Blogando 0014

Espero que a numeração esteja correta. Boa ideia essa que tive de Blogando número tal. Tava ficando sem opções para os títulos das minhas postagens. Os quase dois leitores que me acompanham fielmente, tirando a carcamana aquela, sabem do que estou falando. Neste exatíssimo instante estou ouvindo Twilight Time com The Platters e me lembrei de que até os 14 ou 15 anos me intrigava que os autores da música pop não tivessem outro tema senão o amor. Digo, o amor juvenil, claro, nada a ver com o que acontece conosco e nosso amor depois do casamento, da maturidade, da responsabilidade, da luta pela sobrevivência. Bidu. O rock e congêneres é um gênero para adolescente. Por isso o curtimos, por isso o ficamos curtindo até altas horas da vida como se nunca crescêssemos. Sinto citar outra vez DFW mas, olhe lá fora, veja aquela grande indústria do pop baseada na nostalgia desta era de tubérculos semoventes. Putz, não queria estragar tua noite. Você está esperando acabar o jornacional para cair de cabeça na novela e não fica bem eu cometer mais uma das minhas indelicadezas. Eu também gostaria de ser capaz de devanear assim. Alguém me ensina?  Podemos cantar aquela música do Ghost num karaokê qualquer aí da vida. Cerrando os olhos para tudo e todos nós inclusive. Há tantas décadas ando tentando retornar ao meu estado juvenil il il

Theme From a Summer Place

Quando começar a entrar no escuro
se assegure de que um fio, qual o de Ariadne,
se estenda até o colo duma pessoa amada
sem estar retesado em demasia
mesmo que seja apenas aquele que
liga o presente a outro esplendoroso instante
na sua infância.

Minha parte dividida pelo número de mim

Sou forte.
Um soldado de mim mesmo.
Olhar focado no infinito, cenho compenetrado em minha missão designada de me policiar e proteger.
Posso crispar os punhos e retesar os músculos dos braços e esbravejar.
Sou forte.
O bastante para defender o que me cabe defender.
Que é que me cabe defender?
Não sei exatamente.
A mim mesmo talvez?
Mas sei que sou forte o bastante para defender o que me cabe defender.

Sou forte o bastante para esquecer.
Sou forte o bastante para não lembrar.
O bastante para olhar sempre avante.
Sou meu sentinela.
Sou minha princesa.
Sou forte.

Não saquei o cinismo das pessoas senão 30 anos depois de nascer


E os
seios foram dotados de 
bicos tão anatomicamente
chupáveis, e o pênis e a vagina formatados com tamanha
interadequação 
anatômica, e os pássaros 
incumbidos de portar
o pólen entre as plantas por serem tão belos e por isso
mesmo menos suscetíveis à 
predação 
pelo 
homem, e foram
adicionadas baratas para que às vezes pensemos, por que
existem certas coisas 
neste 
mundo?, e assim matutemos e
assim nos inquietemos e 
assim lutemos 
por 
melhorar,
melhorar, sempre cada vez mais, até nos convencermos
da naturalidade do 
mundo e concluirmos que tudo
é perfeito porque tudo 
é 
exatamente 
assim como 
é.
Mas, olha, está tudo errado.

Blogando sei lá que número


Zezeí vai aprendendo a liderar nossos passeios. Me mantenho uns dois ou três passos atrás. Ainda não contei que nunca usamos guia. Nas calçadas diversos velhotes aposentados, desocupados em geral, donas de casa e de apartamento e empregadas zanzam com seus cãezinhos de pelúcia. Alguns, se vê pela estirpe e orgulho do acompanhante, pequenos campeõezinhos. Todos, os da moda: poodle toys, shih tzus, bulldogs franceses, lhasa apsos e schnauzers. Nenhum viralata. Pra quem não sabe, schnauzers são aqueles que têm a cara do Machado de Assis. Zezeí nutre especial temor deles. Parecem defacto amedrontadores, embora de tamanho módico.

Mesmo sob 50ºC à sombra, muitos impõem camisetinhas e jaquetinhas aos seus bichinhos, que desfilam com os mais variados penduricalhos nas orelhas, nos topetes, nos rabos (ou devemos proferir "caudas"?). Os pobres diabinhos se tornaram as mais recentes vítimas do consumismo desvairado da classe média imbecil (se você é desfilador de cãezinhos e pertence às classes médias, não se amofine; meu adjetivo pode não se estender genericamente a todos que tenham tal perfil (ugh)). Existe uma onda assoberbante de humanização dos cachorros. Donos tarados querem trazer suas bestinhas à sua imagem e semelhança. Dada a desembestada evolução da tecnologia, na certa conseguirão mais dia, menos dia. Só espero que não a ponto de dono e bicho trocarem de papéis. 

Há uma rede de lojas para artigos pet (ugh) aí que fatura 400 milhões ao ano. Well, estamos numa democracia (ainda; pelo andor com que as classes baixas estão elegendo quadrilheiros lullistas, muito em breve seremos mais uma nação sob a égide do bolivarianismo chavista; desconfio que então seremos obrigados a entregar nossos mimosos pets às garras do Estado para que este os transformem em sabão de pedra em nome da revolução socialista). Well again, prefiro assistir à diuturna parada dos fofos malandrinhos caninos acompanhados de seus (às vezes) desorientados proprietários que ao avanço do Exército Vermelho Brasileiro pelas ruas e avenidas da cidade sob o ritmado rufar dos tambores de Zé Dirceu. Que extremos mais díspares esses que a nova configuração mundial nos coloca, não acham? Parece cada vez mais difícil tomar partido neste mundo.

Hoje pudemos desbravar quase dez quarteirões eu e Zezeí, ou melhor, pela ordem, Zezeí e eu, sempre mudando de calçada ante a possibilidade de cruzarmos com outros cães no contrafluxo. Zezeí pode ser bem aristocrática às vezes. Ao contrário da maioria de seus primos e tios, não sofre da característica curiosidade canina por outros espécimes de sua espécie. Au contraire, passa o mais longe possível deles. E é com garbo e nobreza que passa longe. Sem sequer dignar-se a um olharzinho de esguelha ao desprezado. Fico até compungido ante tamanha frieza.

Sob os 50ºC à sombra, todos trazem uma garrafinha de água mineral à mão. Seguindo a recomendação daquele médico que perora na tevê, certamente. Também resolvi seguir o doutor. Enchi de vodka gelada uma garrafinha de Minalba e lá fomos nós sete e meia da matina. 

Jesus, what a kink. Alimentado pelo aguardente de batata, meu tubérculo preferido, meu cabeção destrambelhado foi engendrando mil autodescobertas por passada, mil versinhos por atravessada, mil poeminhas por quarteirão. Meio desconsolado, sabia que tudo se pulverizaria em milhões de caquinhos de letras mal chegássemos em casa. É assim mesmo, mas. Até que estou me acostumando. Não se pode ganhar sempre. Quem disse que poesia é só aquela que se registra em papel ou na página dum blog?

Estavas tão familiarmente estranha, que esqueci teu nome. Estavas tão arrebatadoramente sedutora, que procurei ávido o cheiro da tua buceta. Tua língua em minha boca era o passaporte à dimensão que me faltava, te disputando com os três mosqueteiros, os três patetas, os três cavaleiros do apocalipse e o infinito aborto. Pois eras tão desconhecida, que não reconheci teu rosto.

Voltamos e comecei a construir uma usina de refazer pensamentos meus next to meu alambique artesanal onde haveremos de misturar a batata com cevada, centeio, trigo e milho. Estamos pensando também numa fábrica de salgadinhos amanteigados junto com um laboratório de Marrobone com fragrâncias e aromas especiais das montanhas do Afganistão, terra do meu saudoso Flip.

Logo será novamente nossa hora. Eu e Zezeí, digo, Zezeí e eu estamos sempre prontos para o que der mesmo que não venha. Se formos nós, será bastante.

