Literalidades
Ao Alex
das criaturas deste vasto
mundo solitário em que
vivo, uma criatura, uma
das poucas, a quem finalmente
reconheço como digno de
receber uma criação,
por reles, por pobre,
por triste que seja.
Wil
Aprendemos
a identificar pessoas, fatos e outras coisinhas antes que palavras. O que não é
nenhuma porcaria. É uma das nossas verdades. Um dos nossos erros. Um dos nossos
defeitos. Um mau começo de vida.
Temos
um bug de projeto. Não devíamos ser capazes de registrar impressões e sensações
quando ainda somos desprovidos de palavras — que são o conteúdo tratável dos
nossos pensamentos. Sem a intermediação das palavras, essas impressões e
sensações ricocheteiam em nossa mente, resvalando para nossa alma ou qualquer
outro nome que você queira dar ao que temos de desconhecido dentro de nós. Eu,
pessoalmente, costumo pensar que depois que adquirimos consciência de nós e do
mundo, começamos a conceber esse lugar como um buraco sem fundo para onde vão
todos os mistérios aos quais, ainda cedo na idade consciente, renunciamos a
desvendar e sobre os quais apenas poetas e loucos ousam especular.
Quando
crescemos podemos dar a esse buraco negro vários nomes, sempre dependendo do
freguês: uns chamam de deus, outros, de espiritualidade, outros, de ganhar
grana, muita grana, outros, de comer todas as mulhas que lhe passarem pela
frente, e assim vai. Eu, da minha parte, chamo de dor.
A
maioria de nós não sabe o que é essa dor nem de onde vem — apenas dói, não
sabemos onde nem por quê. Basta saber que dói. Talvez essa percepção de que
temos algo errado aqui dentro faça parte do nosso projeto errado. Quem sabe? A
maioria prefere deixar esse tipo de metafísica a cargo da religião e
congêneres. É o tipo de dúvida que só serve para encher o saco e atrapalhar um
pouco nossa longa e enfadonha viagem rumo ao nosso grande destino de seres
completos e felizes. Para essa gente, não vale a pena perder tempo com dúvidas
que não temos como resolver.
Será?
Psicanalistas
e outros gurus menos cultuados dizem que damos uma sacada geral nos sinais,
signos, identidades assim que nos esprememos útero afora. O zé, a maria, a
gente média que popula este mundo, apenas olha e finge que não é com eles. Os
mais sacadores franzem a testa e caem no berreiro, vislumbrando a furada
olímpica em que acabaram de se meter. Quem é inteligente não deixa — não pode
deixar — de ver no nascimento um bom motivo para chorar. Como disse, é um mau
começo. É caso de se perguntar: e se eu não tivesse nascido?
Quem
é do tipo geniozinho de cara também saca, com alguma precisão, mixarias como
tendências, conceitos, perspectivas, conclusões. (No meu caso, se tirei alguma
conclusão ao nascer, provavelmente foi a de que o longo resto da minha existência
seria uma sucessão de, ai mãe, infortúnios.)
Emergindo
das gosmentas profundezas uterinas, de súbito despencamos verdes, virgens e
tenros no berço da maternidade, perdendo nosso sérico paraíso. Percebemos mas
não refletimos, claro. Refletir exigiria vivência — conhecimento concreto — ao
longo dum período considerável de tempo.
Certo,
é muito cedo, sequer sabemos que não refletimos. Que assimilamos, porém, não há
dúvida, e as impressões sobre o que vemos e sentimos vão depender em grande
medida da nossa capacidade nata de reter aquilo pelo que passamos a partir da,
uuuuu, fria fuga ao avesso, pela vulva materna, do cosmos para este mundo
enigmático.
