Ah, esse Esteves

Alguém não mais existir.
Que tenha proferido palavras.
Estarão neste momento ainda em sua jornada pelo espaço sideral em busca duma barreira que as faça retornar em forma de eco?
Que tenha dado sorrisos.
Estarão os agraciados ainda reconfortados por os ter recebido? Ou os terão esquecido? Que poderá haver, para a maioria, de mais efêmero que um sorriso? Quantos deles trocamos ao longo dum dia? Dezoito?  Cento e quinze?
Que tenha franzido o cenho.
Por essas incontáveis razões pelas quais franzimos o cenho.
Estreitado o olhar. Respirado fundo. Crispado os punhos. Aguçado os ouvidos.
Que tenha pensado.
Incontáveis pensamentos por segundo.
Numa existência ideal, cada um deles, cometido, sofrido, executado, escapulido por cada um de nós, seriam coletados numa bacia própria para a guarda de pensamentos e...
E nossas palavras, numa bacia própria para o armazenamento de palavras e...
Espíritas, e religiosos em geral, creem numa vida após a morte porque não se conformam que nossos olhares tenham se dirigido em vão para o que quer que os tenhamos dirigido ao longo da nossa vida. Espíritas, e religiosos em geral, não toleram a ideia de que nascemos por nascer. Batem o pé. Alguns ficam nervosos. Impossível  não haver um desígnio por trás de tudo.
Um sentido.
Espíritas, e religiosos em geral, são extremamente pretensiosos. Se acham eleitos, como se fossem portadores privilegiados da graça de acolher o mistério. Inúmeras vezes travei discussões filosóficas com crentes e o desenlace era sempre o mesmo – me olhando compassivos, no mais das vezes condescendentes, decretavam a sentença: ah, você não tem fé. É preciso ter fé.
Qual incrédulo neste mundo que, tendo um mínimo de capacidade de observação e compreensão dos mecanismos do mundo, não desejaria ter fé? Com exceção de clássicos como Bertrand Russel e Nietzsche, a maioria dos intelectuais se disseram e se dizem desejosos de acreditar, se pudessem. Eu mesmo trocaria de bom grado o que sou e o que penso pela “dádiva” de, munido duma bíblia debaixo do braço (aparentemente, o lugar mais apropriado para transportar uma bíblia), assistir a um culto numa assembleia de deus na periferia e entoar apaixonado, embevecido aqueles cânticos que levam aquela gente à catarse. Impossibilitado – por meus próprios princípios estéticos – de atingir a catarse pela poesia, talvez me entregasse de braços erguidos às graças da comunhão com o divino. E renunciaria agradecido às cruéis especulações metafísicas que me corroem por dentro e que parecem não ter solução que não através do “chamado”.
Infelizmente, a verdade não dá margem a refrescos que tais. Nós, incrédulos, sofremos por falta de consolo, eles, vocês, crédulos, padecem por professar uma “verdade” ilusória.
Vocês sabem que esta conversa não tem desempate. Uma parte – metade? Um pouco? Quase tudo? - dos argumentos se baseia não na racionalidade e sim na crença. Para piorar, existem as distorções que teimamos em fazer de conta que não nos afetam, tais como artifícios, deslealdade, hipocrisia.
Quanto a mim, fico com minha teoria dos acidentes. Somos produtos duma até agora indecifrável, incalculável orgia de amálgamas, divisões, explosões, ajuntamentos de aminoácidos. Calma, gente. Ainda estamos em 2014 a.D. A civilização tem parquérrimos 5 mil aninhos, idade de filhote de ameba. A ciência praticamente nem nasceu.
Mas para mim nada disso interessa. Época houve em que gostava de me apresentar assim “Muito prazer, Wil, agnóstico”. Até um dia me dar conta de que me preocupava demais da conta com a religião para um agnóstico. Então comecei a me apresentar assim “Desprazer, Wil, ateu”.
Mas para mim nada disso interessa. Depois de quase seis décadas de vida, concluí por a mais bê que sou um acidente. E se sou acidente, não vejo por que a Berenice da padaria ali na esquina ou o Zé Carlos do posto de gasolina do outro quarteirão não seriam. A única diferença é que eles não sabem e eu sei. Trocando em miúdos, uma banana pra nós todos.
Se vida além da morte há, haverei de reencontrar o Zé Carlos e a Berenice e um monte de gente mais somewhere someday somehow. O que faremos, o que diremos uns pros outros, só deus sabe. (Embora os espíritas insistam em dar uma de técnicos especializados no segredo do cofre.)
Se não há, simplesmente voltaremos ao pó, de onde viemos.
Saí cedinho hoje, eu e minha infalível Zezeí, pra mais uma volta no quarteirão e ventava como havia muito tempo não ventava. Dobramos a esquina e veio aquela lufada trazendo uma nuvem de poeira. Lancei pra Zezeí um olhar empapuçado de significados, Zezeí sequer se dignou a me retribuir o olhar. O que posso garantir é que estava tudo lá, está tudo na Tabacaria e prossigo em minha missão de aceitar minha sina com a merreca de sensatez que o big-bang me dispensou.



