Hemorrágico tempo

Quero o equilíbrio precário do equilibrista zonzo
O poema impossível do poeta alérgico à poesia
Segura minhas mãos, joga fora teus sonhos
E esperanças
Me dá o que tens de imprestável
Desprezível e sujo
Aperta minhas mãos com toda força
Quero o que não queres dar
A eternidade do que não ousas pensar
O amor de quem não sabe amar

Esqueço de ficar alerta para as surpresas da vida
E tenho essa mania de cultuar descrenças

Uma noite, há milênios, a cabeça ainda afundando no travesseiro de penas de ganso, tracei um plano:
Responderia a todas as perguntas com poesia
E desde então quem só me fez perguntas fui eu mesmo
Perguntas que, enfim concluí, não têm resposta
Mesmo na escuridão que inunda os olhos arregalados dum moleque insone a se revirar na cama tentando fugir da ideia mortificante de que tudo se acabe o mais breve possível

Agora entendo por quê
Sonho sonhos lastimáveis
E se não sonhasse
Me levantaria agora mesmo
E sairia e
Rondaria meu quintal
E perscrutaria as sombras

Perscrutar sombras, que enorme bobagem
Quem perscruta sombras?
Quem já perscrutou sombras neste mundo?
Poe? Baudelaire? Os góticos?
Coveiros? Fantasmas?
Não me interessa o que está além da luz

Fechei os olhos, um anjinho
Um anjinho que nunca tinha visto
Nem nunca imaginei existisse
Se pôs a traduzir para mim
Meus pensamentos
Conhecedor da minha língua
Explicou que eu nunca seria obrigado a seguir regras, honrar compromissos, cumprir horários
E que, no auge, eu seria o maior exterminador de anjinhos que o mundo já conheceu

Se não o exterminasse, me prometeu
Me decifrar e cuspi uma catarrada em seu
Rostinho angelical

Minha teoria estava certa
Todas as pedras
De todas as cores
Todas as cores
De todas as pedras
Não passam por teus olhos

Conheci tanto nada na vida
Nadas que habitavam outro mundo que via de longe pertinho do horizonte que não era meu
E todas as dores
Algumas, queria cultivá-las como se cultivam pústulas abarrotadas de pus licoroso e flores venenosas que pudesse aspirar quando me sentisse vazio como me sinto todo o tempo
Ao vácuo prefiro a dor
Som nenhum, nada de penumbra: o mundo que manifeste sua vocação de ser o que é

Amanhã
Era o rei
O rei da arqueologia
Coveiro d’enxada vadia
No escuro da noite
Zumbi deitado
Paladino urbano
Durante o dia
Afundando a cova
A matutar, esse fosso
‘Barrotado de osso
Dos mil esqueleto
Que aqui depositei
Buraco repleto
Que a Morte levou
Na tarde letal
Alma seca
Alma vazia
De seus mortos vivos
Todos desaparecidos

