Enquanto nada acontece

É impressionante que tenham inventado o cinema mudo antes do cinema cego.

Enquanto me entrevisto


— Se estivesse no corredor da morte, qual seria sua última refeição?

— Teus olhos.

Enquanto recapitulo

Jesus amado,

ser outro que não quem se aparente é sempre um consolo para quem não está realmente certo do que é

Enquanto (me) releio

Infelizmente sou apenas o que digo a mim mesmo que sou.

Enquanto blogueio


Não nasci para ser todo olhos 
Não nasci para ser todo ouvidos
Muito menos para a sedução fácil 
Dos joguetes de palavras
Dos joguetes do destino

Enquanto me ergo

Tudo que tenho de certo são minhas incertezas.

Enquanto

Recoberto de band-aids
Amparado por muletas
Agregado por reparos
Desmembrado e rejuntado
Desprovido de espelho
O velho espantalho só
Espanta a si mesmo

Enquanto me volto


Estou lendo uma biografia sobre Chopin e os dezoito anos que viveu em Paris.
Fico sabendo que Frederico era tido pelos sofisticadérrimos parisienses como a personificação do charme. A elegância em pessoa. Um oportunista. Um esnobe. Um sujeito inescrupuloso que usava as pessoas para seus propósitos pessoais. E Chopin mudava de humor sem mais nem menos, subindo pelas paredes sem dar aos que estavam em volta qualquer indício sobre a mudança repentina. E tinha o pavio perigosamente curto. E sua arrogância e seu egoísmo pareciam não conhecer limites.
Wilhelm von Lenz, um dos mais talentosos pupilos do pianista e compositor polaco, dizia que ele se portava qual um “soberano”. O compositor Berlioz escreveu que “Chopin sempre fica alheio. Uma vez por ano desce das nuvens para permitir que o escutem nos salões da Casa de Pleyel. O resto do ano, salvo se for um príncipe, ministro ou embaixador, não se pode sequer sonhar com a alegria de escutá-lo”.
Chopin quase não dava concertos por detestar quer a crítica jornalística, quer qualquer outro tipo de crítica. Se dedicava compulsivamente a competir com outros pianistas e compositores e não fazia questão de dissimular a inveja que nutria de Liszt, seu fã. Quanto a Berlioz, que sequer era pianista mas era crítico musical, conseguia manter algo de amizade, embora considerasse sua música “estranha”. Certa vez, quando jantou com Mme. Juste Olivier em companhia de sua amada George Sanders, a senhora notou que Chopin era “um homem de inteligência e talento, charmoso... mas coração, isso ele não tem”.
Bem, se Frederico já figurava como um dos grandes no meu panteão particular, saber que socialmente era esse monstrinho de antipatia e não tinha complacência com seus puxa-sacos só me fez admirá-lo ainda mais.
Estou tão farto de gente que vive para fazer marketing pessoal e nunca se vexa de pendurar um sorrisinho bajulatório no canto da bocarra escancarada e fazer deste mundo um interminável desfile de mediocridade e insipidez.
Os homens e as mulheres de verdade parece que morreram em algum ponto do século passado.

Enquanto fecho os olhos

Toda bravura do mundo no coração
Toda paúra do mundo no estômago
Sabe quando você não quer ver
E tapar os olhos não adianta?

Feito um chaveiro internado numa casa de repouso por inviabilizar as fechaduras do bairro


Suspenso no sol o balanço
Num lado,
À areia da praia, noutro,
De impossibilidades penso
Vai,
As lendas do mundo deixando
Vem, sem o concerto das coisas,
Deixando do mundo as calmarias
Desenclinando
A chave dos alarmes.

Enquanto me embalo

Não consegui dormir — tinha uma onomatopéia debaixo do meu travesseiro.

Enquanto me esqueço


Ser Deus deve ser meio chato, não acha?
Capaz de tudo, sem limite pra nada, só estalar os dedos e tá na mão.
Mas o pior deve ser a solidão do Cara.
Já pensou?
Sem mulher, sem amigos, ninguém pra dividir as tristezas, as preocupações...
Acho que preferia ser o diabo.