Blogando 0012


Manhã de domingo. Domingo de manhã. O vizinho liga sua chaleira barulhenta e acelera fundo, mostrando que acordou e nos quer acordados. Não tem grana para trocar o escapamento. Os vizinhos, todos, vivem para seus carros. Trabalham para e se deixaram escravizar por. Exceto o da frente, que não tem. Fico imaginando por quê. Meio que me encafifa, na medida em que me permito me encafifar por outros. As pessoas são tão planas e lineares. Se vestem do mesmo jeito, riem do mesmo jeito, falam as mesmas coisas do mesmo jeito. Estão satisfeitas com o que lhes coube. Inclusive o da frente. Esse fez um jardim onde era a garagem. Do qual um jardineiro cuida periodicamente. É esmerado. Usa roupinhas que parecem ser de grife e deve fazer academia, se vê pelo físico modelado. O esmero também se mostra em sua casinha. De todas, é a única que tem personalidade. Eu também gostaria. Eu também gostaria que a minha também tivesse se tivesse paciência para esse tipo de coisa. Será que sou igual a todo mundo? Em parte, talvez. Não me visto do mesmo jeito, não rio do mesmo jeito nem falo as mesmas coisas do mesmo jeito. Mais por injunção que por opção. Mas é domingo de manhã, manhã de domingo, e não vou filosofar. Nem cair nas minhas velhas digressões. Hoje quero um pouco de controle. Vou tentar manter um pouco de controle. Controle me faz mal. As doenças de que padeço, cada uma delas, e são tantas, as devo ao controle e à minha inépcia a ter controle e à minha ojeriza a controlar e a ser controlado. I'm easy like a Sunday morning. Nove horas. Cinquenta anos atrás estava passando pela grande porta da matriz com papai, mamãe e a mana. Que delícia. De volta à liberdade e ao livre arbítrio depois de uma hora sob o mais cruel, o mais nauseabundo controle católico. Dali rumávamos para a casa de vovó, a apenas um quarteirão e meio, onde toda a família se reunia para o almoço dominical. Vizinha à casa havia uma igreja protestante em cujos cultos tocavam o dia inteiro um órgão mortalmente entediante e que tinha aparência muito mais sóbria que a nossa matriz carregada de imagens e rapapés estilísticos. Dentro da casa, um bando de gente rabugenta e ruidosa, especialistas em fungar e resmungar, sempre torcendo e retorcendo seus nasones carcamanos e ranhetando em suas vozinhas irritadiças e seus vozeirões sonolentos de nenês chorões. A maior concentração de neurastênicos do Estado de SP. Era um choque insentido, do qual vim a ter consciência só anos depois, na barafunda da adolescência, me deixando no fundo da garganta esse sabor amargo de herdade amaldiçoada. Será que o Lula também sente isso? O candidato do Lula está levando Sampa hoje. Horror. Fim do mundo. Fim da picada. The end my friend. Quero ir embora deste país. Deste país de amorais aproveitadores e vagabundos sempre à espera de que seu pão caia do céu direto na cesta para não terem sequer o trabalho de se abaixar para recolhê-lo ô. O gayzinho está fechando a porta para mais uma de suas saídas misteriosas. Que gayzinho? O vizinho esmerado. Qual é o diminutivo de vizinho? O vizinho gayzinho nunca recebe ninguém, nunca o vi acompanhado. Aparentemente não tem amigos e, se tiver parentes, nunca o visitam. E parece não ter namorado tampouco. Um vizinho esmerado solitário. Um vizinho esmerado solitário discreto. Quando estou saindo com Zezeí e damos de cruzar na calçada, ele me saúda cum aceno seco da cabeça. Seco mas não hostil. Existe até um sorrisinho acolhedor no rostinho infantil. O meu, sim, é. Pois sou. Sei que não dá pra notar. Os vizinhos notam, porém. Não sei se me regozijo ou deploro. Ora um, ora outro, dependendo do meu estado mental. Que é extremamente volátil. Sei que não dá pra notar. Quando escrevo sou capaz de filtrar minhas idiossincrasias para que minha escrita se fundamente em parâmetros e critérios outros. Não, não pensem que é tudo invenção. Os vizinhos pelo menos não. O calor africano está voltando. Preciso botar umas cortinas brancas na janela e tentar amenizar este crematório. Joguem minhas cinzas no rio dos Meninos. Para que se juntem ao caldo negro de estrume, fezes e querosene e se depositem no fundo do leito, um bom lugar para meu descanso eterno. Agora tenho de ir até a rotisserie do italiano ver se sobrou carne assada. Senão, vai frango atropelado mesmo. Que seria da humanidade sem frango? Christ, que foda ser duro. Sai um frango pro durango. Outro pro durango aqui. Mais um pro durango ali. Tem carcamano demais nesta cidade. Leio no blog da família que nono e nona desembarcaram do vapor Regina Margueritta que aportou em Santos no trágico mês de fevereiro do catastrófico ano de 1897 e de lá puxaram o carro para a infeliz Espírito Santo do Pinhal no lúgubre interior do Estado. Longe pacas de Las Vegas, a cidade civilizada mais próxima. O nono e a nona do italiano do frango idem. Coitado. A esta hora podia estar feliz da vida em Nova York gerindo o tráfico de crack e o aluguel de putas. Eu provavelmente estaria fazendo o mesmo que faço aqui, i.e., espiando a vizinhança e matutando o que escrever, seduzido pelo meu fiel copo de balla na mão e hipnotizado pela garrafa sempre ao alcance dos olhos. Como todo escritor alcoólatra, nutro a conveniente fantasia de que escrevo melhor alcoolizado. Atualmente não me atrevo nem a almejar a escrever melhor mas a simplesmente escrever. Estou num dos meus malditos interregnos criativos. Bebendo como nunca pra ver se a inspiração volta. Sei, objetivamente, que só piora. Pelo menos é um bom motivo. Para ambos: beber e escrever. Carcamano, lá vamos nós. Zezeí vai direto para o pé da máquina de assar e ficará lambendo o chão em torno, respingado de gordura. Foi aqui em frente outro dia que uma cadela pitbull pegou outra, viralata, que estava presa na guia por seu dono, e só não a matou porque este humilde blogueiro agarrou a agressora pelas patas traseiras, chacoalhando-a-a até que largasse a pobrezinha da vítima, que, ainda mais, era cega. Até que foi legal escrever nesta manhã de domingo. Domingo em geral vou derivando macambúzio rumo à noite, do que só uma garrafa novinha em folha de balla me salva. Voltarei a experimentar. Queria escrever mais, o dever me chama mas. Nem sempre escrever diverte. Tô meio sem grana. Preciso arrumar um jeito de ganhar dinheiro. Se não fosse vasectomisado tentaria levantar uns trocados num banco de esperma. Quanto será que pagam a dose? Será que testam à procura de vasectomia? A ideia, sim, me diverte. Deixar minhas neuroses, que não são nada softs, sei que não dá pra notar, para um desconhecido por aí, pobre diabo, não tendo um pai em quem descontar a raiva de ter nascido. Qualquer hora vou até a praia com uns três litros de balla, alugo um barquinho e me mando pr'alto mar. É uma promessa. É um plano. Percebi nos últimos dias que há alguém traduzindo este meu humílimo blog para o inglês através do Google Translator. Só pode ser a Camille Paglia. Pelo menos aqui ela não haverá de encontrar motivos para descer o malho em blogueiros que não sabem escrever, como sempre faz. Ô língua maldita. Este é pra você, carcamana. Em Blogando 0013 vou contar como fui salvo do assédio dum homossexual quando estava parado na esquina olhando o trânsito passar e vou explicar, ou tentar, a calamidade que este calor desumano provoca nas mulheres desta cidade esquecida por deus e desprezada pelo diabo. Falarei ainda do cartaz de "procura-se" colado num poste com uma foto minha. E por que passear nesta cidade é mais difícil que baiano ter enfarte.

Enquete submetafísica


Prezado pesquisando(a), imprima este formulário e registre suas respostas no papel. Posteriormente, nos envie-no para que possamos cruzar e compilar o output e submeter o subsídio ao governador do Estado.

Gratos.

1) Qual ano você acha que foi cabalístico em sua vida?

Não, não vamos perguntar por quê. Sabemos que cada um de vocês aí fora tem um ano especial e, para nosso azar, o mesmo difere caso a caso. Em geral, porém contudo, o tal ano é sempre o do início da adolescência de cada infeliz, não é mesmo? Ô raça dura de crescer, caráleo!

2) Quem é o amor secreto de sua vida? 

Olha, tudo bem, entenderemos se você disser que não tem nem nunca teve amor secreto. Olha, entenderemos até mesmo se você disser que não tem nem nunca teve amor de nenhum tipo, seja secreto, explícito, anunciado, propagandeado, o cacete. Sabemos (ou pensamos que) como são essas coisas. Sabemos, é foda ser terráqueo, terreno, seja lá como se chamam os seres provenientes deste planeta. E olha pela terceira vez, esta segunda pergunta enseja um tratado filosófico e poderia se estender por, sei lá, quinze mil tópicos. Certo, somos doidivanas mas não a ponto de suscitar tão tremenda quantidade de comentários. Sobretudo porque sabemos que ninguém os lê nem lerá. Porra, inutilarismo voluntário tem limite.

