Confissões a um assassino


Meu caro J., sob os suplícios que me inflige este pau-de-arara moral em que me penduraram os carrascos que nos executam sob insuperável deboche, confesso por fim. 

Confesso, primeiramente, que é chato este approach direto a um figurão assassino enfurnado num covil-gabinete a ocupar-se dos rumos desta nação de palhaços sem graça que somos todos nós os jamais incluídos no banquete. 

Confesso, Va. Excia. entende, que seria preferível uma abordagem impessoal em que pudesse confessar muitas coisas e ocultar outras ─ ainda mais (ou até porque, como se diz hoje em dia), sendo Va. Excia. assassino atarefado, neste exato momento provavelmente estais às voltas com novos e fantásticos planos para que prossiga em grande fausto o genocídio de brasileiros nas desoladas terras da mãe gentil. 

Meu caro J., confesso que fico pasmo com a capacidade que tem Va. Excia. de balbuciar as mais infames mentiras que já escutaram estes meus céticos porém obstinados ouvidos. Embora eu procure tampá-los com estas mãos que não se cansam de gesticular aflitas de indignação, meus tímpanos não se deixam enganar e vibram doloridos antes os afáveis e nauseabundos brados em falsete com que Va. Afônica Excia. emite vossa defesa no vil tribunal armado pelos que se pretendem vossos juízes. 

"Assassino sim! Não por mim, mas pelo meu país!" parece ser o principal mote do tour de force jurídico com que Va. Sinceríssima Excia. reage às acusações de vossos adversários. 

Confesso, meu caro J., que assassinos calculistas feito Va. Fria Excia. prescindem ─ confesso! meu caríssimo J. ─ de razões para assassinar. Razões as têm homicidas chinfrins, desses que matam o próximo por paixão, por ódio ou por mera precisão de matar. Bem sabemos todos nós, tripudiados órfãos filhos desta triste tímida terra, que excelsos assassinos não se guiam por motivos reles. 

Meu caríssimo Mr J., confesso que Va. Angelical Excia. chafurda na mais degradante e pegajosa mescla de sangue e lama que já escorreu pelo solo da prostrada mãe gentil. Confesso ainda, meu terno, meu abençoado J., que Va. Dulcíssima Excia. se emporcalha exultante no viscoso estrume excretado pelos cadáveres que ornam paredes e pisos de mármore de cada aposento de vosso palácio. 

Sem mais forças para outras confissões sob esta inclemente tortura com que vossos abnegados cães-de-guarda gaiamente me forçam a denunciar o inconfessável, confesso, meu caro J., que assassinos messiânicos feito Va. Esmagadora Excia. estão além das garras trêmulas de injustiça de nós eternamente sodomizados em berço esplêndido, estão além do cadafalso que os paladinos das nossas prostradas cortes se recusam a fincar na praça dos três poderes e estão além do pelotão de fuzilamento que em certas tardes cubanas, ao ritmo frenético de mambos e rumbas, opositores do regime enfim confrontam seu merecido destino. 

Esta é de graça

Ainda hei de aprender a morrer. 
Será um aprendizado sem o (v)exame final com que a professora Lurdinha de Matemática se deliciava em me torturar.
Quando me considerar sofrivelmente apto para pelo menos uma nota cinco, direi, agora já sei e estou pronto.
E então vocês primeiríssimos da classe irão disputar minha atenção no recreio, suplicando para que eu deixe escapar pelo menos algumas chispas do meu abissal saber.
Mas, vejam, então estarei interessado apenas na minha glória suprema e a minha glória suprema será a certeza de que os patéticos interesses dos primeiríssimos da classe e do mundo não me interessam isto que seja.
De sobremesa acho que balbuciarei que aprendi a morrer não como um faquir ou um brâmane que, mal nascem, já encetam o treinamento religioso para a empreitada.
Não, senhoras e senhores.
Terei aprendido a morrer independentemente de fundamentalistas suicidas e professores fanáticos.
À revelia dos presunçosos que se atreveram a me ensinar o caminho da boa morte só porque nunca foram felizes nem experimentaram o prazer dum balla 12 às 8 da matina aliado ao perfume séptico duma buceta ao natural depois de toda uma noite de atividade.
E em minha suprema glória de bípede resignado com a impossibilidade de elevar a cabeça às nuvens e conformado com a tranquilidade de ter um chão sob os pés, poderei dizer a mim mesmo, já completamente esquecido de primeiríssimos e ultimíssimos, que eu sempre soube tudo que desde o início devia saber.



Enquanto balanço de costas pro mar


O gambá que se achava raposa
Fuga e con tutta la forza

Tem essa fantástica, essa intransponível dificuldade de ser igual aos outros. Não é coisa que pude/posso determinar sozinho. Sei, determinar soa papo de engenheiro. Na engenharia as coisas são determinadas e outros verbos do tipo. É por isso que todo engenheiro tem aquela cara de peixe adormecido. Eles sabem tudo. Okay, okay, todo mundo sabe tudo o tempo todo. Não poderia ser diferente. Como é que poderia? Não poderia. É outra coisa que consegui determinar. E sozinho. Não conheço ninguém que tenha confessado um dia ou que tenha coragem de confessar hoje que não sabe. Porque, jesus, converso com as pessoas e só vejo certezas. Algumas fazem perguntas, por mera retórica. Perguntam e, sem que eu tenha tempo sequer de pensar no assunto, respondem, respondem antes de mim, respondem uma resposta ready-made, dessas que eles parecem ter milhões dentro deles, e eu, que já estava atônito com a pergunta, fico ainda mais com a resposta, porque, pombas, no mais das vezes não tem sentido, nem uma nem outra, mas eles fingem que tem, e fingem direitinho, e fingem pra eles mesmos e pra mim e pra deus e pra quem estiver perto e pra alguma deidade que, imaginam, possa estar testemunhando a grande farsa. 


Vingador solitário
Menuetto quasi cantabili

Saí para o jardim, peguei o jornalão de domingo, voltei para dentro, separei o caderno de imóveis, o caderno de emprego, o caderno de negócios e os reclames das Casas Bahia e joguei fora todo aquele lixo que vem junto. 


Divagações devagar
Allegro quasi un poco grave

Que o pênis tenha uma cabeça e a vagina, apenas um promontório lembrando arrependimento é para mim maior prova da superioridade masculina.


Erros acontecem
Espressivo ma non troppo

Que meu pai tenha tido um enfarte letal e meu tio tenha enlouquecido até morrer e meu vizinho tenha desenvolvido câncer no esôfago e meu cunhado tenha sido abandonado pela mulher e a mulher que não me quis tenha tido o rosto desfigurado num acidente de carro e meu primo tenha morrido de desgosto... Jesus, é esse todo o consolo que me resta? 


Entupido
Molto scherzo

Quando não consigo pensar no que dizer, faço poesia.


Bye-bye Aunt G
Sarabanda

Ano passado minha tia morreu, depois de passar o fim da vida em Gardenal Garden. 