Blogando algo, okay, confesso

Numa tarde saí c'um amigo pra beber, quando olhei vi que era o Leminski.

Lem e eu não nos perguntávamos. Deixávamos perguntas para a poesia. E que.

Descemos a avenida, olhei de lado e vi Lem fazendo um poema com o nome dela.

Não quero fazer poema nenhum da minha parte, respondi telepaticamente.

Fomos prosseguindo sem parar nas esquinas e a avenida era infindável como as avenidas aquelas.

Me ocorreu querer saber que música pipocava na cabeça dele, não é a mesma respondeu c'um trejeito do pé esquerdo, o dedão da mão direita enganchado no cinturão tipo caubói dos tempos da jovem guarda.

Tenho de colocar na mesa que estou escutando Bridge over troubled waters e ele, com o olhar de raposa aflita, não me pede confirmação para o que sente.

Finalmente entramos no buteco, eu de frente pra rua, ele de costas, peço uma brama, bem gelada ele emenda como nunca emendou porra nenhuma nem nesta nem em nenhuma outra vida que nunca vivemos em  nenhum outro canto em nenhum outro cometa desta imensa merda de universo.

They asked me how I knew my true love was true. Esse bolinho de bacalhau tá quente?

A úlcera tá me matando, preciso comer uma tranqueira pelo menos a cada três horas.

Lem morreu na minha frente, o dono do buteco queria chamar um'ambulância, não deixei. 

O gole da brama dura eternamente nos meus lábios, coço uma coceirinha na nuca, é tão cedo ainda, que é que vou fazer das quinze horas que me restam pela frente?