3) Você costuma olhar distraidamente para os lados da esquina achando que enxergou um vulto conhecido que poderia lhe trazer de volta aquela lembrança da infância ou a chave dos mistérios da existência?

Se sim, putz, deve ser triste. Nós aqui do outro lado nunca passamos por experiência tão horripilante. Notwithstanding, podemos imaginar a barra que seria. Em pleno 2012 ainda sobrevivem centenas de pequenas aldeias indígenas alheias à civilização européia, não é mesmo? Rousseau, Kant, Hegel, Chauí, Delúbio, será que esses caras ainda mantêm em suas cavernas a esmagadora verdade que, se um dia escapasse do círculo de doutos, poderia redimir a raça? Obviamente não há resposta para essa nem para outras perguntas de semelhante... semelhante o quê? Jaez?




Blogando 0011

Não sabia o que escrever e saí pra rua pra ver se me inspirava. E mil inspirações então vi. Uma especialmente interessante. Mas esqueci.

E eis-me cá de volta ao meu canto, desinspirado pirado ado do. 

Tudo a que me atrevo é escutar In my life com os Beatles.

Não vou nem tentar falar de In my life com os Beatles. Exceto que foi a música que marcou a passagem da minha infância para a minha adolescência e povoava meu cérebro e minha mente 58 horas por dia e noite e me indicava que não, eu não estava condenado àquele vidinha miserável sob o pragmatismo de fim de feira de mamãe e papai e que, sim...

Puta merda, sim, marcou, a minha passagem e as de bilhões de outros adolescentes neste planeta de merda.

Peraí, bilhões de outros adolescentes neste planeta de merda.

Os Beatles e suas revelações e suas esclarecidas e suas emancipações, tudo isso é meu.

Lá no meu cantinho reconstruindo a infinitude dum mundo que, achava, que, achei, me cabia, me restava, me coube, me restou, tudo se encaixava tão bonitinho com nada, nada se desencaixava tão bonitinho de tudo, havia sim uma lógica no meu cantinho destituído do amor pelo qual clamei a partir do meu primeiro berro na maternidade.

Fôdasse.

O ônus da prova cabe à promotoria.

Nasci e estou preso e condenado.

Brado e esbravejo, como há de todo homem bravo.

Nasci covarde incrementando à bravura.

É ela bravura minha?

Gargalhada.

Você acertará se disser que sempre volto ao meu jogo da amarelinha.

Senhor juiz, as testemunhas estão corretas: sempre volto ao meu jogo da amarelinha.

Sou culpado.

Blogando 0010


Bquiu Xpefmi Czoio vai navegando pela Rede Geométrica Infinita sem rumo certo. Rola páginas e páginas e mais páginas para baixo, desliza páginas e páginas e mais páginas para cima, sem se animar a ler mais de duas linhas. Nem mesmo algumas fotos da periguete-sensação do momento, Ndeupe Qraai Qsual, se exibindo peladinha em todo seu frescor e volúpia, com todos os 15 seios à mostra, são capazes de reter a atenção do garoto.
Bquiu Xpefmi Czoio está enfarado.
Ainda sem grande entusiasmo, solta um profundo suspiro de cansaço. Isso é suficiente para desligar a Hiperinternet vHiJdU 50.000 ponto 5. Bocejando, conecta o Ultraastronommer aMqeBe AgsU jbiMhe sFe que ganhou de presente de sua mãe Jcura Pojva Ale em seu octagésimo-quinto aniversário. Bquiu sequer sabe direito o que o Ultraastronommer aMqeBe AgsU jbiMhe sFe faz. Se for igual ao Ultraastronommer Oa Ge Xo Oilhuhvorde Ti Bhui que ganhou ano passado, não vai nem querer saber. O último modelo do Ultraastronommer só conseguia ler as 140 primeiras palavras dos pensamentos dos outros. Ou seja, era uma grande porcaria.  Enquanto abria a embalagem, com a festa do aniversário já caminhando para o fim, parecia ter ouvido mamãe Jcura mencionar algo sobre viagens pelas estrelas. Na hora, estava entediado demais para atentar às ladainhas ultrapassadas da velha.
Ai que tédio...
Surge uma nuvem na tela em 8D. Nada espetacular. Nem mesmo interessante.
Com outro bocejo, Bquiu desliza o controle da resolução, incrementando o número de pixels para 8 bilhões por nanomilímetro. Certo, trata-se duma resolução para ninguém botar defeito, mas que emprega PseudoTecNologIa CabAlístico-AbracadabRante de antes de ontem. Totalmente ultrapassada. Ai que bode...
Hmmm, parece que é uma nuvem de estrelas... pondera Bquiu, fazendo coruscar a um-terço de cintilação endômica uma das pupilas do olho extremo-esquerdo.
Ah sim, ali está Urgoqe, apenas 5 trilhões de anos-luz distante da Grande Nave-Mãe qGim vEfBeAa aiMm Xia fmeL. Nada doutro mundo. Bquiu passou as férias escolares do ano passado naquele lugarzinho chatérrimo com seus camaradas hologramáforos aE mbuiciiO xfI e pI ssiE cO. Assim que os três voltaram da viagem, Bquiu cortou os feixes de luz de aE mbuiciiO xfI e pI ssiE cO. Os dois eram muito xaropes. E comiam laser além da conta.
O enfastiado navegante aciona outro controle, desta vez incrementando a intensidade das 5 quatrilhões de centelhas submersas de luz branca imbalançada através dum ângulo higgs-bosoniano irrestrito. Na tela do Ultraastronommer a mancha que parece salpicada de farinha dá lugar a imagens bem definidas de estrelas. Bquiu aponta o olho intermediário para um determinado subquadrante -100000-300000 e por sobre uma das galáxias exibidas no visor em oFxEe VMSbua de 7 dimensões interretroprotoespelhares pisca uma legenda:
VIA LÁCTEA.
Alguma coisa acontece na zona ainda humanossensibilizada do hipotálamo desassexuado ultravioleta do cérebro inferior do rapazola. Onde tinha visto esse nome antes? Sentindo uma ligeira perturbação, algo assim como um incômodo indistinto e inédito, ele ativa o afbEm bsUNle. Ah, aqui está: conforme aprendeu no 85º ano da 15ª série, era nessa tal de Via Láctea que ficava aquele grãozinho de poeira onde os ancestrais da raça homorucdrbulvehxaipepm tinham-se originado na Era Pré-Debandada-Geral-Para-Além-E-Mais-Um-Pouco. Como se chamava mesmo o planetinha? Cquqrrl? Jusesi? Ugqu? Espevitando o último apêndice do dedo indicador da mão bifurcada extremo-direita, Bquiu lambe a anteninha do afbEm bsUNle. Um diminuto planeta acizentado se mostra todo na tela.
Na legenda, o nome: TERRA.
Abaixo, uma breve descrição: Corpo celeste da Categoria QueCi aIPul Sub-Alfa (a mais ordinária de todas) cuja vida foi extinta quando sua estrela central, denominada Sol, se apagou repentina e imprevisivelmente há exatamente 36 milhões fa, 707 mil ti, 23 anos iflal, 145 dias qpaja, 13 horas ba, 29 minutos diohi viqxo piemxi 3 segundos, 4 segundos, 5 segundos, 6 segundos...
Mais abaixo ainda, o aparelhinho lança uma pergunta: DESEJA ATIVAR RETROCESSO TEMPORAL?
Por que não? Bquiu dá de ombros. Já que estou aqui...
Ele faz que sim com uma das cabeças. A máquina emite um gemidinho (será que já está com defeito? o menino se irrita ante a possibilidade; essas tranqueiras vivem pifando!). A tela se expande até o tamanho natural. O tempo retrocede 36 milhões e 700 mil e poucos anos.
A vida no tal planetinha Terra começa a desfilar diante dos olhares indiferentes do garoto. Nada digno de nota. É um lugarzinho ridículo, repleto de bodegas, botequins e espeluncas, todo atravancado de badulaques, trastes e cacarecos. Tudo muito cinza, muito sujo, muito feio, recoberto por uma infindável camada de água fedida e asquerosa. Aqui e ali pode-se avistar uns serezinhos esquisitos, tendo no alto o que parece ser uma abóbora brilhante no meio da qual uma forma primitiva de olhos piscam como se quisessem dormir. Abaixo da abóbora há dois apêndices articulados que pendem de cada um dos lados do corpo, o qual, nas esparsas áreas secas espalhadas pela vastidão de água imunda, é movido para lá e para cá por outros dois apêndices igualmente articulados. Cada qual destes últimos é sustentado por uma espécie de pata também primitiva e grotesca.
Ugh! Que ea tcie fz oa ge xo oilhuhvorde ti bhui qpaoie! enoja-se Bquiu. Não é à toa que de qs vr o ifel diidu ixudi io njagxu hm sjie ro cvojmu pcupl pge rdo vm opjatz jniviz...!
O sorumbático adolescente abre um novo bocejo, já decidido a desligar a geringonça e retornar à Hiperinternet vHiJdU 50.000 ponto 5, quando um ruído estranho vindo dos superhiperultra-altofalantes do Ultraastronommer chama sua atenção.
Surpreso, ele sente o ânimo se elevar instantaneamente.
Afbem bsunle queci aipul fa ti iflal qpaja...? comenta em voz baixa.
Abana uma das orelhas e a máquina dá Stop, interrompendo o retrocesso temporal.
O som exótico emitido dos superhiperultra-altofalantes se intensifica. De repente, o profundo enfado de Bquiu desaparece. Imagens vagas, coloridas e disformes passam por seus cérebros, originando assombrosos pensamentos, pensamentos que nunca teve antes.
Ba diohi viqxo piemxi ea tcie fz!* exclama, tomado de enlevo.
*Tradução: Estou com vontade de sonhar!
Focando todos seus olhos na tela, fica ansioso por informações sobre aquele som hipnotizante. E vê uma cena a princípio incompreensível: vários daqueles seres esquisitos com abóboras no alto e apêndices embaixo estão sentados formando um semicírculo ao redor dum outro sujeito esquisito, que está em pé. Todos têm uma cabeleira clara sobre sua respectiva abóbora. Os sentados seguram um instrumento entre um dos apêndices superiores e o que parece ser um queixo. O instrumento é dotado de cinco fios retesados. Com o outro apêndice, os esquisitos sentados fazem deslizar uma vareta pelos fios esticados.
Então Bquiu se dá conta de que o som estranho é produzido por cada uma das passadas das varetas em cada fio.
Agora já completamente excitado, Bquiu não se contém e se põe a clamar:
Qpaoie de qs vr o ifel diidu! Qpaoie de qs vr o ifel diidu! Qpaoie de qs vr o ifel diidu!
Ato contínuo, surge ao seu lado ninguém mais, ninguém menos que o formidável, o incrível, o maravilhoso, o monumental, o portentoso, o sensacional Crur Mdoze Lha.
Que foi desta vez, Bquiu Xpefmi Czoio? Já não lhe disse para não me interromper quando estou tomando banho com minhas cento e vinte esposas?
Me desculpe, adorável, fantástico, estupefaciente, extraordinário, assombroso Crur Mdoze Lha, meu pai. É que pensei que você gostaria desse sonzinho aqui...
Dizendo assim, o garoto incrementa o volume do equipamento e os acordes do primeiro movimento do Sexto Concerto de Brandenburgo começam a flutuar pelo ambiente, transportando Crur Mdoze Lha a um doce estado extasiante e deixando seu filho muito ligadão.
Mas que apito mais bonito, esse! exclama o formidável Crur, apurando os ouvidos.
Mucho loco, né paizão! concorda Bquiu. E manja só essas guitarrinhas maneras...!
Muito louco mesmo, Bquiuzinho! Onde você descolou essa maravilha?
Eu tava mexendo com a Máquina de Retrocesso Temporal coisa e tal, daí cheguei naquele lugar chamado Terra, saca? Então, quando caiu no ano 1721 a parada começou a tocar.
Quem será que fez esse sonzinho divino?
Ora, meu formidável paizão Crur! Lembra na escola quando a gente aprende que milhões de anos atrás os caras acreditavam num ser que chamavam deus? Pois é...

