Memórias do cárcere químico Xb

Que delícia deve ser
Nascer, fechar os olhos
E morrer

E que delícia certamente é
Nascer, fechar os olhos
E não ver

Saber sem conhecer
E ficar no mundo
Sem estar
E deixar o mundo
Sem lembrar
E olhar o mundo
Sem querer
E abrir os olhos
E não ser

Surdo rugido


Na tarde do sábado sem noite  nem dia
Na tarde do sábado que não havia
Cerrar os olhos era malabarismo
E reabri-los, lembrança temida
De olhar a parede de bege e pastel
Cingindo, com a mão que tremia
Discreta de transe e esperança de
Ressuscitar por minutos que fosse
Os carros fúnebres da agonia
A servir de cenário invisível para o
Menino recém vindo do túmulo.
Podia ter visto manjedoura, reis
Magos, Estrela de Belém, tudo e
Nada. Espectadores próximos, distantes,
Espalhafatosos, sussurros sibilantes
A embalar crianças agraciadas com a
Dádiva do sono tranquilo, se recusavam
A tomar parte do espetáculo.

Eis o que o contemporâneo menino 
Esperava na tarde sem nome, sem dia
Esquecer, no sábado que não existia, 
A dor adormecida da acrobacia 

Pai

Coloco o cigarro entre teus lábios
E aspiro profundamente

Coloca uma canção dos Beatles na vitrola
Ante os olhares desconcertados dos circundantes
E a escutarei com os ouvidos do filho
Teu velho amigo antes de virmos a este mundo

Será nosso porre, pai
Você rolando do sofá da sala
Se estatelando no chão, enquanto
Meneio gravemente a cabeça
"Ah, criança, por que fui fazer todos
Teus caprichos?"

Porque aquela canção era pra você,
Pai

Ricochete

Quero mandar um abraço ao meu dileto amigo David Foster Wallace, encontrado pela esposa na ponta duma corda no meio da sala de estar (ou visita, não estou bem certo).
David, here’s to your magnificent Infinite Jest (que a Cia. das Letras publicou por aqui há uns dois meses, jesus christ, se o original já é ilegível, imagina a tradução pra este nosso amontoado destrambelhado de sílabas e fonemas. O miserável do tradutor deve estar tomando soro até agora).
Infinite Jest tem mil e cem páginas, das quais li quase cinco. Duvido que alguém no mundo tenha encarado até o ponto final. Pra você ter uma ideia, as infinitas notas de rodapé se estendem por dezenas de páginas, i.e., você tem de ficar voltando, voltando, voltando até atirar a porra pela janela.
Não culpo meu caro David. Tem gente para a qual literatura é fôdasse. É o teu caso. É o meu. Não nascemos pra Saul Bellow mas também temos direito a cutucar esteticamente, ou tentar, o que nos aperreia a alma. Tem gente que ainda acha que literatura é o que eles leem. Nada disso. Literatura é o que nós escrevemos. Escrever é um gozar e o gozo é o que vale a pena, ainda mais se infinito. Lamento não estar ao meu alcance. Esssstou gozzzzzando, though.

Cheers.