Enquanto viajo



Escutando I am the walrus. Não escuto há uns... ãn... doze anos? Notou a interrogação? Sou eu falando igualzinho os ianques em seus filminhos do reino encantado. Os ianques do reino encantado onde hambúrgueres com coca-cola nascem na beira da calçada e crescem ao pé das árvores falam assim afirmando perguntando. Cada língua tem suas peculiaridades, a deles é essa, uma das. Sempre tão assertivos, não pronunciam assertivamente. Outro dia revi aquele... peraí, vou lembrar... o título original é Carnage... ah, Deus da carnificina, com Kate Winslet, Christoph Waltz, Jodie Foster e John C. Reilly. Todos eles nos acostumaram a vê-los em thrillers e bang-bangs. Dirigidos por um dos maiores diretores vivos, o tal Polanski. Winslet me decepcionou, pensei que fosse bem mais capaz, não chegou nem na metade. Foster, o previsível, barulhenta, ranheta, histérica, certo, características exigidas pelo personagem, mas deu pra ver que era ela atrás da pose, uma no meio das dezenas de milhares de atores chinfrins saídos da tela. Reilly também decepcionante, só funciona em thrillers que não requerem profundidade dramática ou será mesmo todo aquele pateta mostrado por P.? Deixei Waltz por último, claro, por ser o melhor.  Apesar de falar inglês bem pacas, Waltz se denuncia na sonoridade. Não fala perguntando como os nativos. O alemão por trás dos enunciados é claramente perceptível. Ninguém é capaz de falar outro idioma que não seja o seu como um nativo. Escrever, há os que escrevem até melhor, qual Nabokov e Conrad. Apesar dos pesares, os europeus ainda logram um poder magnético que não vejo em nenhum ator americano. Hollywood tem seu preço. A glamurização idem. E a bastardização. E as montanhas de grana. Há cacoetes de que os caras não se livram numa boa. Há muito tempo cheguei a ver algo substancial em... como chama mesmo...? ...aquela loirona nariguda... considerada a maior atriz do pedaço... Ah, Meryl Strip, cheguei a ver algo em Meryl. Quer dizer, I mean, você fica viciado em alguma coisa e acaba se envergando. Assisto uma cacetada de thrillers mas nada que me desvirtue meu poderosíssimo poder crítico. Eis a essência da alma americana. Cinema é entretenimento, period, não venham com frescuras. Para quem quer frescuras, eles têm a melhor poesia contemporânea. Os americanófobos nem imaginam, claro. Ninguém supera a literatura dos caras. E não é de hoje. Vêm prevalecendo há pelo menos seis décadas. Sim, tem a ver com a democracia, a liberdade, o hambúrguer com fritas ao alcance da mão, a geleia geral, o cinema como sublimação do cotidiano. Entrementes, nosso cineminha macunaímico vai de Globo e seu Jabor, sempre tão emperiquitado em suas crônicas, faz boca de siri. Eis uma das razões do nosso eterno pequenismo. Os ianques não têm vacas sagradas. Tudo é criticável. Não há tabus que não estejam sujeitos a uma boa sessão de esculacho, sem que a plateia desmaie escandalizada como sói ocorrer na mãe gentil. É tudo questão de mercado. Os há para todos os gostos. Na vitrine você pode encontrar desde T.S. Eliot até Oprah Winfrey. E sempre os recordistas em todas as searas, de um dos maiores poetas-críticos do século 20 à negra mais nababescamente triliardária da história. Na área que me interessa, eles têm mil bons poetas para cada chinfrim nosso. Nos romances, dá até vergonha contar. Na ciência, finjamos que não estamos aqui. Oui madame, tudo fruto da liberdade sem fim, da liberdade sem limites nem qualificativos. O americanozinho médio aprende cedinho a ser homem/mulher responsável pelas próprias opiniões e pelos próprios atos. Não olha em volta à procura dum bode expiatório quando depara cum dedo acusador na fuça. A energia de vida que brota desse preceito é, sem exagero, fenomenal. Não há nada que seja mais revolucionário. O indivíduo se encarrega da faxina. Aprende cedo a aplicar um olhar saneador sobre a realidade. Se eu não fizer, ninguém fará. Se eu não cuidar de mim, ninguém cuidará. Não há política assistencialista dos obamas da vida que substitua o empuxo oxigenante que nasce dessa postura vital. Bolsas-esmola até que podem ser necessárias por uns tempos, mas. Salvante a propaganda ufanista dos desgovernos lulopetistas que se proclamam salvacionistas, escuto aqui e ali comentários à boca pequena sobre como essas bolsas e esses vale isso e vale aquilo estão solapando a já débil força de vontade do nosso povão varonil. Dizem que as meninas passaram a parir mais depressa para entrar no bolsa-família e os marmanjos a beber mais cachaça, abastecidos pela nova fonte de renda. Mas esse papo é de somenos frente ao descarrego da liberdade. Queria ver Chico Buarque vivendo em Cuba se sujeitando às mesmas normas políticas que o cubano comum, proibido de dizer o que pensa sobre o que quer que seja onde quer que seja quando quer que seja, obrigado dia após dia a engolir as bobagens pueris estampadas no Granma, amputado dos acontecimentos do mundo, castrado de sua expressão artística. Não duraria uma semana, naturalmente. Escutando I am the walrus. Não escuto há uns... ãn... doze anos? Notou a interrogação? Sou eu falando igualzinho os ianques em seus filminhos do reino encantado. I am he as you are he as you are me and we are all together… See how they fly… I'm crying. Quando escutei a primeira vez quase levantei do sofá pensando, porra, o cara tá falando de mim! I'm crying! I'm crying porque eu sou ele e você é ele e você é eu e nós somos tudo junto, hoje entendo, na época escrevi nós somos todos juntos, bruta diferença, hoje entendo, o ele e o você que sou não é ele ou o você e sim os eus que todos somos, jesus! e imaginar que se passaram décadas com o mundo todo tentando me convencer de que deveria ser de outra forma e eu seria inviável se não fosse e inviável sou e inviável a ser continuarei, a seu dispor, madame, ah as delícias da infinita liberdade de ser o que sempre quis ser e dizer o que sempre quis dizer, não, não é fácil como soa, você sabe, o bom da liberdade é que não  há fórmulas, não se aprende na escola nem em seminários, só se é sendo, jesus, depois dessa só me resta continuar escutando sou a baleia enquanto sorvo minha própria vida no golinhos do meu uisquinho que nem balla mais é e I don't care.