Liberdade, enfim

7 de setembro

Você acha que ainda seremos amigos daqui a dez anos? – A pergunta espantosa dele me desarma.
Minha cabeça faz que sim mecanicamente. A pergunta me dá náusea. Não gosto de pensar nesses termos. Passada a perturbação, recobro essa nesga de lucidez que ainda teima em pairar um pouco acima do negrume que formam meus sentimentos e minhas emoções. E então penso:
É muito improvável que não.
E minha abulia habitual se reinstala depois de dois ou três segundos.
Sinto a máscara do desprezo, que raramente me abandona, cunhar um molde em meu rosto.
Naquela época nunca apelava à dissimulação. Era o que era para o que desse e viesse. Não mudei muito, acho. Apenas desenvolvi uns truquezinhos com que procuro graduar um tico esta minha má-vontade natural a estímulos externos. Não funciona às mil maravilhas, bem sei. Não sou nem um pouco convincente. O que tenho de evitar a todo custo é abrir a boca. Caso contrário neguinhos debandam em polvorosa qual baratas subitamente flagradas a perambular gostosamente na escuridão pela pia da cozinha, satisfeitas com o que lhes restou da comilança alheia. Meu tom de voz, nem Laurence Olivier lograria modular. Quando falo, fico com sono. O efeito produzido nos que estiverem nas proximidades é outro. Se alarmam. Me imagino numa rua da Londres durante o Sábado Negro de 194o sob o bombardeio dum enxame de Heinkells com suas bombas de 800 kg de TNT.
Soltei um berro tresloucado de entusiasmo quando o Chile fez seu gol. “Tresloucado” porque o resto do Brasil estava sob aquele manto de mutismo perplexo que se estende até o horizonte nas horas negras e fui ouvindo meu vozeirão se espalhar pelas redondezas acachapadas de silêncio. O resultado não foi alarme e sim mais perplexidade. Uns resmungos pipocaram aqui e ali na vizinhança. Neguinhos estavam a se perguntar quem seria o chileno que ousava comemorar o tento de sua seleção? Por um instante temi que batessem na minha porta exigindo satisfação. Amanhã certamente haverão de me dizer que pensavam que eu fosse brasileiro.
Thomas Bernhard dizia que a Áustria, sua terra natal, era uma “inferno comum em que o intelecto é incessantemente conspurcado e a arte e a ciência, destruídas”. Não chegaria a tanto, de minha parte. Não dou muita bola pro intelecto – sou quase que completamente mercurial, o que Nietzsche chamava dionisíaco, roçando perigosamente o irracional, e olhar este país intelectualmente seria piada estando todos sob o tacão totalitário dum primário qual lula. Quanto a arte e ciência, temos um panteão de gatos pingados. Não à toa, os pintores que se destacam nas paradas são quase todos “peculiares”, “idiossincráticos” – primitivistas ou expressionistas genéricos que não se deixam caracterizar por elementos comuns a uma escola artística ou de época para não ser flagrados em sua mediocridade. Cientificamente, devemos nos classificar entre os cinco piores do mundo, atrás de Gana e Haiti.  Nossos próceres universitários recebem loas de estudiosos franceses sempre ávidos por dar uma banana ao establishment impostos pelos U.S.A. Daí o “renome” de falências éticas da estirpe de Marilena Chauí. A crítica literária continua invisível. Talvez esteja sobrevivendo nos porões da USP ou da Unicamp e se estiver ninguém está prestando atenção – ninguém que escreva na Folha de S. Paulo, bien sûr – veículo que se pretende catalisador das inquietações nacionais ameaçando repercussões atômicas que quando muito ressoam como traques juninos. No Estadão, Arnaldo Jabor continua tentando ser levado a sério como cronista apelando a cafonérrimos, constrangedores diálogos fictícios com Nelson Rodrigues. Rubem Fonseca está no osso e o futuro da raça vai assomando cada vez mais sombrio.
Sou diferente de Bernhard. Bernhard odiava tudo e todos, não odeio senão o que e quem me faz mal. Pra quem não sabe do que estou falando, é uma diferença colossal. Bernhard precisava do ódio para viver e, mais ainda, para escrever. O mundo e a história estão cheios – ou “repletos”, como preferem os agitadores culturais de araque da Folha – de escritores capazes de qualquer coisa para escrever. Porque escrever é letal para os não gênios. Bernhard não era gênio. Talvez a maioria dos que o vulgo considera gênios não são gênios.  Machado era gênio. Mas o vulgo só sabe que Machado era gênio porque alguém lhes deu a dica mastigada. O vulgo só sabe ruminar no meio do rebanho, cabisbaixo, mugindo doce na tentativa do acasalamento mas de mandíbulas fechadas que é pro mugido não chamar a atenção dos predadores. O gado nunca perde a consciência de que existimos sob o lema da cadeia alimentar – embora esteja, neste exato momento, lá fora nas ruas escuras de Sampeia de papo pro ar, se fingindo indiferente ao risco de cair nas garras dum egresso da “comunidade” Paraisópólis.