Então traduz esta, Mr. Walter Kaufmann

O problema de querer ser
Quando estamos o que somos
É o problema de querer estar
Quando somos o que estamos

Um hippie cangaceiro

Ele tem a voz cristalina dos cantores do folk americano
Entoando suas baladas lamentando que tudo tenha dado tão errado
Ao ouvi-las, nossos corações se paralisam duma ambígua surpresa
Como pode esse trovador juvenil denunciar as mazelas do mundo
Com tamanha propriedade?

Ele tem o olhar translúcido das raças do Norte da Europa
Que pousa em cada um de nós displicente, insondável, quase apático
Um brilho enigmático que por si nos dá a dimensão da nossa culpa
E então ficamos silenciosos, matutando, como pode esse ser tão
inocente conhecer tão bem nossos pecados?

E para nos intrigar ainda mais, ele nunca escondeu — e sabemos
Muito bem que ele nunca escondeu mas nem por isso temos ânimo
Para julgá-lo inocente — que leva a vida que todos levaríamos se
Fôssemos suficientemente corajosos para ser felizes.

Flow My Tears

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=5A9uwW9zA1E

Recital de Música Antiga na EMESP

Autor: John Downland

Cantor: Pedro Vaccari


Blogando 0009

Meus passeios com Zezeí são uma delícia.

O primeiro matutino, o melhor.

Saímos para a cidade imunda.

Avançamos pelas calçadas esburacadas, tomadas de mato e bosta canina e lixo, muito lixo, um lixo diluviano, um lixo que parece ter vida própria como se brotasse de minas ocultas sob as guias, lixo surgido à minha frente, lixo atrás de mim, lixo por toda minha volta, lixo tornado presente e lixo feito concreto por encanto operado pelo Deus do Lixo da mitologia paulistana, lixo em montanhas de sacos amontoados por toda parte, lixo em forma de papéis, papelada, papelões de tudo que é espécie, de tudo que é cor, de tudo que é forma, de tudo que é cheiro, lixo constituído de restos de brinquedos e utensílios e partes de carros e pedaços de pneus e tampas de caixas de pizza e folhetos de propaganda de pizzarias, folhetos de propaganda de putas, cartelas, cartelinhas, cartelões de pílulas e comprimidos e drágeas, folhetos de propaganda de cartomantes, milhares, milhões, bilhões de latinhas de cerveja, latinhas de guaraná, folhetos de propaganda de encanadores, tudo bem regado por mijo, folhetos de propaganda de pedreiros, mijo de cachorro, folhetos de propaganda de eletricistas, mijo de gente, poças de vômito de bêbados que ainda há pouco comemoraram a alegria de viver c'uma farta feijoada e muito paio e muita caninha e embalagens aqui e ali misturadas com camadas grossas, camadas arqueológicas acumuladas de poeira e pó e terra e barro vertido pelas obras dos magníficos arranha-céus onde nossa culta, nossa esclarecida, nossa desenvolvida classe média irá em breve montar seus castelinhos idílicos para atirar lixo lá do vigésimo andar, camadas que se juntarão, encorpando um bolo fornido com folhas e galhos secos e os ubíquos montículos de bosta, bosta mole, bosta dura, bosta gosmenta recoberta de varejeiras e vermes, bosta enfeitada com resquícios da janta de ontem servidos ao Lulu pela madamezinha de narizinho empinado, bosta de cachorro em milhares, milhões, incontáveis saquinhos do Extra espalhados ao pé de cada bendita árvore soterrada de merda como se eles, os saquinhos do Extra, fossem frutos dela, bendita árvore soterrada de merda, cocô canino pisado por um desgraçado distraído que deixou suas malditas pegadas de uma esquina à outra, um lixo divertido, um lixo satisfeito, um lixo jubiloso de estar em seu legítimo habitat, plenamente a salvo de vassouras, vassourões, jatos d'água e esfregões, um lixo indistinto, um lixo inclassificável, um lixo que meus insuperavelmente virgens olhos se recusam a mirar, um lixo que aguarda orgulhoso e sorridente o primeiro pé-d'água, a primeira chuva  torrencial da primavera para formar a mais fecunda, a mais poderosa, a mais opulenta, a mais nauseabunda pasta de restos humanos, caninos, felinos, murídeos, entômicos, econômicos e políticos do brasileiro, essa raça brilhante, essa raça civilizada, essa raça asseada que sabe cuidar do lugar onde mora e, depois de tudo limpo e depois de tudo arrumado, finalmente instalar sua cadeirinha no portão da frente, sentar-se e admirar a beleza destes Risonhos Lindos Campos.