Minhas definições
Violin and Piano Pieces

Sou um carinha com coragem de assumir a própria covardia. 


Da corrupção poética e outros rojões que pipocam no teto do meu quarto
Poarga Româneascã

Ando meio inquiridor. Ando, porque antigamente não me ocorriam perguntas. Não significa que tivesse respostas, no mundinho mecânico esterilizado de sombras e pecados em que vivemos umas não existem sem as outras. Não significa que fosse um paspalho acrítico. Era muito mais "crítico" do que hoje. Não sei exatamente ou inexatamente que houve. Nem por que essa mania de repetir que não sei nada. De tudo que não sei, não sei ficar sem meus truquezitos. Não enquanto meu motorzinho elétrico não esquenta. Até lá, ando e emperro. Ou desando em gracinhas sem graça. Francis descia a lenha no batuta sisudo Hemingway espinafrando-o maneirista. Logo quem. Fora Shakespeare, talvez Goethe, de quem li nada fora uns poemas, o básico menos Fausto, escritores são maneiristas, só muda o grau, até Mann você identifica "padrões" de estilo nos diferentes livros e aquele artifício de misturar ficção e ensaio que torna Doktor Faustus maçante com a infindável arenga musical que ele chupava dos papos com Adorno sob o solzinho amarelento da Califórnia.

Dedos, mãos, lábios

Que coitados os dedos
incansavelmente – mas coitados mesmo assim! – se curvam, retorcem
estiram, crispam
do primeiro bocejo da manhã ao cerrar das pálpebras à noite
infindavelmente, impudicamente
escarafuncham frestas
penetram furos, saliências e depressões
empolgam objetinhos
(Esses incontroláveis objetinhos da minha vida.)
Servindo de tenazes, esmagadeiras, perfuradoras, formões
puxam, empurram, retêm, apóiam, fazem que não, pairam no ar
(Regendo desvairados a orquestra que me acompanha enquanto me sorvo.)
Indecisos, coçam a testa
impotentes, coçam servilmente regiões mais recônditas
e, lascivos, alisam os seios dela sempre que, distraída, ela baixa a
guarda para dar uma oportunidade aos insaciáveis
laboriosos
tensos, nodosos
seletivos, safados
judiciosos, sem cerimônia
que vezes e vezes agarraram a xícara de café pela asa e a
fizeram voar até os lábios
apertaram botões, viraram páginas, abriram tampas, fecharam portas
e, solidários, como mais não há na natureza, uniram-se
em dez para agarrar as alças com que carreguei daqui ali todas minhas tralhas
fechando-se em síncrono compasso, fazendo-se maças
para esmurrar inimigos (ah, todos meus inimigos!)
incontroláveis, abrindo o que nunca deveria ter sido aberto
alheios à cabeça, discando um número que nunca mais deveria ter sido discado!
frenéticos, inoportunos, teclando as confissões patéticas dum marmanjo sem pejo
registrando – para quem? –  segredos de polichinelo (urgh!) – desconhecidos
para a própria cabeça
execráveis, deixando tão inquietas as mãos
ah! mãos!
pobres destas mãos!
eternamente abertas para quem quer que se anime a tomá-las
mas, se quando muito recebem um’esmola, fecham-se sôfregas a agarrá-la
e se abrem, incompreendidas, sem saber o que fazer de si mesmas
e se põem na cabeça

À tarde

Defronte esta casa era uma rua que tomavas em noites frias sem luar 
Da janela eu olhava tua figura se afastando até no escuro desmanchar
E enquanto em outras ruas te perdias, me perdias nesta rua a te buscar
 
Por sobre esta casa iam tantas nuvens lentas a se transformar
Em amores, seios, pernas, caras, risos, luzes, túneis, horas, ventos, vozes mudas a entoar
canções que refletiam os meus sonhos nos teus olhos sempre a me fitar


Hoje escuto teu silêncio, a voz tão doce [muda neutra triste] a sussurrar
“Vem e ama minha ausência, e toca meus lábios num beijo no ar”


Dentro desta casa era um rio que me levava louco a navegar
por quartos, salas, tetos, dores longas, dias curtos, noites claras a esperar
o sono que eu dormia me roubavas tuas carícias a me torturar


Hoje escuto teu silêncio, a voz tão muda a murmurar
“Vem e ama minha ausência, e toca meus lábios num beijo no ar”


Hoje escuto teu silêncio, a voz tão triste a sussurrar
“Vem e ama minha ausência, e toca meus lábios num beijo no ar”



Novo design ainda mais esportivo

Uma Vejinha veio voando um voo rasante neste último sábado e pousou em minhas mãos.
Olho assustado para os lados, me perguntando de onde teria vindo objeto tão... tão... abjeto.
Na última página da Vejinha escreve hebdomadariamente um escritor que atende pelo nome de Ivan Angelo.
Ivan Angelo, sem acento no Ivan, sem acento no Angelo. Como na Terra dos anjos em que acentos, imagino, não existem.
Ivan Angelo escreveu uma crônica de nome "Vizinhos pássaros".
Em seu belo, belíssimo relato "Vizinhos pássaros" Ivan Angelo relata (relata? acho preferível dizer apenas "menciona") e cita pica-paus de peitinho amarelo e penacho vermelho que avançam com desenvoltura, produzindo o milagre de parar pessoas nas calçadas, encantadas com as cores e a destreza da "passarinha".
E assim vai flanando Ivan Angelo, beijando aqui e ali no pomar da realidade objetiva as dóceis flores que seus leitores necessitados de poesia estendem em sua direção.
Ivan! Ivan! Eu também sou capaz de escutar o melífluo gorjeio da passarinhada mesmo nesta São Paulo prenha de veneno, tão avessa a rolinhas, pardais, andorinhas e carcarás. Muito ao contrário, este demônio de metrópole só parece afeita a urubus e ratazanas...
Mas espera um pouco aí, caro Ivan...
Bateu um ventinho e a Vejinha escancara antes meus atônitos olhos uma propaganda dum C 180 Turbo.
Você de certo nem imagina, mas o C 180 Turbo é fabricado por ninguém menos que a Mercedes-Benz.
A Mercedes-Benz, caríssimo Ivan!
O C 180 Turbo da Mercedes-Benz custa apenas R$ 134.900,00 (desculpe, não sei se é assim que se escreve tão magnífica cifra...)
Mas, DE NOVO, espera um pouco aí, caro Ivan.
Quer dizer que você, escritor coisa e tal, lamenta o crepúsculo das aves NA MESMA REVISTA que nos incita a adquirir um C 180 Turbo por apenas... quanto é mesmo...?
Espera um pouco aí, Ivan.
Deve haver algo errado nessa história.
Andorinhas, colibris e o cacete têm muito pouco a ver com bólidos da Mercedes.
Andorinhas, colibris e o cacete...
Porra, que sei eu?
Andorinhas, colibris e o cacete não têm a ver com porra nenhuma neste mundo de escritores...
Escritores...
Sei lá.
Escritores ao volante dum mercedes voando mais rápido que um pintassilgo...