Escrever não é moleza quando você não tem o dom da chama. Fazer o quê? É uma definição a contento, não é? Poucas coisas neste mundo são mais frágeis que uma chama e estão mais vulneráveis ao ambiente que uma chama. Cada um de nós é uma chama – e os crentes se colocam farisaicamente nas mãos de deus tentando driblar o destino. Hoje no jogo com o Chile os fariseus marcaram presença, como em todos os jogos, como em todos os arranca-rabos entre fariseus. Se benzem implorando que o big boss lá em cima lhes dê a graça da vitória. Só tomam o cuidado de não incluir em suas preces que, para que se deem bem, o adversário tem de foder. Por que raios esses neandertais – e aqueles que os assistem – imaginam que um ser magnânimo e justo e perfeito como deus cairia em tal balela, só o diabo explica. (E parte dos meu leitorado de quase quatro cidadãos ainda tem a empáfia de torcer o nariz pro meu lado quando digo que o conceito de deus é uma enevoada elaboração psicológica e social resultante dos indecifráveis perigos do mundo. Quase ninguém tá muito a fim da “verdade”. Eles querem mesmo é tirar uma casquinha das delícias de viver e, se possível, esticar as canelas sem maiores traumas, de preferência sob uma anestesia religiosa que lhes cumpra as devidas “promessas” pós-morte e não demande grande consistência conceitual. Como sabemos todos, a verdadeira fé flutua acima do nosso parco poder de racionalização empírica.)
A hipocrisia é uma característica comum a cada um de nós, em maior ou menor grau au au? É provável que os crentes respondam que não. A fé é uma capacidade intangível dentro de cada um, não está sujeita à nossa volição. (E aqui os capazes da fé dão de dez a zero em nós pragmáticos emperdenidos que não temos o caminho da entrega à devoção.)
Aquele 7 de setembro o diretor me convocou à sua sala – exatamente como ocorreria com Bernhard – e me intimou a participar do desfile. O tom que tentava passar era, “não há rebeldes que possam se rebelar a ponto de mudar as estruturas”.
Olhando para trás em retrospectiva qual num filmeco de Hollywood, sei que nunca pretendi mudar estrutura porra nenhuma. Estamos cercados de clichês e os clichês são o que nos move e nos define. Como Bernhard talvez respondesse, cara, não quero mudar nada, ainda estou tentando entender o que estou fazendo aqui.
Aqui entraria um sujeito como Bernhard.
E mais ninguém.
Ah, quão vasto é este meu mundo e não tenho sido digno dele.
Lembra a noite daquele sábado em que você aceitou dançar Everybody's talkin' e cedeu quando te puxei pro meu peito e aconchegou o rosto contra o meu como se eu não fosse o saci-pererê?
A dança terminou.
Vou embora. (Okay, explico, a salada dos tempos verbais... puta que pariu.)
Saio para o mundo. De novo.
O mundo não existe. O mundo está por ser feito.
Só não me botem nas garras dos medíocres, é tudo que peço.
Nasci e cresci num mundo refratário ao truque. Mesmo a religião não era truque, mas modo de sobrevivência. Posso culpar por isso meus pais com quem tenho sonhado os últimos vinte anos?
É triste ter de reconhecer, outra vez, que escrevo senão para mim mesmo.
Escrevo para mim mesmo.
Vivo para mim mesmo.
Você vai me culpar, sei. Vivemos para nós mesmos mas não podemos confessar. Não neste modo de vida ritualizado que escolhemos seguir. Outros talvez existam. E daí? Somos a espécie de todas as probabilidades.
Naquele 7 de setembro marchei no sentido contrário. Para que o mundo deles parasse e o meu prosseguisse. O diretor e sua diretoria entraram em estado de choque. Pulmões se paralisaram. As digníssimas esposas das autoridades reprimiram um ohhhhh.
E Neymar mirou concentrado o alvo e fez o maior gol contra de todos os tempos.
E o mundo começou a girar ao contrário.
Comemorei silenciosamente. Logo virá a reviravolta.
Da reviravolta.