Para Sylvia Plath


Na maioria eles estacionam longe, mesmo havendo vaga em frente, e vêm chegando sorrateiros, cabeça baixa, quase às escondidas. Não olham para os lados. O portão fica convenientemente às escuras. São quase todos velhos, caras que se pretendem circunspectas mas que denunciam a angústia da transgressão constrangida. Algumas velhas senhoras ousam comparecer sozinhas qual adolescentes fugindo da família. Muitos são gordos, alguns obesos, párias da classe média não aceitos em outros circuitos do epicurismo. Se não jogam, ficam em casa a se empanturrar, remoendo a culpa pela glutonice, provavelmente com muito maior amargor. Assim optam por um tipo de auto-degradação que confira ao menos algum prazer sem cobrar o alto preço de fechar os olhos diante do espelho.
Sylvia, há também os moços e as moças. Me espanto vendo-os vindo dar seu suado dinheiro aos donos da jogatina. Invariavelmente se vestem com discrição e simplicidade, tons pastéis, de certo receando chamar atenção. (Mas obviamente chamam a dum sujeito desgarrado do rebanho como eu.)
Mesmo o jeans é raro entre essa extemporânea moçada. Envergam ares de jovens cansados e desiludidos, envelhecidos demasiado cedo. Deslocados, a esta hora deviam estar alhures, bebendo vodka com energético, esnifando coca, curtindo os vícios próprios da idade. Em vez disso movem-se para dentro e para fora da grande casa silenciosos, olhares no chão, semiocultos na penumbra da noitinha, lamentando a insuficiência das sombras.
O recém-chegado dá um envergonhado toque na campainha e é instantaneamente absorvido como se um hiper-aspirador quântico o sugasse num piscar da história. Às vezes tenho a pachorra de fazer um pouco de farol na porta de casa acompanhando o movimento e então flagro uns e outros caindo fora nem dez ou vinte minutos se passam. Provavelmente são os mais afoitos. Ou entraram sonhando com a jogada milagrosa que lhes daria uma bolada suficiente para um mês de mercado ou já saíram de caso predispostos a perder logo tudo de uma vez na esperança de abreviar ao máximo, e ao mínimo, o sofrimento da impaciência. Qualquer que seja sua categoria, as maquininhas de arrancar grana de doentes os deixam lisos assim que finalizam a consumação média estimada. Permanecem no casulo tumular sobrecarregado de fumaça de cigarro apenas o bastante para algumas meias cervejas, das quais a derradeira abandonam pela metade assim que se dão conta de sua indefectível falta de sorte e fogem apressados para retomar suas vidinhas sem perspectiva.
Sylvia, sei que posso estar soando moralista. Mas, veja, não tenho de fato pena dos jogadores. Pelo contrário, admiro neles a facilidade com que se entregam à única curtição que ainda lhes é possível e a despreocupação com que dão de mão beijada suas economias aos “empresários” do jogo.
Eis um vício que jamais dominaria minha vontade, por fraca que seja, nem os resquícios que ainda me restam de sensatez, que nunca foi meu forte. Apostar no mano a mano com um computador que está sabidamente programado para trapacear flutua soporiferamente longe do meu entendimento. Me render ao auto-ludibrio, mesmo que por livre e espontânea vontade, a lúdico título, não faz meu gosto nem satisfaz minha vocação à desconfiança. Me pergunto se pode haver gente que curte ser enganada. Pode, obviamente, me respondo indiferente. Para que fim, nem imagino. Será sentimento de culpa que requer expiação circular e constante? Quem sabe. Nunca fui bom em análise psicológica. Cada um que seja louco como melhor lhe aprouver, não é mesmo, minha cara teutônica?
Eu nunca participaria dum esquema que não me permitisse auferir algum dividendo. Mesmo que simbólico. Se um dia entrasse num bingo, contendo o nojo daquele fedor misto de cerveja rançosa esparramada nos tampos das mesas, montanhas de tocos cigarros desamparadamente esmagados nos cinzeiros imundos e coxinhas, quibes e esfirras esquecidas pelos cantos, não ia sair sem um lucro qualquer, por ínfimo que fosse. Poderia ser um uísque por conta da casa a título de consolo pelos meus dez reais perdidos ou um brindezinho como um boné com a inscrição “Sou idiota, jogo no bingo do Zé”. De mãos abanando e cara de tacho, nem pensar.
Certo, os velhos - talvez não incluindo aqueles que frequentam bingos - antigamente costumavam recomendar a nós jovens, “nunca diga ‘deste uísque não beberei’". Gostavam também de repetir preciosidades como “o mundo dá voltas”, dito que eu, molecão afeito a radicalismos e chegado a um preto-no-branco, achava risivelmente imbecil. (Embora hoje saiba que é um dos pilares da existência e que não se ri impunemente dum dos pilares da existência.)
Ainda que leitor desde pirralho, sempre tive problemas com o potencial evocativo do vernáculo. Lembro que, púbere, metáforas e metonímias me irritavam. Passando pela escola, fui forçado a me submeter às figuras de palavra e de linguagem de que todos padecemos. Até assimilei algumas, só para me dar conta de que hoje em dia ainda as detesto, tal como Roth e outros grandes americanos mas que eram o xodó da minha iridescente Sylvia. (Provavelmente o são para os poetas em geral.)
Em contrapartida, todo mundo e sua sogra hoje diz “risco de morte”, ao que parece em nome da “clareza” da comunicação e sob o pavor de que as infinitas complexidades da língua fujam ao controle, que já é desoladoramente parco. Nesse sentido, acho mesmo que esses semiletrados têm razão: é melhor estarem bem seguros de suas palavras, por mais pobres que estas sejam, do que se aventurarem numa sutileza linguística que na verdade signifique o contrário do que pretendem expressar. Falar “risco de morte” no fundo é sensatamente não correr riscos de morte de vexames semânticos.