Enquanto me perco

Pode ficar com o carro, pode ficar com a casa.

Pode ficar com os móveis, o computador, o som e o disco do Pixinguinha.

Só me deixe um pedaço do céu, o vento e uma esquina que eu possa dobrar no fim da rua.


0528 e blogando

A primeira vez que descobri que as teclas do piano são ligadas pela água foi ao escutar o segundo movimento da Sonata ao luar.

Era ora benta, era ora pinga, era ora sangue.

Aquela primeira vez não teve dia, não teve data.

Por isso (me deixa ser claro só esta vez, jesus), agora, sempre que escuto a teclas dum piano, não tenho mais hora e passo a ser um homem sem tempo.

Igualzinho a Proust, mas sem a necessidade de escrever ou reler a Busca.

Não quero buscar nada, apenas encontrar.

Enquanto rego o jardim

O major Albernaz me agarra pelos cabelos pela milésima vez e exige:

— Diga! Que é que você faria se fosse o super-homem?

— Já disse, major. Mas vou lhe dizer uma outra vez. Se fosse o super-homem, eu combateria os criminosos. Se fosse o super-homem, eu deteria locomotivas desgovernadas. Se fosse o super-homem, salvaria navios do naufrágio. Impediria acidentes automobilísticos. Devolveria crianças perdidas na praia ou em parques de diversão para suas mães.

— Quer dizer que, se fosse super-homem, não tentaria concretizar nenhum dos seus desejos secretos, por mais inócuo que fosse?

— Não, major! Nunca! Juro pela minha mãe. Juro pelo que o senhor quiser. Nunca! Nenhum!

Blogando 0100

Pausa, você já mordeu o nó do dedo indicador, o nó superior que fica entre o dedo e o punho, ao mesmo tempo baixando os olhos por causa da lei da gravidade — Ó VIRGEM SANTA MÃE !!! — os ouvidos atordoados com aquele marulhar típico da vontade de estar em todos os lugares, o interior da cabeça rumorejando como se teu cérebro tivesse caído no mar, assim, simplesmente de emoção, uma emoção que não quer conhecer o controle, o freio do pensamento...?

No big new deal

Tudo se resume a viver trancafiado nesta jaula, mesmo escutando Bach, olhos sempre grudados nos olhos da pantera.

No big deal

Quer apostar quanto que, se te der a chave do grilhão, você vai atirá-la pela janela?