Fora de sintonia

Intrusa, e incógnita,
ela mede minha dor
tocaiada sob a língua
bem no fundo dos meus tímpanos.

Se recusa a uma visita
inda que breve 
para desvendar o mundo.

Então de raiva não a digo,
de teimoso não a escuto.
Se um dia fui garganta
hoje sou todo-ouvidos.

Faço pouco de sua música,
meto os dedos nas orelhas. 
A vingança é um deboche
a debacle do que sinto.

Nada me resta senão o esplendor dum tchau

Não sei se já lhes disse, mas tenho uma máquina de poesia, ponto e parágrafo.
Está quebrada, admito. (Como esconderia defeito tão óbvio?)
Semana passada levei a bicha a uma assistência técnica aqui perto chamada, coincidentemente, Técnica em Equipamentos Poético-Líricos Ferdinand Person.
O Carlos, atendente perito em reparações sem dor, garantiu que, sim, havia conserto.
Duvidei. Conserto? Com verbo haver e tudo mais? Não dá pra simplificar? Quando posso vir buscar?
O Carlos me deu um prazo de dois minutos.
Pra variar. Eu sabia. Eu já esperava. Por que até o Carlos tinha de ser tão previsível?
Aceitei mas voltei só três dias depois. Por, veja só, via das dúvidas.
Quanto é a facada, cara?
Se funcionar, o senhor me paga com meia dúzia de versos. Senão, esquece.
Fiz que sim com a cabeça pesada de esquecimentos.
Saí com a máquina de poesia pendurada nas costas, cheguei em casa, fui correndo ver se estava funcionando.
Só quando liguei na tomada me dei conta de que o Carlos me dera a máquina errada.
Não, porra!
O mesmo acontecera com meu autorama quando tinha nove anos. Viera com carros diferentes, de outras cores, outras marcas, outros emblemas. Mas, sôfrego por restabelecer meu mundo, fui fazendo de conta que era o meu original. Autoramas não podem diferir além do suportável, afinal.
Com a máquina de poesia não deverá ser muito diferente.
A manivela gira ao contrário, mas não faz mal.
A tampa é presa apenas com fita crepe. O cabo é, cruzes, listrado em verde e vermelho, cores antagônicas. E, quando conectei a alimentação eletrorromântica, esperando ouvir o velho, tranquilizador zumbido que sempre me deixava alarmado, PUF!
Nada! Era um desses "dispositivos" modernos projetados para manter o usuário alheio à sua (deles) existência.
Já me disseram...
Peraí, quem me disse?
Ah sim. O Carlos. Mas não aquele. Outro. Não há só um Carlos neste meu mundo.
O Carlos me disse...
Onde? Onde o Carlos me disse?
No balcão do nosso buteco, evidentemente. Onde mais poderia ser?
(Após aquele longo, breve dia em que rodamos pela cidade de São Paulo à procura dum buteco ideal para a confraternização que, sabíamos, seria a primeira e única na vida de nós dois.)
O Carlos me disse que essas máquinas novas silenciosas nunca pifam.
Nunca...? Quis saber, perplexo.
Jamais! Ele sacudiu a cabeçorra hipertrofiada feito a minha.
Não posso aceitar tamanha decepção.
Não sou do tipo movido a decepções.
Só me dou bem com surpresas, boas surpresas. Assombros, mas positivos, energizantes.
Bah, vou abrir o jogo duma vez: revelações mas revelações daquelas bem inspiradoras.
REVELAÇÕES, ó senhor das geringonças!
Não quero, não posso me contentar com o noturno opus 9 em si menor de Chopin, piedade...

Escola de cínicos IX


Se você
chacoalhasse
desde os bigodes ralos à ponta
do rabo imaginário
feito cachorro arguto
reverberando
as orelhas
flamulando do lombo
pulgas e pêlos
revezando as patas
vibrando as bolas
até
se livrar dos males
e deitar a cabeça-fantasma
sem medo
de ficar
zonzo de cinzas

sob liberdade condicional
na ínfima cela do eu
cujas paredes se
colam à
pele
coçaria a
barriga, atrás
da cabeça, o
joelho uma
coceira inventada
e pelo focinho
escuro e seco
exalaria um
terrível suspiro
para comprovar
mais uma vez
que está vivo
esta manhã
como sempre
esteve

suplicando
“tremor essencial
desencarna de mim
esta urna empilhada
no monte dos assombros
me dissemina e
reincorpora nas sombras
reinantes”


É só uma questão de ser sozinho

Ela abriu seu caderno (escolar?), me mostrando um texto escrito à mão.
Não sei se era um poema. Embora estivesse em forma de versos.
Uns oito ou dez versos.
Que li instantaneamente.
Terminava de repente.
Sem um desfecho.
Sem terminar.
Prometendo uma promessa que não poderia ser cumprida.
Abrindo uma ferida sem possibilidade de cura.
Preciso dum fim, pensei.
Preciso de mais, gemi.
Então, tomando o caderno das minhas mãos, ela se dispôs a procurar o restante.
E enquanto inspecionava página por página, em quase frenesi, meus olhos espionavam, em algum lugar lá fora, cenas que se criavam aleatórias com a finalidade de me consolar.
E enquanto ela buscava o desfecho de que eu precisava, meus olhos viajavam sonhadores por um mundo que não conheci.
"Não está aqui", ela disse, decepcionada.
"Onde poderá estar? Não posso ficar em suspenso assim."
"Pode estar em qualquer lugar".
E ela se foi, não necessariamente embora, se foi simplesmente, apenas se foi.
E me dei conta de que estava perdido como nunca estive antes.
E, com o laivo de lucidez que ainda me sobrava, segui pela rua tentando me orientar.
É por aqui em algum lugar, lembro que pensei.
Sim. Devo estar perto.
Minha casa fica daqueles lados, atrás desse morro.
Ou então é por ali, depois daquela curva.
Pois escuto minha música ao longe. Sinal de que estou no caminho certo.
Minha música, não a compõem abelhas venenosamente frustradas por não poder fazer mel.
Minha música, não a compõem anjos que se suicidam, incapazes de perpetrar minha ascenção.
Não a compõem entes, espíritos, crianças, ratos ou vermes estarrecidos ante a repentina percepção da própria inutilidade.


Minha comédia particular

Hesito entre a sensatez da mentira e a insensatez da verdade.

As figuras à minha volta no baile de máscaras rodopiam vertiginosas, sem me dar tempo de enxergá-las.

Que rodopiem. Me deixem zonzo como sempre estou e estive.

Para que vê-las quando sei que todas vestem a mesma máscara?

E você aí que me lê, não pense que isto é um poema.

Não sou poeta, já disse.

Não gosto de poemas.

Seres embevecidos de voz tépida, terna e doce me dão engulhos.

Também uso máscaras, admito. (Antes que você erga o indicador rígido em minha direção.)

Também uso máscaras?

Que me interessam minhas máscaras e se as uso?

Insisto: hesito entre a sensatez da mentira e a insensatez da verdade.

