Antes de eu nascer

Minhas mãos não sentiam a água molhada
Meus pés não andavam a esmo
Do quarto à sala da sala à cozinha da cozinha
Ao quarto
Meus olhos não viam o céu azul nem
Os ossos das minhas costelas no raio-X que
Tirei aos oito anos quando o médico disse
que eu estava com bronquite.

Não me passava pela cabeça que a Regina
E o Jorge marcaram um encontro 
Às sete da noite
Na esquina da rua Tupi com a rua Constituição
(nem que a a Tupi e a Constituição pudessem
se cruzar em algum ponto da Terra) 
Duma quarta-feira de junho e que o Jorge
Não foi porque sempre se atrapalhava com datas
E pensou que o encontro fosse na quinta e a
Regina não foi porque pouco antes uma amiga, 
amiga antiga, amiga de infância, telefonou de surpresa
e ficaram trocando reminiscências
E a Regina acabou se esquecendo do encontro
E no dia seguinte se esqueceu do próprio Jorge
Que custou algumas semanas para esquecer
A Regina, às vezes cogitando se, para poder
Ganhar o bálsamo do olvido, o melhor seria
O suicídio ou escrever versos secretos.

Antes de nascer eu não sabia que as amebas
Não têm sexo e que antigamente as donas-de-casa
Usavam um pau-de-macarrão pra sovar a massa
Dos bolos e que somos seres que riem da mais
Singela piada e coram pelas mais tolas vergonhas.

Naquele tempo antes de nascer eu não imaginava
Que certo dia, sem mais nem menos, eu passaria a
Engolir um grito contra tudo que me atoleima
Custando acreditar que engolir um grito teria
Importância quase tão vital quanto saber que
Houve um dia antes de eu nascer.

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