Impossível

Não sou bom em identificar loucos. Mas reconheço no ato um sujeito que vai ficar maluco no futuro. É bater o olho e sentenciar comigo mesmo, questão de tempo.
Tempo quanto? Eis outro quesito em que também não sou lá essas coisas. No início achava que seria bico, claro. Mal avistava o doido de amanhã e já arbitrava o prazo de vencimento de sua lucidez: não dura seis meses e tenho dito.
No aprazamento é que me estrepava. Os pobres diabos acabavam endoidecendo de fato mas invariavelmente teimavam em descumprir minhas estimativas temporais. Até que certo dia, voltando da padaria onde fora comprar fósforo, cruzei c’um sujeito que morava nas redondezas lá da minha antiga casa. Quando nossos olhares se encontraram durante meio segundo como sempre ocorre com todos brasileiros que vagamos por algum motivo, ou mesmo sem nenhum, pelas calçadas deste país, confabulei com meu próprio íntimo, um tanto orgulhoso com minha sapiência, esse aí vai dar entrada no Charcot daqui uns oito meses; nove, no máximo.
De fato, uma semana depois do episódio um vizinho, carregando um saco de pãezinhos franceses, que, por mera coincidência, também encontrei no caminho da padaria – só que desta vez na ida e não na volta como na ocasião anterior –, me parou na calçada e, afetando aquele arzinho misterioso que os brasileiros costumamos afetar quando nos juntamos para falar dum terceiro, informou:
– Cara, ficou sabendo do Nestão?
– Nestão? Que Nestão?
– Aquele que mora nos fundos da casa da dona Deodorina.
– Dona Deodorina...? Cocei a cabeça.
– Aquele que descobriu que o filho é gay, cara!
– Ah, o Nestão! Que depois descobriu que o filho gay era petista!
– Isso!
– Que é que tem o Nestão?
– Tá sabendo não?
Sacudi a cabeça que não e a seguir fiz repetidamente que sim, tentando açular a verve do meu interlocutor para que desembuchasse duma vez por todas.
– Foi internado...
De repente tudo se iluminou dentro da minha cabeça num poderoso insight. O Nestão, pequepê.
– Internado onde?
– No Instituto Charcot. Coitado do pai dele. Tá inconsolável.
Me senti triste e decepcionado. Triste pelo Nestão, decepcionado por ter errado em mais de sete meses o prazo de sobrevida da capacidade do Nestão em discernir as coisas.
Não podia continuar sendo inconsequente com meus dementes do porvir e assim tomei uma decisão: limitar-me-ia a lhes diagnosticar a condição clínica. A partir daquele dia deixaria para o santo padroeiro dos descabeçados o cálculo para a chegada da ambulância do Samu. Vocês sabem, um parricida para mim tem mais caráter que um leviano.
Bem, só agora vejo que sofri mais uma recaída na Síndrome do Verissimo. Me perdoem, peço. Tudo que posso dizer é, acontece.
Retomo a partir daqui meu tema e, mais importante, a forma como gosto de abordar meus temas.
A arte de identificar futuros loucos não é tão difícil quanto possa soar. Na verdade nem sei se chamá-la de arte seria apropriado. Classifico assim simplesmente porque estou mais próximo – e aqui não vai nenhum juízo de valor – do mundo culto, i.e., aquele em que existe o costume de cultivar o conhecimento e passá-lo adiante através de métodos formais. Um mundo não culto seria aquele em que se transmite o conhecimento empregando outros meios. Se fosse uma ocupação reconhecida oficialmente, não duvido que algum burocrata não hesitaria em categorizá-la como O ofício de identificar futuros loucos para, ato contínuo, uma repartição qualquer da Receita Federal tascar oitenta por cento de imposto de renda sobre o exercício de tal ofício.
Tem pouco a ver com arte, em conclusão. Uma artimanha, talvez? Engenho? Gosto muito de malícia, que é que acham? A malícia sempre exerceu um fascínio tremendo sobre esta minha índole quase selvagemente fantasiosa. Aprendi muito cedo a identificar os maliciosos – e invejá-los. É da malícia que se originam várias outras virtudes que igualmente invejo em certos bem-dotados na arte de enganar a vida. A lábia, por exemplo. Ah! daria qualquer coisa para ter lábia.
Comecei a compreender – e reconhecer – os experts da lábia quando comecei a compreender o poder da palavra. Tinha uns seis, sete anos, mas lembro como se fosse ontem. Fiquei maravilhado a primeira vez que meu pai me levou no estabelecimento dum comerciante na “cidade” e travei meu primeiro contato c’um vendedor. Um procênio de teatro se descortinou na frente dos meus olhinhos inocentes de neto de imigrantes italianos que se entregaram obstinadamente à lavoura – e a intolerável solidão da lida com a terra. O vendedor me revelou um mundo em que a troca das palavras entre dois ou mais viventes não precisavam obedecer à lógica do utilitarismo que seguíamos caninamente dentro de nossa casinha de cumpridores da lei e da ordem. Fui descobrir, alguns anos depois, que acabara de travar contato c’uma das infinitas variações do comportamento das pessoas. E ainda outros anos depois descobri que a lábia era o truque aplicado por aqueles com pendores a expandir suas personalidades e assim seduzir e quem sabe ser aceitos e quem sabe ser amados e então talvez pôr em prática seu experimento pessoal de felicidade.
Continuo tendo problemas em identificar loucos.
E continuo identificando loucos futuros sem problemas.
É aquele brilhozinho no olhar deles.
Que é que posso fazer?
Me diga!
Se o olhar deles tem aquele brilhozinho, a culpa não é minha. Em algum ponto do futuro haverão de perder a razão, a capacidade de atentar para as palavras dum interlocutor, a capacidade de cuidar de sua própria sobrevivência.
Imagino que a incapacidade de cuidar da própria sobrevivência seja o sintoma mais flagrante de loucura.
Se você soltar um sujeito no meio do deserto da Califórnia, será fácil identificar sua insanidade se ele se deter ante um daqueles cactos enormes para apreciar uma daquelas espetaculares flores carmins que só os cactos são capazes de engendrar. Nós outros não insanos trataríamos de olhar o horizonte em busca do mais próximo sinal de civilização.
Tento não entrar numas quando dou c’um futuro louco. A gente nunca sabe. Escuto obediente tomando o cuidado de captar pelo menos metade do arrazoado do candidato a maluco, para o caso de ele me sabatinar em seguida. Sim, já caí numas esparrelas do tipo. Os futuros loucos são astuciosos. Cultivam – e dominam – uma lábia que é só deles. A lábia dos loucos. Que em seus grandes dias emana dos finos lábios dos loucos que, aliados àquele brilhozinho indefinível em seu olhar que aprendi a definir, tem ajudado a me esgueirar pelas frestas e brechas do enlouquecimento sensato e sadio do mundo dos sãos.