Cada
situação específica pela qual passamos deixa em nós fragmentos, resíduos e
vaguezas e imagens disformes mil que não temos como identificar. Nos menos
propensos ao bem-estar, deixa cacos, que no mais das vezes são cortantes —
letalmente cortantes. Em outros ainda deixa agulhas, espinhos e tudo que cause
dor lancinante. Desses fragmentos e resíduos e cacos e agulhas e espinhos em
geral caem partículas de vida que, de tão ínfimas, não enxergamos. São
grãozinhos que se vão depositando lá no fundo, no nosso buraco escuro, e lá
ficam guardadinhos. Insuspeitos. Intocados. E então começa a nascer aquele mirante
a que se refere o título.
Quando
tudo ainda está em formação em nós, embora não saibamos, estamos vivendo um
processo de desenvolvimento. Dizem alguns estudiosos que esse processo nunca para.
Ou seja: estamos em estado permanente de crescimento. Mudamos o tempo todo.
Para
mim, isso é questionável. Tenho quase certeza de que não mudo há pelo menos 30
anos. Provavelmente ganhei experiência de vida nesse período. Isso é uma
mudança, não é? É. Outra questão é saber se essa experiência me serve/serviu de
alguma coisa. Mas essa outra questão não me importa agora. O que me importa é
que o processo de desenvolvimento pelo qual cada um de nós passa um belo dia
nos põe no topo duma montanha. Se formos espertos, nesse dia nos deixaremos
inebriar pelas alturas. Se tivermos tendência, por mais ligeira que seja, ao
suicídio, na certa nos deixaremos obcecar pela ideia de nos atirarmos encosta
abaixo.
Começamos
a galgar nossa montanha à medida que vamos deixando para trás, meio às cegas,
os incontáveis acontecimentozinhos que se sucedem sem uma ordem muito lógica em
nossas vidinhas de lesmas pretensamente pensantes. A maior parte desses
acontecimentos vão para a nossa lixeira interna. Sem saber, podemos guardar
adormecido aquele estranho dia quando ainda habitávamos o quarto escuro daquela
fantasmagórica casa naquela distante cidade e que acabou por deixar uns
grãozinhos que se juntaram aos do dia anterior, aos de antes de ontem, aos de
antes de anteontem. E daquele pensamentozinho tolo que por alguma razão se enroscou
num cantinho mais intrincado em nossa cabeça, constituindo outro grãozinho
residual a se unir aos demais. E daquela noite, hoje esfumaçada na memória, em
que alguém — ou da família ou da vizinhança, não importa — nos chamou a atenção
por alguma característica particular e nos enchemos de amor ou nos
transbordamos de ódio, e eis então outra particulazinha a se incorporar ao
nosso montinho cada dia maior.
Talvez
todo esse amor ou aquele ódio seja demasiado para o nosso débil músculo
cardíaco que, por isso mesmo, só faz bater cada dia mais hesitante, até ficar
com as artérias entupidas — para simplesmente constituir outro grãozinho
acumulado.
A
essa altura, como será fácil deduzir, nosso humilde montículo de escombros já
mostra vocação para colina ou quem sabe um belo morro de fecundo e denso
matagal povoado de bichos de sete cabeças, mulas sem cabeças e outros
monstrinhos surreais. Se formos assaz acumuladores, em breve teremos erigido
uma autêntica cordilheira, pela qual poderemos viajar legal se tivermos índole
perambulatória.
Para
fazer frente a essa acumulação que nos vai enchendo por dentro e nos colocando
dia a dia num nível superior, mas não necessariamente melhor, a natureza,
sempre sábia e provedora, obviamente nos dotou, a cada um de nós, duma peneira.
É uma das poucas ferramentas de que podemos nos valer. Com ela procuramos,
conscientemente ou não, filtrar uma a uma as partículas desprendidas dos
eventos por que passamos, pensamentos que cruzam insondáveis nossas mentes,
pessoas com quem deparamos e dores e sentimentos que experimentamos. Umas,
pequeninas, passam sem maiores problemas, e, quando passam assim despercebidas,
é como se não passassem, como se não existissem, como se não tivessem afetado a
nossa melindrosa constituição psíquica. Quanto a outras partículas,
maiorzinhas, maiorzinhas a ponto de poder ser chamadas caroços, o mesmo já não
acontece. Essas, ou ficam encalacradas ou, enroscadas, passam, mas passam
gerando alguma dor. Ou, dependendo da vítima, uma baita dor. Às vezes, intolerável.
