No segundo ano da faculdade, mais ou
menos oito anos antes, ou três depois, Naiana já pressentia um esquisito quê no
movimento conhecido como pós-feminismo. Era incapaz de fugir à desconfiança de
que havia algo errado com algumas de suas colegas. Deixara o emprego no
hospital da Vila, doara todos os CDs do Nirvana e do Taiguara, dera um pé em V.,
uma mineira que vinha namorando havia seis meses, demasiado subssexualizada
para seu gosto, e passara a se dedicar integralmente ao novo trabalho como
garçonete do KingBurger na Vila Nova Cachoeirinha.
Irineu era um
sujeito entre a casa dos vinte e o sobrado dos trinta – desses camaradas mais
ou menos singulares que não se pode chamar de rapaz por já estar demasiadamente
maduro, nem de homem, por ainda guardar uns traços gaiatos. Daí que todos os
que não o conheciam pelo nome pensavam nele simplesmente como sujeito. E nas
raras vezes em que se achavam no direito ou na obrigação de se dirigir a ele, o
chamavam de chefe, capitão, amigo, companheiro, mestre e/ou mermão.
Jorge Manuel
acaba de chegar das férias. Saiu em meado de abril e está voltando, voltando em
plena sexta-feira. Queria ter ido pro Rio, claro, mas Isileine preferiu Campos
do Jordão. E fim de papo. Para Jorge Manuel não é tão importante fazer valer a
palavra do homem no relacionamento a dois. Por ser um sujeito sensato, sempre
deixa que Isileine tome as decisões. Se para ela faz diferença, tudo bem. E
para Jorge Manuel, apático em tudo que diz respeito à sua vida pessoal, Rio e
Campos do Jordão são a mesma porcaria.
Ainda no dia anterior Naiana tivera a
surpreendente ideia de ver na Wikipedia o que diziam da Vila Nova Cachoeirinha,
o lugar onde morava fazia apenas dois anos, e se esbaldara de rir. O texto da
W. começava assim: “No bairro é possível encontrar um grande centro comercial, terminal de
Ônibus (em
maiúscula, zig), hospital geral,
maternidade, cemitério, centro cultural, clínicas particulares e escolas
públicas e privadas”. Naiana, sempre perfeccionista – razão mesma pela qual
fora escolhida a auxiliar de enfermagem modelo do seu andar por quatro vezes
seguidas, antes de pedir a conta, obviamente – e não se conformava com esse
tipo de displicência e piada involuntária. Escolas
públicas e privadas, Deus do Céu.
Irineu era um
sujeito 1) comum, 2) normal e 3) representativo da maioria, que se orgulhava de
ir levando sua vidinha no 1) sossego, na 2) maciota e na 3) boa, sempre sob,
como já deve estar claro a esta baixa altura, a égide triádica: 1) inteligente
o bastante para levar a cabo as tarefas comezinhas do dia-a-dia mas longe de
poder considerar-se um crânio, desses que os parentes correm a glorificar de
“precoce”, que igualmente cedo já mostram irresistível vocação para 1) médico,
2) engenheiro ou 3) advogado, as três profissões que nove entre dez guris de QI
agudo juram querer ser quando crescerem, 2) embora suficientemente sensato para
ter sacado logo na adolescência que só os bravos vencem, porém 3)
intelectualmente mais lerdo e confuso do que seria bom pra sua própria tosse.
Sabe, algo
vagamente, que um é praia, outro, montanha. Não gosta nem de um, nem de outro.
Nem do campo. Nem da cidade. Nem de merda nenhuma. Por si, passava as férias
enfiado em casa vendo tevê. Quer coisa melhor? A liberdade absoluta – e, melhor
na coisa toda – exequível – do controle remoto. A maior bugiganga já inventada
na história da humanidade. Tu muda pro canal que quiser à hora que quiser. E
não tem consequências. O mundo não acaba. A montanha não desmorona. O mar não
inunda a praia. Os búfalos não te perseguem pelo campo a fim de enfiar um
chifre no teu rabo. O único problema é deixar no canal que a Isileine quer. Mas
em geral os gostos de ambos combinam. Como sempre, novela. Que é a mesma desde
que se conhece por gente. Os atores e as atrizes, os mesmos. As estórias, as
mesmas. No mesmo canal. Ai que delícia de mundinho previsível.
Embora Naiana se achasse plenamente feliz
na Vila, não fora à toa que escolhera a Casa Verde para frequentar sua academia
de ginástica. E fizera tal escolha por duas razões: a) a Casa Verde é a
subprefeitura à qual a Vila pertence e b) quando sua sessão de Smart Fit
acabava às 9 e 20 da noite, Naiana curtia sair à calçada e brincar de moradora
de rua, hesitando fingidamente se tomava o rumo de Santana, Lausane Paulista,
Tucuruvi ou mesmo o terminal Princesa Isabel, pois, a partir daquele ponto,
quem quer que se encontrasse na Casa Verde dispunha de fácil acesso a toda a
Zona Norte e ao próprio centro da Capital paulista! (Pois é.)
Nesse
sentido, ou seja, em termos de inteligência, Irineu era tão ordinário – na
acepção mais ampla da palavra, não no sentido pejorativo de 1) canalha, 2)
cafajeste ou 3) pulha – e medíocre – em sentido
igualmente lato, querendo dizer mediano –, mas tão ordinário, que desde
o jardim da infância ocupava sempre uma das carteiras intermediárias da sala.
O falatório, o
mesmo. Futebol, detesta. Aqueles sujeitinhos rechonchudos falando merda no que
chamam de mesa-redonda, Deus Pai Todo Poderoso, cada um daqueles carinhas podia
ter um câncer letal no reto, desses que o nego desanda a pingar sangue pelo rabo
até morrer. Às vezes até curte um desenho. Do Pica-Pau. Desse, gosta desde
criança. O pica-pau sacaneando o urubu. Nascido pra ferrar (os outros). Eis o
cerne da questão. E quando ele e a Isileine não combinam os gostos, tanto faz.