Sempre que caminho pela calçada ao lado de Zezeí, tenho essa impressão (será minha paranóia de novo?) de que os que vêm em sentido contrário me olham meio enojados.

Devo estar com cara de vômito outra vez.

Blogando 0008


Não gosto de perdoar. Me aflige assistir a uma mágoa que me levou a classificar alguém de imperdoável se desvanecer por falta de adubo. Muito pelo contrário. Quando percebo que o motivo que me fez ou os motivos que me fizeram ficar com ressentimento de alguém está ou estão perdendo força no dínamo de fel que trago aqui dentro de mim, me apresso a remexer a lenha no fogo. Dependendo das implicações duma mágoa, posso soprar as brasas apenas para manter vivo o calor e ficar aqui no meu cantinho curtindo essa quentura que me alivia do fardo de pensar. (Não me dou muito bem com o frio. Trauma de parto. Nasci em dezembro, sob prováveis 30ºC, mas o registro que guardei daquele instante é o dum mergulho inverso catastrófico num mundo paralisado pelo gelo.) Ou, quando as implicações envolvem um cipoal de outros sentimentos, posso reavivar o fogo até reobter as belas frondosas arrebatadoras calcinantes labaredas que um dia já distante incendiaram meus olhos e enterneceram meus ouvidos com o firme e furioso crepitar duma fogueira apocalíptica.

Sei, vocês aí fora já estão torcendo seus narigões e seus narizinhos para tão despropositada enunciação. Isto é, os que conseguiram ultrapassar a zona da arrebentação, que hoje está tormentosa além do normal. (D. F. Wallace e outros são a favor de que não se dê mole ao leitor. Pessoalmente não tenho opinião formada. (O que, para alguém que se diz escritor, é uma vergonha.) Vai do calor (epa!) da hora. Tem hora, acho que devo dar umas mastigadas para que o leitor não engasgue com os caroços que vou largando displicente na massa. (Mas sempre há o risco de melar a gogoroba com excesso de baba.) Outras horas, ligo o automático e fôdasse. Outras ainda, nem mastigo nem degringolo. Sei que minha escrita (ou escritura, para agradar aos professores literários) sofre de terrível variação em estilo e qualidade. Pois é.) Quase que posso ouvir daqui do meu ninho escondido entre as copas das árvores "Que exagero!", assim, com a voz anasalada dos moralistas e o ponto de exclamação dos espantadiços. Bem, digamos que depende do ponto de vista. Lembram daquele rapaz que se dizia exagerado, como se chamava mesmo? ah sim, Cazuza, como era mesmo o versinho? deix'eu olhar no Google... ...olhando... ...aqui está, "Eu sou mesmo exagerado", bem, nunca enxerguei lá muito talento ou inspiração nessa baladinha, pois não vejo exagero algum nos exageros de que o rapaz falava. E se ele via (algum exagero em suas normalidades), então seu único exagero era se achar poeta quando na verdade seu caso se tratava igualmente de moralismo. Ou pensar que podia escandalizar um verdadeiro poeta com seus arroubos adolescentes.

(Não posso deixar passar batido, merece uma espicaçada. Arroubos adolescentes é o que se vê na imensa maioria dos blogs que se dizem literários por aí. Sei, dependendo, é fácil confundir com literatura esquerdismo, inadequação, queda para a nostalgia, inconformismo, revolta com relação aos pais, aos tios, aos vizinhos, falta de reconhecimento alheio e outros males. Eu mesmo custei décadas para aceitar a diferença. Ou você tem o talento primitivo e visceral duma Stela do Patrocínio, ou arregaça as mangas e parte para desenvolver seu, com perdão da palavra, potencial. (Não se esqueça de se assegurar primeiro de que o tem, senão lá se vão décadas de tempo perdido.)  Seja como for, os que nos dispomos etc. cedo aprendemos a criar, e logo o maturamos, um semancol literário. O método mais fácil e seguro é ler sem parar, sem parar, sem parar. Começando-se o mais precocemente possível na vida. Assim, com uns 20 anos (falo dos não gênios) você já saberá que o galo sempre canta longe de onde a porca torce o rabo. É Kartoffel.)

Para um (verdadeiro) poeta não existem exageros. Pelo menos não sob os, com perdão da palavra, critérios dos escandalizáveis, os viciados no princípio burguês de que o pensamento e a experiência humanos devem-se circunscrever a uma média utilitarista em prol dos homens de boa vontade. Imaginem Edgar Allen Poe ou seu conterrâneo e tradutor Baudelaire (de quem Poe também era tradutor). O verdadeiro horror nas histórias escabrosas de Poe é a naturalidade com que ele se atreve a trazer a lume aspectos terrivelmente mórbidos, perversos da natureza humana. Acontece que em Poe isso é apenas mais exacerbado. Todo escritor (digno do nome) faz o mesmo em maior ou menor grau.

Todo mundo queria gostar de perdoar, menos eu? Eis uma boa questão. A maioria, talvez. Ao longo da minha vida já vi inúmeros exemplos de gente incapaz do perdão. Eu mesmo fui um deles. Me recobrei (ainda hoje não sei se a tempo ou não. Ainda não consegui decidir quais caminhos que tomei merecem ou não uma reanálise sob a pálida luz que bruxuleia dentro do cegante farol marítimo do arrependimento. Ah jesus, quantas vezes faço e refaço esses caminhos. Ah jesus, quantas vezes faço e refaço aturdido, amargo, álacre, esses caminhos. Tem hora, absorto em mim e em meus pecados e em minhas perguntas sem resposta. Outras horas, plenamente cônscio e convicto dos meus controversos ambíguos caminhos.

E essa incapacidade traz resultados desastrosos e muitas vezes destrói tanto o imperdoador quanto o, aos olhos deste, imperdoável. A incapacidade do perdão é praticamente sinônima da incapacidade da gratidão. Esta sendo ainda mais deletéria. Bem, está tudo bem explicado em Inveja e gratidão, da sagaz e imperdoável Melanie Klein.

Minha questão não é querer gostar de perdoar.

A minha questão é querer gostar de não perdoar.

Não quero perdoar pela mesma razão por que preciso entrar na sala e ver o triciclo deixado por Papai Noel.

Aquela manhã papai parecia feliz e me basta. A mana ganhou uma boneca, uma enorme boneca rósea cujo colorido arbitrário depois fingíamos evocar com ternura e pompa a nossa pele branca. Hoje olho minha irmã rabugenta, a quem um dia quis mostrar um poema e me retrucou com sua proverbial cara de inhaca, “Não gosto de poesia”, mesmo sendo a mais pantagruélica devoradora de livros que já conheci, leu Proust inteiro várias vezes, já sabia, pensei, fantástico como para certas pessoas a poesia parece ser um tipo de antídoto da prosa, inconciliáveis antípodas que moram tão lado a lado da nossa frágil vigília.

Mas não era nada disso que eu queria falar. Assim como em Blogando 0007 e também nos demais Blogandos, me afastei da minha meta inicial, tomei atalhos com a intenção de retomar o caminho principal posteriormente mas tudo que logrei foi me perder.

É que gosto de me arrepender.

Sim, o arrependimento me dá um barato, qual uma droga. Um kick.

Vocês aí fora com seus narizinhos e narigões eternamente torcidos na certa já viram muita gente boa declarar alto e bom som que "Eu não me arrependo de nada em minha vida!" Sim, com ponto de exclamação e tudo, como se empoleiradas em cima dum púlpito na pracinha da igreja, numa das mãos o panteão nacional, na outra a espada dos justos, na voz a empostação fabricada própria para manifestar sentimentos enlatados.