Hesito fervorosamente.

Hei de hesitar até o fim.


Necrológio

Por pouco não matei um p... hoje ã... que horas eram mesmo? Nem me dei conta, sequer tenho certeza se foi antes ou depois do almoço. Também não sei se quase matei ou se acho que quase matei. Não quis parar o carro para verificar. Sangue me deixa meio zonzo, um enjoo me sobe pelo esôfago e inunda a boca dum gosto acre. P... também. Sem falar desses outros facínoras que nos perseguem hoje em dia, ladrões, maconheiros, professores, funcionários públicos, economistas, esquerdistas pragmáticos, putz, a coisa tá barra. Para mim, não precisa nem ser bandido. Até entregador de pizza me assusta. Bom, entregador de pizza anda assustando todo mundo, não anda? Carteiro, então nem é bom falar. Porra, oquêi, eu assumo: qualquer um. Qualquer um anda me botando medo.

Os de terno e gravata são os piores. Você nunca sabe o que o sujeito leva nos bolsos internos do paletó. Nunca sabe em que circunstâncias ele... ã... como direi... ele obteve a gravata. Tudo bem, há exceções. Tudo tem exceção, até... ã... p... Mas se a gravata for de seda, aí a coisa, para obedecermos os preceitos do politicamente correto, tá afro-brasileira. Publicitário na certa. Publicitário p..., digo. É batata: pode pedir socorro. Ou perdão, se o cabra estiver perto demais e não adiantar sair correndo aos gritos suplicando ajuda.

Olha, aconteceu ainda semana passada. É, tô dizendo, seu. Foi c'um rapaz que morava aqui na rua detrás. Vê se pode, tão pertinho. Cê nunca sabe quão próximo o perigo pode residir. Quando foi mesmo? A sim, sábado à noite. A mãe e a irmã dele depois depuseram que viviam dando conselho, mas ele respondia que não tinha perigo. Cê acredita numa coisa dessas? Nunca vi tamanha imprudência. E sozinho! Tá duvidando? Vamos, te levo lá na casa dele, pergunte à mãe, à irmã. Eu mesmo fui, no dia seguinte, domingo, logo depois da missa. A Larissa ─ minha patroa, cê conhece, não conhece? ─ bom, quando chegamos em casa depois da missa, a Bete, irmã da Larissa, veio correndo contar. Eu tinha acabado de pôr o carro na garagem, estava baixando a porta de cerejeira que mandei fazer ano passado, paguei os olhos da cara mas é lindona, não é?, quando a Bete veio por trás e tascou na lata, é, assim sem mais nem menos, quase me mata do coração. Não acredito, eu e a Larissa meneamos a cabeça quando ela contou. É, igualzinho a reação que você teve agora. Pedi que ela me explicasse direitinho onde o coitado morava, ela se pôs a gesticular com os braços, as mãos, vire à direita ali no farol, depois a segunda à esquerda depois do supermercado, coisa e tal, eu disse, já sei onde fica, você vem comigo, benhê? perguntei à Larissa, ela disse, não, vai sozinho, depois você me conta como foi que tudo aconteceu, então eu fui.

Bom, para resumir, foi mais ou menos assim.

Eram umas nove e pouco, quase dez, a novela tinha acabado, todos se levantaram do sofá, pegaram os pratos e os copos, levaram para a cozinha, a irmã até deu com o joelho na jarra de suco de maracujá que estava na mesinha de centro e molhou todo o tapete, a mãe mandou a irmã lavar a louça, a irmã respondeu que era vez do irmão ─ que depois veio a ser a vítima ─, este, a vítima, se recusou alegando que já tinha lavado a louça do almoço, a irmã insistiu, começou um bate-boca, a mãe entrou no meio, o carinha ficou pê e disse, vou dar uma volta, a mãe riu, cê tá brincando, inventa qualquer desculpa para não lavar a louça, não, ele respondeu, eu vou sair mesmo, a irmã riu nervosa, tá bem, tá bem, pode deixar, eu lavo, seu preguiçoso, pode sentar lá para assistir o big-brother, o rapaz ergueu a voz, retrucou, vou sair, tô dizendo, deu uns passos firmes rumo à porta, abriu as quatro trancas e as duas fechaduras e saiu mesmo, a mãe me contou, ainda assombrada com todo o ocorrido, que chegou a se ajoelhar, implorando, prometendo, rezando para a virgem maria e outras virgens marias ou não, a irmã tentou se agarrar às pernas do irmão, ele ameaçou dar chute, à medida que ela ia descrevendo os fatos eu ficava cada vez mais atônito, me sentia igual a quando assisti a bruxa de blair, cê assistiu, não assistiu?, se até eu fiquei tão apavorado, imagine elas, bom, não teve jeito, o rapaz escancarou a porta e correu para fora sob os berros endoidecidos das duas, os vizinhos vieram acudir, alguns armados de foices e facões, outros munidos de martelos e o que quer que tivessem à mão àquela hora da noite, teve um que chegou armado com um serrote, alegando que os pedreiros que ele contratara para abrir mais uma porta entre a sala e a cozinha tinham levado todas suas ferramentas, sabe como é, pedreiro rouba tudo que estiver dando sopa, dois ou três traziam revólveres enfiados no cinto das calças, foi uma balbúrdia, as duas gritavam inconsoláveis, a mãe lamuriava que era seu fim, nunca mais veria o filhinho querido, os vizinhos que eram homens cochicharam alguns segundos deliberando se seria sensato irem atrás do rapazinho, por fim decidiram que não, era muito perigoso, tinham mulheres e filhos, não podiam correr o risco de convertê-los em viúvas e órfãos, a mãe e a irmã entenderam, lalarila-ri-rá, quem não entenderia?

Bom, estavam todos assim nesse alvoroço quando alguém berrou apavorado no meio da noite, olha lá! olha lá!, apontando para algum ponto no escuro, todos olharam e viram um vulto se esgueirando à beira dos muros do outro lado da rua, alguns juram ter vislumbrado um reflexo da lua, provavelmente era um desses p...s carecas que besuntam o cocuruto de óleo de girassol e depois lustram com flanela chinesa, é, cê sabe, a chinesa tá mais em conta hoje em dia, a maioria exclamou ó!, tapando a boca com a mão, predendo o fôlego, muitos saíram correndo de volta para casa, trancando ferrolhos esbaforidos, girando chaves nas fechaduras perplexos, um dos vizinhos, um negão parrudo que já foi lutador de box e hoje é leão-de-chácara nessa casa noturna que abriram aqui na gabriel monteiro, sabe qual é?, essa mesma, acho que se chama hot sampa nights ou algo parecido, bem, o leão-de-chácara aconselhou as duas a entrar, vocês não podem ficar sozinhas aqui, ele ponderou, é verdade, mãe, a irmã aquiesceu, quem sabe não houve nada, a mãe olhava o chão contristada, sacudindo a cabeça, lamuriando, meu filhinho, meu pobre filhinho, a irmã a puxou pelo braço até dentro de casa, trancou os ferrolhos, etecétera e tal, nenhuma das duas conseguiu dar sequer um cochilo durante a longa noite de aflição tentando imaginar o padecimento que o menino devia estar sofrendo àquela hora, logo cedinho alguém bateu na porta, a irmã foi correndo abrir, era o jornaleiro que tem banca na esquida da jacira com a tupinambá, saca?, pois é, aquela mesma, o cara nem precisou abrir a boca, o semblante fechado, aliado à carranca que ele já tem de nascença, era o bastante, ele simplesmente fez que sim com a cabeça, a pobrezinha entendeu, explodiu num choro compulsivo, a mãe ouviu e veio assuntar, então se abraçaram e passaram o dia todinho vertendo lágrimas, lamentando a sorte, o destino, os tempos modernos, cê sabe, essas coisas que a gente lamenta numa hora dessas.