Excursão furibunda até a Mooca

Com licença

Preciso me entregar

Não tenho tempo

De viver

Tuto il male del mondo

Zé tem um lindo jardim.
Onde cultiva belas rosas, jasmins, cravos e flores de outros nomes.
Todas as flores cultivadas em seu jardim são perfumadas.
Todo dia Zé faz a rega, planta e replanta, remove folhas e galhetos secos.
Zé jamais cheirou uma só de suas flores. Nunca lhe passou pela cabeça tal ideia.
Zé é cego.



Zé vai ao médico

Senta na sala de espera e espera. Sempre que se consulta parece ficar perigosamente próximo da morte.
Folheia uma a uma as revistas da mesinha de centro da sala. Passeia olhos nervosos duma página a outra sem poder prestar atenção em palavras. Sente-se debilitado. Não é de hoje. Nem de ontem. Nasceu assim.
Errado. Se tem uma certeza na vida, nasceu errado. Iniciou a contragosto a longa viagem – da qual não pode escapar. Quer voltar a cada instante. Alternativas, as têm, elétricas, saltando sob o ímpeto de cancelar a passagem, sob o ímpeto de ficar parado no banco obcecado pela ideia de mudar o itinerário. Será hora de escolher outro destino? Será hora de ser o passageiro ao lado.
Quem nasce errado precisa trabalhar dobrado. Ainda no berço, desconfia de ter pela frente uma epopeia. Epopeiazona magnífica feita de cachos, pelos e folhas de bananeira, que vai destacando à medida que os dias passam.
Quem nasce errado e tem pela frente a epopeia, não sabe fazer outra coisa – tudo se limita a pensar na direção a tomar. Enquanto lá fora a paisagem passa velozmente, deixando na janela aqueles frisos de desenho animado, tem os pensamentos no sentido que certamente será avistado depois da próxima curva. O que importa é o talvez do dia seguinte.
Quem nasce errado precisa suspeitar de palavras, dar tino de frases. Sempre mantendo a guarda. Não pode ser frouxo, que não sabe que tem à frente.
Se Zé conseguisse limpar as nuvens que lhe ensombream o cérebro, perceberia que mora na Absoluta Caverna.
Larga uma revista, apanha outra, abre. Às vezes tudo em maiúscula, às vezes, em minúscula, outras, letrinhas e letronas intercaladas. Algo sobre a rainha da Inglaterra. Não-sei-quê Westminster. Queria um nome melhor que Zé. Zé demais por aí. Em tudo que é lado, jeito e cor. Se o pai tivesse batizado Westminster hoje poderia ser presidente. Melhor, delegado. Presidente acaba se matando. Delegado pode matar os outros e se dar bem.
Vargas é estátua de granito-chumbo gigantesca na infância de Zé, pesada que aderna o barco do passado prum lado. Não saiu da cabeça. Como pode um presidente se matar? Quem tem tudo, tem tudo, ora. Só quer se matar quem não tem nada. Ou tem pouco. Ou tem o que não quer e não o que quer. Ou não tem o que quer e tem o que não quer.
Zé lê sem se concentrar. A atenção navega em retrocesso contínuo a um bem-estar que não existe e nunca existiu. Para usar os sentidos, que teimam em negar serviço, precisa deter as atividades vitais e esperar até que tudo baixe feito uma poeira sobre um chão estéril em que retoma o controle dos sentidos mas de que nada pode renascer, pois agora é um deserto de nervos expostos.
