Poesia matinal indigesta

Minhas havaianas num cantinho do quarto, um dos meus poucos consolos hoje em dia. Senão o único. (Certa feita, há longo tempo, pousei a cabeça no ombro dessa namorada e gemi que precisava dum consolo e ela me mandou comprar um dildo.)
São relativamente novas, as havaianas. Infelizmente nunca envelhecem, quebram a tira antes. É uma pena, me apego intimamente às minhas coisinhas pessoais, fico pesaroso quando tenho de jogar no lixo um par de sandálias precocemente aposentado.
Minha sapateira abriga uns seis pares de sapatos, o mais antigo com pelo menos três décadas de idade. Ou mais, não estou bem certo. Uau, idos de 1984, período negro da minha vida. Bah, tô pegando leve – minha vida inteira foi negra. E não será doravante que vai começar a melhorar.
Sempre que abro a porta do armário e dou com esses meus sapatinhos trintões, não consigo me furtar a refletir sobre o sentido da existência. E toda e qualquer cogitação de atirá-los fora se extingue de pronto em meu cérebro.
Me desculpem, mas também não posso me furtar a um rápido passeio pela Memory Lane, no dizer dos meus amigos anglo-saxões cujas pérolas nunca me canso de citar.
Reabro a porta do armário e me ponho a olhar as fofurinhas, com perdão da palavra, meditabundo. Quantos passos terão dado os pobrezitos em sua altruística missão de proteger meus pezinhos delicados (sem brincadeira, tenho os pés mais bem-feitos do bairro; sou a versão contrária da fábula do pavão)? Que caminhos oblíquos obriguei os coitados a trilhar em tantas noites alucinadas em que me atirei a frustradas e frustrantes explorações físicas e metafísicas? Por quantos...?
Chega de memory lane.  Provavelmente já estou tocando as raias da nostalgia. E é tão fácil soar cafona quando a gente se entrega aos delírios do passado.
Ah, meus míseros sapatos marrons (lembra aquela musiquinha com que a Evita ganhou o Festival da Canção de 1969?) Devem ter visto uma graxa duas ou três vezes na vida, se tanto. Os cadarços, já troquei uma meia dúzia. Arranhados nas laterais, desbotados, os saltos comidos por desgaste irregular, resultado do andar claudicante, quase capenga, do dono.
Fiquem aí descansando. Na certa sobreviverão a mim. Serão meu legado a estes campos incultos, prova dos meus roteiros imprevisíveis.
Fecho a porta do armário e, retornando à minha mesa, ao computador, as havaianas voltam a atrair meu olhar. Estranhamente, já não me consolam mais. Meu estômago revira (tenho-o hipersensível, como tudo que há em mim). Não quero declarar, não quero admitir que estou perdido. Mas estou.

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