Bom, para resumir, depois foram no i-ême-ele, o legista confirmou, sim, o rapazinho tivera uma parada cardíaca fulminante, caindo duro, olhos estatelados, quase se podia ver a imagem do p... publicitário careca estampada em suas pupilas, não tivera tempo sequer prum último pensamento, sabe, aquele trailer retrospectivo que, dizem, passa pela nossa cabeça um segundo antes de morrermos, pobre infeliz, mas, segundo o legista, passou desta para melhor sem padecer muito, pelo menos foi esse o consolo que procurou dar à desafortunada mãe, ela estava em choque e não soube responder, ficou lá repetindo que a vida para ela tinha acabado, que deus não tinha o direito de levar sua criança tão cedo assim para sabe-se lá aonde deus leva as crianças, a irmã estava um pouco mais conformada, embora também não parasse de chorar, cê sabe, amor de mãe é sempre mais profundo e doído, bom, em suma foi mais ou menos assim.

Nem é preciso acrescentar que depois disso alguns dos vizinhos se mudaram, uns deixaram a cidade, outros, é o que dizem, chegaram a sair do país. Também não é preciso dizer que agora todo mundo no bairro anda armado, até para ir comprar pão na padaria neguinho mete um 38 na cintura, às vezes olho em volta e me sinto no velho-oeste, o meu tá bem aqui, ó, escondidinho mas ao alcance da mão, pistola três-ponto-zero-meia, novinha, azeitada, pronta pro que der e vier, comigo não tem moleza, a, vejo que você também tá prevenido, é isso aí, mermão, tem coisa que não se brinca.

Bom, voltando ao assunto, eu vinha aqui pela bandeirantes e virei para pegar a ponte do morumbi, sabe aquela quebradinha que dá pros lados da berrini antes do chópin, pois é, eu vinha a uns oitenta... bom, cento e trinta, para dizer a verdade, aí avistei o sujeitinho atravessando a avenida, na hora não deu para pensar muito, cê sabe, a cento e oitenta as coisas acontecem rápido pra burro, bom, aí não tive dúvida, passei por cima mesmo, tudo bem, podia não ser, mas e se fosse e eu deixasse escapar? Hein? Como é que ficava? Já pensou? Não, não. Tô falando sério. Tenta imaginar a hipótese. Você tem a oportunidade de atropelar um p... mas perde a chance ou porque é um vacilão, um poltrão de marca maior, um covarde que não sabe brigar pela própria vida, ou porque naquela dia acordou sem muita convicção das coisas, sabe como é, tem dia a gente acorda assim, meio entediado, meio cansado ─ cansado, não, exausto ─ de tentar seguir nossos próprios princípios, cansado de seguir regras, bom, seja qual for a razão, você pega e perde a chance, me diga, você se perdoaria? Não, olhe, seja franco. Se perdoaria? Claro que não. Eu, na minha vida, vidinha simples de classe média que só sabe trabalhar, cê sabe, pois você também é igual, na minha vidinha humilde fiz muitas coisas das quais me arrependo mas que, com o tempo, aprendi a perdoar em mim mesmo, até nos outros, cê sabe, quando a gente é novo tem aquela mania de querer tudo pau, pau, pedra, pedra, preto no branco, acha que vai mudar o mundo, com a idade, aos poucos, você vai aprendendo a negociar com a vida, vai vendo que nem tudo é perfeito, você, menos ainda, começa a enxergar tuas próprias limitações e as dos outros, afinal todos dependemos uns dos outros, não é mesmo? pois é, a imprevidência é a madrasta de todos os enganos, então que foi que eu fiz? Peguei e carquei o pé, só via o ponteiro chegando nos duzentos, quando dei por mim o sujeitinho estava voando por cima do pára-brisas e subindo uns trinta metros no ar. Parei o carro logo adiante, esperei o corpo aterrissar, peguei o celular, custou um pouco para me lembrar do número, liguei para a polícia.

Bom, dei aquela desculpa que todo mundo dá hoje em dia, estava distraído, etecétera e tal, estava assistindo a novela no celular, sacumé, o delegado só estranhou eu ter dado marcha-à-ré e passado em cima do carinha mais oito vezes, eu disse, sabe como é, não sabe, doutor, a gente faz umas coisas que nem a gente mesmo entende, bom, no fim deu tudo certo, me liberaram, agora estou atrás do seguro para ver se eles cobrem uns amassadinhos no capô, o sujeito fez uma meleca danada na grade, tive de mandar lavar no posto, pior foi o que aconteceu com o Alcides, sabe o Alcides? Pô, aquele que foi inspetor de produção de firma, lembra? É, esse aí mesmo. Se eu te contar o que aconteceu com ele, você vai dizer que não acredita. Tô dizendo, parece piada. Ou melhor, história de terror.

Pois bem.

Estou sentado ontem na sala, vendo o palestra tomar uma sova do inter, quando o telefone toca, a Larissa estava no chuveiro, abaixei o som da tevê, xinguei a hora imprópria, gente que não respeita o lazer dos outros, já sabe quem era, não sabe? O Alcides. E aí? coisa e tal, porra, estranhei, não tá vendo o jogo, tu é palestrante até a medula, cê não sabe que me aconteceu, ele disse, mas disse com uma voz que na hora eu vi que era coisa séria. Peguei a latinha de brama, dei um belo dum gole, respirei fundo, tomei outra talagada, esperando o pior, chuta, falei, a voz até meio trêmula de ansiedade, putz, a gente não tem mais paz, tem hora que dá vontade de mandar tudo pro saco, cê não vai acreditar no que me aconteceu! ele ganiu quase chorando, pensei, putz, não, não pode ser, falei, não vai me dizer que... Quase isso, ele me tranquilizou, aí relaxei os ombros, recostei no sofá, bom, dos males o menor, pelo menos, bom, desembucha, que foi que te aconteceu? Sonhei que era, ele tascou na bucha, senti os pêlos eriçarem na nuca e nas costas feito um cão raivoso pronto para deitar os caninos no inimigo, putz! foi tudo que consegui balbuciar, a língua me enrolou dentro da boca, nunca tinha me acontecido antes, então vi que aquela história do sujeito engolir a própria língua é verdadeira, sempre achei invenção de quem não tem mais o que fazer, alguns segundos se passaram, consegui me recompor um pouquinho, perguntei só para confirmar se tinha escutado bem, sonhou mesmo? Sonhei mesmo, o Alcides confirmou. Sonhei que era p..., e riu nervoso.