Tem por dentro um rio ladeado de placas infinitas indicando direita esquerda direita esquerda, a que vai obedecendo sempre ao contrário. Ocasionalmente surge um buraco negro, insondável. Pensa em seguir em frente, mas uma força irresistível o empurra e ele despenca, agarrando-se a uma âncora que o leva de volta à tona em vez de afundá-lo. E a correnteza recomeça.
Vira uma página. Lê penosamente algumas palavras. Não que seja burro. Mas não sabe se deve acreditar nas notícias. Nem analfabeto. Algarismos, conhece bem. O Prêmio Nobel organizou uma comissão de sábios para investigar o fenômeno. Ainda bem não sou fenômeno, poderia pensar, se pensasse.
Se tivesse pensado alguma coisa na vida, Zé saberia que nasceu para desenvolver incertezas e viver impossibilidades. Saberia que, talvez por isso, sente tamanha indisposição e falta de energia. Tem dia se enxerga fragmentado, quase pode ver as partículas de que é formado. Tem noite se sonha abaixado no chão apanhando fragmentos. Arruma-os de lado, tentando compor uma forma que faça sentido. Parece ficar dias e dias entretido na tarefa, procurando enxergar algo que o lembre de si mesmo, mas não consegue ver senão imagens inúteis e exasperantes como pombas, borboletas e nuvens que nunca dizem nada. Se soubesse pensar, Zé pensaria: “meu sentido! Preciso achar meu sentido!”
Outras noites sonha que está olhando num microscópio. Aparelho tão gigantesco quanto a estátua de Vargas, longo de deixar a extremidade traseira fora da vista. É microscópio eletrônico, diz a revista que tem nas mãos. Capaz de ampliar as coisas cinco trilhões de vezes. “É o que preciso!”, diria a si mesmo se soubesse monologar.
Zé bota o olhinho aflito e sequioso de verdade na lente do aparelho e olha. Vê um sujeito olhando num microscópio. O sujeito, percebendo que está sendo observado, volta seu microscópio na direção de Zé. Um intenso facho de luz é imediatamente lançado do outro microscópio contra o microscópio de Zé, ofuscando seu olhinho aflito e sequioso de verdade. Em seguida, Zé vê que está cego. “Vejo que estou cego!”, exclamaria para si mesmo se soubesse exclamar.
Outra página. Zé localiza algo. Sem poder definir o que seja, contenta-se em chamar de “uma coisa”. Na sua incerteza, só sabe que é grande. Ajusta a ocular do microscópio. Começar a ampliar. Duas, quatro, dezesseis vezes. Um milhão. Um bilhão. A coisa, ao invés de crescer, fica mais e mais diminuta. E difusa.
Um trilhão. A coisa permanece incólume ao poder do superaparelho. Zé abandona a resistência e abre a ocular até o fim. Espia. A palavra FRACASSO se ilumina na Caverna Absoluta em letras neon cor de rosa e verdes, desprendendo um vapor em que reverberam borbulhas lilases e reflexos amarelados.
Zé quer fechar o olho, mas não consegue. O letreiro tem um poder hipnótico básico que parece resumir a experiência de sua vida inteira, de repente assumindo uma forma bem-definida que pode ser vista integralmente. Então Zé tem uma sensação de unidade. Vaporosa, esquiva unidade.