Blogando 0078 - o retorno


Existe um lugar onde estarei bem, por incrível que possa parecer.
É um lugar em que estarei bem... se estiver fazendo o que gosto de fazer.
É um lugar em que estarei bem se estiver escrevendo.
Se estiver escrevendo como gosto de escrever.
E como gosto de escrever, afinal?
Gosto de escrever num transe.
Gosto de escrever assim, em catarse, palavras diretamente conectadas às emoções, passando o mais longe que eu conseguir do filtro racionalizante. Qual o transe de Pessoa escrevendo “O guardador de rebanhos”. Um estado mediúnico em que as palavras brotam de dentro de você mas não são suas e quando as lê é como se fossem de outro, atípicas no seu vocabulário, estranhas na sua boca.
E percebe que você é mais você quando é outro.
Gosto de escrever do jeito que gosto.
E qual é o jeito que gosto, afinal?
É escrever do jeito que gosto.
Sem obediência às regras da gramática. Sem obediência às regras da lógica. Sem obediência aos meus próprios critérios.
Repetindo exaustivamente palavras e períodos.
Assombrando o fantasma da professora Ivone que tantos anos tentou socar dentro de mim um decálogo de normas do estilo grande demais para esta minha cabeça aversa a tudo que me é estranho.
Professora Ivone, assim é que eu gosto.
Não, não pare a aula, não feche a escola, não convoque o diretor, o secretário da Educação.
Não, não quero trocar de lugar. Continuemos assim: eu, sempre aprendiz, a senhora, eterna sabichona.
Assim é que gosto.
Assim é que sei.
Assim é que preciso.
Eis meus três verbos preferidos.
Preferidos, não. Básicos.
Que na época da professora Ivone não sabia conjugar.
Ah, que rebelião esta, que nunca termina.
Tudo por causa de três verbinhos vagabundos. Básicos.
Cujos significados já devia saber antes de ir para a escola.
Já devia saber aos três aninhos.
Será que a molecadinha de hoje em dia os sabe?
Eles são tão espertos. É o que todos dizem.
Atento para eles na rua sempre que posso.
Sei que levam dentro deles uma resposta que talvez seja a minha.
Sim. Concordo.
São terrivelmente espertos. Vivazes. Falantes. Têm aqueles olhares inquiridores  diabólicos. Me olham como se eu tivesse acabado de descer duma nave espacial. Quero retribuir o olhar mas tenho medo. Pois já sabem os significados dos meus verbos básicos que até hoje não aprendi.
Que não haverei de aprender.
Qual uma goiaba madura que se estatela no chão para apodrecer ao pé da árvore, passei da época.
Não!
Ainda não sucumbi!
Ainda não me entreguei.
Qual a goiaba, estou carregado de sementes. Trago em mim a sina da reprodução como todos os seres que brotaram neste planeta. Muitas haverão de completar o ciclo, germinar, cair em seus respectivos transes.
Assim é que gosto e amanhã levarei a todos até o pasto das hienas.

Blogando 0078

Como se um godzilla tivesse pisado sobre a casa e a esmagado por inteiro
como se o maior dos furacões tivesse varrido a cidade para o alto mar
como se o planeta tivesse caído num inconcebível liquidificador
e eu num canto, só olhando, a escutar Smoke gets in your eyes
entende...


... doutora?

Preguiça


Os parágrafos a seguir são postagens que há uns anos coletei duma comunidade da orkut pensando um dia desenvolver num texto poético ou mesmo ensaiozinho (p.m., minha escrita vai ficando mais inglesa a cada dia que passa, não tem mais jeito).
Engraçado como tantas coisas que a gente vê na internet podem parecer geniais ou mero lixo dependendo do estado de espírito. Ou da hora do dia, sei lá. Ou do grau etílico do momento. Achei essas postagens duca quando as colhi, hoje não estou tão certo. Me soaram sinceras e autênticas então, agora me parecem, algumas, meio fabricadas.
Bem, acho que tudo que fazemos na internet acaba desaguando num angu, dada a incomensurável profusão do que “experimentamos” a cada dia. São experiências como quaisquer outras, obviamente, e podem nos assoberbar, embotar nossos sentidos.
Tenho uma relação deveras ambivalente com minhas próprias postagens. Ora me soam esclarecidas e esclarecedoras, ao menos para mim mesmo, ora doloridamente supérfluas ou prolixas ou ingênuas ou, ó mãe, decididamente pueris, me deixando na boca ocasionalmente aquele gostinho azedo de que muito do que faço é dispensável.
Mexer nesse assunto, não tem jeito, me conduz irrecorrivelmente a falar da exposição da minha intimidade aos olhos ávidos – e, no mais das vezes, sonolentos – do mundo. Essa questão também desperta aqui dentro um movimento pendular: ora me vejo desnecessária, e perigosamente, desnudado, ora frustrado, achando que não disse tudo que devia. Bem de novo, achar que não se disse tudo é uma das razões que nos levam nós escritores a escrever.
Escrever num blog diariamente – às vezes várias postagens num só dia – pode ser perigoso. Mas, se é escritor – e, para complicar ainda mais, poeta –, você sabe que o risco is part of the job. Mais hora, menos hora vai sair uma revelação patética, você se aproxima inapelavelmente do ridículo, ou o excede, cai no sentimentalismo. Minha primeira reação a esse risco sempre é, ou procura ser: fôdasse. Meu norte constante é o conselho que Rilke deu ao jovem poeta Kappus: "Leia o menos possível trabalhos de crítica. Obras de arte são de infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica".
É um exercício que você tem de fazer dia e noite, sábados, domingos e feriados, enquanto estão todos lá fora se entregando às regras que terceiros exigem que sigam. A leitura da crítica traz frutos bons e maus. Dependendo do freguês, pode ser fatal. O crítico sempre vai impor condições ao autor. Quem cai na arapuca pode ou deixar de escrever duma vez por todas ou começar a dançar miudinho, sem saber direito onde pisar, ao som duma música que não é sua e não sabe dançar.
É uma questão de opção.
Uma das condenações mais frequentes que vejo grandes críticos assacarem, sobretudo contra poetas, é a de que estes vira e mexe resvalam para confissões constrangedoras. A lei máxima da poética é o rigor. Que implica distanciamento. A menos que você seja um poeta metafisicamente rigoroso. O que é uma contradição em termos. Até entendo. Os grandes poetas o são.
Mas raríssimos são os grandes entre os que escrevem. Eu, pelo que me cabe, bem que queria. Quem não?
Uma das forças deste meu modesto blog é a autenticidade. Pelo menos imagino que. Sou isto aqui. Luto com tudo que tenho para conquistar a sinceridade em primeiro lugar.
Não é grande arte, talvez nem arte seja, mas tampouco se resume a choradeira ou desabafo catártico que me permita economizar com meu psicanalista. (E olha que os preços dele estão os olhos da cara.)
Estou e sempre estarei atrás de mim mesmo, o único sujeito que de fato me interessa. E o único que me exaspera e me enternece. O único que deveras amo e odeio.
Quanto aos parágrafos que há uns anos coletei duma comunidade da orkut pensando um dia desenvolver, outro dia, talvez. Uma das coisas boas de você ter seu próprio blog é essa.