Nascido para o desafino


A caixa no Fastmail, maior, mais rápido serviço de correspondência eletrônica do lado de cá da rua, lotou esta semana com mensagens querendo saber quando será o próximo episódio da série Amorokê na vila. Cá pra nós, a mais empolgante dos últimos três dias – parodiando jornalistas de futebol e seus indefectíveis tabus (uau! o Santos não vence o Palmeiras há quase dois jogos...)
Dada a exorbitância de emails – alguns milhões, mais precisamente –, optei por este plá pelo próprio blog ao invés de abrir e responder um a um, o que levaria minha secretária Raphaela Samara a pedir a conta pela oitava vez só depois do almoço. (RS sai às onze e meia da matina e só volta amanhã depois do Mais você.)
Resposta: já está escrito o próximo episódio da série, achando-se no momento da Seção de Revisão Linguística (eu e minha mania horrorosa de salpicar meus textículos de interjeições alienígenas, em ortografia errônea e sentido despropositado e semântica esdrúxula, emporcalhando a sobriedade visual da mancha do texto com aspas e itálicos e enchendo o saco dos leitores que vivem reclamando da leitura espinhosa. Mas por ora não poderei atendê-los nesse quesito, pois o que mais curto na minha contristada existência à sombra dum pé de machucho seco no fundo do quintal, indefectivelmente c’um copo cheio até a borda de Johnny Walker Black (ganhei dum rapaz aí que voltou do Chile outro dia; bem que podia ter trazido uma caixa inteira, o muquirana), contrabalançado com algumas gotas de água da Sabesp, é verter parágrafos quilométricos entuchados de apostos e explicações predicativas simplesmente para embananar o entendimento e assim obrigar meus pobres leitores a ficar indo e voltando pelas linhas tentando extrair algum sentido das minhas deliciosas gororobas semióticas, o que na certa os deixa putos da silva araújo e a mim, satisfeito qual um bebezão gorducho corado de tanto mamar leite com farinha láctea e traçar pencas e cachos de banana com muita aveia e açúcar cristal servidos em colher grande pela negra Palmira, a empregada fervorosa em espírito e índole que cuidou (força de expressão, obviamente) deste vosso vil vassalo de um ano e meio aos seis, banana com aveia devidamente substituída na adolescência por baldes de cerva (de preferência Antártica) e litros de destilados (no mais das vezes vodka, uísque, stein, rum, conhaque e gin, nesta desordem, pois sempre tive para mim que a necessidade de organização do mundo e das coisas em geral deriva dum impulso neurótico de controle sobre o ambiente e os que nele habitam, envenenando a inocência primeva do primeiro olhar que deitamos sobre a natureza e implodindo nossos relacionamentos interpessoais e nos fazendo seres de arestas pontudas e caras bicudas e mãos e dedos esfiapados que quando tentamos fazer amor ou mesmo tomar um drinquezinho no happy hour quebramos rotundamente a cara e em última análise nos autossabotamos em realizar o propósito precípuo da nossa missão neste planeta desembestado no espaço, qual seja, a troca de impressões, visões de mundo e fluidos corporais nos intestinos do rebanho do Senhor, na acepção revolucionária preconizada por Karl Marx e exitosamente levada a cabo por Zé Dirceu e suas 27 ex-esposas, antes de sua jubilosa partida para Curitiba, sob os entusiasmados auspícios do estraga-prazeres Sérgio Moro, maior responsável pela abortada tentativa de implantação do socialismo do século 12 em nosso país).
