Nascido para o desafino


A caixa no Fastmail, maior, mais rápido serviço de correspondência eletrônica do lado de cá da rua, lotou esta semana com mensagens querendo saber quando será o próximo episódio da série Amorokê na vila. Cá pra nós, a mais empolgante dos últimos três dias – parodiando jornalistas de futebol e seus indefectíveis tabus (uau! o Santos não vence o Palmeiras há quase dois jogos...)
Dada a exorbitância de emails – alguns milhões, mais precisamente –, optei por este plá pelo próprio blog ao invés de abrir e responder um a um, o que levaria minha secretária Raphaela Samara a pedir a conta pela oitava vez só depois do almoço. (RS sai às onze e meia da matina e só volta amanhã depois do Mais você.)
Resposta: já está escrito o próximo episódio da série, achando-se no momento da Seção de Revisão Linguística (eu e minha mania horrorosa de salpicar meus textículos de interjeições alienígenas, em ortografia errônea e sentido despropositado e semântica esdrúxula, emporcalhando a sobriedade visual da mancha do texto com aspas e itálicos e enchendo o saco dos leitores que vivem reclamando da leitura espinhosa. Mas por ora não poderei atendê-los nesse quesito, pois o que mais curto na minha contristada existência à sombra dum pé de machucho seco no fundo do quintal, indefectivelmente c’um copo cheio até a borda de Johnny Walker Black (ganhei dum rapaz aí que voltou do Chile outro dia; bem que podia ter trazido uma caixa inteira, o muquirana), contrabalançado com algumas gotas de água da Sabesp, é verter parágrafos quilométricos entuchados de apostos e explicações predicativas simplesmente para embananar o entendimento e assim obrigar meus pobres leitores a ficar indo e voltando pelas linhas tentando extrair algum sentido das minhas deliciosas gororobas semióticas, o que na certa os deixa putos da silva araújo e a mim, satisfeito qual um bebezão gorducho corado de tanto mamar leite com farinha láctea e traçar pencas e cachos de banana com muita aveia e açúcar cristal servidos em colher grande pela negra Palmira, a empregada fervorosa em espírito e índole que cuidou (força de expressão, obviamente) deste vosso vil vassalo de um ano e meio aos seis, banana com aveia devidamente substituída na adolescência por baldes de cerva (de preferência Antártica) e litros de destilados (no mais das vezes vodka, uísque, stein, rum, conhaque e gin, nesta desordem, pois sempre tive para mim que a necessidade de organização do mundo e das coisas em geral deriva dum impulso neurótico de controle sobre o ambiente e os que nele habitam, envenenando a inocência primeva do primeiro olhar que deitamos sobre a natureza e implodindo nossos relacionamentos interpessoais e nos fazendo seres de arestas pontudas e caras bicudas e mãos e dedos esfiapados que quando tentamos fazer amor ou mesmo tomar um drinquezinho no happy hour quebramos rotundamente a cara e em última análise nos autossabotamos em realizar o propósito precípuo da nossa missão neste planeta desembestado no espaço, qual seja, a troca de impressões, visões de mundo e fluidos corporais nos intestinos do rebanho do Senhor, na acepção revolucionária preconizada por Karl Marx e exitosamente levada a cabo por Zé Dirceu e suas 27 ex-esposas, antes de sua jubilosa partida para Curitiba, sob os entusiasmados auspícios do estraga-prazeres Sérgio Moro, maior responsável pela abortada tentativa de implantação do socialismo do século 12 em nosso país).
