perdendo-me em lugares meus
Para fazer-me missível
(Não)
Na infinita tristeza

Prêmio de melhor dissertação da classe


Arrastei-me no meio da lama desde o fundo do quintal
Esfiapou a roupa no arame, os braços no cimento
Limpei-me o rosto do orvalho da grama, ironizei como se fosse a última vez
Ergueu-me os braços nos ramos da árvore, esfreguei até sangrar as mãos no muro seco
Joguei-me através do corredor estreito e, para agarrar-se ao degrau, tudo caiu na terra úmida
A cabeça chiou n'água qual fogo, o nada categórico deserto sob o inferno mental
Delirou com pernas musculosas, bíceps ostensivos
(Mas) Poupei-me o sacrifício literal
(Por todo o caminho cinjo-me ao natural, ao primitivo, ao estrutural)
Estiquei o braço como se borracha fosse até a tranca da porta -- feito favela --, desencadeando o turbilhão de visões imóveis, interiores
E rolei para trás desde o topo da escada destemida
(Todo o caminho)
Dei o tiro sobre o jogo com palavras, ódios perecíveis
Lembrou-se do que de só para lembrar-se
Falseou-me resolutamente o pé no assoalho liso, derrapante; voluntário, devia rachar-me o crânio
Voltei-me de costas, vezes, voltas religiosas e nunca existi
Libertei-me da debilidade para sentir-me em união à vulgar força de vontade
Arrepiou-se inteiro e por toda (su)a volta da mesa minha onipresença
Olhos tiraram-me a visão, o dia morreu
Encheu-se o estômago de saliva e de qualquer modo
O medo revolveu minha autocoerção e nunca foi tanta a paralisia indigesta
Esfreguei-me à parede com a roupa embarreada, incômoda à paz momentânea
Seriamente, atravessei o umbral, vulgarmente vendo-me
Passei sobre o tapete, individualizei o lustre
Todo o tempo jogou-se(me) a neblina de encontro à estante, às cadeiras
Voei, bestial (voei bestial), e caí na calçada, atingi a calçada, levantei-me para cair na sarjeta, consegui o veículo
Todo o caminho
Fui capaz de sonhar, ostentar exibicionismo parcial
E o veículo partiu, muito mais que veloz
E descobri o medo substancial
Não há frivolidade -- do medo veio-me tudo; apenas Ele existe

Obviamente destinado a fazer cócegas cerebrais

Intienta otra vez
Agora sim estou ferrado
Não me resta outra profissão
Senão ser poeta 





Com quem falo?
Pochissimo lacrimoso
Nas dolorosas discussões que travo comigo mesmo, nunca tenho razão. 





Auto-corsário
Un peu soave
Qualquer dia ─ juro ─, entro neste quarto sem acender a luz e fico aí no escuro. 





Questão de vocação
Rinforzando
Queria ser poeta
Vender arma na áfrica
Morrer de tuberculose
Se matar de cirrose
Em fatal metamorfose
Acabou dono de gráfica





Minhas definições
Risoluto con brio
Tenho nojo de quem não é apocalíptico.





Morte matinal
Menuetto meno mosso
Entro no quarto
Você foi embora
E me deixou seu cheiro