Se
você for felizardo, sua peneira será formada duma malha bem aberta e grossa.
Assim, todos aqueles minúsculos grãozinhos vão se peneirando insentidos e você
só vai se dar conta do barato quando, em vez do grãozinho habitual, cair na
peneira um torrão de proporções inesperadamente avantajadas que em geral toma a
forma da morte dum ente querido ou um câncer na bexiga. Para sorte de
felizardos iguais a você, esses torrões só muito raramente na vida são retidos
na malha. E se você for defacto sortudo, quem sabe não sinta nem mesmo esses
caroções gigantes.
(Para
meu eterno espanto, conheço gente que se diz/se mostra aliviada quando morre um
irmão ou alguém amado ou que, ao ouvir do médico que está com câncer na bexiga,
se regozija alegando que podia ser pior: olha, doutor, podia ser na medula. Ou
no cérebro.)
Agora,
se sua peneira, for não aberta e grossa mas bem fechadinha, estando menos para
peneira e mais para coador dos sofrimentos etéreos, se limitando a percolar
essas partículas micrométricas que nem mesmo Cristo teve capacidade de
enxergar, bom, aí você será o que os mais poéticos em geral denominam sensível
e o vulgo, infeliz.
Os
elementos básicos de que somos formados incluem, além de fragmentos e resíduos
e filtros, o que na maturidade costumamos considerar vagamente como nossas “ferramentas”.
Com
o decorrer dos anos aprendemos que a natureza não seria inconsequente nem
desastrada a ponto de não nos aquinhoar com algumas defesas contra ela própria —
de modo que, quando pensamos que nos defendemos, estamos apenas encenando nosso
pesado papel de heróis usando armas com que o próprio inimigo nos municiou.
Essa
ilusão, obviamente, resulta do que guardamos em nossas débeis cacholinhas. O
desígnio da natureza nesse caso particular não é senão nos manter vivos o
máximo de tempo que nos permitir nossa ilusão de que um dia, quem sabe,
poderemos ser felizes. Ela, a natureza, nos fez assim: seres prospectivos. Não
vivemos nem o terror nem a impossibilidade do agora — nos limitamos a nos
preservar para o futuro. Isso tem nome: esperança.
De
todas as ferramentas com que pensamos ter sido agraciados mais ou menos por
alguma dádiva divina (temos essa incrível capacidade de, por alguma razão, nos
acharmos eleitos de deus), a esperança é a que mais traiçoeiramente trabalha
contra nós e a favor do nosso grande inimigo, a natureza. Do começo ao fim, do
nosso primeiro ao nosso último minuto em cada dia, em cada um dos segundos dum
minuto e dos minutos duma hora, resistimos porque somos seres esperançosos. O
presente, não importa o que nos aconteça nem as certezas que sucumbem no fundo
da nossa alma, não existe. A cada instante, cortamos nossos elos com o passado,
aquelas burradas que ainda éramos suficientemente imaturos para cometer,
aquelas pessoas de má fé de quem ainda não sabíamos nos precaver, e nos
prometemos, com a toda a solenidade de que somos capazes, que de agora em
diante, já experientes, sabedores — enfim sagazes — de que a ingenuidade faz
parte daquele rol de ferramentas naturais que existem apenas para dar mais
tempero à existência, e que existe apenas para que a vençamos e, em vencendo,
nos convençamos de que somos corajosos e perspicazes e temos muitas outros
predicados dos quais, autocomplacentemente, imaginamos ser dignos, pois bem,
nos prometemos que de agora em diante não mais cairemos naquelas armadilhas em
que só crianças, tolos assumidos e irresponsáveis têm direito a cair.