Outro dia um sujeito aí veio me visitar c’um livrinho de contos da Marina Colasanti, comprou numa estação do Metrô por um pau e meio. Fiquei emocionado vendo o livro, li muito Colasanti há uns trinta anos, tenho vívidos na memória sua serenidade, humildade e, acima de tudo, compaixão pelo sofrimento dos homens, nos dois sentidos. Levei o livrinho pro banheiro, habitualmente a primeira parada de minhas novas leituras que subsequentemente se transferem para a mesa do meu computador, e me pus a ler. Ah, chama-se Contos de amor rasgado. Li o primeiro deles, curtinho à la Trevisan, me entusiasmei. O sujeito coça o ouvido c’uma chave dessas de porta e acaba abrindo a cabeça. Passei pro segundo, intitulado Por preço de ocasião. Começa assim: “Comprou a esposa numa liquidação, pendurada que estava, junto com outras (...)” Esse já não tão curto mas de bom começo, me animei. Passei para o terceiro. E o quarto. No nono ou décimo conto, atirei o livreco longe. Cada um deles borbulha duma imaginação visceral e exótica que a cada parágrafo vai abrindo uma sucessão de possibilidades de fantasia que invariavelmente morre de sequidão estéril no ponto final. O problema da imaginação na literatura é lograr levá-la para além dela mesma, usá-la como coadjuvante, não protagonista. A imaginação solitária, desprovida de outros recursos literários, não é suficiente para sustentar uma narrativa. Sempre existe o risco de se cair num Cem anos de solidão,belo e pobre. Não é moleza se desfazer do livro dum autor que aprendemos a admirar. Vou procurar outros livros de Colasanti, ver se deixo esse pra trás.
O mesmo que me deu a garrafa de JWB me trouxe os dois cadernos que faltavam das notas de Camus, Esperança do mundo e A desmedida na medida. Finaaaalmente. Ganhei ainda um livro de poemas dum poeta chileno, que devolvi ao presenteador depois abrir bem nuns versos tipo concretistas e folhear umas páginas. Melhor não declinar o nome da porcaria. Ah é, outro dia o mesmo me deu uma coletânea de Sylvia Plath perguntando “já leu?” Fiz que não ouvi, logicamente. Isso é pergunta que se faça? Às vezes me acho um misto de Hércules e Atlas por suportar tudo que tenho de suportar.
Sim, os milhões de emails que recebo semanalmente inquirindo se os personagens d’Amorokê na vila são fictícios. Que pergunta, holy fuck. Pela enésima, os personagens se baseiam em gente que existe de fato, em cada traço de caráter, ou falta dele, e em cada detalhe, não, não seria capaz de nem tenho talento para criar personagens ricos e complexos como Soninha, dona Jussara, Lacerda, Pizzaiolo, Genro, Gioacchina, Raimunda, Osório peneirado com 29 azeitonas durante as entregas de pizza, Carlão apaçocado sobre a moto novinha idem e tantos outros que pululam por estas páginas digitais qual girinos e pererecas sem destino num charco poluído de aventura, sorte e azar, esperança, cinismo, decepção, dita e desdita e tantos outros atributos e condições humanas estabelecidas literariamente pelo bardo Bill. Ao contrário de Colasanti e García Marquez, não tenho imaginação suficiente para construir personagens tão autênticos nas situações rocambolescas em que os coitados vivem se metendo por obra de suas aspirações e fraquezas ou de suas sinas freudianas. Devo admitir, inclusive ive v, que as reinações que perpetram e as enrascadas em que vivem caindo podem soar meio forçadas e até fantásticas aos olhos viciados em séries hollywoodianas e carminhas destituídas de vida interior e contradições interpretadas histericamente por atrizes globais protegidas pela câmara e pelo merchandising. Reconheço que Genro deglutir meia caçarola de sopa de marisco com meia banca de feira de pimenta e dois kg de sal apaixonadamente preparada por sua fêmea Soninha após uma tarde inteira despendida no buteco sob niagara falls de kaipiroska de figo e romã não parece lá muito verossímil. Mas posso garantir que fui testemunha ocular desse e de tantas outras extravagâncias que parecem ocorrer apenas na tevê.
Vocês notaram na enumeração de personagens que fiz acima a falta da Cateleine.
Faz anos venho tentando chegar a alto Mar.
Ondas intransponíveis me detêm.
Arrebentam sobre minha cabeça, me afogo.
A omissão não foi acidental.
Ressuscito.
Falar de Cateleine, como? Mesmo sentimento às vezes de escrever. Estou ficando covarde. Revolver meu angu interno, essa soberba superfície arroxeada que evoca o rosto sombrio do oceano.