Outro dia um sujeito aí veio me visitar c’um livrinho de contos da Marina Colasanti, comprou numa estação do Metrô por um pau e meio. Fiquei emocionado vendo o livro, li muito Colasanti há uns trinta anos, tenho vívidos na memória sua serenidade, humildade e, acima de tudo, compaixão pelo sofrimento dos homens, nos dois sentidos. Levei o livrinho pro banheiro, habitualmente a primeira parada de minhas novas leituras que subsequentemente se transferem para a mesa do meu computador, e me pus a ler. Ah, chama-se Contos de amor rasgado. Li o primeiro deles, curtinho à la Trevisan, me entusiasmei. O sujeito coça o ouvido c’uma chave dessas de porta e acaba abrindo a cabeça. Passei pro segundo, intitulado Por preço de ocasião. Começa assim: “Comprou a esposa numa liquidação, pendurada que estava, junto com outras (...)” Esse já não tão curto mas de bom começo, me animei. Passei para o terceiro. E o quarto. No nono ou décimo conto, atirei o livreco longe. Cada um deles borbulha duma imaginação visceral e exótica que a cada parágrafo vai abrindo uma sucessão de possibilidades de fantasia que invariavelmente morre de sequidão estéril no ponto final. O problema da imaginação na literatura é lograr levá-la para além dela mesma, usá-la como coadjuvante, não protagonista. A imaginação solitária, desprovida de outros recursos literários, não é suficiente para sustentar uma narrativa. Sempre existe o risco de se cair num Cem anos de solidão,belo e pobre. Não é moleza se desfazer do livro dum autor que aprendemos a admirar. Vou procurar outros livros de Colasanti, ver se deixo esse pra trás.
O mesmo que me deu a garrafa de JWB me trouxe os dois cadernos que faltavam das notas de Camus, Esperança do mundo e A desmedida na medida. Finaaaalmente. Ganhei ainda um livro de poemas dum poeta chileno, que devolvi ao presenteador depois abrir bem nuns versos tipo concretistas e folhear umas páginas. Melhor não declinar o nome da porcaria. Ah é, outro dia o mesmo me deu uma coletânea de Sylvia Plath perguntando “já leu?” Fiz que não ouvi, logicamente. Isso é pergunta que se faça? Às vezes me acho um misto de Hércules e Atlas por suportar tudo que tenho de suportar.
Sim, os milhões de emails que recebo semanalmente inquirindo se os personagens d’Amorokê na vila são fictícios. Que pergunta, holy fuck. Pela enésima, os personagens se baseiam em gente que existe de fato, em cada traço de caráter, ou falta dele, e em cada detalhe, não, não seria capaz de nem tenho talento para criar personagens ricos e complexos como Soninha, dona Jussara, Lacerda, Pizzaiolo, Genro, Gioacchina, Raimunda, Osório peneirado com 29 azeitonas durante as entregas de pizza, Carlão apaçocado sobre a moto novinha idem e tantos outros que pululam por estas páginas digitais qual girinos e pererecas sem destino num charco poluído de aventura, sorte e azar, esperança, cinismo, decepção, dita e desdita e tantos outros atributos e condições humanas estabelecidas literariamente pelo bardo Bill. Ao contrário de Colasanti e García Marquez, não tenho imaginação suficiente para construir personagens tão autênticos nas situações rocambolescas em que os coitados vivem se metendo por obra de suas aspirações e fraquezas ou de suas sinas freudianas. Devo admitir, inclusive ive v, que as reinações que perpetram e as enrascadas em que vivem caindo podem soar meio forçadas e até fantásticas aos olhos viciados em séries hollywoodianas e carminhas destituídas de vida interior e contradições interpretadas histericamente por atrizes globais protegidas pela câmara e pelo merchandising. Reconheço que Genro deglutir meia caçarola de sopa de marisco com meia banca de feira de pimenta e dois kg de sal apaixonadamente preparada por sua fêmea Soninha após uma tarde inteira despendida no buteco sob niagara falls de kaipiroska de figo e romã não parece lá muito verossímil. Mas posso garantir que fui testemunha ocular desse e de tantas outras extravagâncias que parecem ocorrer apenas na tevê.
Vocês notaram na enumeração de personagens que fiz acima a falta da Cateleine.
Faz anos venho tentando chegar a alto Mar.
Ondas intransponíveis me detêm.
Arrebentam sobre minha cabeça, me afogo.
A omissão não foi acidental.
Ressuscito.
Falar de Cateleine, como? Mesmo sentimento às vezes de escrever. Estou ficando covarde. Revolver meu angu interno, essa soberba superfície arroxeada que evoca o rosto sombrio do oceano.