A
esperança nos dá uma dimensão temporalmente evolutiva da existência. Quando
olhamos para trás, percebemos que vimos avançando — e “avançar” é crucial — por
etapas. E cada uma delas, as etapas, veio, graças aos céus, no seu devido
tempo. Daí, trepados em nosso mirante lá no alto mas munidos da nossa visão de
toupeiras viciadas em escuridão, concluímos que somos meio encantados. Ei! por
que não? toupeiras agraciadas com dons divinos! (Poucos de nós ousam perguntar
por que cargas d'água seríamos merecedores de favores de deus. A maioria toma
esse tipo de dádiva for granted.)
A
natureza, deus, nossa genialidade, o que quer que seja, permitiu que déssemos
um passo por vez. Somos os privilegiados detentores do princípio da
compensação: tendo chegado ao mundo absolutamente ingênuos mas — pela própria
ingenuidade — absolutamente pios, e, à medida que cruzamos em cautelosa velocidade
os percalços que a natureza sabiamente pôs à nossa frente apenas para
adquirirmos experiência e nos aprimorarmos dia a dia, à medida que vai chegando
a hora de dizer adeus a ele, mundo, vamos perdendo a vitalidade, a força, a
vontade de querer fazer a pergunta que, agora, no fim da vida, sabemos,
tínhamos na alma, mas ela, a esperança, nunca permitiu que fizéssemos: para
quê?
Sim!
deus, vida, pai, mãe ou quem quer que queira nos escutar: para que, afinal?
Tal
qual nossos famigerados grãozinhos constitutivos, as perguntinhas
inconvenientes vão se amontoando, amontoando escorregadias dentro de nós, feito
umas folhas que de início são incorpóreas e diáfanas e branquinhas e puras e
com a idade — nossa idade — passam a ganhar não só massa e consistência, mas
também uns arabescos que são ora coloridos, ora acinzentados. Esses arabescos,
não importa que matiz tenham, são sempre sem sentido e não parecem guardar uma
resposta. O caminho à frente é, paradoxo dos paradoxos, inexistente e
inexorável. Não podemos parar, não sabemos voltar (para onde voltaríamos?). Aos
nossos olhinhos embotados de curiosidade pelos fenômenos da vida se descortina
panoramicamente nosso eterno beco sem saída.
Um
dia qualquer — um dia perdido no vale recoberto de névoa, aquele vale de onde
partimos para galgar nossa montanha sagrada que é nosso passado, vale cuja
profundidade já não conhecemos, cuja localização já não sabemos, cuja penumbra
e ar turvo nos causam certo enjôo, esfacelando nossa curiosidade quanto ao que
oculta sob as nuvens impenetráveis, embora saibamos dolorosamente bem que ele
está lá, cada vez mais concreto, cada dia mais negro, cada noite mais
insondável e, quanto mais negro fica, maior é a pressa com que queremos nos
afastar dele e esquecer, pois bem, um dia qualquer percebemos, sem saber
exatamente como, que a pilha de perguntas irrespondidas terminou por compor —
a, finalmente! — uma montanha: a montanha sonhada das nossas experiências.
Embora
seja mais alta que as nuvens e maior do que nossos olhos possam abarcar,
subimos e descemos magicamente a montanha das nossas experiências a cada
segundo quando nos damos por adultos — magicamente porque fomos nós que a
criamos a partir do nada, por milagre, usando apenas nossa condição de filhos
desse “algo maior” de que é feito o universo, que nos conformamos humildes a
vencer com o que deus nos facultou. Afinal, temos a prova: vivenciamos o
milagre do nosso próprio nascimento. Quem será tolo o bastante para negar que
se trata dum milagre? Não importa se você é crente ou agnóstico ou poeta, basta
olhar em volta para se convencer de que é testemunha ocular duma sucessão
infindável de milagres. Você é um milagre. As invenções que somos obrigados a
engendrar para subsistir nos afastam do que pensamos de fato e sufoca nosso
pré-pensamento primitivo infantil.