Os ensimesmados

Somos os ensimesmados.
Tão ensimesmados, que, além de viver voltados para dentro, não fazemos conta de dar explicações supérfluas.
Não damos conta de muitas outras coisas. Pois somos os ensimesmados.
Vivemos tão embebidos de nós mesmos, que não damos importância às nossas repetições. E, tem hora, ficamos tão, mas tão ensimesmados, que ficamos martelando para nós mesmos que somos ensimesmados sem sequer perceber que estamos martelando seja lá o que for para nós mesmos ou para quem quer que seja.
No mundo, formamos um time.
O time dos... ensimesmados.
Você, obviamente, já deve estar rindo por dentro – e se não for dado ou dada a pudores, até mesmo por fora.
Que maravilha! você está se divertindo. Um time composto de membros que não tomam conhecimento uns dos outros.
Se pensou isso de fato, me regozijo. Pois acertou na mosca.
Vou avançando pela calçada. Cabisbaixo, como gosto de avançar pelas calçadas do mundo. Totalmente antenado nos meus próprios pensamentos. Completamente alheio ao que se passa à minha volta – sempre tomando o cuidado, claro, de verificar, a cada dois ou três minutos, quais diabruras Zezeí, minha mescla de dobermann e chiuauaua, anda aprontando pelo mundo. Se me certifico então de que nem ela nem nenhum transeunte corre maiores perigos do que é lícito correr nesta vida, prontamente reassumo meu auto-embebimento. Às vezes retomo o fio de onde parei antes da inspeção, outras simplesmente me entrego àquele a quem tenho me entregado desde que nasci sem precisar erguer os braços em sinal de rendição – eu mesmo.
Vou avançando pela calçada. Cabisbaixo, como gosto de avançar pelas calçadas do mundo. O treino de ensimesmado veterano me permite perceber, pelo rabo da orelha, que Zezeí me acompanha a distância segura uns três passos atrás.
De repente cruzo cum vulto. Prendo a respiração para não sentir seu cheiro. Nunca se sabe. Poucas coisas me dão mais repulsa que cheiro de estranhos na rua. Cheiro de certos conhecidos onde quer que seja é uma delas. Sigo em frente, o vulto segue em frente no sentido oposto.
Com base em minha reputação que bocas maledicentes andam enxovalhando pela cidade, você na certa está a imaginar que só me dei conta do vulto porque este pertencia a uma ninfa matinal recém saída do banho com sais de ervas e olivas gregas. Cujo aroma aniquidolaramente embriagador eu não deixaria de sentir mesmo se travasse as narinas cum pregador plástico.
Se foi isso que imaginou, lamento lhe informar que se enganou.
Continuo avançando pela calçada, cabisbaixo coisa e tal. Atrás de mim ou à minha frente, na mesma calçada ou na do outro lado da rua, os que me olham não notaram nada de anormal em minhas feições ou de diferente em meu andar.
Quero crer que você saiba a razão.
Dou mais uns trinta segundos, estaco como raramente tenho estacado, dou meia-volta.
Lá longe o dono do vulto, vejo sem surpresa, me imita. Não, não é imitação de papagaio e sim mero ritual  de quem não é afeito a rituais.
Ele imediatamente desfaz a meia-volta, retoma seu rumo.
Faço o mesmo.
Foram dois segundos, no máximo, três. Insuficientes para coletar informações mútuas. (Devia aqui dar graças a deus.)
Não sei se ele é apreciador dum gole ou outro ao longo da tarde, no crepúsculo do dia, ao cair da noitinha. Se for, talvez nos cruzemos por um buteco da vida. Se for, talvez troquemos impressões sobre isso e aquilo diante dum balcão a fervilhar dessas mariposas ávidas por experiências inusitadas que são os ébrios. (E às que entregam de bel prazer suas existências que, aos olhos dos que os olham lá da rua, parecem inúteis.)
Você está esperando um desfecho, bem sei.
Você é desses, você é dessas que esperam, e esperam desfechos.



Celebrando a solidão nesta manhã de domingo

De repente ela morreu

Levando consigo todos

Seus segredos 

Que eram meus


A solidão de deus

Hoje à tarde vi um homem falando sozinho na rua.
Vi um homem falando sozinho na rua hoje à tarde.
Na rua hoje à tarde vi um homem falando sozinho.
Não vi muitos homens falando sozinhos em minha vida. Não me lembro de todos que vi, mas é provável que não foram muitos. Uns quatro, no máximo, cinco, talvez.
Me lembro vagamente do primeiro homem que vi falando sozinho em minha vida. Na bruma esgarçada da memória longínqua, na bruma longínqua da memória esgarçada, acho que era um sujeito de cabelos estranhamente compridos. Se na década de cinquenta homens usassem coque, podia até supor que aquele usava.
Houve um outro homem que falava sozinho. O conheci criança e ele, adulto. Gordo e calvo. Cresci e me disseram que o homem falava sozinho porque seu pai tinha morrido quando ainda era criança e ele entrara na sala de autópsias e vira o pai sendo destrinchado por outros homens numa mesa de necrópsia.
Minhas escassas experiências com homens que falam sozinhos sempre me deixaram confuso.
Me lembro agora, tive, não sei até que idade, a convicção de que é melhor falar sozinho sem razão nenhuma.
É preciso coragem para falar sozinho?
Existe no mundo um time de homens que falam sozinhos.
Nunca via meu pai falando sozinho. Nunca vi meu pai falando sozinho.
Quando minha mãe falava sozinha, me afastava longe fazendo de tudo para não escutar suas palavras.