Cate, não diga que sempre fui, não é verdade. Já fechei os olhos e pulei dum barranco no fundo da madrugada. Já saí dirigindo bêbado só de cueca e atravessei faróis de olhos fechados em outra alvorada. Já passei uma tarde inteirinha agachado escutando um rock várias dezenas de vezes sabendo que meu pai me escutava do outro lado da porta. Já pedi perdão a meu pai (não na presença dele, confesso).
Amanhã farei nova tentativa. E depois. E depois.
Tudo está aberto porque tudo está fechado.
Agosto chegou tão inesperadamente e aqui estou ainda esperando.
Cate, sabe essas pessoas que em vez de falar fazem declarações? Assim é Cateleine. Quando conversamos tenho gana de empunhar um microfone diante de sua boca. Se Cate existisse em 1882, dom Pedro lhe teria cedido lugar no quadro de Pedro Américo mofando no Museu do Ipiranga que um dia matei aula pra ver ao vivo. Cateleine podia se eleger Declaradora Oficial de Eventos do Mundo.
Senhoras e senhores, palmas para os Grandes Assertivos da História. Eles irão combater até que um jogue a toalha e escute o que o outro está tentando dizer. Tenho experiência com assertivos. Hoje à tarde deparei com o vivo voltando do trabalho. Não sabia que o vivo trabalhava. Ele me parou no meio da calçada com aquele jeitão dos assertivos que conheço desde meu segundo dia de vida. “Sabia que aqui é um puteiro?” indica o sobrado à nossa frente. Digo que não, não sabia. “Olha que coisa gostosa” indica uma moça saindo do puteiro. Olho. Holy fuck, como ter tesão por uma puta? nunca consegui, que degradante e depressivo, tantas vezes tentaram me levar a puteiros, nunca passei da porta, eu e minha educação católica.
Cateleine não escuta. Apenas finge, sabe? Assente, faz hum-hum mas você saca pela dissimulação no olhar. Só um Laurence Olivier seria capaz de simular essa dissimulação. Então Cateleine se entrega à auto-absorção por incalculáveis instantes, retornando em seguida pronta para fazer a próxima declaração. Sou independente e feliz, declara, mesmo quando não abre a boca. No século 21 o maior medo de todo mundo é admitir que é fraco e depende dos outros pra tocar sua vidinha de consumidor das migalhas culturais que a indústria do entretenimento deixa cair da toalha rendada “casualmente”.
Quero me casar com você.
Soltei um palavrão, virei as costas, decidi alçar voo feito super-homem.
A maioria dos emails que recebo pedem sem meias palavras que renuncie de vez às minhas pretensões poéticas e me dedique apenas a Amorokê. A esses prometo que já estou tomando providências para desviar meus impulsos de versejador grotesco para uma atividade mais lucrativa como sapateiro ou consultor petista. Alguns aconselham na cara dura que eu desista até mesmo do folhetim e de qualquer outra incumbência mesmo remotamente relacionada à literatura.
No lado esquerdo da minha mesa jaz um livro de Pedro Nava. Não vão acreditar mas também ganhei semana passada. Ainda não abri. Sou capaz de deixar um livro meses a fio esquecido ao meu lado sem a mínima curiosidade, até de repente o ler em um ou dois dias. Nava é o que nos coube de Proust, escreveu para reviver e como todo grande escritor viveu para escrever. Quando descobriram que era gay, desceu do prédio, se recostou a uma árvore numa rua próxima e deu um tiro na cabeça. Estou quase absolutamente certo de que se mataria mesmo hoje sob essa liberalidade fake sufocante que atravessamos. Questão de princípios. Há gays que não querem ser gays, assim como alcoólatras que não querem bidu. Gente sem caráter não tem princípios, simplesmente atende aos comandos dos instintos. Na apresentação do livro, uma senhora diz que o suicídio de Nava foi inexplicável. Há gente para que suicídio e homossexualismo fogem do escopo da literatura. Cuspe. Ó meu bom jesus que a todos conduz olhai as crianças do nosso brasil. Estamos fadados ao jardim d’infância.
Nota da minha secretária Raphaela Samara
Atenção: as menssagens enderecadas à mim que vim com efe em vez de pê-agá serão sumarialmente mandadas pro nosso arquivo morto. O patrão que mandô.