Agora, sim

Vou pelo dia e pela noite descobrindo pedrinhas literárias. Ponto.
Até podia me autodesignar um Descobridor de Pedrinhas Literárias se desse importância pr’essas coisas.
Algumas delas até luzem e reluzem sob este meu céu sem lua ou enigmas
Se fosse esperto, bem esperto, esperto como esses espertalhões que abarrotam o mundo, as podia colher, quem sabe abarrotar com elas um baú e no fim dum dia, dum ano, duma vida me sentar pachorrento na tampa do desgraçado ao fim da tarde, pernas bem abertas pra que não duvidassem da minha masculinidade, pernas balangando pra que não notassem minha perplexidade
E, cruzando os braços pra que me tomassem por um desses viventes satisfeitos de viver, me declarar dono dum tesouro
Cada uma dessas pedrinhas vale menos que um grão de areia
Inda se fossem remanecentes dum espelho estilhaçado
Teriam algum valor se nunca as olhasse
Valeriam um caco de vidro – com o relativíssimo valor que possa vir a ter um caco de vidro – se nunca as descobrisse

Poema a contragosto

Descobri que a primeira paixão que me atingiu na vida me fez inconstante
E eu que nunca acreditei em nada
Comecei a crer que o tempo não é um só
O tempo é vário
Pessoa e seus milhões de imitadores surraram tanto a variedade das coisas
Que é que posso fazer se sou vário igualmente?
Mesmo não sendo Pessoa mas pessoa somente
Passo e sou passado pelo passado, pelo presente
Sem me lembrar se me recordo

Boa noite

Não me olha.
Não me olha com essa cara.
Não me olha com essa cara de provocação.
Não me olha com essa cara de provocação e insolência.
Não me olha com essa cara de provocação e insolência e perplexidade.
Não me olha com essa cara de provocação e insolência e perplexidade e desamparo.
Vejo nos teus olhos.
O brilho da vida eterna.
Te traí.
A chama se apagou, você imaginou um sopro de Deus.
E botou a culpa em mim.
Estava, juro, prendendo a respiração.
Deuses para deuses até a primeira traição. E maior não pode haver.
Não estamos no necrotério, bem sei.
Não vejo teu cadáver diante de mim.
Não preciso do odor nauseabundo das velas apagadas pra saber .
Não posso te dar nada de que me pedes.
Só me pedes o que não te posso dar.
Não posso te pedir nada do que me dás – só me dás o que não te peço.
Um dia tive um filho e tiraram uma foto minha com meu filho e chorei me imaginando olhando a foto doze anos depois e tudo devia ter se acabado.
Tantas vezes tudo devia ter se acabado.
Me comovia às lágrimas.
Me comovia às lágrimas quando via.
Via tão pouco.
Tão pouquissimamente pouco.
Raspava os ombros nos muros ásperos nos sábados à noite e bebia e ria e conversava e voltava para casa e dormia até a manhã seguinte até que descobri a existência do amor maternal
E vislumbrei que na minha vida talvez pudesse haver um momento repousante e pacificador em que nunca me surpreenderia com minha relutância em crescer quando me ocorresse que um dia tive alguém que me amou acima de todas as coisas e de todos os males.
E a solidão não crescia a ponto de ocupar cada vazio do meu espírito e o último suspiro exalado entre meus lábios flácidos não seria sorry. 