Quem
sabe nasçamos com uns conceitos já mais ou menos formados, embriões de
pensamento, conscientes ou não — os explicadores, gente como Klein e Freud, nos
apontaram algumas direções —, mas somos incapazes de materializá-lo porque
ainda não temos palavras. Dentro de você está o conteúdo mas você não dispõe de
meios de alcançá-lo ou de lidar com ele. Você sequer sabe que ele existe, pois
esse conhecimento só lhe seria conferido pelas palavras. Por isso, elas, as palavras,
pouco podem para iluminar mistérios alimentados pela nossa angústia, enigmas
que inventamos simplesmente para lhes dar um nome e assim segregá-los em algum
canto da cabeça para que não perturbem nosso dia-a-dia. Sobretudo, vivemos em
nome da clareza. Você pode dar a seus enigmas nomes tais como metafísica,
religião, deus, amor, vício, escravidão do prazer, o escambau. Para mim, é o
mirante que nos coube acidentalmente a cada um de nós e do qual olhamos
satisfeitos nosso horizonte pensando enxergá-lo e, pior, compreendê-lo.
Poderíamos
talvez apreciar o horizonte que nos coube neste mundo se admitíssemos que
estamos não em algum ponto nas alturas acima das nuvens ao nível de pássaros,
aviões e anjos e sim numa masmorra escura em que nos trancamos e da qual somos
o carcereiro.
Afinal,
quem disse que nascemos para contemplar as lonjuras?
Ninguém,
talvez. Ninguém nos disse que nascemos para espalhar a bondade ou fruir a
beleza ou qualquer outro mito que a civilização nos entuchou nos miolos. Como
bons fantasistas e especuladores que somos, deduzimos. É difícil aceitar que,
como gostam de dizer os que se dizem religiosos, a “jornada” humana na Terra
seja vã. Daí, concluímos forçosamente que estamos aqui por um desígnio. Mesmo
que não seja divino — hoje em dia mais e mais pessoas desistem de crer na
existência de deus, por uma cacetada de razões, que incluem desde a importância
cada dia mais massacrante da tecnologia em nossas vidinhas até a obsolescência
de conceitos tais como mérito, excelência, disciplina, hierarquia, autoridade e
todos aqueles velhos valores que a molecada de hoje considera uma excrescência
da vida em sociedade —, mas desígnio mesmo assim. Nos recusamos a admitir que a
existência humana seja só isso. Pombas, tem de haver uma razão maior por trás
dessa merda. Me responda, meu deus, mesmo que você não exista, afinal: para que
tamanho desperdício de vidas? Acaba aqui? Vimos e vamos assim, a troco de nada?
Somos
fracotes demais para confrontar de cara esse vazio. Cedo ou tarde temos de optar
entre o boteco, o templo e uma obsessão neurótica qualquer. Raros são os
capazes de tomar uma quarta via menos inócua ou destrutiva.
Na
nossa infância, nas primeiras excursões pela consciência de nós mesmos, logo
nos damos conta do quanto somos fracos. Sacamos praticamente de cara que não
passamos de vermezinhos destituídos de defesas eficazes contra outros espécimes
da raça, contra fenômenos da natureza, contra fantasmas egressos do lado escuro
da mente. A percepção dessa fragilidade é por demais intolerável. E somos, sim,
dotados de armas, embora tampouco saibamos disso. Nossa maior arma é nos
enganar. Para cada fantasma que nos ataca tão solertemente, criamos um
contrafantasma. Antes mesmo de saber se seríamos ou não capazes de botar o
bicho para correr com nossas próprias forças — ou falta delas —, antes mesmo de
saber se, afinal de contas, o fantasma existe de fato ou é apenas isso, uma
quimera, antes mesmo de saber se, caso realmente exista, ele pode ser benéfico
e não um monstro papudo determinado a nos fazer padecer duma dor inominável,
antes mesmo de saber qualquer coisa, criamos nossas fantasiazinhas. As criamos
quase que por precaução, pois somos seres essencialmente covardes. Viemos aqui
mais para sobreviver do que para viver. Já nascemos sabendo que seremos caça, e
alguém, algo lá fora, nosso caçador. A maioria de nós, guiada por essa noção de
presa/predador, logo opta por ser um eterno fugitivo. A partir daí serão as
fantasias e o instinto de sobrevivência que nos guiarão pelos nossos caminhos
ou descaminhos.