Tevê é só merda mesmo.
Não que Naiana tivesse vocação para o
esporte. Nem mesmo podia se considerar fã ardorosa da malhação. Só resolvera
frequentar a academia, onde se matriculara duas semanas e meia antes, por não
suportar mais que os caminhoneiros que transportavam materiais de construção
civil para São Bernardo ou traziam adubo de Santo André, ao avistarem-na na
calçada do comecinho da av. Pompéia, reduziam a velocidade, enfiavam a cabeça
fora da janela e estrebuchavam: ô baleia
obesa! como se baleias pudessem ser esguias!
Irineu tinha
vários motivos para não sentar-se nem no fundo nem na frente da classe, todos
eles absolutamente inconscientes, soterrados bem lá embaixo na gruta enevoada e
úmida sob pensamentos a) desconexos, b) perturbados e c) labirínticos – e d) pesados
como se fossem leitões prontos para o abate – que não raro lhe atropelavam a
atenção, fazendo dele um rapazola de i) olhar perdido e ii) espírito disperso, iii)
alheio aos próprios motivos e, portanto, sofrendo dolorosamente como sofrem
todos os inconscientes do próprio sofrimento.
Jorge Manuel
passa pela porta da agência e respira fundo. Putz, que bom estar de volta.
Espera alguns segundos enquanto uma névoa de evocaçõeszinhas estranhas se
dissipa da frente dos olhos. Quando acha que está confortável, atina com o
presente e reconecta a vista. Igualzinho um controle remoto. Lá está sua velha
mesinha de todos os dias, encardida, uma mancha desbotada de suor no centro
onde seus braços ficam repousados, atulhada de papéis de tudo que é tamanho, de
tudo que é cor, esperando. A papelada espera desde que se conhece por gente. Ri
no íntimo. Parece até que a mesa veio assim de fábrica. Eis a sua herança.
Porém,
antes de abordar a vida atual de Naiana, seria conveniente explicar, mesmo que
brevemente, algumas das razões que tinham levado a moça à situação aquela. Como
se insinuou lá no comecinho, Naiana nutria, desde pequena, um sonho igualmente
pequeno – que, com o passar dos anos, foi se agigantando como... Bem, deixemos no
ar, por enquanto, a forma como o sonho da bichinha crescera até ficar balofo
como a própria.
Na classe, Irineu
não se sentava no fundo porque ali ficava a turma dos atlasados, como os
próprios curtiam se autodepreciar, numa atitude assaz característica de gente
que só come sopa pra não ter de mastigar. Para Irineu, não passavam de párias
que não queriam saber de estudar nem levar nada na vida a sério.
Antes dele a
mesa pertencia a um matuto chamado Ricardo. Não, está enganado. Era Sebastião.
Ou Nelson. Bah, que se estrepe o nome do babaca. O Sebastião, Nelson ou Ricardo
também herdou sua mesa com papelada de fábrica. Dum sujeito de quem o N, o R ou
o S igualmente não lembrava o nome. Jorge Manuel sente uma fisgadinha na boca
do estômago. Um dia também chegará sua vez de deixar herança. Tomara que o
herdeiro pelo menos lembre de seu nome. Uma ideia maluca lhe cruza a cabeça. E
se riscasse na parte frontal da primeira gaveta JORGE MANUEL ESTEVE AQUI?
Cabe explicar,
antes de tudo, qual era o objeto de tal sonho: aquela brasileira que fora
batizada com o nome de Naiana, que se achava ainda na flor da idade, de
estatura média e bastante alentada em peso mas calçando sapatos e sandálias tamanho
quarenta e dois, desde criança fantasiava tornar-se feminista. Vê-se, portanto,
que a “mediocridade” de Naiana incluía até mesmo a dimensão do, por assim
dizer, espírito. Afinal, praticamente todas suas conterrâneas pelo menos uma
vez em suas vidas tinham desejado acabar com a hegemonia masculina no mundo.
Eram uns
moleques, embora precoces – uma precocidade de que Irineu queria distância. Uns
revoltados. Aos nove ou dez anos já puxavam fumo e – para a suprema perturbação
do nosso garoto nem remotamente prodígio –, proferiam palavrões de boca cheia
mesmo quando estavam na rua ou na frente dos professores ou do diretor. Quando tal
acontecia, Irineu corava feito um tomate verde maturado subitamente.
Dum lado de sua
mesa trabalha a Marilda, subcontadora comissionada transferida temporariamente
da matriz. Lá está ela. Marilda. Feiosa, magricela, sem-graça como sempre. Uma
vez, voltando do almoço, encontrou um papelzinho dobrado debaixo da papelada.
Desdobrou, leu, franziu o cenho enquanto perscrutava a grande sala apinhada de
bancários e escrivaninhas e gabinetes. Quem poderia ter sido? Já tinha comido
todas as gostosas do departamento. Seria homem? Nããão, nenhum se atreveria.
A
esta altura seria conveniente mencionar que esta singela narrativa se passa nos
anos mil, novecentos e sessenta, o que obviamente nos remete ao auge do citado feminismo,
liderado pela nata e morta virgem Betty Friedan, autora de vários livros, o
mais famoso sendo A mística feminina. Sem que a esforçada Naiana nos
ouça e como as mulheres brasileiras desconfiaram desde o começo e alguns anos
depois vieram a ter certeza, o feminismo acabou se virando contra as próprias bruxas
que o criaram e muitas delas morreram solitárias e esquecidas em asilos gerenciados
por homens galhardamente ciosos e cientes da superioridade do macho.
