Ah, esse Esteves

Alguém não mais existir.
Que tenha proferido palavras.
Estarão neste momento ainda em sua jornada pelo espaço sideral em busca duma barreira que as faça retornar em forma de eco?
Que tenha dado sorrisos.
Estarão os agraciados ainda reconfortados por os ter recebido? Ou os terão esquecido? Que poderá haver, para a maioria, de mais efêmero que um sorriso? Quantos deles trocamos ao longo dum dia? Dezoito?  Cento e quinze?
Que tenha franzido o cenho.
Por essas incontáveis razões pelas quais franzimos o cenho.
Estreitado o olhar. Respirado fundo. Crispado os punhos. Aguçado os ouvidos.
Que tenha pensado.
Incontáveis pensamentos por segundo.
Numa existência ideal, cada um deles, cometido, sofrido, executado, escapulido por cada um de nós, seriam coletados numa bacia própria para a guarda de pensamentos e...
E nossas palavras, numa bacia própria para o armazenamento de palavras e...
Espíritas, e religiosos em geral, creem numa vida após a morte porque não se conformam que nossos olhares tenham se dirigido em vão para o que quer que os tenhamos dirigido ao longo da nossa vida. Espíritas, e religiosos em geral, não toleram a ideia de que nascemos por nascer. Batem o pé. Alguns ficam nervosos. Impossível  não haver um desígnio por trás de tudo.
Um sentido.
Espíritas, e religiosos em geral, são extremamente pretensiosos. Se acham eleitos, como se fossem portadores privilegiados da graça de acolher o mistério. Inúmeras vezes travei discussões filosóficas com crentes e o desenlace era sempre o mesmo – me olhando compassivos, no mais das vezes condescendentes, decretavam a sentença: ah, você não tem fé. É preciso ter fé.
Qual incrédulo neste mundo que, tendo um mínimo de capacidade de observação e compreensão dos mecanismos do mundo, não desejaria ter fé? Com exceção de clássicos como Bertrand Russel e Nietzsche, a maioria dos intelectuais se disseram e se dizem desejosos de acreditar, se pudessem. Eu mesmo trocaria de bom grado o que sou e o que penso pela “dádiva” de, munido duma bíblia debaixo do braço (aparentemente, o lugar mais apropriado para transportar uma bíblia), assistir a um culto numa assembleia de deus na periferia e entoar apaixonado, embevecido aqueles cânticos que levam aquela gente à catarse. Impossibilitado – por meus próprios princípios estéticos – de atingir a catarse pela poesia, talvez me entregasse de braços erguidos às graças da comunhão com o divino. E renunciaria agradecido às cruéis especulações metafísicas que me corroem por dentro e que parecem não ter solução que não através do “chamado”.
Infelizmente, a verdade não dá margem a refrescos que tais. Nós, incrédulos, sofremos por falta de consolo, eles, vocês, crédulos, padecem por professar uma “verdade” ilusória.
Vocês sabem que esta conversa não tem desempate. Uma parte – metade? Um pouco? Quase tudo? - dos argumentos se baseia não na racionalidade e sim na crença. Para piorar, existem as distorções que teimamos em fazer de conta que não nos afetam, tais como artifícios, deslealdade, hipocrisia.
Quanto a mim, fico com minha teoria dos acidentes. Somos produtos duma até agora indecifrável, incalculável orgia de amálgamas, divisões, explosões, ajuntamentos de aminoácidos. Calma, gente. Ainda estamos em 2014 a.D. A civilização tem parquérrimos 5 mil aninhos, idade de filhote de ameba. A ciência praticamente nem nasceu.
Mas para mim nada disso interessa. Época houve em que gostava de me apresentar assim “Muito prazer, Wil, agnóstico”. Até um dia me dar conta de que me preocupava demais da conta com a religião para um agnóstico. Então comecei a me apresentar assim “Desprazer, Wil, ateu”.
Mas para mim nada disso interessa. Depois de quase seis décadas de vida, concluí por a mais bê que sou um acidente. E se sou acidente, não vejo por que a Berenice da padaria ali na esquina ou o Zé Carlos do posto de gasolina do outro quarteirão não seriam. A única diferença é que eles não sabem e eu sei. Trocando em miúdos, uma banana pra nós todos.
Se vida além da morte há, haverei de reencontrar o Zé Carlos e a Berenice e um monte de gente mais somewhere someday somehow. O que faremos, o que diremos uns pros outros, só deus sabe. (Embora os espíritas insistam em dar uma de técnicos especializados no segredo do cofre.)
Se não há, simplesmente voltaremos ao pó, de onde viemos.
Saí cedinho hoje, eu e minha infalível Zezeí, pra mais uma volta no quarteirão e ventava como havia muito tempo não ventava. Dobramos a esquina e veio aquela lufada trazendo uma nuvem de poeira. Lancei pra Zezeí um olhar empapuçado de significados, Zezeí sequer se dignou a me retribuir o olhar. O que posso garantir é que estava tudo lá, está tudo na Tabacaria e prossigo em minha missão de aceitar minha sina com a merreca de sensatez que o big-bang me dispensou.