Sempre leio o blog do Reinaldo Azevedo. Por, digamos, dever de ofício. Azevedo é o paladino mor dos que lutamos contra a tirania asquerosa do lulopetismo e por isso deve ser lido e apoiado diuturnamente. Não é que dia desses ele escreveu todo um comentário se ufanando de nunca se arrepender de coisa alguma? Bem, pelo próprio papel que exerce, concedo que Azevedo deva fomentar em seu enorme público a noção de que ali está um genuíno herói. Assim como várias outras virtudes particulares que vive alardeando, talvez ele pense que assim facilita a disseminação de suas ideias e opiniões, sempre com o fim precípuo de estabelecer um contrapeso aos que resolveram apadrinhar Lula e seus meliantes. Certo, a heróis não se permite o luxo de arrepender-se. Senão, se humanizariam e pluft! o heroísmo já era. Mas pode ser que se trate apenas de recaídas narcísicas. Como sempre digo, é extremamente fácil deixarmos passar declarações grandiloquentes a nosso próprio respeito quando escrevemos sobre nós mesmos. Quem sabe eu também me deixaria levar se tivesse aquela platéia de dezenas de milhares de acessos diários. Talvez confidenciasse que nunca me arrependi de porra nenhuma em minha vida. Uau, só de imaginar já me sinto melhor. Meu continuamente acabrunhado espírito até se elevou uns centímetros.

Eu podia ainda me fingir de nobre e afirmar que escrevo para descobrir a verdade, não para exibir aos olhos alheios penas de pavão que não tenho.

Podia mas não finjo nem afirmo. Escrevo por uma porrada de razões. Todas de foro íntimo. Quem me ler e se dispuser a aceitá-las, ótimo. Quem não me ler e se dispuser a aceitá-las, ótimo. Quem me ler e não se dispuser a aceitá-las, ótimo. Quem não me ler e não se dispuser a aceitá-las, ótimo. 

Me sinto estranho quando estou me sentindo bem. Mas não me sinto bem quando estou me sentindo estranho. Contradições humanas. Por que somos tão complicados, mein gott?
Bem, hoje tenho o Google e daqui a pouco vou buscar os sons e os esgares que se perderam lá trás. Uma vez imaginei um portal chamado pai.com ou father.com. Você entrava, se registrava e logo estava cara a cara com seu pai, seu antigo pai, vivo, morto ou seja qual for o estado em que você mantém seu pai hoje.
Como qualquer ser humano normal que curte alimentar as próprias mágoas e brincar sem fim com situações alternativas aos vexames que todos passamos mais ou menos em escala cubana ou industrial nesta jornada tortuosa rumo à morte, o que quero dizer está sempre uma palavra aquém do que a barragem de ácido nítrico que cultivo no jardim da minha cabeça me permite. Um dia lá longe imaginei ser capaz de neutralizá-la (a barragem). Vejo hoje que não tenho forças, paciência, interesse, estâmina. Estou vendo se aprendo a me aceitar hoje como sou hoje como tão ardorosamente tentava me aceitar adolescente como era adolescente então. Se for honesto, você vai ver que os lances simplesmente não batem.

Blogando 0007

Estava descendo, já no meio da escada, quando resolvi coçar o ouvido, me distraí, tropecei e tchibung, mergulhei no mar da Praia Grande, subi de olhos abertos em meio às borbulhas vítreas sentindo o perfume de sabonete Sândalo da bucetinha dela sob as ondas e emergi na av. Visconde de Inhaúma trôpego de bêbado às três e meia da madrugada, então veio zunindo uma lufada da minha velha ventania de guerra, alcei voo, fechei os olhos, viajei (já não estava?), sorri chorando e cá estou para encarar este Blogando 0007 e adjacências, ufa.

Na última vez que episódio semelhante me ocorreu estava eu numa viela de nome Creme, em Embu das Artes. A rua Creme é uma pirambeira à prova de adultos com mais de 40 anos. Eu observava as árvores e os céus, parado ao pé do morro, quando sem querer voltei os olhos para o topo, o fim da rua, e o vulto passou. Passou caminhando na nonchalance dos meus vultos. Ela, a dona do meu vulto, estava cantando, pois pude escutar a música. Se minha música tocasse continuamente, sem interrupções mais longas que uns minutos, eu sei que estaria salvo. Sabendo que o vulto não retornaria — não pelo mesmo caminho —, voltei à minha faina de admirar os céus e as árvores.

Você aí no computador do outro lado também dedica a maior parte do seu tempo e dos seus pensamentos ao passado?

Nâo? Então dedica a maior parte do seu tempo e dos seus pensamentos a quê?

Eu dedico a maior parte do meu tempo e dos meus pensamentos ao passado.

Quer dizer, tirando todo o resto do tempo e dos pensamentos que não consagro ao Grande Jogo.

A minha cabeça é um campo (um campo outrora verde, hoje apascentado, embarreado, úmido e pegajoso) em que jogo dia e noite meu Grande Jogo.

Não, não posso discorrer sobre o Grande Jogo. Ainda não criei coragem. Um dia, talvez.

Mas esqueça o Grande Jogo. Não devia ter tocado nisso. Seria assunto para uns três meses de papo. E você sabe que sou incapaz de manter minha atenção por meros três segundos. António Lobo Antunes também. Pessoa também, menos quando entrava em transe.

Tão belo, tão delicioso intróito e o estraguei lembrando do Grande Jogo.

Categorizo as pessoas pelo tamanho do Grande Jogo que elas guardam dentro delas.

Sim, você aí nesse computador do outro lado, você também tem um Grande Jogo. Se pertencer à Categoria A, você não sabe que tem um Grande Jogo aí dentro de você. Se pertencer à Categoria B, sabe mas finge não saber. E se for da Categoria C, não sabe e portanto não pode fingir que sabe. A menos que pertença à Categoria D.

Já a minha é a E. 

Não, não me peça para defini-la. Não saberia defini-la. Hoje, não. Talvez amanhã. Se tudo der certo. E não posso correr o risco de me contradizer sobre o Grande Jogo. Hoje, não. Amanhã, de certo. Amanhã correrei todos os riscos. É o que sempre faço amanhã.

Tão promissora introdução a este Blogando 0007 e deitei tudo a perder, como gostam de se lamentar os portugas, incluindo Pessoa, Lobo Antunes e Teolinda Gersão.

Tinha outros mil lugares para visitar esta tarde. E de repente vieram os ataques e contra-ataques do Grande Jogo como que açoitados pela cavalgada das valquírias.

Pra variar, eu estava aqui na frente de casa, indo e voltando e olhando sem querer ver e ouvindo sem querer escutar. Fiz até uma nota mental, assim, quando voltar para casa vou iniciar o Blogando 0007 e vou falar das minhas viagens pelo passado.

Você costuma viajar pelo futuro?

Ah quantas vezes viajo pelo futuro. 

Um futuro tão longínquo, que todos que conheço e todos que amo hoje já não existem mais.

E nada do que sei tem mais valor.

E nenhuma das palavras que conheço significa mais coisa alguma.

E então na minha viagem futurística me ponho a imaginar se suportaria esse mundo ou essa vida em que nada me seria familiar.

Sei, objetivamente, que não.

Sou tão frouxo.

Mas no meu futuro não haverei de querer nada nem ninguém conhecido ou amado.

Vou querer me sentir o primeiro homem em Saturno.

No meu Grande Jogo, é como me sinto.

Enfio a mão no bolso, meus dedos dão c'uma conchinha. Ah sim, resquícios do mergulho no mar da Praia Grande. 1969. Que ano, aquele.