Por
isso somos mentirosos pela própria natureza. Cada uma das deformações que nós
mesmos criamos e que em cada passo que damos ao longo da vida combateremos para
que não se avultem a ponto de nos sufocar até por fim matar decorre da nossa
condição de velhacos natos. Somos, cada um de nós, uns safados.
A
hipocrisia está por trás de cada um dos nossos atos e de cada uma das desculpas
que damos a nós mesmos e aos outros para cometê-los. Isso não deveria causar
espanto algum — quando ficamos adultos, todos, cínicos ou não, admitimos em
maior ou menor grau a hipocrisia que nos rege a todos. As pequeninas ações que
temos de tomar no dia-a-dia — tais como medidas de higiene pessoal,
alimentação, saúde e que tais —, nós as tomamos por razões biológicas. Agora,
as grandes decisões que determinam o rumo das nossas vidinhas e que fazem a
diferença entre o que somos e o que deixamos de ser, essas as tomamos com base
em nossa hipocrisia. Simples assim.
O
que espanta é a facilidade com que aceitamos essa vocação para o simulacro.
Olhando em volta, flagrando a competência com que cada um de nós representa um
personagem e não quem pensamos ser, sabemos em maior ou menor que a nossa
verdade — ó, suprema incoerência — é que somos todos mentirosos.
Pior:
nascemos para inventar uma verdade.
Lá
longe, naqueles anos verdes de margens plácidas e céu azul, sem nada de
experiência que servisse de luz-guia no caminho escuro à frente, uma das
primeiras luzinhas que vimos bruxulear nas cercanias com um mínimo de certeza é
que a verdade é, paradoxalmente, uma luz cegante — se fitá-la diretamente, você
não vai lucrar outra coisa senão a cegueira eterna, e esse ensinamento vem
xifopagamente associado a uma apreensão que é quase certeza: meu chapa, você
não vai ser trouxa a ponto de arriscar encarar de frente o facho de luz só para
acabar irremediavelmente sem os olhos.
É
curioso como a criança aceita tão desarmada, acriticamente, seu euzinho outro.
E como todos à volta dela se divertissem com o que chamam “fantasia”, mas que é
apenas a capacidade ainda intocada de se saber múltipla. Sim senhor, somos
múltiplos, dúbios e falsos — pior: sorrateiros, fingidos e traiçoeiros —, e o
somos até morrer. É a luta sangrenta pela subsistência que nos impõe essa
insuportável e sufocante carapaça mentirosamente unívoca que nos tornamos à
medida que lutamos para ser alguém e para ser caçador ao invés de caça.
Fazemos
parte dum circo de palhaços inventivos contra nossa própria vontade em que a
única proteção que pensamos ter é o picadeiro armado para encenar o nosso
personagem. Ele nos dá segurança e compensação. No centro do picadeiro, sob a
lona mistificadora, a grande plateia para quem damos nosso showzinho esforçado
somos nós mesmos. Se prestássemos atenção — mas não prestamos, claro, pois a
última coisa que desejamos é aprender uma boa lição — veríamos que cada uma das
pessoas sentadas nas arquibancadas é apenas uma das nossas intermináveis faces.
Temos
um talento invertido para a autoempulhação — talento que não nos é dado de
graça, claro. O preço, embora tenha um conteúdo vago e escorregadio, na
superfície da nossa consciência se traduz num nome alusivo e simples: mistério.