Os atlasados incluíam marmanjões que aos
catorze anos ainda marcavam passo no segundo ano, néscios indolentes, debiloides
que se autoalimentavam do próprio ridículo, risivelmente agigantados perto dos
garotos normais. E havia também duas ou nove meninas de que os pensamentos de
Irineu teimavam em fugir feito o diabo daquela coisa de que os diabos costumam
fugir.
Todos sabiam
que Jorge Manuel era muito macho. E podia perder facilmente as estribeiras ante
uma bicha atrevidinha que não soubesse seu lugar. Ao abaixar a cabeça para
reler o bilhete e tentar identificar a caligrafia, seus olhos resvalaram
acidentalmente para o lado da Marilda. Ela estava de olhar grudado nele,
sobrancelhas arregaladas, uma careta de expectativa riscada na carinha feiosa.
Jorge Manuel engoliu em seco. Sentiu os lábios se crisparem.
Se esta
história não se destinasse a ser sucinta, se poderia até mesmo discorrer um
pouco mais sobre a igualmente desastrosa ministração do ensino superior aos
seres do sexo frágil. Como hoje é do conhecimento público, a maioria das
mulheres desempenharia muito melhor seu papel de procriadoras se tivéssemos
limitado sua literalidade aos fundamentos da leitura e da escrita, apenas o
suficiente para poderem se virar no supermercado, na cozinha e na hora de ligar
a tevê.
Não pudera
refletir com mais tranquilidade sobre as ditas antes de chegar à idade adulta,
quando descobrira-se capaz de rememorar espontaneamente o passado e determinar
– ou tentar, ao menos – o que a vida fizera dele afinal. Para seu assombro,
concluíra que lhe provocavam não apenas a perturbação mais ou menos esperada,
mas também um horror confusamente maléfico.
Pensou uns dois
ou três segundos, amassou o papel na palma da mão, fez uma bolota e a
arremessou na cara da moça. As feições de Marilda de repente pareceram prestes
a derreter, escorrendo sob a lei da humilhação. Duas lágrimas rolaram pelas bochechas
chupadas. Era só o que me faltava, Jorge Manuel escarneceu mentalmente. Quem
gosta de canhão é a artilharia do Exército.
Se, todavia,
quisermos ser minimamente francos, devemos admitir que assim é que é bom.
Naturalmente não vamos negar que parte da jovial provocação acima tem o
propósito de sacudir um pouco de poeira, i.e., todos sabemos que o fardo é
pesado tanto para as mulheres quanto para os homens (e, já que entramos no
assunto, sobretudo se um desses homens for branco, baixinho, barrigudo e
confuso e se pelar de paúra de mulheres feito o nosso amigo Irineu).
Agora,
protegido, pelo menos supostamente, tanto pela longa distância do tempo que o
separava dos anos de escola primária quanto pela ilusória segurança que sentem
os adultos que acreditam comandar o próprio destino – segurança da qual
provavelmente não há como safar-se e daí tantos adultos cometerem tantas
asneiras quase o tempo todo – , Irineu dava-se conta de que aquelas meninas
tinham o sexo à flor da pele e por isso mesmo haviam se tornado traiçoeiras e
endemoniadas ninfas prontas para arrastar homens que se deixam entregar como presas
fáceis da sedução feminina para a lascívia e daí para a escravidão, primeiro,
sexual, depois, afetiva, então, financeira, por fim, total.
Do outro lado
fica o Caio Roberto. Jorge Manuel estranha não ver o Caio Roberto em seu posto.
O Caio Roberto jamais faltou um dia sequer. Só pode ser doença ou morte na
família. O Caio Roberto é técnico em contas corporativas. O Caio Roberto
praticamente nunca se levanta pra nada, nem cafezinho. Só sai para ir ao banheiro
no meio da manhã e no meio da tarde e retorna correndo. O mijo mais rápido do
andar térreo. O Caio Roberto é só um boboca, como tantos outros bobocas da
seção. Deve trabalhar no banco desde a fundação, umas quinze décadas atrás.
Enquanto isso o
tempo passava, hehehe, já indo longe o assassinato dos Kennedys, a invenção da
minissaia, o top hit de I want to hold your hand e as calças
boca-de-sino, e certas coisas e determinados acontecimentos têm menos
resistência à passagem do senhor da razão, ou seja, hoje em dia as mulheres
enfrentam dois grandes problemas, a saber: um, dispõem duma infinidade de
opções profissionais no mercado de trabalho (tudo bem, reconhecemos que isso
soa mais como vantagem que como problema, mas peraí que já explicamos) e dois,
a maioria das mulheres (e, falando francamente, um número não lá muito pequeno
de homens) ainda não estão devidamente preparadas para tomar uma decisão que se
revele a melhor para elas mesmas.
Nas nebulosas,
recorrentes fantasias que, qual sonâmbulo, dedicava às adolescentes, Irineu
via-se vestido de anjinho, túnica branca e asinhas penduradas feito leques às
costas, torturado por uma besta cujo rosto assumia ora as feições duma, ora as
de outra das garotas, e em cuja testa, ladeada por dois formidáveis chifres
verde-prateados, estava escrito, com a esmerada letra da professora de
português, “VOLÚPIA DA CARNE!!!”, assim mesmo, com quinze dúzias de condenatórios
pontos de exclamação.
Uma vez veio
chegando de mansinho como quem não queria nada, puxando um assunto sem pé nem
cabeça, olhando de esguelha, dissimulando. No começo Jorge Manuel estranhou,
então começou a se divertir com o embaraço do outro. Quis ver até onde ia o
joguinho. O Caio Roberto comentou o jogo de ontem do Coringão com o Quinze,
perguntou se tinha assistido. Jorge Manuel fez que não, sem se dar o trabalho
de explicar ou se estender. O Caio Roberto não se fez de rogado. Gente como o Caio
Roberto nunca se manca, né? O Caio Roberto lembra um camundongo. a) Assustadiço,
b) apressado, c) esquivo. Foi desfiando uns assuntos sem nexo, querendo mostrar
que não se perturbara com a frieza de Jorge Manuel mas indisfaçavelmente
nervoso.