Putz! exclamei, já emendando a pergunta, que foi que aconteceu então? procurando me colocar imaginariamente na pele do coitado, então, ele disse, então aconteceu o que acontece com todo mundo que tem esse sonho hoje em dia, que é que você esperava que acontecesse?, acordei encharcado de suor, uma bruta duma taquicardia, boca seca, pernas tremendo, meu, cê nem imagina o estado que fiquei! Imagino, sim, eu disse, a título de consolo, olha, comigo ainda não aconteceu mas sei que vai, tenho certeza, está acontecendo com todo mundo, olha tem noite que não consigo pregar o olho, aterrorizado com a idéia de ter esse sonho, meu maior medo é não acordar, já pensou?, cair num pesadelo desses e ficar trancado lá dentro, prisioneiro, cruz-credo!, nessas noites a Larissa me manda dormir na sala, de tanto que me viro na cama, agoniado, teso, puto, é claro que eu imagino, ainda mais eu, com toda minha imaginação, orwell perto de mim não tava com nada, como não haveria de imaginar, dizia assim tentando consolar o Alcides mas sem poder, lalarila-ri-rá, tem experiência que é indescritível, mesmo prum cabra bom de letras feito o Alcides, fez alemão na usp, fala russo como ninguém, o que, aliás, hoje em dia pode vir a calhar, sabe como é, veja só, estamos todos vivendo sob essa paranóia, todo mundo duvidando dos próprios amigos, de quem conhece há vinte anos, tem gente desconfiando do próprio irmão, do próprio pai!

Eu mesmo, que sou meio dramático, cê sabe, sempre me amarrei num teatrozinho, lembra no colegial, fiz um baita sucesso como Joaquim Silvério dos Reis naquela peça sobre a Inconfidência, lalarila-ri-rá, ninguém queria que fizesse o papel do traidor, logo um cara tão honesto feito eu, é para isso que servem os atores, respondi, não se pode confundir ator e personagem, cê sabe, bom, foi ali que conheci a Bete, acabei comendo ela atrás do palco, lembra aquele vão onde recolhiam a cortina?, bom, o resto cê sabe, a Bete me apresentou Larissa, com quem acabei casando, pelo-amor-de-deus, a Larissa não conhece essa história do palco, olha que ela me mata, putz, não devia ter te contado, você e essa tua proverbial compulsão ao mexerico, vai acabar dando nos dentes cedo ou tarde, bom, com essa minha queda para a dramaturgia às vezes me olho no espelho e digo brincando, mas uma brincadeira que me gela a espinha, talvez por ser tão bom ator, olha, no fundo me arrependo de não ter entrado pr'aquele grupo que queria encenar shakespeare pelo brazilzão afora, essa coisa de engenheiro não é para mim, definitivamente, tem dia me pego diante do computador, arrancando os cabelos c'um monte de cálculos, dá vontade de morrer, me pergunto, que é que eu tô fazendo aqui, meu deus? aí começo a lembrar das surubas que fazíamos na trupe, putz, aquilo é que era viver, bom, tem dia que me olho no espelho, arreganho os dentes, aperto os olhos feito um lobisomem, depois arregalo feito um bicho de sete cabeças, armo as mãos como se fossem garras prontas para trucidar, me olho bem no espelho, faço a mais medonha das caretas e solto um guincho de arrepiar: cê é p...! cê é p...!

Olha, tenho certeza que você morreria do coração se me visse fazendo essa cena, putz, juro, meteria medo até no boris karloff, olha, sem exagero, acho que até o próprio lulla mijaria nas cuecas, tem vez que entro num transe esquisito, preciso berrar Larissa! Larissa! está acontecendo de novo! Ela vem correndo, abre a porta do banheiro ─ pois é no banheiro que engendro meus dramas, cê sabe ─, me sacode violentamente pelos ombros, já chegou a me esbofetear, é, aquelas bofetadas bem ardidas e secas, as bofetadas dóem tanto, que às vezes desconfio de que minha própria mulher é p..., bom, ela me sacode pelos ombros e berra a plenos pulmões, você não é p...! você não é p..., berra várias vezes até eu acordar desse delírio horrível, já imaginou?

Eu sei, eu sei. Sou exagerado, sempre fui, mas não passa uma noite em que alguém nas redondezas não grite "você não é p...!", quando não é vizinho da frente é o da direita, quando não é da esquerda é o detrás, quando não é o pesadelo é esse manicômio, sempre no meio da noite, nas profundezas abissais destas neurastênicas noites, se é que você me entende, ninguém mais sabe direito quem é ou não é, irmão desconfia de irmão, pai desconfia do próprio filho, vê se pode! depois que eles passaram a usar peruca e esconder as camisetas com aquela coisa amorfa e maligna nossa paz acabou. Qualquer um pode ser um p... disfarçado. Falando nisso, esse teu cabelo tá meio... será que... putz! Você! Não, não posso acreditar! Te conheço há trinta anos! Estamos ficando todos loucos, seu...






Para Sylvia Plath

Saindo direto de Age of Aquarius para um noturno em mi maior de Chopin, pensando em escrever neste meu quarto para o qual mudei muito recentemente sob um calor de 500 graus à sombra nesta noite sem lua ou estrelas, povoada apenas dos sussurros metálicos na rua e lembranças desesperançadas, concluindo que minha única saída é me abraçar a uma serpente.

Uma serpente peçonhenta.

Queria saber de vocês meus amigos leitores o que acham dessa minha conclusão, preciso que me digam, vou esperar a resposta pois é questão de sanidade mental ou trevas psicóticas.

Explico:

É que, imagino, uma serpente peçonhenta por quem me apaixonasse provavelmente exigiria que eu cumprisse à risca minhas promessas.

Não, não sou relapso.

Só esperava que quando dissesse, "Benzinho, estarei de volta no lusco-fusco do crepúsculo...", ela, a serpente peçonhenta, em vez de rir, se limitasse a sibilar cissssssssssssshhhhhh e quem risse fosse eu e então trocaríamos faíscas e chiados, lotando com nossos ruídos o ar vazio à nossa volta, eu e esta minha serpente de medonha peçonha.

Mas devo, antes que meus milhões de leitores respondam, devo subir o volume de Daydream, com a improvável banda holandesa Wallace Collection, baseada em Tchaikovski. Devo ainda confessar que redijo mais esta insensatez ainda sob os eflúvios etílicos da tarde que se seguiu a esta manhã que veio após esta madrugada e assim por atrás, atrás, atrás...