Hoje, nada de arqueologia

Quem me lê sabe que um dos meus temas recorrentes é a porta da vida, assim chamada, ao que eu saiba, somente por mim mesmo e ninguém mais, pois o rebanho que pasta apático no meio do capinzal está é se lixando para o fato de que a vida possa ter porta, janela, ralo ou claraboia, no que lhes dou, em parte, razão, sou escritor generoso, estou, quando posso e minha abulia mo permite, atento às fraquezas humanas, sou eu quem sou, confesso, arquiteto errado na obra errada (meus lábios tremem e coçam, desconfio se será sinal de que estou tentando aplicar uma (indeletéria) peça).
Quem me lê também sabe que a primeira vez que abri a porta da vida foi durante um ultrafugaz momento, há quatro ou cinco décadas, em que levei um pêssego à boca e desferi uma dentada, nada violenta ou faminta, e o cheiro do pêssego (ou da fruta, como diriam os escribas preocupados com anáforas) me transportou alhures e me vi, sem luva, sem mística, sem cócegas, na plataforma donde partiria minha nave das flores lilases que um dia lá trás S. recusou torcendo o nariz dizendo que eram de velório.
Certo.
Me dei conta então, naqueles tempos havia em algum canto da casa um forno gélido e peludo onde passava os dias a hibernar ante a intolerância dos que amava, no armarinho garrafas de vodka, funil, centenas de maços de Camel Toe, deixando a barba crescer à Tolstoi, esperando as feridas fechar, lendo Machado no banheiro, matando o tempo arranhando a pele dos braços, delirando com os sorri-dentes de S., tentando me lembrar duns versos de S. Plaft, rindo dumas piadinhas internas na minha absoluta solidão como a de que precisava era duma bússola do labirinto do meu passado no meu quartinho 1 X 1 m, sorrindo para mim mesmo da minha própria graça, hoje a moçada tem Borat e tantos outros lixos cinematográficos, hipnotizados desta nova era de órfãos roedores da vida dos célebres ao sabor dum hambúrguer de carne e um balde de coca numa mesinha num barracão dum campo de concentração e engorda de semiliteratos felizes, roubei de deus a chave e optei por morar em minha caverna, eu e minha cara e meu cheiro e o peso dos meus braços e das minhas pernas, esfomeado duma fome inescrutável, debulhando meus sonhos recobertos de infinitas cascas.
Hoje, nestes dias feitos de hierarquias, perdi o poder de escolha (pensava ter?), parei de acreditar que ainda disponho duma vasta gama de opções de rumo. Houve um tempo em que não precisei de amor e carinho, não precisei aprender as lições que aprendi, não precisei saber o que era absolutamente vital para minha saúde, minha consciência, minha produtividade e cairia numa gargalhada de deboche se alguém me dissesse num fim de noite de domingo num balcão de buteco que meu problema era falta de autorrespeito, se não nos respeitamos ninguém nos respeitará, rindo de lambuja de “mitos” como independência emocional, autonomia física, independência financeira, mais uma chance para tentar mais outra vez.
Tudo bem, reconheço hoje que não tenho cabeça para enfrentar minha verdade. Tentei esticar o prazer além do possível, quebrei a cara. E o coração. Dos quatro aos seis anos fui obrigado a usar bota ortopédica. Tinha os pés inusitadamente chatos. Nenhum dos meus primos, nenhum dos meus colegas de rua tinha tão chatos assim. Com essa forte tendência à autovitimização, me via desfavorecido pela injustiça divina, até chegar aos trinta e conhecer homens cujas mães eram prostitutas e marmanjos que eram, e sempre seriam, virgens. Tudo teria sido muito mais fácil se tivesse me entregado cedo aos estereótipos. Então poderia ter procurado – e talvez encontrado – uma mulher também de pés chatos (ou uma que calçasse 47?). Uma donzela que se dispusesse a me entregar sua virgindade. Kant, dizem alguns, morreu virgem. Se Kant morreu virgem, acho que eu também poderia me abster de sexo até a morte, se tivesse me esforçado um pouquinho.
Tudo bem, Gore, sei que te prometi “ficar longe” do visceral. Quando te leio me envergonho de ser assim confessional feito um guri de rua sem nada a perder. E quando leio Gustave Flaubert me constranjo com a desordem do meu estilo e quando leio Marcel Proust enrubesço ante minhas sentenças abrutalhadas de bruto completamente vocacionado para ser acariciado por um time de ninfas de juventude eterna.


PRAFRENTEBRASIL

Mais uma tortura prestes a começar.

Deus, me prove que você existe e faça o escrete canarinho levar uma goleada de 10 x 0.

Passarei a ir na missa todo santo dia. Prometo.



Sem nome, sem tempo, sem país

Quem é ela quando não está escondida atrás da neblina da tarde?
Recusa o papel de musa, talvez temendo a sentença de estátua.
Seu impessoal me aniquila.
Me livre, deus, de saber que ela é assexuada.