Além disso,
muitas sequer desconfiam que o maior número de opções que têm hoje deveria ser
encarado como privilégio, não desvantagem. Infelizmente, a maior parte
das “feministas” autocentradas tendem a ignorar esse fato e, ousamos dizer, pela
mais cínica conveniência. E vamos ainda mais longe dois pontos, muitas nem
sabem que foram criadas, biológica e financeiramente, para ser dependentes e
não felizes e confiantes proprietárias de seus próprios mundos.
Certo dia, não
muito tempo atrás, estava nosso Irineu sentado diante da televisão quando numa
propaganda qualquer apareceu uma caçarola com pedaços de frango e molho de
tomate e de repente ciscou-lhe fugazmente a imaginação uma cena em que o pobre anti-herói
jazia nos braços da Volúpia da Carne, a testa hirta de nojo mas os lábios
entreabertos num esgar frouxo, enquanto a Besta, soltando da boca uma língua 1)
carnuda, 2) melequenta e ao mesmo tempo 3) esguia e 4) serpentiforme,
lambia-lhe do corpo uma gosma avermelhada do que parecia ser sangue menstrual
misturado a líquido amniótico.
Se Jorge Manuel
batesse o pé, tinha certeza de que o Caio Roberto fugiria em retirada feito um coelhinho.
Riu internamente imaginando a cena. Chegou a erguer uma perna mas resolveu
poupar o bobalhão. Era capaz de ter um infarte. Estender a zoada com o sujeito
era mais divertido. Então o semblante do Caio Roberto fechou e seu tom de voz
caiu quase a um cochicho. As palavras saíam atropeladas de seus lábios finos.
Jorge Manuel notou que a língua do cara mais atrapalhava que ajudava. Foi
preciso erguer as duas mãos no ar, pedindo calma. O Caio Roberto respirou
fundo, procurando se recompor. Jorge Manuel fez o mesmo gesto repetidamente até
o Caio Roberto dar sinais de que estava mais tranquilo.
Eram esses
alguns dos pensamentos que batiam cabeça pelos neurônios elétricos de Naiana
enquanto ela, por recomendação do professor de musculação Renatinho, ia
carcando fumo no Leg Press. Antes, porém, cabe esclarecer que, depois de anos
sendo apupada de baleia obesa pelos
caminhoneiros que passavam pelas avenidas da Vila, nossa amiga resolvera entrar
naquela operação que hoje em dia os gordos fazem e os médicos removeram mais da
metade do estômago da coitada. E num abrir e fechar de olhos Naiana se
transformara no que se costuma tachar por aí de “mulherão”. Com a redução da adiposidade, seu rosto ficou razoavelmente
atraente e com o tempo Naiana até aprendeu a desenvolver um quê de sensualidade,
logrando moldar um corpinho aliado a um belo bundão e encimado por seios
generosos. Mas tinha um porém – um porenzinho chato que a atazanava desde a
adolescência: as pernas. Eram finas. Quase tíbias, com perdão do trocadilho.
Hoje, em alguns
raros momentos em que a vontade de viver abria caminho à força entre as sombras
pétreas que borravam os outros sólidos riscos que lhe separavam a consciência
da fantasia, Irineu, relutantemente, aceitava no íntimo que, sim, caíra de
loucos amores por cada uma daquelas púberes deusas e, mais, viveria apaixonado
por todas elas até o último dia de sua vida.
Jorge Manuel
perguntou que é que aconteceu, procurando demonstrar interesse genuíno. O Caio
Roberto estufou o peito, exalou o ar e explicou que tinha se metido numa
encrenca. Que encrenca? Jorge Manuel quis saber. Trocando em miúdos, o Caio
Roberto vinha subtraindo uma grana preta num esquema que envolvia uma transação
regular de compensação de cheques entre a agência e a matriz. Tem mais alguém
no lance? Jorge Manuel pergunta. O Caio Roberto fez que sim, mencionando uns
nomes da própria agência e de outras.
Naiana nunca se
olhava por inteiro no espelho do banheiro quando saía do banho. Tinha vergonha
dos gambitos. Mais que vergonha, sentia algo perturbador, indefinível, bem lá
no fundinho da alma. Que nada! sacudia a cabeça, procurando extinguir os
pensamentos turvos. Nascera pra ser feliz! E não seria com esse espírito
derrotista que chegaria lá. Lá onde, exatamente? Na meta que as naianas da vida
costumam estabelecer para si mesmas. Embora sejam poucas as que sobrevivem
depois de atingir a praia.
Ainda se
lembrava duma vez em que uma delas, a Nancy com ipsilone, durante uma aula de
geografia, fizera um suave “psiu” que lhe tomara os ouvidos e lhe gelara a
alma, e ele, atordoado, começara a olhar para os lados, procurando a origem do
chamado. Então, quando Irineu se voltou para trás, Nancy ergueu um pouco a saia
de tergal preto e abriu as pernas, revelando lá no fundo abissal e negro uma
pequena mancha diamantino que Irineu não pôde distinguir se se tratava da calcinha
ou da... da... daquilo!
Parecia óbvio
que estava ali para fazer uma sondagem, pedir uma opinião ou mesmo um conselho
ao colega. Era também óbvio que estava angustiado, para não dizer desesperado.
Decididamente, se metera numa gelada. Quando Jorge Manuel o exortou a dar mais
detalhes, o Caio Roberto voltou correndo para sua mesa. Por coincidência aquele
fora o último dia no trabalho de Jorge Manuel antes das férias e não tornara a
conversar com o Caio Roberto.