Blogando 0006

Como vocês sabem, finalizei o Blogando 0004 c'um lamento (quem, eu lamentando?) sobre que é que iria fazer até as onze, hora do meu primeiro gole. (By the way, vamos fingir que o Blogando 0005 não foi escrito, não existe, não foi lido por ninguém (o que é absolutamente verdadeiro, of course.)) Como todos estão vendo, recaí nessa mania chatérrima de salpicar minhas bloguices c'umas expressõezinhas inglesas aqui e ali, só para fins de codimento. Não, não pensem que é esnobismo. Há décadas deixei de ser esnobe. Era-o quando ainda me deslumbrava com meu próprio conhecimento, minha própria inteligência, minha própria sensibilidade. Não, ainda não me acostumei. Leiam qualquer grande escritor ou poeta e verão que o sujeito nunca para de se espantar com as reações que o mundo e/ou a vida provocam nele ou nela. É um autofoco fundamental (que requer rigoroso autocontrole de qualidade para evitar revisões profundas ou mesmo a lata de lixo). (Aqui caberia uma bela derivação digressiva sobre o tema dileto de Ferreira Gullar, o "espanto", mas que ele, FG, já deveria ter superado aos 80 anos e mudado o disco. FG anda lamentando que há anos está desinspirado. Ora, quem mandou se viciar em espanto? Uma que todo vício é ruim, mesmo esse, nos expulsa de nós mesmos para pôr em nosso lugar sua mecânica perversa. Duas, mesmo para um cara genial como FG, todo caminho, ou sentimento, batido em demasia acaba nos embotando nossas anteninhas, travando  o poeta como se este emergisse dum mergulho num lago de gesso líquido de secagem instantânea. Me delicio a imaginar Ferreira Gullar com aquela dramatiquérrima máscara totêmico-messiânica sob a copiosa cabeleira pálida olhando a parede cedinho de manhã esperando uma visitinha básica dum espanto qualquer para enfim desenferrujar a lira e pôr mãos à obra. Chega de digressão derivativa. Deix'eu reler onde parei para pegar o fio da meada.) Ah sim, estava falando do meu antigo esnobismo, preparando o terreno para soltar umas fustigadas nos esnobes em geral. Estava a ponto de lascar a bobagem de que todo ato de escritura tem um quê de esnobismo e portanto de narcisismo. Me contive a tempo. Embora um arretado narciso esnobe, tenho, ainda, semancol suficiente para identificar os grandes thomas-manns que não se aproveitam do que escrevem para obter vantagens mundanas. Obviamente. Se bem quê. Hoje parece ser bem mais difícil e extenuante ficar ao largo dos ataques da frivolidade. É extremamente fácil você se assarapantar, vislumbrando no espelho das suas próprias palavras a imagem fantasiosa dum gênio literário por se esquecer por alguns instantes de que elas, palavras, embora suas, não lhe dão o direito de usá-las em seu próprio benefício. Tê-las sob seus dedos no teclado não lhe confere poder mundano algum. É compreensível que um primário feito Lula se enlambuze e se refestele e se empanturre com as túmidas tetas da Presidência da República de que jorram infindáveis jatos de grana para a colheita dos neonababos. Seria até justificável, fosse ele um gênio da administração e da economia. Essa imensa baboseira dum operário no poder operou uma catarse coletiva nos corações moles dos eternamente frustrados com as injustiças do mundo, tão profunda catarse, que os impede de enxergar os abusos inaceitáveis cometidos por Lula e sua gangue contra nossa democracia. A essa seguiu-se a catarse da primeira mulher no comando. Mais um transe nacional. Para sorte do país, a jogada de Lula em botar o primeiro negro no STF não produziu o efeito que ele esperava. E Lula está acabado politicamente, deo gratia. Senão era capaz de na próxima vez eleger uma criança. Um travesti judeu japonês baiano professor de dança do ventre. Retomando, àquele que se pretende escritor, grande ou modesto, a frivolidade narcísica não se justifica. Quando citei Thomas Mann me ocorreu a figura impávida de Philip Roth que apanhou o bastão passado pelos grandes do século passado. Que insustentável peso o desse bastão. Como não sucumbir a ele? Embora ainda esteja na dianteira, ao lado duma meia-dúzia de outros bambas, Roth andou ameaçando umas escorregadelas aqui e ali. A mais perigosa sendo a auto-imitação. (Tem hífen? minha cabeça simplesmente se recusa a assimilar essa repulsiva nova ortografia.) Claro, não deve ser batatinha um escritor como ele jogar a toalha, dando-se por satisfeito, reconhecendo que não tem mais nada a dizer, pelo menos não com o vigor e a clarividência de antanho. Mas a capacidade de autoexploração, a espera pelo próprio espanto e seu poder de abrir uma janela para nós mesmos, o gatilho da inspiração, fazem de quem cria meio que um fantoche. Suspeito que, no fim, o que nos cabe e resta é cultivar a humildade. Que talvez nos facilite o autodesarmamento. Que talvez nos ilumine por dentro. Um pouco que seja. Uau, quase duas da tarde e eu ainda aqui com minhas encucações. Passei batido pelas onze. Onde estava mesmo? Ah é, passeando com minha dobberman chiuaua Zezeí. Sempre que retorno das nossas caminhadas me ocorre que preciso acabar com essa mania de andar cabisbaixo qual um penitente. Só ergo a cabeça quando escuto uma ave a cantar. A cidade está tomada de sabiás-laranjeira, bem-te-vis, as maritacas foliãs. É primavera, a minha, não a do Tim Maia, nem a do Boato da primavera de Drummond. Ainda acordo com meu fiel sabiá-laranjeira, que madruga cada vez mais cedo a cada ano que passa. Quando começou a cantar para mim há uns doze anos, ele acordava às quinze para as cinco. Hoje mal dá três e meia da matina e já ouço a melíflua, fluente flauta sob a qual flutuam minhas reflexões malsãs, com perdão das anáforas. Meus ataques disparados pelo passado, meus contra-ataques automáticos vãos. Ah, a hipernarcísica Camille Paglia e sua ira divina e seu canhonaço contra blogs e blogueiros. "Ainda não apareceu nenhuma figura de monta nos blogs. Se defacto querem escapar de seu gueto, os blogueiros precisam adquirir um senso de drama e teatro e talento linguístico. Caso contrário, por que raios os outros haverão de lê-los? E, em minha opinião, a internet é um meio visual  — não entro na rede para cair numa página encardida entulhada de prosa indigesta." Bem, foi Camille quem disse, não eu. Para mim praticamente toda prosa que não seja minha é indigesta. Será narcisismo? Receio que sim. Sou meu pai, sou meu filho. Como diz um dos meus frasistas preferidos e igualmente narciso, Oscar W., "Nunca viajo sem meu diário. Deve-se sempre ter algo sensacional para ler no trem". Comecei a ler o diário de Samuel Pepys. Talvez fale dele em Blogando 0007, se não beber além do sensato. Como vocês sabem, o bom-senso não é meu forte. Agora ao primeiro gole, finalmente. Até logo mais. Sempre em pensamento.

Cafonices do passado que foi meu e seu


Okay.
Admitamos que anjos existem.
E, se existem, que uma vez fomos testemunhas de sua existência.
Acaba aqui nossa pretensa igualdade.
Para mim, foram incontáveis.
Para você, um, dois, quem sabe três.
Para mim, brotavam everywhere.
Para você, foi aquela tarde, aquela sombra no fim da avenida, eu ao teu lado, você não deu bola, o anjo que te cabia devia ser por demais angelical, mal suspeitava eu, um detector de anjos por natureza.
Você não se cansou deles até hoje e nem, nunca, se importa se eles baixaram ou não do céu para te transportar dum instante a outro.
(Uma vez um anjo me confidenciou que meu descaso com as palavras e seu significado é sinal de que duas asas se desenvolverão das minhas espáduas quando eu morrer.)
O anjo apareceu num canto da calçada e disse bom dia.
Levei um tempo para reagir. E quando reagi me limitei a dizer bom dia sem mostrar que sou bom em matar a bola no peito ou provar que tenho personalidade suficiente para não me espantar com saudações de anjos.
Que bom-dia delicioso, o anjo treplicou, sorrindo.
(E só então pude me dar conta do que é de fato o sorriso dum anjo. E a bondade. Tenho certeza de que meu bom-dia, ao contrário de delicioso, quando muito suscita um resmungo.)
Que bom que se deu o trabalho de dar uma palavrinha comigo assim logo cedo e de surpresa. Que boa surpresa.
Vim ao mundo só assim por vir, como a gente vem numa loja de antiguidades desarmado até mesmo da curiosidade, sabendo que não veremos nada de interessante. E vi seu bom-dia e sorri feito menino que ganha um presente inesperado. Pensei muito antes de chamar o anjo de anjo. Sei que é cafona. Tenho um alarme especial contra cafonices desse gênero.
Pensei e pensei e pensei mas não me ocorreu nada mais apropriado.
Afinal, como é que se pode qualificar um anjo que te chama logo cedo de manhã anunciando a própria alegria e prenunciando alvíssaras? Arauto?
Bem, podia ser. Talvez arauto matutino. (Arauto tem gênero? Arauta? Sabe que não sei. Nunca vi.)
Ora, pensei de novo, anjo a gente chama de anjo e pronto. Sem mistério. Deixemos os mistérios só para o anjo em si. Pois não devem existir anjos sem mistérios, devem?
Talvez aí não fossem anjos. Quem sabe simplesmente belas sedutoras mulheres cujo encanto morre uma vez defunta a sedução. E sei que a sedução é, das virtudes, a mais efêmera.
E fugaz. Pode não durar um dia. Dependendo, sequer uma hora, meia, um quarto.
Um bom-dia assim de tocaia, destinado a cravar uma flecha no coração dum homem,  fazendo dele o mais risonho das vítimas, um bom-dia assim feito um raio que em vez de chocar encanta e cativa, um bom-dia assim angelical e doce, um bom-dia assim que deverá durar para sempre.
E ecoar nos meus olhos a cada dia, mesmo quando eu já não puder mais voar, mesmo quando eu estiver me esforçando para encobrir sua imagem na minha cabeça com pensamentos pretensamente saneadores, pensamentos tristes e vãos, fulgurando em cada um dos meus sentidos talvez contra minha própria vontade e deliberação de seguir avante, tentando me convencer inutilmente de que, queira ou não, sou um homem adulto e devo me portar à altura se pretendo sobreviver.
Como era de esperar, violei a angelicalidade do meu anjo. Não ria nem tripudie. Não quero me ver ridículo uma vez mais.
Eis ele(a) às voltas com as tarefas do seu mundo e com seu mundo que dá voltas cada vez mais rápidas.
Voltearão, claro. Como não se volteariam? Não é esta uma das leis pétreas e imutáveis da existência?
Uma das leis contra a qual deixei de lutar há milênios. E cuja luta vejo meu anjo ainda travando com todo empenho. E angústia.
Vou parar por aqui. Bom dia, anjo.
Que teu trabalho seja repleto de felizes e graciosos poetas seres.