Agasalhamos
escondidinho bem aqui dentro um mistério por não termos opção de recusá-lo. Dia
a dia o acalentamos, alimentamos, mimamos como nosso euzinho interno secreto, a
crescer e se desenvolver tanto quanto crescemos e nos desenvolvemos nós mesmos
externamente e que igualmente cedo nos habituamos a ocultar para os outros e
para nós mesmos, tolerando que nos habite invisível, silencioso e incorpóreo.
O
hóspede, silencioso e incorpóreo que é, acaba por sumir da nossa consciência.
Me
parece que, para a maioria de nós, ele fica quietinho no seu canto, não
exigindo outros cuidados senão que o deixemos em paz, executando seu
trabalhinho sujo de nos dominar e obedecer a seus caprichos e desmandos.
Há,
porém, alguns de nós — poucos, mas há — em que, à medida que a experiência
concreta vai ocupando o que dentro de nós pensávamos ser uma gruta vazia e, sendo
vazia, nos iludíamos que bastaria deixar que se preenchesse das nossas
observações do mundo, ele, o hóspede, cedo ou tarde dá sinais de que não se
resignará a vegetar na gruta que agora, mais que obscura, começa a se tornar
sombria.
Às
vezes manifesta a intenção de se libertar. Quer ter vida autônoma, o infame!
Quem sabe, se baixarmos a guarda, trocar de lugar com o nosso confortável e
manjado eu consciente.
Se
nosso hóspede existe de fato não tem muita importância prática. O que tem é a
forma como ele escapole à nossa vigilância indolente e sobe à tona para usurpar
a imagem que fazemos de nós mesmos.
Embora
nenhum de nós goste de testemunhar a forma como nosso hóspede se manifesta nos
outros, um dos fenômenos mais intrigantes da vida é a diversidade com que ele
aflora nas diferentes pessoas.
Em
meu caso particular, a altura em que estou em minhas andanças com ele, parece
que consegui esclarecer uma dúvida — o que denominamos felicidade ou êxito ou
paz de espírito é o grau de aceitação com que cada um de nós é capaz de
coexistir com seu próprio hóspede misterioso.
Me
parece que o verdadeiro sucesso no trato com ele talvez seja não importuná-lo.
Quem sabe mais feliz seja aquele que nunca incomoda seu hóspede a ponto de este
se ver ameaçado por seu dono e decida que chegou a hora de finalmente trocarem
os papéis: agora você desce, vem habitar este subterrâneo forrado de limo
gosmento em que vivi até hoje, e eu subo para tomar seu lugar nesse seu
mundinho de faz-de-conta em que nada acontece e, quando acontece, não tem
importância alguma nem na sua vida nem na minha.
O
“cidadão normal” é a prova. Em que consiste essa prova exatamente? Consiste no
fato de que o cidadão normal, o zé-ninguém, não vê nada demais em não ver “mistérios”
na natureza — seja na sua própria ou na dos outros.
Ele
sabe — mais, está convicto — que tudo se resume a aceitar as coisas como elas
são. E aqui nosso personagem muda novamente de nome, passando de hóspede
misterioso, sensasãozinha incômoda que nunca é serenamente aceita, a hóspede
intocável.
Pois
— deve estar bastante claro agora — o próprio nome “mistério” não vai bem com
paz de espírito ou qualquer outro estado em que não nos vejamos obrigados a
aceitar o desconforto como natural. Mistério clama por ser desvendado. Projeta
uma suspeição permanente no caminho à nossa frente e um desconforto quanto aos
passos que já demos. Você sabe, é mortificante ficar o tempo todo imaginando
que você deu os passos que lhe cabiam dar na vida, mas não saber se foram os
passos certos. Mistério evoca ignorância, trevas do desconhecido, e como tal
requer que fiquemos em busca constante duma luz — senão cabal, uma que pelo
menos sinalize para os outros que estamos aqui e que, afinal, não somos o
bocozinho inútil que eles imaginam que somos.