Como todos
sabem (pois todos frequentam academia hoje em dia, não frequentam?), o Leg
Press requer enorme esforço e força de vontade do praticante, exatamente por
mexer com a parte anterior das pernas e as panturrilhas. Segundo Renatinho,
Naiana precisaria esmerilar no Leg Press pelo menos duas horas por dia se de
fato quisesse desenvolver pernões à la Sabrina Sato (seu maior sonho secreto,
diga-se; todo mundo e o Sílvio Santos querem ter os pernões da Sabrina Sato).
Engraçado,
pensava hoje Irineu, como essa lembrança – que parecia pertencer a outra pessoa
a primeira vez que emergira das águas secas do esquecimento – se cristalizava
em seu cérebro sem que suspeitasse. Sonhador, lamentava não ter maior controle
sobre os próprios pensamentos, como se fizesse grande diferença. Mesmo sem
jamais ter ouvido falar em Proust, seu maior sonho, igualmente secreto, quiçá
até mesmo inconsciente, era poder comandar a memória assim como controlamos
nosso sistema nervoso simpático. Pois foi exatamente essa a façanha perpetrada
por Marcel, entre algumas outras igualmente notáveis. Será, ousaria arriscar
Irineu, não fosse tão atrozmente ignorante, será que no fundo somos todos
iguais?
Jorge Manuel
estica os braços para os lados e se espreguiça. É bom estar de volta. Dá um
oizinho para a Marilda, que mal ergue a cabeça para saudá-lo. E o Caio Roberto? pergunta enquanto joga
a valise sobre a mesa. Preso, responde a Marilda, ainda às voltas com sua
papelada. Jorge Manuel abana a cabeça no gesto típico de paciência. Dá de
ombros. Mexe e remexe na pilha de folhas em sua mesa. Apanha e passa os olhos
sobre uma ou duas e torna a largar as mesmas.
Sempre que
Naiana, montada no aparelho, dava sinais de esmorecer, Renatinho apelava para
seu truquezinho infalível, exclamando, Santa,
lembre-se de que você ainda vai usar uma calça legging preta um dia! Tiro
e, com perdão da mira, queda. Malha!
Malha! Malha! Incentivava o professor de musculação, batendo palmas. Naiana
obedecia, focando os pensamentos nos pernões da Sabrina Sato, se vendo a
desfilar pela Vila Nova Cachoeirinha de legging preta, ai que chiquetita! Estica, dobra, flexiona, puxa, empurra,
dá-lhe mulher! Faz de conta que a plataforma é o machismo da sociedade
brasileira e seus pés, o feminismo. Não! a Plataforma
do Feminismo! Boa! Olha só como as coisas acontecem quando a gente se
inspira...
Embora nutrisse
algum desprezo pelos atlasados que
optavam por se amontar no fundo da classe para fugir às responsabilidades como se tentassem driblar a própria vida, Irineu também evitava
sentar-se na frente, pois era ali o habitat natural dos... cus de ferro. Cultivava sentimentos conflitantes em relação aos CDFs. Embora não soubesse.
Pois sentimentos conflitantes em geral são de difícil reconhecimento. E outra
coisa, igualmente importante, que Irineu desconhecia era que a natureza nos
dotou a nós pobres seres humanos com parquíssimos recursos de identificação de
sentimentos.
Gosta de se
referir às coisas desse jeito. “O mesmo”, “a mesma”, facilita a vida. Outra
palavra predileta sua é etc. Resume uma porrada de coisas em três letrinhas sem
graça. Às vezes queria que tudo pudesse ser sintetizado assim. Viraria pra
Isileine e diria etc e ela responderia o mesmo e estariam conversados. Bem que
podia, não podia? Quando quisesse dormir ou cagar ou sumir etc, pronto. Pena
que é apenas mais uma das suas inefáveis fantasias. Joga a valise sobre a mesma
e o Bruno vira a respectiva – outra palavrinha em que se amarra – cabeça.
– Bom dia – o
Bruno diz, tentando sorrir. – Como é que foram as férias? – Nem bem pergunta,
volta a fuçar em sua papelada.
Naqueles tempos
em que decidira que um dia haveria de ostentar pernas bem torneadas pelas ruas
do bairro, dois ou três anos antes, Naiana ainda não sabia direito como resolver
a parada. Fazer a redução de estômago e perder as arrobas de lipídios até que
fora relativamente rápido, embora extremamente traumático. E padecera uma
agonia danada nas semanas anteriores à cirurgia, suando frio e sentindo a boca
seca quando um conhecido lhe contava que fulana tinha morrido na mesa de
operação ou beltrana esticara as botas de camurça nos dias subsequentes ao
procedimento.
E de tal fato
derivava uma terceira verdade que nosso herói também ignorava: era exatamente
desse nosso defeito da natureza que provinha o alto número de psicólogas que
atualmente atacam as metrópoles brasileiras aos enxames, alugando salas de
consulta em clínicas nos chamados bairros “nobres” só para se acharem no olho da rua seis meses depois, visto que quase ninguém está interessado no autoconhecimento
(o que provavelmente será ainda outro defeito deixado em nosso projeto pela mãe
natureza).
Jorge Manuel
não liga. É melhor assim. Se levasse a pergunta a sério teria de arrumar uma
resposta convincente. E não tem imaginação bastante para isso. Sequer sabe
inventar uma boa desculpa para dar a Isileine quando se atrasa nas esporádicas
tardes em que deixa a Ivete lhe executar uma chupeta no banheiro dos homens.
Tem dia que a Isileine quer saber por que o atraso e ele se enrola todo e
balbucia e fica vermelho e a Isileine perde a paciência e vai fazer outra coisa
sem nem notar o constrangimento. Jorge Manuel então suspira de alívio e agradece a
deus por ter uma esposa que não dá a mínima pra nada e que também gostaria que
o mesmo e a mesma virassem um imenso etc.