Blogando 0077

Não sei de quem desconfio mais: do confidente ou de quem desconfia do poder da confissão.

Jesus christ, que vontade que dá desenvolver isso.

Preciso cultivar a virtude da continência, ó mãe amada.

Como estou blogando?



Leu uma das postagens escritas por mim ou por uma das minhas dezenas de personae e acha que eu, ele, ela, eles ou outrem cometeu alguma imprudência durante a blogagem ou escreveu de maneira imprópria?

A postagem falava de você ou de algo íntimo seu que não deveria ser exposto assim na internet?

Ou NÃO falava de você mas deveria?

Ou falava mas não suficientemente bem?

Ou falava mas não suficientemente MAL?

Ou você se achou injustamente preterida ou preterido?

Seja qual for a razão, não se acanhe!

Ligue gratuitamente para 0800WV e faça sua reclamação.

Todas as ligações destinadas ao 0800WV serão atendidas de maneira profissional e personalizada por eu, mim ou uma das minhas personae treinadas no Call Center Metafísico.

Mas você é igual a 99 por cento dos brasileiros e tem vergonha de reclamar?

Não se preocupe. Nosso receptor é do tipo WV-Alego-14/12-Simbólico 2.4, ou seja, embaralha a voz do reclamão ou da reclamona convertendo-a em vibrações eremítico-espirituais e transportando-a a níveis misteriosos fantasticamente próximos do limiar umbrátil.

Viu como é simples?

Cada ligação, ao ser atendida, resulta num registro sibilino no córtex insondável, o qual é instantaneamente enviado à persona relevante — em tempo real, diga-se — para as devidas providências. Na etapa seguinte, com os ouvidos dotados das algaravias de praxe, o blogueiro é instado a efetuar a correção pela voz tonitroante de deus ou do diabo, conforme o caso. Se não se mexer no espaço de meia-hora, o/a reclamante é obrigado/a a pagar ao blogueiro um Balla 12 com apenas 4 pedrinhas de gelo.