O
pior no nome “mistério” é admitirmos que mantemos em algum lugar algo sobre que
não temos controle.
Aquilo
com que escritores se veem às voltas quando pensam ter posto o dedo na ferida
talvez seja que nomes dão a essa dimensão intangível e de que forma lidam com
ela.
Freud
parece ter deslindado boa parte dos becos sem saída em que fingimos viajar
livres, mas a psicanálise pouco vale como ferramenta contra a dor para a
humanidade em geral — para quem é tão inútil quanto a arte em solucionar por
pouco que seja a insuportável catástrofe que é o vale de lágrimas de 90% dos
viventes neste insolúvel planeta.
Até
aqui, o conceito de deus é imbatível.
Deus
salva porque não faz perguntas. É um ralo por onde escorrem todos os rios de
fúria e ressentimento que não temos a capacidade de represar.
Nós
seres humanos vivemos e matamos em nome do nosso mistério. Em geral respondemos
a ele tentando sobressair à maioria dos viventes deste purgatório tão mal
decorado e mobiliado em que tão penosamente nos arrastamos sem rumo, zonzos,
implorando afeto, afeição, amor, comiseração, complacência ao primeiro que
aparecer na nossa frente. Os mais felizardos logramos encontrar um pobre-diabo
tão carente de afeto feito nós e terminamos por nos acasalar para que a espécie
tenha seguimento. É a nossa sina biológica. Até mesmo ao mais feioso,
asqueroso, sujo e torpe dos homens e mulheres deste planeta é dada a graça
divina de encontrar seu par para desempenhar seu mister fisiológico. De minha
parte, tive o privilégio de não nascer e/ou pretender ser homossexual. Já me
bastam todos esses probleminhas que me atazanam ao ponto da doidice. Mas bichas
e sapatos têm uma vantagem sobre nós héteros: a sina da procriação é um
tormento — do qual não temos a mínima ideia de como escapar.
Fracotes
que somos, não suportamos ser iguais ao irmão, ao vizinho, ao colega. Não
suportamos que eles nos vejam tão débeis e indefesos quanto eles próprios são.
Para ludibriar nossa autopercepção de fraqueza, nos imbuímos duma missão — que,
para o ser humano “sensato” e “modesto” médio, se resume em ganhar grana.
Quanto mais, melhor. Se ganharmos o suficiente para nos distanciarmos do irmão,
vizinho ou colega, ótimo. Se ganharmos o bastante para humilhá-los,
ensinando-os quem é que manda no pedaço, melhor ainda. Dentre esses, alguns há
não tão modestos e sensatos que têm ganas de trucidar a concorrência. Dizem por
aí que não deixa de ser uma opção.
Fora
desse esquema manjado, há o poeta, ou artista, ou qualquer que seja o nome que
se queira dar a quem não seja mentecapto e não dedique a vida e a morte a
ganhar grana, comer a mulher do amigo ou se eleger político para roubar no
atacado e trucidar em genocídios à la stálin e adolf.
Poeta
é aquele que, por várias razões que vão além destas mal-traçadas, consegue
manter seu hóspede imune aos ataques da consciência pragmática. Quando é um bom
poeta — no sentido de que expressa o que deveras sente ao invés de remedar
sacadas alheias —, o que acontece é que ele está baixando a guarda para aquele
habitante interior que, exatamente por se ter preservado do contato infeccioso
com o mundo concreto e da lida massacrante por grana, sexo, prestígio e
quejandos, quando se manifesta, diz algo primordial, estonteantemente
primordial, que a nós outros, que, embora já tenhamos estrangulado
irremediavelmente nosso euzinho secreto, nos traga na voz da poesia ecos dum
mundo que, sim, agora sabemos, vagamente mas sabemos, um dia habitamos e que
reconhecemos como nosso ninho minimamente aconchegante neste manicômio desolador
em que nos puseram totalmente contra nossa vontade.