No princípio,
Naiana pensara que bastaria acompanhar as aulas de ginástica matinais da tevê
Cultura. Tentou segui-las por uma, duas, três semanas. Até se dar conta de que
suas tíbias estavam afinando ao invés de engrossar. Então um dia, por
coincidência, fora até a agência central do Bradesco na Casa Verde e na volta
para casa, no ônibus da linha 6326, aquele todo amarelo com listras verdes,
sentou-se ao lado duma senhora que logo puxou conversa e em dois minutos ambas
já eram amigas de infância, pra cunhar uma frase original. Naiana perguntou o
nome da mulher, que respondeu Piedade.
E você, como se chama? Quando Naiana pronunciou seu nome, a companheira de
banco ergueu ligeiramente a narina esquerda, num gesto de decepção que se
apressou a disfarçar.
No dia
seguinte, na melhor parte da aula de Bioquímica, foi dado o sinal de
encerramento do período escolar e nosso dileto Irineu conteve uma exclamação de
desalento, pois era sua matéria favorita. Ainda mais que a professora Cesária
começara a discorrer sobre um dos tópicos mais empolgantes para a cabecinha
aventureira do nosso pequeno campeão, i.e., o câncer, o câncer metastático.
Irineu apanhou seu material e já se aproximava da porta da sala quando escutou
um psiu! atrás de si. Embasbacado, fingiu não dar bola, se lembrando do último –
e único em sua vida – psiu que alguém lhe endereçara. Então, outro, desta feita
insistente. O matuto se limitou a seguir adiante, apavorado ante a perspectiva
de enfrentar a endiabrada Nancy.
Jorge Manuel dá
a volta na mesma, puxa a mesma, senta e estica as mesmas, tentando relaxar, permanecendo
tenso mesmo assim. Ser bancário é foda. Puta responsabilidade. Requer
concentração permanente. O grande perigo é deixar a cabeça desembestar numa
viagem sem volta. Esse é o principal problema dos que tentam a carreira e se
frustram: a distração. Mal digitam dois algarismos no computador e o miolinho
mole deles já está nem sabem onde. Com números não se brinca. É pra isso que os
bancários existem. É pra isso que ganham o que ganham. Se qualquer um pudesse
fazer o que fazem, seu emprego não existiria, pois qualquer um poderia fazer o
que ele faz e o dono do banco não teria motivo algum para não contratar outro
em seu lugar.
Naiana comentou
então que as aulas de ginástica via tevê estavam produzindo um efeito oposto ao
que desejava. Que não sabia mais o que fazer. Que morria de vergonha de suas
perninhas de palito de fósforo. Que se sentiria realizada se um dia pudesse ir
na C&A e finalmente comprar a tão almejada calça legging preta e sair a
zanzar pela Casa Verde como esse bando de sirigaitas pernudas que tem por aí.
Tão logo encerrou seu demorado lamento, viu que os olhinhos meio foscos de
Piedade relampejavam. Naiana se afastou instintivamente da outra, temendo estar
ao lado duma petista guarulhense hidrófoba. Não é nada disso, acalmou-a
Piedade.
Então um agudíssimo
berro de voz feminina se fez ouvir, abafando o alarido dos alunos que aos
puxões e empurrões tentavam ganhar a porta e pegar o caminho de casa o mais
cedo que pudessem: IRINEEEEUUUUU! Desta vez nosso guerreiro não teve como
ignorar a intimação. Parou e fez meia-volta, dando de cara logo com ela, a
Nancy com ipsilone! Que o fitava cum estranho olhar mesclado de divertimento,
vigor, fastio, avidez, fermentação, impaciência, bestialidade, destempero e
promessas de ardentes prelúdios e decepcionantes poslúdios. Irineu, por sua
quadrúpede vez, se restringiu a arregalar os olhinhos de porquinho-da-índia.
Numa segunda reação, tentou mexer a língua, mas estava colada ao chão da boca
com araldite paturébica.
Eis por que
está empregado, e bem: sabe usar a cachola. Ao contrário da Isileine, que só
usa a buceta. E às vezes o reverso da medalha — mas essa contará em outra ocasião. Ele, não. Vê
a Grande Lógica nas coisas. Os folgados não veem lógica nenhuma em porra nenhuma
e por isso têm de levar no rabo mesmo. É o que acontece com a Isileine. E com
muitos outros que conhece. Assim funciona a Grande Lógica. Quem não enxerga que
se foda. Bota no cu legal. Não tem conversa.
E se pôs
pacientemente a explicar o que pretendia dizer com aquele olharzinho
cintilante. Segundo Piedade, as aulas de ginástica oferecidas gratuitamente
pela tevê Cultura se destinavam tão-somente a iniciantes e a quem estava apenas
a fim de fingir que malha. Ao ouvir
tão assombroso pronunciamento, Naiana não pôde reprimir um Oh! assim com ligeiros toques de exclamação, interrogação,
reticências e antegozo. Como? Fingir que malha? Nunca ouvira falar em tamanha
aberração. A que ponto certos monstros antroprométricos são capazes de chegar,
meu Deus! Piedade abanou afirmativamente a cabecinha de mico, concordando.
Iri, que é que
vai fazer hoje à noite? Os zoinhos de Irineu se arregalaram ainda mais, se
aproximando perigosamente do limite supremo da estatelação. Quem era o tal de
Iri a que a Nancy com ipsilone se referia? Cai
ficha, cai ficha, ai ficha que não cai. Tudo que Iri logrou perpetrar foi
desprender a pontinha da língua do chão da boca, quantidade ainda insuficiente
para produzir mesmo um monossílabo. Será que podia me dar umas aulinhas de
Bioquímica? Preciso tirar dez na prova, senão vou levar BOMBA! Nancy disse
assim BalBuciando os Bs com os láBios Bem aBrochados como se tivesse uma Batata
na Bocona e mesmo assim o BaBaca do Iri continuou boiando qual pato na lagoa.