Ao telefonar, tenha em mãos, o dia, a hora, o texto, o autor da postagem e a emoção estupefaciente gerada pelo mesmo delírio ou por qualquer outro amanhecer. Sem esses dados não poderemos fazer muita coisa além de continuar a cometer nossos textículos durante sonos recheados de sonhos salpicados de pesadelos.





Blogando 0076


Quero que os homens me admirem e as mulheres me amem. Quero que pensem de mim que sou educado e cordial, que sou afável e boa-praça, que este sorriso franco na minha cara é sincero e estas minhas mãos abertas, sinais de que sou receptivo. Quero que pensem que não tenho segundas intenções e, se desconfiarem que as tenho, que pensem que não há segundas intenções por trás delas. Quero que pensem de mim que não sou tão frágil, tão desemparado quanto pareço. Quero que pensem de mim que, quando a hora chegar, saberei encontrar uma solução, saberei enxergar uma saída. Quero que me olhem e vejam o sujeito que sou, não o sujeito que penso ser. E, quando escutarem minha voz comedida, ligeiramente sonolenta mas clara o bastante para me fazer entender, quero que entendam que vim em paz. Quero que, ao me reverem no meio da manhã em frente aqui de casa depois de alguns dias de ausência, reafirmem para si mesmos o que pensam a meu respeito, que não pensem que sou um mau sujeito, que as raras rimas em minha vida não foram acidentais.

0075, a saidera do domingo à noite


É noite de domingo e estou calmo. Nem me passa pela cabeça reler Anna Karênina.

Domingo à noite é um bom ambiente teatral pra você visitar seu museu de cera. É quase certo que encontrará todas suas peças nos lugares, imperturbadas. E não correrá o risco de deparar com algum desconhecido entrando ou saindo. Ou, o que seria muito pior, um conhecido.

Imagino que você tenha um museu de cera só seu. Um museu de cera interior. Que se cria quando você o inventa e deparece quando você o esquece.

Eu tenho.

Não, não me vanglorio disso. Por que o faria? Até concluo que os que não os têm sejam mais felizes.

Se é que ser ou deixar de ser feliz significa alguma coisa.

Você por acaso é feliz?

Não, obviamente.

Se fosse, não teria um blog, nem estaria lendo um.

Se fosse, estaria lá fora sendo feliz. Pois é isso que os felizes fazem.


* * *


Aí é que entra o museu de cera. Uma, digamos, muleta, para os não felizes.

Eles, os do lado de lá, os felizes, fico cá a imaginar, que será que pensam quando saem à rua com seus totós cheios de raça?

Bem, em certos casos posso até deduzir. Pelo olhar medidor que me dirigem. Me estudando. Estudando minha Zezeí. Na certa, do alto dos seus lhasa apsos, desdenham por eu passear uma reles fox mestiça de chiuaua.

De qualquer modo, ter um museu de cera interior pode ser útil em situações como a que passo neste exato instante. Domingo à noite, noite de domingo (pois é, ainda não me decidi), sozinho com  minha fiel escudeira Zezeí, escutando ora James Taylor, ora Edvard Grieg, o mais surpreendente dos românticos.

Que faria agora sem meu museu de cera interior?

Bem, eu sei a resposta, você sabe a resposta.

Lá fora no mundo real já andei todas as ruas, fui a todos os lugares, perambulei feito um demônio e cansei. Não há coisa alguma que me reste ver. E viver.

0074 e a noite de domingo que não acaba

Por que será que quando te perdi comecei a cantar alto para mim mesmo "Finalmente tenho alguém em minha vida!"?

Era domingo. Estava, pra variar, sozinho. Eu e meu imenso eu.

Que não cabia, nem cabe ainda, em mim.

E olhei para o teto e cheio de desespero me pus a berrar "Finalmente tenho alguém em minha vida!" assim repetidamente, na esperança de que você me escutasse lá de longe onde estava inalcançável como sempre esteve depois que te perdi.

Finalmente tenho alguém em minha vida! eis minha senha para entrar em mim mesmo.

