Fazendo meu dicionário I

Se eu tivesse papo com deus, pedia pra ele equipar nós seres humanos c'um dispositivo que nos impedisse de já nascer errados.

Teria de ser algo meio mágico, claro. E tudo que é mágico, ou que pensamos ser mágico, acaba nos frustrando cedo ou tarde. Nunca gostei nem de mágicas nem de magias. Nasci já com este meu olho clínico para os truques atrás das mágicas. E, no meu caso, ter um olho clínico não é vantagem nenhuma. Só enxergo o que não deve ou não precisa ser enxergado.

Toda mágica guarda um mistério de polichinelo. Toda mágica é pobre e grosseira e se presta apenas a ludibriar os afeitos ao ludíbrio.

Sim, há os que se deixam enganar por vontade própria. São os que fecham os olhos para não ver o coelho se esgueirando do fundo falso da cartola. São os que nascem apenas para ficar sentados no escuro da plateia e bater palmas para o mágico e seus truques manjados, soporifiramente tirando cartas da manga no jogo que nascemos para perder e serrando ao meio pessoas nascidas para ser apenas metade.

Se eu tivesse papo com deus, pedia pra ele dotar nós seres humanos c'um Para-Quedas Natal.

Meu Para-Quedas Natal seria por sua vez equipado c'um painel cheio de botõezinhos. (Sim, como o controle remoto da tevê.)

O infeliz paraquedista poderia fazer algumas opções básicas. (Só não poderia, obviamente, abortar o salto. Deus é bonzinho mas não é bobo.)

Poderia escolher, por exemplo, não cair bem no meio de Heliópolis. Ou poderia escolher, por exemplo, cair bem no meio de Heliópolis. (Nós seres humanos temos esse estranho senso de sobrevivência que nos impede de ver o que é melhor para nós mesmos e que parece que nos foi agraciado por um igualmente estranho desígnio divino.)

Se fosse equipado com meu Para-Quedas Natal e não pudesse declinar dos meus desígnios, eu faria o truque da minha vida e daria um salto mortal.

Parece abrupto, eu sei. Mas o ser humano dos meus sonhos não leva a vida num tribunal. E o salto dos meus sonhos será um salto suave.

Lembra aquela noite que quase não houve?

Homens de olhos caleidoscópicos se matam
homens tomados duma solidão sideral não acreditam que não possa haver em nenhuma das trilhões de galáxias do universo algo, alguém que lhes possa sussurrar, mesmo que a mil anos-luz de distância, "vem que vou tentar te compreender"
(não acreditam, por isso imaginam e nascem os rebeldes)
os olhos desses homens então ficam caleidoscópicos de procurar e esses homens nem se importam
achando que existem apenas
como reflexos dum caco infinitesimal dum espelho embaçado
que se estilhaçou em trilhões de inefáveis galáxias quando vieram ao mundo
(no qual não fazem questão de ficar.
se ficam, é a contragosto profundo
profundo qual o universo vazio
que sentem crescer por dentro,
esperando um Big Bang ao avesso.)

Sou minha fonte, meu ralo

Você foi embora e me invadiu um chumbo me puxando para o fundo da lagoa de água calma e negra onde há décadas eu já dormia meu sono desesperado.

Zero.

Sou incrédulo com os dias e as noites. Nasci incrédulo de tua partida. A culpa de ter aceitado tão resignadamente tua ausência é minha.