Hoje tem panelasso. Frijidera ok.

Hamlet caipira


Bem, quinta de manhã, dia e hora de atualizar o diário.
Bati uns seis km de perna hoje. Eu e Zezeí.
Zezeí tá gorda feito uma almôndega cabeluda. Não consigo reduzir a dieta, morro de pena da carinha suplicando mais um, mais um, mais um. Cada dia mais esfomeada. Agora deu de comer cocô na rua. Vocês sabem, Zezeí não usa guia. Vai indo lá na frente farejando cada poça de mijo que encontra, eu atrás, cabisbaixo, remoendo as coisinhas que nasci pra remoer, como gosto de fazer, como gosto de ser, como gosto de rimar.
De repente flagro a diaba mascando, saio correndo mandando largar, ela se escafede engolindo na fuga. Além do cocô, morro de medo de chumbinho, claro. Vi outro dia não lembro onde um vídeo em que um mentecapto dava carne com chumbinho pros bichos da vizinhança. Matou dezenas de cães e gatos. Eu seria capaz de encher um filho da puta desses de porrada, tranquilamente. Idem esses políticos que metem a mão na nossa grana. Queria mesmo era ser carrasco pra executar político ladrão. Não é blague. Executava com gosto. Só um Lamborghini que a PF apreendeu na Casa da Dinda do Collor vale mais de três milhões. O maníaco tem quatorze carrões ao todo, entre eles uma Ferrari de um milhão e um Porsche de 600 mil. Na Suécia deputados e senadores vão de metrô para o trabalho, não têm carros oficiais, motoristas, salário-moradia, salário-guarda-roupa, salário-mordomo. A Suécia de hoje é fruto das carnificinas dos vikings e outras tribos sanguinárias de ontem. Parece que a civilização é um desdobramento de várias etapas de barbárie. Os países mais avançados deixam isso cristalinamente óbvio. A Guerra da Secessão matou 620 mil homens só nas frentes de batalha, 2% da população, hoje equivaleria a 6 milhões. Os recentes protestos dos negros americanos contra assassinatos de sua gente perpetrados pela polícia dá bem uma noção de quão distintas são as reações deles e nossas frente à injustiça. Eles têm centenas de políticos em cana há décadas. Delinquentes tipo Collor e Lulla não escarneceriam das leis como fazem aqui. Não vamos chegar a lugar algum enquanto ficarmos de papo pr’aquele lado que os papos ficam, a assistir a farra dos maganas com nosso sangue. Não há esquerdismo ou direitismo que nos tire deste chove-mas-não-molha. Dizem que Lullinha é um dos nababos mais ricos do País, o que não duvido. Enquanto o povão der poder a larápios como Lulla estaremos fudidos. Todas as demais tragédias que sofremos – bandidagem, hospitais entuchados de gente pelos corredores, doentes esperando três anos por um exame, cadeias repugnantes (que o ilmo. ministro da Justiça qualificou de medievais mas não mexeu um dedinho para corrigir), 55 mil mortes no trânsito a cada ano, professores que levam surras de alunos, universidades federais sem salas de aula – resultam da indigência cultural do povão e da bonomia das classes médias. Segundo a Unicef, 10.500 adolescentes e crianças foram assassinados no Brasil no ano de 2013. A maioria constituída de meninos pobres negros. Em 1990, contavam não mais que 5 mil. Se esses números não servem para demonstrar cabalmente a quem ainda vota no PT o que é a esquerda no poder, então é melhor cometermos um vasto suicídio coletivo de 200 milhões de cegos retardados.
Enquanto isso dondocas e dandizinhos passam as tardes nos portais de relacionamento discutindo as ofensas racistas contra a jornalista da Globo.
A tevê e a internet substituíram a realidade.