Senha que pirata nenhum ou nenhuma poderá jamais desvendar, pois é a antissenha dos que finalmente não têm ninguém em suas vidas.

Ia falar de quão constrangedora pode ser a pseudopoesia derramada assim na internet.

Falei. Não era pra falar. Finalmente tenho alguém em minha vida, it's all right e não vai demorar agora.

Já que estou blogando, vamos logo ao 0072

Digo, 0073.

Porque hoje é domingo, vou fazer uma exceção à minha regra pétrea de não sujar meus textículos imaculados com imagens. Às vezes me reservo este direito besta.


Não, o rapaz da foto não é Jean Paul Sartre com uma prima da Simone, como muitos de vocês pensaram. Trata-se de Serge Gainsbourg. A moça é Jane Birkin. Juntos cantaram uma baladinha que nos meus tempos áureos de 1969 fez grande sucesso: Je t'aime.

Se a primeira sensação que você teve ao ver essa foto foi a de glamour escorrendo em camadas grossas e pingantes até solapar todos seus demais sentidos, tudo bem. A intenção era essa mesma. 

Se sua segunda sensação foi a de sensualidade à beira da explosão, tudo bem idem. Gainsbourg era mestre nessas coisas.

Quem assistiu ao filme aquele sobre Gainsbourg, esqueça. Não me interessa sua fama de depravado, comedor, amante ou bebum. Me ligo apenas no poeta.

Gainsbourg devotou imensa energia a Birkin, sua musa. Fez de si mesmo uma fera, dela, a bela. De si, o fero, dela, a deusa.

Então o tempo passou e Birkin começou a envelhecer. Gainsbourg, ao que parece, não contava com tamanha traição. E quando o tempo passou, partiu para musas outras. Tem pecado que tem perdão, dependendo do pecador.



Blogando 0072 em pleno domingo de novo

Hoje cedo me lembrei de que na infância não queria ser uma máquina.
Me lembrei de que na infância não queria ser uma máquina de lembrar.
Na infância não queria ser uma máquina criança.
Não queria ser uma máquina, uma máquina de querer.

Não queria ser uma máquina, uma máquina de dormir.
Não queria ser uma máquina, uma máquina de sonhar.
Não queria ser uma máquina, uma máquina de acordar.

Não queria ser uma máquina, uma máquina de abrir os olhos para este mundo sujo.
Não queria ser uma máquina, uma máquina de levantar da cama, uma máquina de lavar a cara, de tomar café, de ir à escola, uma máquina de aprender.

Porco Dio! não queria ser uma máquina de família descendente de carcamanos fugidos da Itália decididos a ser máquinas num país distante de língua estranha e gente estranha.

Hoje cedo me lembrei de que na infância não queria ser uma máquina.
Todo dia cedo me lembro de que na infância não queria ser uma máquina.
Me lembro de que não quero ser uma máquina.
Uma máquina de sofrer.
Uma máquina de viver.
Uma máquina de morrer.
Uma máquina de querer.

Um blogando 0071 básico

Se os desígnios de Deus são insondáveis para nós mortais, como sabemos que os desígnios de Deus são insondáveis para nós mortais?

E olha que botei Deus em maiúscula — hoje tô meio bonzinho.

Blogando 0070, finalmente algo redondo em minha vida

Hoje meu cérebro está ocupado por um jogo de sofá.
São peças fofas mas pesadas e rotundas.
O ar geral é de suntuosidade.
A cor, lilás-grinalda.

Quero ver minha sala ocupada por uma chusma de madonas ou sei lá qual é o coletivo de madonas.
Quero-as também gorduchas, bem-alimentadas.
Quero-as sobretudo tagarelas, a falar levianas das conhecidas, um bando de comadres sem peias nas línguas, essas mulheres grandes que não têm medo de se esparramar onde quer que estejam.

Ah como estou farto das minhas circunspecções de eterno rapazola tímido e deslocado a ver o mundo com seu olhar crítico.
Pelo menos hoje me deixe rir desbragadamente
como um dia ri antigamente.