Acordei às 7 e tantos, ressaca cavalar -- não sei se me regozijo por saber me manter no reino da zoologia --, me ergui da cama pensando estar atado a uma cadeira elétrica, dei duas ou três voltas ao mundo sem me surpreender por coisa alguma e retornei de língua de fora, vira-lata existencialista marrudo apegado às convicções que um vira-lata é capaz de desenvolver em sua faina vagabunda.

Acordei às 7 e tantos e, dio mio, fui ler Sylvia Plath.

Mas em vez de ler Sylvia Plath, me vi obrigado a escrever para ela, como sempre me ocorre.

E botei Daydream no último volume e escrevi assim:

Para Sylvia Plath

Na maioria eles estacionam longe, mesmo havendo vaga em frente, e vêm chegando sorrateiros, cabeça baixa, quase às escondidas. Não olham para os lados. O portão fica convenientemente às escuras. São quase todos velhos, caras que se pretendem circunspectas mas que denunciam a angústia da transgressão constrangida. Algumas velhas senhoras ousam comparecer sozinhas qual adolescentes fugindo da família. Muitos são gordos, alguns obesos, párias da classe média não aceitos em outros circuitos do epicurismo. Se não jogam, ficam em casa a se empanturrar, remoendo a culpa pela glutonice, provavelmente com muito maior amargor. Assim optam por um tipo de autodegradação que confira ao menos algum prazer sem cobrar o alto preço de fechar os olhos diante do espelho.

Sylvia, há também os moços e as moças. Me espanto vendo-os vindo dar seu suado dinheiro aos donos da jogatina. Invariavelmente se vestem com discrição e simplicidade, tons pastéis, de certo receando chamar atenção. (Mas obviamente chamam a dum sujeito desgarrado do rebanho como eu.)

Mesmo o jeans é raro entre essa extemporânea moçada. Envergam ares de jovens cansados e desiludidos, envelhecidos demasiado cedo. Deslocados, a esta hora deviam estar alhures, bebendo vodka com energético, esnifando coca, curtindo os vícios próprios da idade. Em vez disso movem-se para dentro e para fora da grande casa silenciosos, olhares no chão, semiocultos na penumbra da noitinha, lamentando a insufiência das sombras.

O recém-chegado dá um envergonhado toque na campainha e é instantaneamente absorvido como se um hiperaspirador quântico o sugasse num piscar da história. Às vezes tenho a pachorra de fazer um pouco de farol na porta de casa acompanhando o movimento e então flagro uns e outros caindo fora nem dez ou vinte minutos se passam. Provavelmente são os mais afoitos. Ou entraram sonhando com a jogada milagrosa que lhes daria uma bolada suficiente para um mês de mercado ou já saíram de caso predispostos a perder logo tudo de uma vez na esperança de abreviar ao máximo, e ao mínimo, o sofrimento da impaciência. Qualquer que seja sua categoria, as maquininhas de arrancar grana de doentes os deixam lisos assim que finalizam a consumação média estimada. Permanecem no casulo tumular sobrecarregado de fumaça de cigarro apenas o bastante para algumas meias cervejas, das quais a derradeira abandonam pela metade assim que se dão conta de sua indefectível falta de sorte e fogem apressados para retomar suas vidinhas sem perspectiva.

Sylvia, sei que posso estar soando moralista. Mas, veja, não tenho de fato pena dos jogadores. Pelo contrário, admiro neles a facilidade com que se entregam à única curtição que ainda lhes é possível e a despreocupação com que dão de mão beijada suas economias aos "empresários" do jogo.

Eis um vício que jamais dominaria minha vontade, por fraca que seja, nem os resquícios que ainda me restam de sensatez, que nunca foi meu forte. Apostar no mano a mano com um computador que está sabidamente programado para trapacear flutua soporiferamente longe do meu entendimento. Me render ao autoludibrio, mesmo que por livre e espontânea vontade, a lúdico título, não faz meu gosto nem satisfaz minha vocação à desconfiança. Me pergunto se pode haver gente que curte ser enganada. Pode, obviamente, me respondo indiferente. Para que fim, nem imagino. Será sentimento de culpa que requer expiação circular e constante? Quem sabe. Nunca fui bom em análise psicológica. Cada um que seja louco como melhor lhe aprouver, não é mesmo, minha cara teutônica?

Eu nunca participaria dum esquema que não me permitisse auferir algum dividendo. Mesmo que simbólico. Se um dia entrasse num bingo, contendo o nojo daquele fedor misto de cerveja rançosa esparramada nos tampos das mesas, montanhas de tocos cigarros desamparadamente esmagados nos cinzeiros imundos e coxinhas, quibes e esfirras esquecidas pelos cantos, não ia sair sem um lucro qualquer, por ínfimo que fosse. Poderia ser um uísque por conta da casa a título de consolo pelos meus dez reais perdidos ou um brindezinho como um boné com a inscrição "Sou idiota, jogo no bingo do Zé". De mãos abanando e cara de tacho, nem pensar.

Certo, os velhos - talvez não incluindo aqueles que frequentam bingos - antigamente costumavam recomendar a nós jovens, "nunca diga 'deste uísque não beberei'". Gostavam também de repetir preciosidades como "o mundo dá voltas", dito que eu, molecão afeito a radicalismos e chegado a um preto-no-branco, achava risivelmente imbecil. (Embora hoje saiba que é um dos pilares da existência e que não se ri impunemente dum dos pilares da existência.)

Ainda que leitor desde pirralho, sempre tive problemas com o potencial evocativo do vernáculo. Lembro que, púbere, metáforas e metonímias me irritavam. Passando pela escola, fui forçado a me submeter às figuras de palavra e de linguagem de que todos padecemos. Até assimilei algumas, só para me dar conta de que hoje em dia ainda as detesto, tal como Roth e outros grandes americanos mas que eram o xodó da minha iridiscente Sylvia. (Provavelmente o são para os poetas em geral.)

Em contrapartida, todo mundo e sua sogra hoje diz "risco de morte", ao que parece em nome da "clareza" da comunicação e sob o pavor de que as infinitas complexidades da língua fujam ao controle, que já é desoladoramente parco. Nesse sentido, acho mesmo que esses semi-letrados têm razão: é melhor estarem bem seguros de suas palavras, por mais pobres que estas sejam, do que se aventurarem numa sutileza linguística que na verdade signifique o contrário do que pretendem expressar. Falar "risco de morte" no fundo é sensatamente não correr riscos de morte de vexames semânticos.

Quando dou ponto e parágrafo a música cessa e acordo do transe.

Que é que estou fazendo?

Disse cassinos, linguística, contrapartida, nesse sentido, me dirigindo diretamente a Sylvia?

Que raios sei dessas coisas? Quem estou querendo imitar? Quem estou querendo enganar?

Não sei falar dessas coisas, você, mais que todos, é testemunha. Não sei falar assim mansinho e disciplinado não senhora.

Por que não me deu um safanão, minha gélida e alourada germânica intérprete da vida que corre além de mim?

Coisas como contrapartida, nesse sentido e outros penduricalhos do jargão acadêmico infrigem minha regra de dieta faquiriana a qualquer custo e prova.