Meu estilo lenhador – vocês sabem, barbão comprido e abundante, cabelo curtinho – tem causado frisson nos meus passeios entre... as bichas. Sempre fui assediado por gays mas ultimamente a coisa tá começando a me encher os pacotes. Homossexuais, não sei se todos, são altamente promíscuos e por isso descarados e não se avexam em exibir despudor em público. Como digo, ativistas da própria sexualidade, o que pessoalmente me causa nojo. Para mim e para quem tem um mínimo de educação, sexualidade é assunto privado. Muitos são petulantes e agressivos. Numa época entrava numas, então resolvi pegar leve, esses sujeitos podem se revelar perigosos. Certa feita, três da manhã, entrei alegremente no banheiro público da Praça da República, fui atacado a chacotas e insultos por um bando deles, tive de recuar por um corredor polonês de bichas galhofeiras. Nas ruas, alguns encaram insolentes e insistentes, intimando, querendo confronto. Não tiveram quem lhes ensinasse modos ou não quiseram aprender. A cafajestice é a regra.
Chamo atenção de longe. Não só pelo estilo de derrubador de árvores mas também por esta minha carranca intensa de quem tem substância. Posso ver nos olhares o efeito que provoco. Que seria mais assoberbante se a maioria das pessoas tivesse um mínimo de cultura e sofisticação. Mas dá pro gasto. E não me interessa quem é incapaz de perceber que não está diante de mais um robozinho controlado pelos ditames ideológicos da época e pela propaganda da mídia. É como escrever. Escrevo para quem sabe reconhecer qualidade e identificar literatura. Dia e noite vejo gente perdida entrando em meu blog em busca de pornografia, versinhos açucarados ou piadas de papagaio tipo Verissimo. O crítico Wilson Martins ria gostoso de escritores que se dão demasiada importância. Sim, vaidosos fátuos correm o risco do ridículo. Mas depende. Até hoje escrevi uma quantidade considerável e de nível bom o bastante para não me dar importância. E Martins, qual a maioria dos críticos, vivia enchendo a própria bola, só que indiretamente. Quando faz pouco dos outros, você automaticamente se engrandece, certo? É o que acontece com tudo que todo crítico escreve. Mas faz parte. Vivemos uma batalha interminável do dia em que nascemos ao que damos bye-bye a este vale de etc. É melhor assumir e relaxar em vez de fazer papel de mestre-escola. Como dizia o poeta Joseph Brodsky, uma das características do mal é sua capacidade de se disfarçar de bem. “Você nunca vê o mal chegando e anunciando, ‘Olá, eu sou o mal!’”.
Minha barba fulge ao longe, posso atinar. Além de hirsuta, farta. Quase nívea, como diria a núbil Raquel de Queiroz às voltas com a escritura d’O quinze na fazenda Pici da família no sertão do Ceará nos idos dos 1930.
Sou alvo preferencial não apenas de gays mas também de mulheres. Só que em número deploravelmente menor. Elas olham com discrição, evitando a todo custo encarar. Não querem ser tomadas por prostitutas, perigo que não atemoriza gays. As mais olhudas são as motoristas, da segurança de seus carrões fora do planeta, podem acelerar e sumir no trânsito. Na calçada praticamente nenhuma se atreve, há o risco dum approach que leve a um tête-à-tête e bater em retirada fica mais complicado. Às vezes uma mais assanhada manda uma avalanche de elogios a Zezeí ao invés de mirar o dono, que é avaliado rapidamente de soslaio. Essas aguardam a iniciativa do macho. Aguardam uns segundos e perdem o interesse.
Para minha tristeza, as que parecem mais acessíveis são as que já iniciam sua jornada sem retorno rumo àquele cabo que todas acabam dobrando cedo ou tarde. As senhoras acima dos cinquenta andam pela cidade meio ávidas, é visível. As de carro mais, também nesse caso. Carro é mais ou menos como o computador, o volante e a distância aumentam a confiança. As cinquentonas buscam aventuras outras que não sexuais. Talvez um companheiro, no que não acredito muito. Querem mesmo é comprovar se ainda são desejáveis. Estão plantando verde. Tenho certeza de que dariam no pé se tentasse uma aproximação. Mais que maridos, elas têm filhos. Já adultos, difíceis de enganar. Os maridos, esses são passados pra trás desde sempre.