Não foi à toa
que chegou aonde chegou. Entende direitinho o papel que tem a desempenhar.
Entendeu desde o primeiro dia que pisou numa agência. Mal saído da adolescência
já sentia a vocação bancário-creditícia pulsar dentro do peito feito uma
missão. Sim, nasceu predestinado. Quando botou os pés no departamento do
pessoal onde seria entrevistado para o cargo de officeboy, vislumbrou toda a
carreira que faria entre aquelas belas paredes pintadas de bege (ou seria
creme?).
Pois acredite,
minha cara. Hoje em dia tá assim de gente por aí botando banca de atleta coisa
e tal mas que na verdade tá é a fim de embromar, saca? Naiana, ainda pasma, embasbacada,
aparvalhada, assombrada, atônita, boquiaberta e estupefata, fez mecanicamente
que sim com a mandíbula e parte do queixo. Nisso, o ônibus parou num farol e Naiana, perdida em
devaneios feministo-esportivos, deixou que seus olhos brincassem pelas vitrines
das lojas do outro lado da rua, namorando uns conjuntos de moletom que estavam com 150% OFF e que causariam estranhamento se o protagonista aqui fosse bancário em vez de enfermeiro.
Depois de
aguardar vários segundos, Nancy finalmente deu um chacoalhão no ombro de Irineu
e o pobre despertou do transe. Embaraçado, pediu desculpas, se dizendo atormentado
por um maldito furúnculo numa certa região do corpo que não lhe dava paz havia
semanas e pediu que ela
repetisse o que lhe havia dito. Nancy, ainda com a batata na bocona massuda, fez
de novo a pergunta. Irineu mandou um Hã???
acompanhado assim desse monte de anzoizinhos emperiquetados, duvidando dos
próprios tímpanos. Nancy sorriu aquele sorrisão arrasa-coraçõezinhos de
moleques imberbes, pondo à mostra duas fileiras de dentões mais brancos que o
cérebro da Dilma em discurso de improviso.
Durante as
férias, naquela praia cheia de criança berrando e a baianada jogando futebol e
vendedor de milho verde e amendoim e cerveja e raspadinha de groselha e o
caralho a quatro e a Isileine deitada na esteira a seu lado tentando pegar um
bronze, teve uma experiência que classificaria de epifânica se soubesse o significado da palavra: delirou que o dono do banco adentrava
sua seção, se dirigia à mesma e agarrando-o pela mão, puxava-o dizendo, vem,
Jorge Manuel, vem que levar-te-ei para o reino dos bancários. Naquele instante
sentiu que todas suas dúvidas, se é que ainda as havia, se dirimiam por encanto.
Chegaria ao topo. Não tinha pra ninguém.
Vendo que sua
nova amiga não respondia, Piedade comentou, assim como quem não quer nada, que lera
A mística feminina. E mais de uma vez! completou, satisfeita
com a própria esperteza intrépida. Naiana não pôde acreditar nos próprios
ouvidos. Nunca conhecera alguém que tivesse lido a bíblia do feminismo. Pior:
nunca ouvira falar de alguém que tivesse lido a bíblia do feminismo! E a Betty era tão linda! desafogou, mais
para isolamento próprio que benefício da dialética interpessoal e quase teve um
treco concludente quando Piedade aquiesceu fervorosamente, arrematando que seu
sonho (secreto, claro!) era fazer uma plástica, ou várias, para se assemelhar à
intimorata Tia do Feminismo Ocidental.
Assim, ficou
combinado que Iri, com perdão do eco anafórico, iria à casa de Nancy aquela
noite para dar início às supracitadas aulas de Bioquímica. Se despediram no
portão da escola e cada um tomou seu rumo. Nosso Pequeno Futuro Mestre Dublê de
Amante começou a caminhar pela calçada imerso num profundo estado de êxtase
contemplativo unido a uma inquietação efervescente inédita em sua curta existência
de sofredor presunçoso. Apenas remota, vagamente conseguia atinar com o
verdadeiro significado daquele pacto lírico-educacional que acabara de firmar
com a aluna mais desejável – e comível – da escola. Completamente absorto numa
cornucópia de alentos maquinados pelo Id e contrademandas arremessadas ao léu pelo
Superego, Irineu seguia aos tropeções, colidindo com postes e esbarrando com transeuntes
que vinham em sentido contrário.
Nunca viu o
dono do banco em pessoa mas sabe que gostou do sujeito pelas fotografias. E os
pôsters espalhados em cada agência do banco em cada canto do país. E a atração,
isto é, a boa vontade, isto é, a admiração foi mútua. O dono não lhe disse,
repita-se. Mas pôde sacar pela foto. O homem o olhou daquele jeitão todo
especial que sempre olha das fotos, como que dizendo, macacada, sai de baixo,
abram alas pro Jorge Manuel, esse vai longe. Menino, é só ficar na tua. Tá pra
ti, rapaz! É o que vem fazendo desde aquele dia todo especial.
Sentindo-se abrasada
em sua volúpia por ver o efeito de seus medos e aspirações produzido na reação
de terceiros, Naiana não titubeou em colocar para a nova amiga uma confidência
que nunca ousaria confessar se não se sentisse abrasada em sua volúpia por ver o
efeito de seus medos e aspirações refletido num semblante alheio. Ah Piedade querida, o que me angustia é
conciliar minhas veleidades feministas com essa vontade imensa de ter os pernões daquela japa da tevê! e baixou os olhos, pendendo a cabeça, envergonhada de
sentir o que sentia. Piedade, apiedando-se da pieguice da companheira, instalou
no ombro da outra uma mão amiga, cochichando There, there, there, assim mesmo no idioma nativo da filha primogênita
do casal Obama, visto ser ela, Piedade, teacher de Inglês e estar, naquele
exato momento, se dirigindo a uma agência do Itaú para tentar descolar um empréstimo.