Este, sim, é o ralo

A coisa tá preta quando você começa a escrever sobre escrever e não para mais. Venho tentando me proibir há sei lá quanto tempo, inutilmente. Não era pra ter virado meu grande, meu único tema. Não fiz tudo que podia, e devia, ter feito pra evitar, reconheço. Uma das razões? Uma das razões é que abusei da minha regalia de escrever sobre escrever como ponte para chegar em outros assuntos. No início, lembro bem, surtia efeito. Com o uso frequente do truque, fui ficando pela metade. Aproveitando o fim para atingir o meio. Deu no que não deu.
Mas, atenção, não estou desmerecendo a qualidade superior da minha escrita. Continuo escrevendo muito melhor que todo mundo e seu taquígrafo. Tanto é assim, que só uns poucos eleitos me compreendem. O resto, vejo pelo relatório do google, passa batido quando se dá conta de que não será aqui que encontrarão trocadilhos do José Simão ou piadinhas de papagaio do Verissimo. São esses que mais curto. Pois é deles o mundo. E a eles deixarei este vale de lágrimas quando me for, quacquac.
O problema não é simplesmente que escrever sobre escrever seja o problema.
O problema é o mesmo problema de todo escritor – todo escritor que se leve minimamente a sério: reescrever, a cada novo dia, e noite, sobre seu tema predileto, e, como em meu caso, quase exclusivo, de forma a não soar intoleravelmente repetitivo. Pense num grande escritor – qualquer um menos Shakespeare – e verá que o sujeito dedicou a existência e a pena a desemaranhar o mesmo novelo – repetida, obsessiva, quase cegamente. Quer saber o que acho disso? Acho que é uma sina – nada de esotérico ou místico aqui. Uma luta, nada mais, para fugir da maior das nossas penitenciárias: a que nos condenou a ser o que somos.
Quero crer, vocês haverão de convir, não é pouca batatinha.
Vocês sabem, não há fuga possível desse presídio. Nem tampouco há conciliação íntima possível em prosseguir prisioneiro.
As consequências parecem tão óbvias, não parecem?
Não mereço maior rigor em minha pena que a aplicada aos que trocam de carro ano a ano ou se colocam nas “mãos” dos astros ou das cartas ou se entregam ao halo envenenado da tevê. Tantas vezes duvido do meu caminho. E tantas vezes me pego matutando por que raios fui escolher o mais difícil – o meu. E a razão de ter escolhido o que escolhi – por ser meu. Seria tão simples ter me preparado para entrar numa concessionária e me tornar o feliz proprietário dum Peugeot zerinho. O caminho talvez seja o tema mais batido, com perdão do trocadilho, dos poetas desde que o mundo existe. “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar.”
O poeta é um incrédulo antes de ser irreverente, porra-louca, iconoclasta, engraçadinho ou o que quer que seja que o “público” espera que seja. Duvida tanto mais quanto mais lhe assegurem que a direção a seguir é aquela. E o poeta bem-sucedido – os há, acho – é aquele que atingiu a maturidade sobrevivendo a doses dinossáuricas de ceticismo. Sim, os há. Exemplos não faltam no grand monde literário. Qual Drummond, os exitosos enveredam pelo caminho do funcionalismo, onde podem usufruir do mais tenro pão de cada dia sem calejar as mãos.
O inverso não é verdadeiro, porém, - escolher um caminho próprio não faz de ninguém um poeta. Muito pelo contrário.
Pelo contrário, pelo contrário. Pelo contrário.