As da chamada idade da loba, arredores dos 35 carnavais, são as mais comíveis, de mais de um ponto de vista. Se acham nos preparativos para a suprarreferida jornada, a juventude começa a erguer um braço para dar adeus mas ainda hesita. São as mais comíveis porque atravessam o clímax da vida no que têm de animal, a vitalidade plena, a sexual, aquela transição entre a inocência da alvorada e a experiência do crepúsculo. Sei, experiência própria, que é a etapa em que se encostam na parede e dão a si mesmas a chance do agora ou nunca. Me pergunto, quem sofre mais com a degenerescência etária, a mulher ou o homem? É forte a tentação de dar palpite mas me abstenho para não ser ainda mais frívolo do que sou. Estava lendo hoje o blog dum tal de Leandro Narloch na Veja Online e o rapaz tentava fazer pilhéria perguntando por que as feministas não lutam também pela igualdade numérica de gênero nas prisões brasileiras. Quer dizer, para esse cara a ambição das mulheres em participar igualitariamente do mercado de trabalho, dos parlamentos e outras instâncias da vida civil seria mais ou menos o mesmo que querer ser encarcerado numa das medonhas masmorras do sistema prisional brasileiro. Os leitores do sujeito entraram em êxtase, naturalmente, dizendo que ele estava sendo “lógico”. Alguns dos meus leitores me acham obsessivo porque volta e meia retomo os mesmos assuntos, mas eis por que vivo caindo de pau na maioria dos blogueiros dos grandes veículos de comunicação. Quase todos eles escrevem o que seus leitores esperam que escrevam e a isso denominam “lógica”. Não há pensamento legitimamente criativo ou inovador mas meramente a expressão dos pré-conceitos usuais no pedaço. A velha repetição de sempre para manter alimentada a macacada de auditório. Tive ímpeto de fazer um comentário e contraditar o blogueiro mas, ainda bem, me contive. Não quero mais entrar numas, como disse acima. Só serve pra te desgastar. Já faz algum tempo que não comento blogs e fóruns por aí e pretendo continuar no meu low profile. Podia usar um nick mas a troco de quê? E não quero mais ver meu nome misturado ao da manada que comenta esses blogueiros pagos para engordar as contas do patrão.
O bom mesmo nas ruas são os brotos. Algumas lolitas de doze são deliciosas. Heróis trágicos de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan namoram ninfetas tenras assim. Quanto a mim, sou um pouco mais convencional. A minha, Soninha, tem já dezesseis, pelo menos passou, ou está passando, a adolescência. Dolores, a lolita de Nabokov, também tem doze. Como disse alhures, não li Lolita, nunca tive vontade e perdi definitivamente o interesse depois que vi o filme, o primeiro, de Kubrick, com a personificação da inveja e cansativo James Mason e o fabuloso Peter Sellers como Clare Quilty. A segunda versão, com o tarado Jeremy Irons e a insossa Melanie Griffith, nem sonhei assistir. E depois que conheci o desprezo enojado de Otto Maria Carpeaux pelo livro de Nabokov, encerrei de vez esse departamento. Carpeaux também bota no devido lugar secundário o universalmente incensado Apanhador no campo de centeio, de Salinger. É a diferença entre o verdadeiro erudito e o crítico de orelhas de livro.
Ah, brotos que não voltam mais. O império dos hormônios que causam estragos traumáticos nos circunstantes à medida que desfilam pra cima e pra baixo com seu diabólico fito. Hormônios que acordam hormônios. A irresistível fertilidade que todos existimos para cumprir, indiferentes às conveniências do pensamento em moda. Ah, brotos e sua frieza olímpica, o menoscabo ferino pelas reações que elas próprias arrancam dos cães de línguas de fora. Quão iníqua parece ao esfomeado a visão da fartura.

Como se chamam hoje? Cocotinhas teve vida efêmera nos idos dos setenta/oitenta. Meu ouvido para o coloquial anda desatualizado. Sinto falta da orkut e suas comunidades com alto teor de sinceridade em que podia detectar e aprender os novos rumos do jargão da molecada. Um escritor desfalcado do vigor do informal acaba virando um José Lins do Rego ou, para os vivos, um Ignácio de Loyola Brandão. Quais são os melhores fóruns hoje para investigações linguístico-sintáticas e atualização da gíria? Cartas para a redação, s’il te plaît.