Seu sonho (nada secreto, diga-se), era abrir uma escolhinha a que daria o nome
de Mercy’s English School.
Cada vez mais
ensimesmado, Irineu chegou à esquina e, alheio ao farol de pedestres, que
estava fechado, avançou para atravessar a rua. E foi instantaneamente
colhido por um veículo. Mais especificamente, um ônibus. Mais especificamente
ainda, um ônibus da linha 3812, que faz o trajeto Centro-Casa Verde. O corpinho
franzino do nosso distraído Werther Paulistano foi arremessado a algumas
dezenas de metros. Os circundantes emitiram aquele Ooooh! que os circundantes tipicamente emitem em tais situações. Simbioticamente,
um círculo se criou em torno da inocente vítima de paixonite aguda.
Mas, repita-se,
não é à toa. Sorridente, inclemente, inadimplente não tem choro. Primeiro,
enfia a faca até o talo na hora de aprovar o crédito. O otário tá morrendo de
vontade de comprar a casinha em que vai morar com a esposasinha embucetadinha
cuzudinha e coisa e tal. Ou então mal vê a hora de se exibir pro cunhado no
carrão resplandecente piscando os faróis pra ele na concessionária. Se o
cunhado facilitar, passa em cima do babaca. Dá ré. Passa em cima de novo. Dá
ré. Então, quando tá ali na sua frente, mal se contendo de comichão pra sair
com a grana no bolso, o cliente faz qualquer coisa, aceita qualquer condição,
topa qualquer juro. Quando é mulher gostosa, o motel adquire foros de pré-requisito
básico. Questão de honra: mulha tesuda não sai sem pelo menos pagar um boquete.
Nem que seja rapidinho no estacionamento. O João, o manobrista, está no esquema e já arranjou um quartinho nos fundos do pátio pra ocasiões que tais.
O trânsito, que
já se arrastava quase ao ponto da imobilidade, parou de vez. Um buzinaço tomou
os ares encardidos da tarde primaveril. Motoristas botavam os pescoços pelas
janelas de seus carros, pickups, peruas, vans, jipes e congêneres tentando averiguar
as circunstâncias do acidente. Motos se precipitavam pelas calçadas para
escapar ao caos. Os passageiros nos ônibus parados se voltaram todos para a
direção do burburinho próximo à esquina. Entre os ônibus parados achava-se
aquele, da linha 6326, trajeto Centro-Casa Verde. Ah querida, vou aproveitar e descer aqui, estou pertinho do meu banco.
Piedade deu um beijinho de despedida em Naiana, e, esgueirando-se entre os
passageiros em pé, se aproximou do motorista e lhe pediu para abrir a porta, ao
que o homem, com a habitual cordialidade dos motoristas dos coletivos urbanos
nacionais, prontamente obedeceu. Naiana, por sua vez, sempre concentrada em sua
angustiante dúvida metafísica, sequer se dera conta do ocorrido na rua. Matutava
o que o professor de musculação Renatinho lhe dissera no dia anterior, i.e.,
que o melhor exercício para trabalhar a panturrilha é ficar na ponta dos pés,
retomando a posição inicial até cansar. Quando atingisse o nível avançado, ela
poderia fazer o exercício no degrau duma escada com um pé de cada vez, concentrando
todo o peso em apenas uma das pernas.
Transação
fechada, Jorge Manuel se recosta na cadeira de rodinhas estofada e pensa rindo,
não digo que número é tudo? O coió vem aqui e assume essa dívida com esse juro
na lua, que é que há de fazer? Estou apenas desempenhando minha função. O cara
é maior de idade. Por acaso botei um treisoitão na barriga dele pr’ele assinar?
Tenho culpa se a gostosinha morre com os juros mais altos da praça e ainda
engole toda a rola que couber entre suas dentaduras de biscate? Consequentemente,
foda-se.
– Como é que
foi de férias, mané?
Jorge Manuel
acorda do devaneio e olha em volta. É o Bruno, sentado na beira da mesma, rindo
pra ele e balançando uma perna cruzada sobre a outra.
Se tem uma
coisa que Jorge Manuel não tolera é que o chamem de mané. Lhe dá gana de
agarrar o cretino pelo colarinho e esfregar a cara dele no carpete verde-abacate
da seção de crédito. Mas é gana passageira. Perder a linha é coisa de otário.
– Foi tudo bem
– dissimula a raiva. – E por aqui? Tudo em paz?
– Tem uma
senhora aí no balcão querendo informações sobre crédito. Posso mandar?
– Pode.
Jorge Manuel se
apruma na cadeira e ajeita a gravata, esperando a futura cliente, que
certamente será mais uma jacu a levar um salame bem merecido no rabo. Apanha a
caneta e se debruça sobre um papel na mesma, fingindo estar entretido numa
operação bancária.
– Bom dia – uma
voz feminina diz.
Jorge Manuel
ergue o rosto. Tem à frente uma senhora de uns quarenta e poucos anos, origem
nordestina indefinida. Se põe em pé e abre seu melhor sorriso
mecânico-profissional. Estende a mão.
– Como vai a
senhora?
A mulher olha a
mão dele e, antes de apertá-la, passa a própria mão na saia limpando uma
sujeira inconveniente.
– Pode sentar,
faz favor. – Jorge Manuel indica a cadeira para a mulher.
A mulher quer
um empréstimo.
Durante a
conversa vai notando algo estranho. Não sabe o que é exatamente. Mas é algo bem
estranho. A partir dum certo momento, deixa de prestar atenção no que a dona
vai tagarelando. Não consegue tirar os olhos dela. Sente que algo inusitado bem
no fundo dele está sendo despertado. Não sabe o que é. Mas sente.
Enquanto isso,
Piedade, coincidentemente, era atendida pelo gerente da agência do Santander,
bem ali do lado.