Estabeleci para mim mesmo minha dieta faquiriana de escrita há dezenas de anos, quando descobri que, qual qualquer cristão ou judeu, não sou imune a desandar na xaropada. É verdade que quase tudo que se escreve por aí é encheção de chouriço, inclusive entre os grandes, tirante os gênios. Mas um limite razoável faz-se necessário. Nós que escrevemos por compulsão não vamos largar o osso por tão ridícula ninharia. E os que nos leem por inércia ou falta do que fazer certamente são piedosos e condescendentes e, estimo, preferem preservar a amizade, mesmo que impessoalmente digital, a me esfregar na fuça de peroba a abrasão da verdade.

Mas, em que pese o retro-referido, peço aos meus caridosos amigos digitais, os únicos que ainda se dignam a passar a vista pela indigência das minhas palavras, que fiquem atentos. Não apenas: precavidos. Ainda mais: desconfiados.

Se porventura suspeitarem que escrevi este texto ou qualquer outro como se estivesse dormindo, rogo que me acordem cum belo cutucão de indicador rijo bem no meio das minhas costelas. (Ando meio acima do peso, por isso não economizem na força ou na raiva.) E não estranhem que eu possa escrever durante o sono -- é o estado em que perpetro a maioria das minhas saladas de abóbora doce. Simplesmente não me deixe rezingando quando tá na cara que, ao invés de escrever, eu queria estar mamando meu uisquinho com água de coco nos braços da minha impalpável serpente peçonhenta.

Você, meu amigo digital, também é um dos que vai levando? (Pelo amor do senhor que está no céu, não vá pensar na música do Chico, please. Alguém me faça a misericórdia de chacoalhar a sombra que projeta por sobre todos nós esse sujeito.)

Quanto a mim, sim, vou levando minha luta diária me abanando nesse calor dos infernos durante o dia, dormindo de cueca ou peladão feito um nenê hipertrofiado, morrendo de frio à noite, selando os lábios com fita crepe durante o sono para que deles não me escape nenhum dos muitos segredos que conheço.

Tenho uma pequena canoa de plástico.

Nos fins de semana pego minha canoa de plástico, passo na bomboniere pertinho de casa, pego uns docinhos que me lembram as guloseimas que mamãe me fazia para lanchar na escola junto cum sanduíche de presunto e umas rodelas de salame e vou pescar na lagoa que tem no parque desta cidade em que moro e não quero outra coisa na vida senão talvez reformar minha cozinha (você sabe, trocar os azulejos e o piso, mudar a pia de lugar, desintupir o ralo que vive entupido, essas sarnas que pegam em todos nós mortais). Se um dia tiver meios para viajar, hei de trazer aqueles estonteantes almofadões da Macy's.

Nos bolsos da frente das calças vou levando, de novo, alguns punhados de farelo para o caso de me dar vontade de passar no parque aqui perto caso me dê vontade de alimentar as garças e os cágados e os porteiros, embora, sei, seja proibido como tudo que é bom nesta nossa vidinha sem graça. Quando vou ao parque procuro um banco afastado, sem companhias indesejáveis, de onde possa assistir à lida dos varredores dedicados a manter limpos os jardins que nesta época do ano estão salpicados de azaleas brancas, vermelhas e rosas e borrados de hortências roxas e lilazes.

Mamãe botava muito fermento no bolo de fubá com banana que fazia semanalmente para mim e desde pequeno me chamam de gordo, o que hoje sou por culpa própria e de mais ninguém e ser responsável pelas próprias culpas é um dos poucos consolos que me restam.

Os varredores no parque são quase todos velhos ou jovens já com pinta de velhos, fugidos das roças do Nordeste e de Minas e me sinto catolicamente superior a eles e é dessa gente que posso me sentir superior e mesmo assim alguns passam por mim e têm o topete de me olhar de cima como se guardassem na manga alguma razão para me esnobar. Se fosse parrudo mostrava o dedo para eles e ia pra cima e perguntava tá olhando o que, porra? Olha que te enfio o cabo desse varrourão no rabo. Espalho o farelo na beira do lago e resolvo dar o fora antes de arrumar encrenca.

Na saída do parque a prefeitura está instalando aqueles tubos gigantes para coleta de esgoto ou água da chuva e há uma centena deles enfileirada ao longo da comprida, funda vala já escavada, formando um túnel no qual entro fingindo que me conduzirá para as entranhas do planeta e daí para o inferno onde o diabo me aguarda às 15:45 para me recepcionar com toda sua diabólica pompa. Um operário de capacete e uniforme laranja me vê e ri se perguntando que é que um cara da minha idade tá fazendo correndo dentro dos tubos fingindo conversar com alguém invisível e me dá gana de responder que pelo menos tenho todos os dentes e não vou morrer seco na fila do SUS embora ninguém me espere em casa esta tarde mas pelo menos não tenho nove caraminguás esfomeados me esperando chegar depois do trabalho para ser expulsos do quarto-e-cozinha enquanto o patriarca fertiliza a escrava sexual encomendando o futuro décimo abridor de valas para prefeituras. Me dá gana de saltar pra cima do fornicador e impor um fim à sua sanha procriadora mas ele está carregando uma marreta de nove quilos num dos ombros e decido ficar na minha.

Um galo canta no viveiro das galinhas me lembrando que preciso voltar à bolha de realidade onde vou sufocando torcendo minuto a minuto para que exploda e me exploda junto e me leve para onde são levados os que não sabem viver fora de suas bolhas de realidade.

Cerro as mandíbulas, lanço minha bengala à frente e vou.

Estou usando bengala há umas semanas. Pensei que não fosse ter paciência, que alguns quarteirões apontando esse troço pro chão cuidando pra não enfiar na grade dum bueiro ou em merda de cachorro seriam o bastante para esquecer a brincadeira mas me dei conta de que um processo se iniciava em minha vida e comecei a aceitar este novo processo em que arrasto pra cima e pra baixo este meu novo apêndice que, me dou conta agora, me fez falta desde sempre. E vejo, bem podia ter nascido com três ou mais pernas que me ajudassem a assegurar este meu equilíbrio que sempre foi insuficiente.

Sim, enquanto estava no parque escutava as Gymnopédies de Satie em meu mp3 e esqueci de acrescentar que lá dentro dos tubos de esgoto me sentia no túnel do amor e que meu destino era a terra prometida onde Sylvia me aguardava à mesa para um jantar com trufa rosa, arroz tropeiro com manga e presunto com pêssego e uma caixa de banana de sobremesa e uma edícula presidencial onde me proporcionaria meu orgasmo poético supremo e final, sugando de mim três baldes de esperma para que estes meus instintos sexuais me deixassem definitivamente em paz e eu nunca mais sonhasse cuma buceta.

Lembro que, aos 6 ou 7 anos, chupei um pêssego e pensei estar diante da porta da vida.

Uau, há tanto não me lembrava desse momento hoje absolutamente apodrecido.

Não, não é que a vida não tenha porta.

Tem.

Mas a porta é só o começo dessa conversa.