Cate, não diga que sempre fui, não é verdade. Já fechei os olhos e pulei dum barranco no fundo da madrugada. Já saí dirigindo bêbado só de cueca e atravessei faróis de olhos fechados em outra alvorada. Já passei uma tarde inteirinha agachado escutando um rock várias dezenas de vezes sabendo que meu pai me escutava do outro lado da porta. Já pedi perdão a meu pai (não na presença dele, confesso).
Amanhã farei nova tentativa. E depois. E depois.
Tudo está aberto porque tudo está fechado.
Agosto chegou tão inesperadamente e aqui estou ainda esperando.
Cate, sabe essas pessoas que em vez de falar fazem declarações? Assim é Cateleine. Quando conversamos tenho gana de empunhar um microfone diante de sua boca. Se Cate existisse em 1882, dom Pedro lhe teria cedido lugar no quadro de Pedro Américo mofando no Museu do Ipiranga que um dia matei aula pra ver ao vivo. Cateleine podia se eleger Declaradora Oficial de Eventos do Mundo.
Senhoras e senhores, palmas para os Grandes Assertivos da História. Eles irão combater até que um jogue a toalha e escute o que o outro está tentando dizer. Tenho experiência com assertivos. Hoje à tarde deparei com o vivo voltando do trabalho. Não sabia que o vivo trabalhava. Ele me parou no meio da calçada com aquele jeitão dos assertivos que conheço desde meu segundo dia de vida. “Sabia que aqui é um puteiro?” indica o sobrado à nossa frente. Digo que não, não sabia. “Olha que coisa gostosa” indica uma moça saindo do puteiro. Olho. Holy fuck, como ter tesão por uma puta? nunca consegui, que degradante e depressivo, tantas vezes tentaram me levar a puteiros, nunca passei da porta, eu e minha educação católica.
Cateleine não escuta. Apenas finge, sabe? Assente, faz hum-hum mas você saca pela dissimulação no olhar. Só um Laurence Olivier seria capaz de simular essa dissimulação. Então Cateleine se entrega à auto-absorção por incalculáveis instantes, retornando em seguida pronta para fazer a próxima declaração. Sou independente e feliz, declara, mesmo quando não abre a boca. No século 21 o maior medo de todo mundo é admitir que é fraco e depende dos outros pra tocar sua vidinha de consumidor das migalhas culturais que a indústria do entretenimento deixa cair da toalha rendada “casualmente”.
Quero me casar com você.
Soltei um palavrão, virei as costas, decidi alçar voo feito super-homem.
A maioria dos emails que recebo pedem sem meias palavras que renuncie de vez às minhas pretensões poéticas e me dedique apenas a Amorokê. A esses prometo que já estou tomando providências para desviar meus impulsos de versejador grotesco para uma atividade mais lucrativa como sapateiro ou consultor petista. Alguns aconselham na cara dura que eu desista até mesmo do folhetim e de qualquer outra incumbência mesmo remotamente relacionada à literatura.
No lado esquerdo da minha mesa jaz um livro de Pedro Nava. Não vão acreditar mas também ganhei semana passada. Ainda não abri. Sou capaz de deixar um livro meses a fio esquecido ao meu lado sem a mínima curiosidade, até de repente o ler em um ou dois dias. Nava é o que nos coube de Proust, escreveu para reviver e como todo grande escritor viveu para escrever. Quando descobriram que era gay, desceu do prédio, se recostou a uma árvore numa rua próxima e deu um tiro na cabeça. Estou quase absolutamente certo de que se mataria mesmo hoje sob essa liberalidade fake sufocante que atravessamos. Questão de princípios. Há gays que não querem ser gays, assim como alcoólatras que não querem bidu. Gente sem caráter não tem princípios, simplesmente atende aos comandos dos instintos. Na apresentação do livro, uma senhora diz que o suicídio de Nava foi inexplicável. Há gente para que suicídio e homossexualismo fogem do escopo da literatura. Cuspe. Ó meu bom jesus que a todos conduz olhai as crianças do nosso brasil. Estamos fadados ao jardim d’infância.
Nota da minha secretária Raphaela Samara
Atenção: as menssagens enderecadas à mim que vim com efe em vez de pê-agá serão sumarialmente mandadas pro nosso arquivo morto. O patrão que mandô.

Hoje tem panelasso. Frijidera ok.