A maioria das pessoas é desinteressante.
Se dedicam a essas coisas a que a maioria das pessoas se dedica: autoproteção, autoconveniência, autobenefício, calculismo, condições em geral resultantes do instinto de autopreservação e/ou da lição que todos recebem logo cedo de pensar primeiro em si. Dessas condições advêm outras, sendo as principais o egoísmo e a auto-absorção, i.e., o mergulho interminável no umbigo todo-poderoso velho de guerra. E não adianta acusar essas características, pois a maioria não tem consciência delas. Se insistir, você provavelmente vai causar um constrangimento que no mais das vezes se mostra incontornável. São raríssimos os que estão preparados para escutar a verdade sobre si mesmos. A saída é pairar na superfície, fingindo que não vê, mudando de assunto. A maioria também é mestra na dissimulação. É o que o vulgo denomina urbanidade, cordialidade, esses artigos sempre em alta no mercado. De minha parte não tenho uma gota do dito traquejo social. Me lembro distintamente quando, em estado pimpolhildo, comecei a notar a enorme importância que se dava à diplomacia. Fui crescendo e ficando cada vez mais desconcertado com os diplomatas do mundo. Hoje os compreendo menos, muito menos ainda. Se continuar assim, vou acabar num nível de perplexidade adiplomática que vai explodir dentro da minha cabeça e me levar pro beleléu. Tomara que seja logo.
A maioria prefere a cortesia à honestidade. Eu, não. Procuro ser o mais honesto possível, sempre. Tudo bem, a honestidade absoluta é impossível. Imagino que a diplomacia absoluta idem.
Sou honesto, o que faz de mim um sujeito intratável e interessante.
A maioria é cordata e, bidu, desinterensantíssima à sonolência.




Foi aos 14 anos que descobri que não tinha vida interior.
É claro que era ainda incapaz de relacionar essa descoberta à religião na época. Sou até hoje. Embora hoje desconfie que é por aí.
Nos meus 14 anos, olhava as coisas e suspeitava – ligeirissimamente – que elas, as coisas, escondiam alguma coisa de mim (podia dizer “algo” só para não repetir “coisa”, mas não é a mesma coisa).
Os outros, então, ah, os outros. Os outros escondiam TUDO de mim.
E me dava água na boca. Me vendo só, não me conformava. Me continha porque não me conter significaria a morte. E ainda não estava decidido a morrer. Queria descobrir. Descobrir o que havia nas coisas que não enxergava. O que os outros sabiam que não sabia.
E se o que não enxergava e não sabia podia constituir uma vida interior.
Talvez.
Mas, provavelmente, não uma que fosse só minha.
Queria uma só minha.
Um eu só meu.
Como todos aqueles eus à minha volta.



Reconheço

O que me interessa é o solitário.
Silêncio.
Não aquele que é apenas sozinho.
Mas aquele que se interessa apenas por ele mesmo.
Sou um deles.
Não tenho outros interesses.
Me fascino.
Me encanto.
Me admiro.
Na mais bela fileira de verbos transitivos indiretos condenados à intransitividade.
E veja que até me dou ao luxo de explicar.
Não devia fazê-lo. Sei.
Mas é que me fascino e, sob o autofascínio, quero é que.
Não vou completar.
Você na certa escutou as palavras que omiti.
E na certa também já sabe que sou um omissor.
Um omissor nato.
Um omissor profissional.
Omissor solitário.
Cioso dos meus atributos.
Rindo silenciosamente com a única pessoa neste mundo que me faz rir em silêncio.



Não sinto raiva


Saio, bato a porta da rua, prendo o dedo no batente.
Esqueci de tirar a mão antes. Nunca tinha me acontecido, que me lembre. Muitas vezes dou com manchas roxas nos braços, nas pernas, até no peito, e vejo que me estrepei com as coisas do mundo na noite anterior. O mundo tá atulhado de badulaques que só servem pra se vingar da gente.
Bem o indicador. Estico, fico olhando, latejando pra caréleo. (Ainda com laivos daquele papo íntimo com o Fernando.)
Abençoada dor física. Que me faz esquecer das outras. Lateje até eu morrer, fura-bolo duma figa. Me faça ver as estrelas que o ar imundo de Sampeia há dezenas de anos esconde dos meus olhos.
Uma época joguei futebol, dos oito aos doze, ainda não tinha escutado os Concertos de Brandenburgo. Nas férias saía cedinho, voltava para almoçar, saía de novo, chegava em casa às sete da noite.
Moído.
Que gostosura de moagem.
Nunca mais pude sentir aquela paz. Era uma paz de espírito mancomunada a uma exaustão muscular que só os guerreiros de Sparta conheceram. Kundera gostaria de me entrevistar, se tomasse conhecimento das minhas peripécias. Me lembro e sou capaz de compreender os vocacionados para o atletismo, por quem em geral devoto desprezo soberbo. Não somos feitos para pensar. Não somos feitos para duvidar. Somos feitos para celebrar a existência. Se possível, agradecer pelas dádivas. Se não for possível, que algo ou alguém nos dê a misericórdia de dizer chega.