Véspera



Literalidades

Te vejo pulando amarelinha e cantarolando alguma toada infantil enquanto teu pai e tua mãe assistem e batem palmas, dando ritmo aos teus folguedos. Mas não tens sete, nem quatro, nem dezoito, nem vinte e seis anos, essas idades em que tento te imaginar sempre que te olho. Tens os quase noventa de agora, e pulas amarelinha com a mesma energia e o mesmo ar travesso de todas as crianças que já passaram por este mundo. Mais que tudo, não tens doze, tua idade quando teu pai morreu. Tampouco eu, observador oculto das tuas brincadeiras, tenho doze. Que falta de coincidência. Será mais outra manifestação da Grande Assimetria que marcou tua vida?
As carnes flácidas dos teus braços enrugados pulam descontroladas para cima e para baixo, acompanhando teu incansável saltitar. Teu pai às vezes interrompe as palmas para dar longas tragadas no cigarro que deixa displicentemente preso entre os dedos da mão direita e, ao fazê-lo, aproveita para tomar uma igualmente longa golfada de cachaça no copo que depositou sobre a mureta de tijolinhos do quintal. Ele tem cirrose, a cirrose que terminou por matá-lo, mas, como todo bom alcoólatra, não dá importância à morte que o espreita por dentro, e seus goles são cada vez mais longos e prazeirosos, e o olhar com que ele te acompanha, mãe, cada vez mais entusiástico. Me deixa te explicar, mãe, pois esse assunto conheço bem: como alcoólatra de profissão, mãe, para ele um grande momento da vida como esse que todos os que te amam estão vivendo só tem sentido se for apaixonadamente celebrado com o onírico aroma e o inebriante sabor da pinga. Olha! Ele está no paraíso, pois finalmente pôde aliar os arroubos da cachaça à possibilidade de assistir ao teu jogo de amarelinha. Vê! É o êxtase.
Olha, não pude conter as lágrimas. Como poderia, sendo tua testemunha?
E tua mãe? O que dizer dela? Mesmo aos sessenta e oito, também a idade com que morreu, é capaz de entregar-se à alegria de ver a filha brincar com insuspeito fervor e estar ao lado do marido arrebatado pelo amor paternal… o indefectível coque armado no alto da cabeça… mas a rabugice que sempre vi no rosto dela e que nos caracteriza a todos na família, a permanente máscara amarga desapareceu, e em vez disso ela está contente, até as olheiras parecem ter sumido, bate palmas com vigor cada vez maior, indiferente à dor que certamente está inflingindo às próprias mãos.
De repente escuto um vozerio vindo do portão. Olha, mãe. Teus irmãos chegando. Puxa, se todos estiverem com a mesma disposição de divertir-se com que estás, mãe, este certamente será um dia memorável.
Ah, só agora me dou conta. Teu pai tem idade para ser filho de tua mãe. Ele ainda estava na casa dos cinquenta quando morreu. E você, mãe. Tem idade para ser mãe de tua mãe. Mas vejo em teu rosto que isso não tem importância.