Vingança

Ele a agarrou pelos cabelos e a arrastou pela calçadas vociferando "não foi por isto que você se apaixonou em mim? e não é por isto que não me larga e é só por isto que me crucifica, decepcionada que eu não lhe tenha aberto o caminho do céu, mesmo que nunca o tenha aspirado, que eu não lhe tenha permitido o paraíso, mesmo que nunca lhe tenha ocorrido, que deus ou os deuses e seus anjos tenham bradado em suas vozes que lhe são mudas, mudas, mudas".

Blogando 0005

Em Blogando 0004 saí para um breve passeio com minha fiel escudeira Zezeí e acabei testemunhando um evento com 100 por cento de conteúdo humano. Well, a rua, e o mundo inteiro lá fora, está ao alcance de todos e suas sensibilidades. Imagino que para um nativo digital (expressão que em breve não terá mais sentido, assim como inúmeras características, propriedades e situações que nós não nativos pudemos experenciar) a hipótese de sair à rua e apreciar o mundo em volta e se esforçar para inferir algum sentido seja ou piada ou missão impossível. O pobre rico nativo digital nasce clicando desvairado sôfrego pelo porvir, embora ignorante do significado dessa palavra. E igualmente ignora que os poetas, mesmo o insopitável Homero, sempre buscaram e buscam até hoje o porvir. Mas — abramos duma vez este joguinho idiota — ninguém é mais antípoda dum poeta que o nativo digital. Não que um nativo digital não possa ser poeta. Poetas não têm data de validade. Se defacto poetas, podem durar a eternidade toda — qual Homero. O mais insuspeito dos nativos digitais também pode se revelar um. É altamente provável que já estejam nos googles por aí onde farejá-los será mais impossível que o famigerado poema no palheiro. Gosh, precisaremos de infinitos edmund-wilsons para identificá-los, validá-los para a academia, traduzi-los para o leigo preguiçoso se interminavelmente viciando no imediatismo da imagem. Será Homero reconhecível daqui uns 15 anos? By whom? Who cares? Sorry, helenistas, Homer is dead. Quem sabe Vaccari tenha uma chance? Afinau sou meio nativo digitau. Será ao menos minha vingança. Ao intransponível alcaguete da sereia, definitivo divisor do bem e do mal, do amor e da luxúria, do sonho e da realidade, cuspe! o olvido digital será minha vingança e os porões da humanidade te guardarão com a devida sombra e o merecido mofo. Hoje descobri que ainda posso voltar às ruas e olhar o mundo como se fosse meu e de mais ninguém. Reencontrei, ó jesus amado, o caminho da minha poesia. Não era este (Ferreira Gullar (não foncundir, digo, confundir com Jango Goulart, com o t proferido no Rio Grande)) que você esperava? Só posso contristado lamentar. Thank god poesia não requer fórmula. Deus não é e não foi o poeta dos meus sonhos. Sorry again, todo poema é a negação desse deus com que você pretende vedar todo e qualquer vazamento do mundo. O poeta — incluindo Eliot — é um incandescente insurgente. Se você não sabia, vá ver novela. Ler Jabor. Se persignar. Suplicar a benção. Esperar a volta de ó, jesus.

Blogando 0004

Este Blogando 0004 começou a nascer quando, já de retorno do meu primeiro promenade matinal com minha cadelétrica Zezeí, estranho amálgama das raças chiuaua e dobberman (às vezes me pergunto a qual pertencia o pai, à primeira ou à segunda; e a mãe, jesus?), estando ambos a poucos passos do portão, escutamos um baque produzido por algo ou alguém com certamente uns 100 kg de massa corporal. Olhamos para a calçada do outro lado da rua e lá estava ele. Sim, fora alguém — um senhor de meia-idade e bigodes bastos e pretos que acabara de tropeçar no monturo de folhas secas e lixo que há meses se acumula ubiquamente nesta cidade imunda, se estatelando no chão. Quando eu e Zezeí nos voltamos para o ponto de origem do baque, o sujeito já nos fitava com aquele estranho interesse com que os caídos em logradouros públicos olham em volta para ver se sua patética queda tivera testemunhas. Bem, para infelicidade do nosso desastrado bigodudo, sim — o incidente fora presenciado por uma chiuaua dobbermaniana e por este que ora vos fala. Tal como ocorre com todos os que desabam de alegres, o sujeito estava mais preocupado com o vexame que acabara de patrocinar do que com os possíveis machucados causados pelo tombo. Sei como é. E sei que vocês aí fora também sabem como é. Por que será que esse tipo de acidente (okay, para Freud e alguns de seus prosélitos mais fanáticos acidentes desse tipo são não acidentes e sim atos falhos, ou seja, eventos brotados lá do fundo do nosso inconsciente provocados por uma causa, embora neurótica, bem definida e identificável, no que eu, obviamente, discordo do genial judeu austríaco com toda a veemência que meus parcos conhecimentos psicanalíticos me facultam. O último tombo que levei — e foi um daqueles que a gente jamais esquece — ocorreu no quintal aqui de casa e teve como agente primário uma flor de hibisco úmida que candidamente tomava sol bem no meio da passagem que leva da casa ao escritório. Quem já pisou numa flor de hibisco úmida sabe que uma flor de hibisco úmida exuda uma gosma altamente viscosa que faz duma flor de hibisco úmida altamente viscosa uma arma muito mais perigosa que uma casca de banana, não guardando, portanto, relação alguma com qualquer neurose insondável pulsando clandestinamente em meu inconsciente), bem, perguntava eu, por que será que esse tipo de acidente nos deixa tão constrangidos assim? Afinal, acidentes são acidentes (sorry, Sigmund) e praticamente todos os que saímos da cama cedo de manhã por qualquer motivo nos acidentamos, ora mais, ora menos seriamente. Mas, se me permitem a imodéstia, tenho cá para mim uma teoria, qual seja: a razão por que nos constrangemos em tais situações é exatamente a mesma que nos leva a cair na gargalhada quando alguém capota feito um pateta bem diante dos nossos olhos. Sobretudo se o tal alguém for um adulto e tal adulto um sujeito de meia-idade de bastos bigodes negros. Não, peço que não tirem conclusões infundadas. Não, não caí na gargalhada. Apenas franzi bem a testa e premi bem os lábios para que o pobre homem pudesse averiguar minha preocupação. E enquanto ele se erguia, sem saber se mantinha o olhar em mim, nos próprios cotovelos ou no local da queda à procura do que provocara o tropeção, eu, ainda com o cenho franzido e a boca espremida, comecei a fazer que sim, sim, sim (ou a assentir, como gostam de escrever os tradutores de romances em língua inglesa) para enfatizar minha solidariedade. Como se ainda fosse pouco, ouvi minha voz sonolenta perguntar "Machucou?" Aparentemente sem me escutar ou puto demais da conta para responder, o bigodudo retomou seu caminho batendo as mãos nas calças. Meus olhos se voltaram para Zezeí, que procurava um matinho na calçada para uma mijadinha saideira. Eram sete e meia da manhã, ainda faltavam três horas e meia para o meu primeiro gole. Sim, me comprometi comigo mesmo a beber só depois das onze. Jesus, por que temos essa mania de assumir compromissos que sabemos ser incapazes de cumprir? Que é que vou ficar fazendo até lá?