Cafonices do passado que foi meu e seu


Okay.
Admitamos que anjos existem.
E, se existem, que uma vez fomos testemunhas de sua existência.
Acaba aqui nossa pretensa igualdade.
Para mim, foram incontáveis.
Para você, um, dois, quem sabe três.
Para mim, brotavam everywhere.
Para você, foi aquela tarde, aquela sombra no fim da avenida, eu ao teu lado, você não deu bola, o anjo que te cabia devia ser por demais angelical, mal suspeitava eu, um detector de anjos por natureza.
Você não se cansou deles até hoje e nem, nunca, se importa se eles baixaram ou não do céu para te transportar dum instante a outro.
(Uma vez um anjo me confidenciou que meu descaso com as palavras e seu significado é sinal de que duas asas se desenvolverão das minhas espáduas quando eu morrer.)
O anjo apareceu num canto da calçada e disse bom dia.
Levei um tempo para reagir. E quando reagi me limitei a dizer bom dia sem mostrar que sou bom em matar a bola no peito ou provar que tenho personalidade suficiente para não me espantar com saudações de anjos.
Que bom-dia delicioso, o anjo treplicou, sorrindo.
(E só então pude me dar conta do que é de fato o sorriso dum anjo. E a bondade. Tenho certeza de que meu bom-dia, ao contrário de delicioso, quando muito suscita um resmungo.)
Que bom que se deu o trabalho de dar uma palavrinha comigo assim logo cedo e de surpresa. Que boa surpresa.
Vim ao mundo só assim por vir, como a gente vem numa loja de antiguidades desarmado até mesmo da curiosidade, sabendo que não veremos nada de interessante. E vi seu bom-dia e sorri feito menino que ganha um presente inesperado. Pensei muito antes de chamar o anjo de anjo. Sei que é cafona. Tenho um alarme especial contra cafonices desse gênero.
Pensei e pensei e pensei mas não me ocorreu nada mais apropriado.
Afinal, como é que se pode qualificar um anjo que te chama logo cedo de manhã anunciando a própria alegria e prenunciando alvíssaras? Arauto?
Bem, podia ser. Talvez arauto matutino. (Arauto tem gênero? Arauta? Sabe que não sei. Nunca vi.)
Ora, pensei de novo, anjo a gente chama de anjo e pronto. Sem mistério. Deixemos os mistérios só para o anjo em si. Pois não devem existir anjos sem mistérios, devem?
Talvez aí não fossem anjos. Quem sabe simplesmente belas sedutoras mulheres cujo encanto morre uma vez defunta a sedução. E sei que a sedução é, das virtudes, a mais efêmera.
E fugaz. Pode não durar um dia. Dependendo, sequer uma hora, meia, um quarto.
Um bom-dia assim de tocaia, destinado a cravar uma flecha no coração dum homem,  fazendo dele o mais risonho das vítimas, um bom-dia assim feito um raio que em vez de chocar encanta e cativa, um bom-dia assim angelical e doce, um bom-dia assim que deverá durar para sempre.
E ecoar nos meus olhos a cada dia, mesmo quando eu já não puder mais voar, mesmo quando eu estiver me esforçando para encobrir sua imagem na minha cabeça com pensamentos pretensamente saneadores, pensamentos tristes e vãos, fulgurando em cada um dos meus sentidos talvez contra minha própria vontade e deliberação de seguir avante, tentando me convencer inutilmente de que, queira ou não, sou um homem adulto e devo me portar à altura se pretendo sobreviver.
Como era de esperar, violei a angelicalidade do meu anjo. Não ria nem tripudie. Não quero me ver ridículo uma vez mais.
Eis ele(a) às voltas com as tarefas do seu mundo e com seu mundo que dá voltas cada vez mais rápidas.
Voltearão, claro. Como não se volteariam? Não é esta uma das leis pétreas e imutáveis da existência?
Uma das leis contra a qual deixei de lutar há milênios. E cuja luta vejo meu anjo ainda travando com todo empenho. E angústia.
Vou parar por aqui. Bom dia, anjo.
Que teu trabalho seja repleto de felizes e graciosos poetas seres.

Nenhum comentário:

Postar um comentário